Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 653/2020-T
Data da decisão: 2021-09-30  IRS  
Valor do pedido: € 23.932,86
Tema: IRS – Não residentes. Mais-Valias imobiliárias.
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Sumário:

 

A fixação da matéria coletável em 50% apenas para as maisvalias realizadas por sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia que não optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.º do Código do IRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

1. A..., contribuinte n.º..., residente em ..., ..., ... ..., Espanha (adiante “Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.º 2, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2020..., relativo ao ano de 2019, requerendo a anulação da liquidação impugnada, com todas as legais consequências, nomeadamente o reembolso do montante de imposto indevidamente pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

Em substância, o Requerente alega que o tratamento distinto, no que respeita ao apuramento da mais-valia tributável, consoante se trate de uma situação puramente interna (em que o saldo entre as mais e menos-valias é considerado em apenas 50%) ou de uma situação transfronteiriça (o regime supletivo aplicável implica o apuramento da mais-valia correspondente à totalidade do saldo entre mais e menos-valias e não somente a 50%), com benefício para a primeira, viola a liberdade de circulação de capitais, por implicar um tratamento discriminatório dos não-residentes (artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), trazendo à colação, para o efeito, os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferidos no processo C-443/06, de 11 de outubro de 2017 e no processo C-184/18, de 6 de setembro de 2018, bem como diversos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente os acórdãos proferidos no âmbito dos processos n.os 439/06 de 2008.01.16; 1031/10 de 2011.03.22; 1374/12 de 2013.04.30; 0699/15 de 2015.11.18; 1172/14 de 2016.02.03; e 0901/11.0BEALM 0692/17 de 2019.02.20, e do Tribunal Central Administrativo Sul, caso do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1358/08.9BESN, de 2019.05.08, e ainda da jurisprudência constante dos tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD, de que são exemplo as decisões emitidas nos processos n.os 45/2012-T de 2012.07.05; 127/2012-T de 2013.05.14; 748/2015-T de 2016.07.27; 89/2017-T de 2017.07.05; 644/2017-T de 2018.05.30; 520/2017-T de 2018.06.04; 617/2017-T de 2018.06.22; 370/2018-T de 2019.01.18; 548/2018-T de 2019.04.08; 583/2018-T de 2019.04.15; 74/2019-T de 2019.05.22; 613/2018-T de 2019.05.29; 596/2018-T de 2019.06.11; 590/2018-T de 2019.07.08; 67/2019-T de 2019.08.27; 208/2019-T de 2019.10.16; 787/2019-T de 2020.03.30; 438/2019-T de 2020.04.03; 823/2019-T de 2020.04.23; 764/2019-T de 2020.04.30; 785/2019-T de 2020.05.21; 804/2019-T de 2020.05.22; 655/2019-T de 2020.06.19; 757/2019-T de 2020.06.26; 771/2019-T de 2020.07.22; 762/2019-T de 2020.07.27; 820/2019-T de 2020.07.31; 790/2019-T de 2020.08.27.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (Autoridade Tributária).

Na sua resposta, a Autoridade Tributária, em sede de impugnação, refere que tendo em conta o teor do Acórdão C-443/06 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte: «9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.». Por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que: «10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»

Refere também a Autoridade Tributária que, consultada a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS entregue em nome do Requerente, verifica-se que este podia ter optado pela tributação como residente em território português e assim beneficiar do pretendido, mas não o fez, optando assim pela tributação pelo regime geral.

Por outro lado, a Autoridade Tributária sublinha que o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.º 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.

A Autoridade Tributária cita ainda as conclusões do advogado-geral, de 19 de novembro de 2020, no âmbito do Processo prejudicial C-388/19 (Processo CAAD nº 598/2018-T), bem como a declaração de voto do Exmo. Senhor Conselheiro Gustavo Lopes Courinha, no Processo 75/20BALSB (Recurso para uniformização da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa), da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, que admitem uma tributação das mais-valias diferenciada entre residentes e não residentes, sem que isso consubstancie uma violação do artigo 63.º do TFUE.

A Autoridade Tributária admite, por fim, que se possa questionar através de reenvio prejudicial a interpretação do direito europeu aplicável ao caso concreto.

 

2. No seguimento do processo, o Requerente respondeu ao pedido de suspensão da instância e reenvio prejudicial formulado pela Autoridade Tributária, pronunciando-se pela sua improcedência e pedindo a condenação da Requerida em litigância de má-fé, com a consequente aplicação de sanção pecuniária a ser fixada pelo Tribunal e em montante nunca inferior a 5% do valor da causa.

