Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 650/2020-T
Data da decisão: 2021-11-09  IRC  
Valor do pedido: € 46.076,22
Tema: IRC – (in)impugnabilidade do ato – prova do preço efetivo.
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SUMÁRIO:

 

I.             O legislador consagrou, no artigo 139.º do Código do IRC, um mecanismo administrativo próprio para que os contribuintes possam ilidir a presunção legal do artigo 64.º do mesmo diploma, considerado como condição prévia da impugnabilidade do ato a liquidar que daí resulte.

II.            Sem que esse mecanismo seja acionado pelo contribuinte vê-se o mesmo interdito a aceder à via contenciosa contra o ato de liquidação que daí resultar.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            Em 19 de novembro de 2020, a A..., LDA, NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, doravante designado por “Requerente”, solicitou a constituição de Tribunal Arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), com vista, primeiro, à demonstração que o preço real da transmissão de um imóvel foi o declarado na escritura pública de compra e venda e não o que consta das correções levadas a cabo pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), ao abrigo do disposto no artigo 64.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), e depois, em consequência, com vista à declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2020..., de 14.05.2020, referente ao exercício de 2016, no montante de € 44.751,22, do ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2020..., de 18.08.2020, no montante de € 4.925,48, tudo, de acordo com o acerto de contas n.º 2020..., de 18.08.2020,  no montante de € 46.076,22 (quarenta e seis mil, setenta e seis euros e vinte e dois cêntimos) e sua consequente anulação.

 

2.            A Requerente é representada, no âmbito dos presentes autos, pelo seu mandatário, o Dr. B..., e a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira é representada pelas juristas, Dr.ª C... e Dr.ª D... .

 

3.            Verificada a regularidade formal do pedido apresentado, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, foi, o signatário, designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, e aceitou o cargo, no prazo legalmente estipulado.

 

4.            O presente Tribunal foi constituído no dia 3 de maio de 2021, na sede do CAAD, sita na Av. Duque de Loulé, n.º 72 A, em Lisboa, conforme comunicação do tribunal arbitral singular que se encontra junta aos presentes autos.

 

5.            A Requerida, depois de notificada para o efeito, apresentou a sua resposta e o respetivo processo administrativo, no dia 7 de junho de 2021, defendendo-se por exceção e por impugnação.

 

6.            O Tribunal, por despacho de 14 de setembro de 2021, notificou a Requerente para, no cumprimento do princípio do contraditório se pronunciar sobre as exceções deduzidas pela Requerida.

 

7.            No dia 23 de setembro de 2021, a Requerente apresentou requerimento de resposta às exceções invocadas pela Requerida, sem que sobre as mesmas se tivesse pronunciado, expressa e diretamente, limitando-se a reiterar os argumentos tecidos no pedido de pronuncia arbitral que apresentou.

 

8.            Por despacho de 28 de setembro de 2021, o Tribunal, constatando não existir necessidade de prova adicional, para além daquela que documentalmente já se encontra incorporada nos autos, não se vislumbrando necessidade das partes corrigirem as respetivas peças processuais, reunindo o processo todos os elementos necessários para prolação da decisão, por razões de economia e celeridade processual, da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo dos princípios de autonomia do Tribunal na condução do processo, da simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT, entendeu ser de dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como, a apresentação de alegações.

 

9.            No despacho referido em 8. supra, o Tribunal determinou que a decisão final seria proferida até ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, aí se conhecendo das exceções invocadas pela Requerida e relativamente às quais a Requerente se pronunciou no requerimento que apresentou a 23.09.2021, e advertiu, por último, a Requerente que, até à data indicada, deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, e comunicar tal pagamento ao CAAD.

 

10.          No dia 2 de novembro de 2021, o presente Tribunal proferiu despacho nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, prorrogando o prazo da arbitragem por dois meses e indicando como data-limite para ser proferida a decisão, o dia 3 de janeiro de 2022. 