Por despacho arbitral de 17 de Junho de 2021, a Requerida foi notificada para, ao abrigo do princípio do contraditório, se pronunciar, querendo, sobre o pedido de condenação em litigante de má-fé formulado pelo Requerente.

Por requerimento de 23 de Junho de 2021, a Requerida pronunciou-se pelo indeferimento do pedido de condenação como litigante por falta de fundamento legal. 

Por despacho arbitral de 28 de junho de 2021, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e prosseguimento do processo para alegações.

Apenas veio o Requerente apresentar alegações, mantendo a sua anterior posição, pedindo ainda a retificação do valor da causa indicado, para € 11.966,43.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Requerida nos termos regulamentares.

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.°da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03 de Maio de 2021.

 

II – Saneamento

4. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não há exceções ou questões prévias a apreciar.

O processo não enferma de nulidades.

Cabe apreciar e decidir.

 

III – Fundamentação

5. Os factos relevantes para a decisão da causa tidos como assentes são os seguintes:

A)           Em 16 de abril de 2019, o Requerente vendeu o prédio inscrito sob o artigo matricial n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, pelo valor de EUR 365.000,00.

B)           Com a referida venda, suportou despesas no valor de EUR 13.468,50.

C)           O Imóvel foi adquirido em junho de 2018, pelo valor de EUR 266.057,00.

D)           À data da venda, o Requerente era residente fiscal no Brasil, estatuto que conservou até 29 de junho de 2019.

E)            A partir de 1 de agosto de 2019, o Requerente passou a ser considerado residente fiscal em Espanha.

F)            Em 27 de maio de 2020, o Requerente apresentou a declaração Modelo 3 de IRS, na qual indicou ser residente em Espanha, por ser esse o estatuto que detinha no termo do período de tributação em referência.

G)           Da declaração Modelo 3 de IRS entregue resultou a emissão da liquidação de IRS n.º 2020..., com um imposto a pagar no montante de € 23.932,86.

H)           O pedido arbitral deu entrada em 20 de Novembro de 2020.

 

O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, evidenciando-se que existe o consenso das partes quanto à mesma.

 

Factos não provados

Não existem factos não provados que tenham relevância para a decisão da causa.

 

Matéria de direito

5. A questão essencial em debate é a de saber se a não aplicação, a cidadãos da União Europeia não residentes em Portugal, do regime de exclusão de tributação de 50% das mais-valias imobiliárias, previsto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS e aplicável a contribuintes residentes, é ou não incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A Autoridade Tributária defende, em resumo, que a alteração operada por via da introdução dos atuais n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, veio permitir que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território, opção essa que, no caso em apreço, não foi exercido pelo Requerente.

Do ponto de vista do Requerente, a aquisição e venda de bens imobiliários está incluída no âmbito objetivo da liberdade de circulação de capitais e no que respeita ao apuramento do saldo de mais-valias, residentes e não residentes devem considerar-se em situação similar. No entanto, segundo o Requerente, existe um tratamento distinto, no que respeita ao apuramento da mais-valia tributável, consoante se trate de uma situação puramente interna ou de uma situação transfronteiriça, com benefício para a primeira, que viola a liberdade de circulação de capitais, por implicar um tratamento discriminatório dos não-residentes (artigo 63.º do TFUE).

Por outro lado, sublinha o Requerente, resulta, de forma inequívoca, da jurisprudência dos Tribunais Arbitrais a funcionar junto do CAAD, a desconformidade do atual artigo 43.º, n.º 2, alínea b) do Código do IRS com o Direito da União Europeia, não obstante as alterações introduzidas ao artigo 72.º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro.

Sobre a questão em discussão, o TJUE pronunciou-se recentemente sobre a mesma, em sede de reenvio prejudicial, no âmbito do caso MK (C-388/19, de 18 de março de 2021), com origem num Tribunal Arbitral constituído sob a alçada do CAAD.

No âmbito do referido processo, questionava-se se os artigos 18.° e 63.° a 65.° do TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à regulamentação de um Estado Membro que, para permitir que as mais valias provenientes da alienação de imóveis situados nesse Estado Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais valias realizadas por um residente do primeiro Estado Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.