 

 

II. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, no seguinte:

 

Inicia a Requerente o pedido de pronuncia arbitral que aduz referindo que «a liquidação impugnada surge na sequência do procedimento de inspeção credenciado pela Ordem de Serviços n.º OI2018...», tendo na sua origem «o facto da A ter alienado um imóvel urbano no Concelho do Barreiro, por valor inferior ao valor patrimonial tributário, sem que tenha instaurado o procedimento destinado a fazer prova do preço efetivamente pago», pelo que, se propõe, nesta sede e através do pedido de pronúncia arbitral que apresentou e motivou a constituição do presente Tribunal a «demonstrar que o preço real da transmissão do imóvel controvertido foi o declarado na escritura pública de compra e venda».

 

Nesta sequência, defende a Requerente, que «o imóvel transacionado encontrava-se em estado de ruína», conforme resulta da «declaração de estado de ruína emitida no portal da SCE pelo perito qualificado E..., pelo que tem valor probatório de perícia», pelo que, «o preço efetivamente pago pela transmissão do imóvel foi definido tendo em conta as condições do imóvel na data em que foi transacionado».

 

Menciona a Requerente que «o ato de liquidação que incorpora a ação inspetiva por não ponderar as condições normais de mercado para edifícios em ruína violou o n.º 1 do artigo 64.º do CIRC. Acresce que a presunção que manda atender ao valor patrimonial tributário quando o valor constante do contrato de compra e venda for inferior é ilidível, conforme resulta do tero do artigo 139.º do CIRC», tendo a AT «desde o início informação sobre a perícia que classifica como ruína o imóvel transmitido. A partir da audiência prévia também a declaração do sujeito passivo que confirmou não só que o valor declarado era o valor real da transmissão, como requereu diligências de prova idóneas para o comprovar.», violando, desta forma, complementarmente o disposto no n.º 2 do artigo 64.º do CIRC.

 

Imputando, ainda, outros vícios à liquidação, por entender que a mesma se encontra ferida de ilegalidade por violação de diversos princípios procedimentais e constitucionais, a saber:

a)            princípio do contraditório previsto no artigo 8.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCIPTA);

b)           princípio do direito de audição, previsto no artigo 60.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), em virtude «da AT não ter realizado nenhuma das diligências requeridas pela contribuinte»;

c)            princípio da descoberta da verdade material, previsto no artigo 6.º do RCIPTA, face à desvalorização pela AT da «declaração de ruína para aferir o preço normal de mercado de um imóvel com aquelas características»;

d)           princípio do inquisitório, previsto no artigo 58.º da LGT, em virtude de a AT não ter realizado todas as diligências idóneas para averiguar o valor real da transmissão, mormente «quando em sede de audiência prévia o contribuinte declarou que o preço declarado na escritura era o preço efetivo da transmissão»;

e)           princípio da colaboração, previsto no artigo 59.º da LGT, atendendo a que «o que pressupunha que a AT tivesse realizado as diligências requeridas pela A que eram condição para fazer prova do preço efetivamente pago».

f)            princípio da tributação do rendimento real, previsto no artigo 104.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), porquanto, «a AT não pode cobrar imposto superior ao devido, e deve realizar as diligências requerida que se mostrem idóneas para apurar o rendimento real obtido com a transação»;

g)            princípio da justiça e boa-fé, previsto no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, defendendo que «a AT não pode sabotar todas as diligências requeridas pelo contribuinte, só porque sabe que: comprovarão que o preço declarado é o preço real da transmissão [e] impedirão a liquidação e cobrança de imposto superior ao devido.»

 

Peticiona, a final, que seja «o ato de liquidação impugnado (…) declarado nulo com fundamento na violação do n.º 2 do artigo 266.º da CRP e, anulado, com fundamento nas várias ilegalidades invocadas.»

 

III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

A Requerida, na Resposta que ofereceu, apresentou a sua defesa, por exceção e por impugnação.

 

No âmbito das exceções, invocou, a Requerida, por um lado, a exceção «da inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato» nos termos da qual sustenta que «o procedimento previsto no n.º 3 do art. 139.º do CIRC, que visa a demonstração pelo sujeito passivo de que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT, constitui uma condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretende discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis. É facto assente, conforme o confessa a requerente, que esta não acionou o referido procedimento de prova», pelo que, «não pode agora pretender impugnar as correções efetuadas pela AT pela aplicação do art. 64.º do CIRC.»