Tendo começado por afastar a relevância do artigo 18.º TFUE de acordo com o critério da especialidade, o TJUE utilizou a seguinte fundamentação que, pela sua clareza se transcreve:

 «26. No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, tratando se de mais valias realizadas no momento da alienação onerosa de um bem imóvel situado em Portugal, o artigo 43.°, n.° 2, e o artigo 72.°, n.° 1, do CIRS previam regras de tributação diferentes consoante os sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento residissem ou não no território desse Estado Membro.

27. Em especial, nos termos do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, as mais valias realizadas por residentes no momento da alienação de bens imóveis situados em Portugal eram apenas consideradas em 50 % do seu valor. Em contrapartida, para os não residentes, o artigo 72.°, n.° 1, do CIRS previa a tributação dessas mesmas mais valias sobre a totalidade do seu montante à taxa autónoma de 28%.

28. Daqui decorre que, em aplicação destas disposições, a matéria coletável deste tipo de mais valias não era a mesma para os residentes e para os não residentes. Assim, no que diz respeito à venda de um mesmo bem imóvel situado em Portugal, no caso de realização de mais valias, os não residentes estavam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que era aplicada aos residentes, encontrando se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos (v., neste sentido, Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann, C 443/06, EU:C:2007:600, n.° 37).

29. Com efeito, enquanto, por força do artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, um não residente era tributado a uma taxa de 28 % aplicada sobre a matéria coletável correspondente à totalidade das mais valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável das mais valias realizadas por um residente permitia que este beneficiasse sistematicamente de uma carga fiscal inferior a esse título, qualquer que fosse a taxa de tributação aplicada à totalidade dos seus rendimentos, uma vez que, segundo as observações apresentadas pelo Governo português, os rendimentos dos residentes estavam sujeitos a um imposto de acordo com uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado era de 48 %, isto embora se pudesse aplicar uma taxa adicional de solidariedade de 2,5 % a rendimentos coletáveis de 80 000 euros a 250 000 euros e de 5 % acima desse valor.

30. Ora, no Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann (C 443/06, EU:C:2007:600, n.° 40), o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de declarar que a fixação, pelo artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, de uma matéria coletável de 50 % para as mais valias realizadas apenas por sujeitos passivos residentes em Portugal, e não por sujeitos passivos não residentes, constituía uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.° TFUE.

31. Esta constatação não é posta em causa pelo n.° 44 do Acórdão de 19 de novembro de 2015, Hirvonen (C 632/13, EU:C:2015:765), no qual o Tribunal de Justiça declarou que uma diferença de tratamento entre contribuintes não residentes e contribuintes residentes, que consiste em sujeitar os rendimentos brutos dos primeiros a uma tributação a título definitivo a uma taxa única, através de retenção na fonte, ao passo que os rendimentos líquidos dos segundos são tributados de acordo com uma tabela progressiva que inclui um abatimento de base, é compatível com o direito da União, na medida em que essa constatação está sujeita, todavia, à condição de a taxa única não ser mais elevada do que a taxa resultante da aplicação efetiva para o interessado da tabela progressiva aos rendimentos líquidos que excedem o abatimento de base. Ora, no caso em apreço, como resulta do n.° 29 do presente acórdão, o regime de tributação diferenciado em causa conduz a que os não residentes sejam sistematicamente sujeitos a uma carga fiscal superior à aplicada aos residentes aquando da realização de mais valias sobre a venda de imóveis.

32. Nestas condições, a fixação da matéria coletável em 50% para as mais valias realizadas por todos os sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos não residentes que optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE.»

 Quanto à existência de uma justificação para as restrições à livre circulação de capitais à luz do artigo 65.°, n.os 1 e 3, do TFUE, o TJUE recorreu à fundamentação que se transcreve:

 «36. Ora, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes prevista pela regulamentação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis. Além disso, esta diferença de tratamento não é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.

[...]

39. Esta constatação não é posta em causa pela ratio legis do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, que prevê o abatimento de 50 % aplicável às mais valias realizadas pelos residentes, que, segundo o Governo português, consiste em evitar a tributação excessivamente onerosa desses rendimentos considerados anormais e fortuitos, na medida em que nada permite excluir que essa consideração não possa vir a dizer respeito aos sujeitos passivos não residentes.»

 Por último, quanto à opção de tributação segundo as mesmas modalidades que os residentes, o TJUE apresentou a seguinte fundamentação:

 «42. Antes de mais, há que salientar que a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.°, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.°, n.° 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, e outro que não o é.

43. Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

44. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.° TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, EU:C:2010:148, n.° 52).

45. Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, EU:C:2010:148, n.° 53 e jurisprudência referida).

46. Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.° 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.»

No respeito pela primazia do direito da União Europeia sobre o direito nacional e pela autoridade interpretativa do TJUE, e tendo presente a proximidade dos factos e a identidade das normas analisadas no caso MK (C-388/19), acolhe o presente tribunal o entendimento propugnado pelo TJUE, considerando que a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS estabelece uma discriminação injustificada entre residentes e não residentes relativamente à tributação de mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados em Portugal, incompatível com o artigo 63.º do TFUE, devendo, por conseguinte, ser declarada a ilegalidade parcial e anulação da liquidação de IRS de 2019 n.º 2020..., com todas as consequências legais.

 

Reenvio prejudicial

Do exposto decorre, com clareza, ser desnecessário o recurso ao reenvio prejudicial ou à suspensão da instância, não subsistindo, pois, quaisquer dúvidas de que a liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, na parte que considerou como base tributável o valor total da mais-valia realizada pelo Requerente no ano fiscal de 2019, enferma de ilegalidade por violação do direito da União Europeia, tal como declarado pelo TJUE.

 

Do direito a juros indemnizatórios

O Requerente solicita que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Nos termos do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.

No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do atos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, o Requerente efetuou o pagamento de importância manifestamente indevida.

Resulta, também, dos autos, que a ilegalidade do ato de liquidação objeto do presente processo é diretamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, padecendo de errada aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.

Reconhece-se, assim, ao Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art. 43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).

 

Da litigância de má-fé

O Requerente, em requerimento, solicita a condenação da Requerida como litigante de má-fé alegando, para o efeito, o seguinte:

«12. Ora, no presente caso, a Requerida, tem evidentemente conhecimento da jurisprudência clara e consistente dos tribunais nacionais e do TJUE sobre a matéria constante dos autos.

13. É especialmente chocante a omissão do Acórdão do TJUE proferido no âmbito do processo C-388/19, de que a Requerida é parte, optando, antes, as ilustres representantes da Requerida por apenas referir as conclusões do Advogado-Geral.

14. Ora, em face do comportamento adotado pela Requerida no presente processo, que evidentemente diverge do habitualmente adotado em situações idênticas, e que tem como único propósito a colocação de obstáculos à prolação de uma decisão justa sobre o mérito da causa, deverá a Requerida ser condenada por litigância de má-fé, sendo condenada no pagamento de uma sanção pecuniária a fixar nos termos do disposto no artigo 543.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (ex vi artigo 104.º, n.º 1 da LGT).»

A Requerida, em cumprimento do princípio do contraditório, respondeu, em suma, que a litigância de má-fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, põe em causa os princípios da cooperação e da boa-fé processual, que têm subjacente a boa administração da justiça, sendo que, na situação em apreço, a sua atuação pautou-se por uma atuação com respeito ao principio da legalidade, previsto no n.º 2 do art. 266.º da Constituição da Republica Portuguesa, limitando-se a atuar de acordo com as normais legais e orientações em vigor, com destaque para o despacho n.º 177/2021-XXII, datado de 2021-06-04, proferido pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

O artigo 104.º, n.º 1, da LGT estabelece que «a administração tributária pode ser condenada numa sanção pecuniária a quantificar de acordo com as regras sobre litigância de má-fé em caso de atuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adotado em situações idênticas».

No caso em apreço não se poderá concluir que a Requerida litigou de má-fé nos termos daquele preceito legal porquanto, in casu, não atuou contra o teor de informações vinculativas, nem o seu procedimento divergiu do habitualmente adotado em situações idênticas conforme a previsão daquele preceito legal. Com efeito, a Requerida limitou-se a defender os seus interesses e a sua posição com base na argumentação jurídica que entendeu mais adequada, em termos, aliás, semelhantes ao que tem feito em muitos outros processos arbitrais, e em respeito com as orientações em vigor. 

Nestes termos, improcede este pedido de condenação em litigância de má da Requerida.

 

IV – Decisão

Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular o ato tributário objeto dos presentes autos, por violação de lei, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária, com as demais consequências legais;

b)           Condenar a Requerida a restituir ao Requerente o valor de imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, a contar da data em que foi efetuado o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito;

c)            Declarar a inexistência de má-fé na litigância da Requerida; e

d)           Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

V - Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 11.966,43, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPTA).

 

VI – Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao RCPTA, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se

Lisboa, 30 de Setembro de 2021,

  

O Árbitro

Francisco Melo