 

Concluindo, quanto a esta que «verifica-se a excepção da inimpugnabilidade do acto relativamente às correções que a AT levou a cabo considerando como valor de transmissão dos imóveis o correspondente VPT fixado.»

 

Por outro lado, invoca a Requerida a exceção «da incompetência material do tribunal arbitral para analisar a questão de que o preço real da transmissão do imóvel controvertido foi declarado na escritura pública de compra e venda», em virtude de entender que «vem a requerente pretender fazer, perante o Tribunal Arbitral aquilo que, em tempo, não fez perante a AT. Isto é, discutir o preço real praticado na aquisição do imóvel através do procedimento de prova regulado nos arts. 91.º e 92.º da LGT. Efetivamente, não tendo a requerente acionado tal mecanismo legal tinha a mesma que se conformar com a aplicação do n.º 2 do art. 64.º do CIRC, não podendo mais tentar ilidir a presunção legal constantes deste artigo (quer no procedimento inspectivo quer na presente instância arbitral).»

 

Concluindo no sentido de que «o Tribunal arbitral é incompetente, em razão da matéria, para determinar que o preço real da transação do imóvel é aquele que a requerente pretende decorrer da escritura de compra e venda que reflecte um valor inferior ao VPT.».

 

Por impugnação, rebate a Requerida os argumentos da Requerente, pugnando, pela improcedência dos mesmos, referindo para o efeito que «muito embora a transmissão de direitos reais sobre os imóveis em apreço tenha sido realizada por valor inferior ao VPT respetivo, a requerente não recorreu ao procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC, que lhe permitia fazer prova do preço efetivo na transmissão dos imóveis».

 

Assim, no âmbito do procedimento inspetivo aberto «com enquadramento na análise efetuada às declarações de rendimentos do ano de 2016, visando o controlo dos sujeitos passivos que alienaram direitos reais sobre bens imóveis e que não declararam (ou declararam de forma inexata), no quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22, os valores apurados nos termos do artigo 64.º do Código do IRC» foi a Requerente notificada para exercer o direito de audição que lhe assistia quanto às projetadas correções efetuadas pelos Serviços de Inspeção Tributária, tendo a mesma, no exercício desse direito, «como pretensa prova de que “o valor real da transação é o declarado na escritura de compra e venda”, juntar os doze extratos bancários mensais de 2016 da conta n.º ... de que a A..., LDA, era titular no BANCO F..., S.A., bem como, requereu a audição do perito que subscreveu a declaração de ruína, bem como da administradora da sociedade adquirente dos imóveis.»

 

Mais refere a Requerida que «face a tais elementos consideraram os SIT que (i) Nos extratos recebidos, não estão assinalados quaisquer movimentos (supostamente aqueles referentes ao valor recebido fruto da transação dos imóveis), e, por outro lado, não foi facultada qualquer prova de que aquela referida era a única conta da sociedade, em 2016. (ii) considerou-se não justificar a audição do perito, ponderada a limitação legal prevista no n.º 1 do art.º 64.º do CIRC, segundo a qual objetivamente devem ser adotados” (…) valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) (…)”.

 

Considera a Requerida que «como bem sabe a requerente se pretendia questionar o valor que constitui o VPT do imóvel teria que o fazer com recurso ao procedimento previsto no art.º 139.º do CIRC. Na verdade, sendo certo que a presunção de que prevalece o VPT quando o valor declarado no contrato de compra e venda for inferior àquele é ilidível, tal ilisão depende de procedimento próprio previsto e tipificado na lei.». Com efeito, «o procedimento previsto no n.º 3 do art.º 139.º do CIRC, que visa a demonstração pelo sujeito passivo de que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT, constitui uma condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretende discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões e direitos reais sobre bens imóveis.»

 

Acrescenta, ainda, que «a presunção ínsita no artigo 64.º, n.º 2 pode ser ilidida em procedimento especial, mediante requerimento previsto no artigo 139.º, apresentado em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões (neste caso, deveria ter sido até 31 de janeiro de 2017), estando o valor patrimonial tributário já definitivamente fixado (artigo 139.º, n.º 3)«, procedimento este em que «o sujeito passivo pode aduzir qualquer prova (documental ou testemunhal) em ordem a demonstrar que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do IMT.»

 

Na verdade, segundo a Requerida «o legislador confere, pois, no art. 139.º do CIRC, a possibilidade de o contribuinte poder ilidir uma presunção legal, facto que a requerente não pode contestar, uma vez que lhe é permitido contrapor, face ao que se encontra previamente estabelecido na lei, uma outra forma de determinação do lucro tributável. E, no caso, os pressupostos de que depende tal procedimento, destinado a contrapor um outro valor, um outro preço de transmissão do imóvel, destinam-se a esclarecer a verdade dos factos.

 

Continua a Requerida fazendo referência que «a lei estabeleceu um procedimento de prova que remete para os artigos 91.º e 92.º da LGT e que, por isso, implica a necessidade de promoção de uma reunião de peritos com a finalidade de se obter um acordo sobre o preço efectivamente pago pelo adquirente do imóvel. Por outro lado, também se determinou, desde logo, como forma de instrução desse procedimento, o acesso à informação bancária do sujeito passivo e dos respectivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período anterior.»

 

No caso em concreto, afere a Requerida que «não tendo a requerente accionado o procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC não pode mais questionar o preço efectivamente praticado nas transmissões de imóveis, restando-lhe conformar-se com a aplicação do n.º 2 do art.º 64.º do CIRC».

 

Refutando a alegada violação do princípio da tributação pelo rendimento real, aduz a Requerida que «a prevalência do princípio da tributação pelo rendimento real implica um aumento da cooperação exigida ao contribuinte que se traduz numa acrescida exigência dos seus deveres declarativos e de ónus de prova (…)» pelo que «não faz sentido invocar a necessidade de se assegurar uma tributação pelo rendimento real ou o respeito pela igualdade contributiva quando, ao mesmo tempo, o contribuinte se pretende eximir ao dever de colaboração para com a AT que visa determinar uma situação real reveladora da sua real capacidade contributiva. In casu, não acionando o procedimento de prova previsto no art. 139.º do CIRC».

 

Alega, assim, «que é manifestamente infundada a violação deste princípio constitucional. Assim como, pela mesma ordem de razões, é completamente infundado imputar ao procedimento inspectivo a violação do contraditório, da descoberta da verdade material (artigo 6.º do RCIPTA), do inquisitório (artigo 68.º da LGT) e da colaboração (artigo 59.º da LGT).»

 

E conclui, por um lado, no sentido de que «[e]fectivamente foram cumpridos todos estes princípios tendo em conta o que resulta da lei, art. 64.º conjugado com o art. 139.º do CIRC. O procedimento inspectivo em causa não fez mais do que cumprir a lei.», por outro, que «estando a AT no procedimento inspectivo vinculada ao princípio da legalidade e da tipicidade, não ocorre qualquer violação dos referidos princípios».

 

Termina pugnando pela procedência das exceções invocadas – que à frente se decidirão – e pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

 IV. SANEAMENTO

 

O Tribunal encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

A apreciação das exceções invocadas pela Requerida, na Resposta que ofereceu, quanto à «inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato» e à «incompetência material do tribunal arbitral para analisar a questão de que o preço real da transmissão do imóvel controvertido foi declarado na escritura pública de compra e venda», serão efetuadas na sequência da fixação da matéria de facto.

 

V. MATÉRIA DE FACTO

1.            Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

2.            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC).

 

3.            Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral da Requerente e Resposta da Requerida), à prova documental e ao processo administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

a.            Factos dados como provados

 

Com interesse para a decisão, dão-se por provados os seguintes factos:

A.           A Requerente é uma sociedade comercial, constituída sob a forma de sociedade por quotas, que exerce a atividade principal de «outras atividades de acabamento de edifícios», CAE 43390 e como atividade secundária «arrendamento de bens imobiliários», CAE 68200. – cfr. processo administrativo junto aos autos –;

B.            No dia 15 de novembro de 2016, através de escritura de compra e venda, a Requerente procedeu à transmissão onerosa de direitos reais sobre 18 frações do prédio urbano inscrito sob o artigo ... (anterior artigo ... da freguesia do ...-...), da União das Freguesias de ..., ... e ..., distrito de Setúbal, concelho do Barreiro, pelo valor global de € 320.000,00 (trezentos e vinte mil euros), distribuídos da seguinte forma: - cfr. processo administrativo junto aos autos -

                Fração/Artigo Matricial/Freguesia           Valor da alienação           VPT à data da alienação

1             A – ...-...               € 69.200,00         € 69.200,00

2             B–...-... € 15.040,00         € 43.720,00

3             C–...-... € 15.040,00         € 42.010,00

4             D– ...-... € 6.400,00           € 24.380,00

5             E– ...-... € 10.800,00         € 33.210,00

6             F–...-... € 15.040,00         € 37.990,00

7             G– ...-... € 15.040,00         € 38.260,00

8             H– ...-... € 17.280,00         € 40.790,00

9             I– ...-... € 17.280,00         € 40.790,00

10           J–...-...  € 15.040,00         € 38.190,00

11           L–...-... € 15.040,00         € 38.000,00

12           M–...-... € 17.280,00         € 40.270,00

13           N– ...-... € 17.280,00         € 40.490,00

14           O– ...-...               € 15.040,00         € 38.430,00

15           P– ...-... € 15.040,00         € 38.250,00

16           Q–...-... € 17.280,00         € 40.560,00

17           R– ...-... € 17.280,00         € 40.360,00

18           S–...-... € 9.600,00           € 35.900,00

 

C.            A Requerente não instaurou o procedimento destinado a fazer prova do preço efetivamente pago, previsto no artigo 139.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) – cfr. confissão da Requerente no artigo 2.º do pedido de pronúncia arbitral –

D.           No dia 22 de maio de 2017, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos -Mod. 22-IRC, com referência ao exercício de 2016, à qual foi atribuído o n.º de identificação..., no âmbito da qual declarou os rendimentos auferidos pela transmissão onerosa do imóvel identificado em B destes factos provados, pelo preço constante da escritura de compra e venda – cfr. processo administrativo junto aos autos - ;

E.            A contabilidade da Requerente foi objeto de uma ação de inspeção, de âmbito parcial, incidente sobre o IRC, relativamente ao exercício de 2016, realizada ao abrigo da Ordem de Serviço interna n.º OI2018... da Direção de Finanças de Lisboa, «aberta com enquadramento na análise efetuada às declarações de rendimentos do ano de 2016, visando o controlo dos sujeitos passivos que alienaram direitos reais sobre bens imóveis e que não declararam (ou declararam de forma inexata) no quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22, os valores apurados nos termos do artigo 64.º do Código do IRC.» – cfr. processo administrativo junto aos autos -;

F.            No dia 12 de março de 2020, a Requerente foi notificada para exercer, querendo, o direito de audição que lhe assiste pelo disposto nos artigos 60.º da Lei Geral Tributária e artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCIPTA) relativamente às correções propostas ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis por si alienados – cfr. processo administrativo junto aos autos -;

G.           Na sequência da declaração do estado de emergência que entrou em vigor em Portugal, e a consequente suspensão dos prazos judiciais, a Requerente, no dia 18 de março de 2020, apresentou requerimento através do qual requereu prorrogação do prazo para pronúncia no âmbito do direito de audição - cfr. processo administrativo junto aos autos -;

H.           No dia 29 de junho de 2020, a Requerente, através do seu mandatário, apresentou requerimento mediante o qual exerceu o direito de audição ao projeto de correções, oferecendo os argumentos e a documentação que entendeu por convenientes para sustentar a sua posição – cfr. processo administrativo junto aos autos -;

I.             Em julho de 2020, a Requerente foi notificada do Despacho da Senhora Chefe de Divisão II do Departamento C da Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, de 13.07.2021, do Parecer do Chefe de Equipa 25 da referida Divisão II, de 10.07.2020 e do respetivo Relatório de Inspeção Tributária, dos quais resulta a correção à declaração de rendimentos modelo 22 entregue pelo sujeito passivo, nos termos seguintes:

ANO 2016

Unid. euros

Descrição Mod. 22-Quadro 07    Valores

declarados         Correção              Valores

corrigidos

701         RESULTADO LÍQUIDO DO PERÍODO         23 734,16             0,00       23 734,16

745         Diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo e o valor contante do contrato

(art.º 64.º, n.º 3 al. a))  

0,00      

400 800,00         

400 800,00

777/

778         PREJUÍZO PARA EFEITOS FISCAIS / LUCRO TRIBUTÁVEL  

25 522,43           

400 800,00         

426 322,43

 

Da correção apontada para o exercício económico de 2016 (ao campo 745 do quadro 07 da modelo 22) decorre uma correção ao resultado tributável (lucro tributável/prejuízos para efeitos fiscais) de € 400.800,00 cuja repercussão na matéria tributável está dependente dos prejuízos ficais dedutíveis, nos termos do art. 52.º do CIRC, em virtude de o sujeito passivo ter declarado prejuízos fiscais em anos anteriores.» - cfr. processo administrativo junto aos autos -

J.             No final de agosto/início de setembro de 2020, a Requerente foi notificada da demonstração da liquidação de IRC com o n.º 2020..., de 14.08.2020, no montante de € 44.751,22, da demonstração de liquidação de juros n.º 2020..., de 18.08.2021, no montante de € 4.925,48, e da demonstração de acerto de contas n.º 2020..., de 18.08.2020, num montante a pagar de € 46.076,22 (quarenta e seis mil, setenta e seis euros e vinte e dois cêntimos) até à data-limite de 06.10.2020 – cfr. processo administrativo junto aos autos - ;

K.            No dia 19 de novembro de 2020, a Requerente apresentou pedido de constituição do presente Tribunal Arbitral.

b.            Factos dados como não provados

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Não existem factos dados como não provados, entendendo o presente Tribunal Arbitral que todos os factos dados como provados são os bastantes e relevantes para a apreciação do pedido.

 

VI- DO DIREITO

 

Questão prévia

Conforme acima enunciado, a Requerida, na Resposta que ofereceu, invocou duas exceções, a saber:

a)            “da inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato»

b)           «da incompetência material do tribunal arbitral para analisar a questão de que o preço real da transmissão do imóvel controvertido foi declarado na escritura pública de compra e venda».

 

Notificada para exercer, querendo, o princípio do contraditório, no que respeita a estas exceções, veio a Requerente apresentar um requerimento mediante o qual reforça o expendido no pedido de pronuncia arbitral, sem que, contudo, refutasse expressa e diretamente as exceções arguidas pela Requerida.

 

Assim sendo, e tendo em consideração que as exceções ínsitas poderão obstar ao conhecimento do mérito da causa e/ou importar a absolvição do pedido, nos termos do disposto no artigo 576.º do Código do Processo Civil aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT, serão, as mesmas, de imediato apreciadas. Vejamos,

 

Exceção “da inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato»

 

1.            No âmbito da exceção «da inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato», sustenta a Requerida que «o procedimento previsto no n.º 3 do art. 139.º do CIRC, que visa a demonstração pelo sujeito passivo de que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT, constitui uma condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretende discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis. É facto assente, conforme o confessa a requerente, que esta não acionou o referido procedimento de prova», pelo que, «não pode agora pretender impugnar as correções efetuadas pela AT pela aplicação do art. 64.º do CIRC.»

 

2.            Concluindo, após enunciação de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que «verifica-se a excepção da inimpugnabilidade do acto relativamente às correções que a AT levou a cabo considerando como valor de transmissão dos imóveis o correspondente VPT fixado.»

 

3.            Ora, no caso concreto, é prudente, desde logo, referir que, no pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo, a Requerente, nos artigos 2.º e 3.º admite e confessa,

 

4.            …por um lado, que «[n]a origem da inspeção está o facto da A. ter alienado um imóvel urbano no Concelho do Barreiro, por valor inferior ao valor patrimonial tributário, sem que tenha instaurado o procedimento destinado a fazer ‘prova do preço efetivamente pago»; (negrito nosso);

 

5.            … e por outro, que se propõe a «demonstrar que o preço real da transmissão do imóvel controvertido foi o declarado na escritura pública de compra e venda».(negrito nosso).

 

6.            Ora, conforme refere e bem a Requerida, a demonstração do preço efetivo ou real da transmissão de direitos reais, nas circunstâncias concretas do presente processo não podem, nem devem ser feitas nesta sede arbitral, mormente, quando a Requerente não acionou o procedimento existente para esse efeito e com esse intuito, previsto no artigo 139.º do Código do IRC.

 

7.            Prevê o artigo 139.º do Código do IRC, sob a epígrafe “Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis” que:

1 - O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo pode, designadamente, demonstrar que os custos de construção foram inferiores aos fixados na portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 62.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, caso em que ao montante dos custos de construção deverão acrescer os demais indicadores objetivos previstos no referido Código para determinação do valor patrimonial tributário.

3 - A prova referida no n.º 1 deve ser efetuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e apresentado em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.

4 - O pedido referido no número anterior tem efeito suspensivo da liquidação, na parte correspondente ao valor da diferença positiva prevista no n.º 2 do artigo 64.º, a qual, no caso de indeferimento total ou parcial do pedido, é da competência da Autoridade Tributária e Aduaneira.

5 - O procedimento previsto no n.º 3 rege-se pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 86.º da mesma lei.

6 - Em caso de apresentação do pedido de demonstração previsto no presente artigo, a administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respetivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização.

7 - A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correções efetuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.

8 - A impugnação do ato de fixação do valor patrimonial tributário, prevista no artigo 77.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e no artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, não tem efeito suspensivo quanto à liquidação do IRC nem suspende o prazo para dedução do pedido de demonstração previsto no presente artigo. (negrito nosso).

 

8.            Dispondo, o artigo 64.º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis” que:

«1 - Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.

2 - Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.

3 - Para aplicação do disposto no número anterior:

a) O sujeito passivo alienante deve efetuar uma correção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;

b) O sujeito passivo adquirente adota o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.

4 - Se o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel não estiver determinado até ao final do prazo estabelecido para a entrega da declaração do período de tributação a que respeita a transmissão, os sujeitos passivos devem entregar a declaração de substituição durante o mês de janeiro do ano seguinte àquele em que os valores patrimoniais tributários se tornaram definitivos.

5 - No caso de existir uma diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo e o custo de aquisição ou de construção, o sujeito passivo adquirente deve comprovar no processo de documentação fiscal previsto no artigo 130.º, para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 3, o tratamento contabilístico e fiscal dado ao imóvel.

6 - O disposto no presente artigo não afasta a possibilidade de a Autoridade Tributária e Aduaneira proceder, nos termos previstos na lei, a correções ao lucro tributável sempre que disponha de elementos que comprovem que o preço efetivamente praticado na transmissão foi superior ao valor considerado.»(negrito nosso)

 

9.            Ora, da leitura do referido artigo 139.º do Código do IRC resulta, por um lado, que a demonstração do preço efetivamente praticado na transmissão de um bem imóvel quando inferior ao VPT deverá ser iniciada pelo sujeito passivo, nos termos do n.º 3, i.e., através de procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e apresentado em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado.

 

10.          Por outro, que o sujeito passivo tem obrigatoriamente de iniciar o referido procedimento, nos termos do n.º 7, por forma a poder, posteriormente, impugnar judicialmente a liquidação do imposto que resultar das correções efetuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º daquele diploma.

 

11.          No caso em apreço, resulta dos factos dados provados, face à confissão da própria, que a Requerente não iniciou o procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC.

 

12.          Consequentemente, no âmbito do procedimento inspetivo destinado a confirmar os valores de alienação declarados pela Requerente na respetiva declaração de rendimentos-modelo 22IRC - do ano de 2016, a Autoridade Tributária e Aduaneira determinou a correção aritmética ao valor da transmissão de direitos reais sobre bens imóveis, ao abrigo do disposto no supramencionado artigo 64.º do Código do IRC, no montante de € 400.800,00 (quatrocentos mil e oitocentos euros), referente à diferença positiva entre o VPT dos imóveis à data da alienação (total: € 720.800,00) e o valor declarado pela requerente [total: € 320.000,00), «cuja repercussão na matéria tributável está dependente dos prejuízos ficais dedutíveis, nos termos do artigo 52.º do CIRC, em virtude de o sujeito passivo ter declarado prejuízos fiscais em anos anteriores».

 

13.          O Relatório de Inspeção Tributária fundamenta e justifica as referidas correções, no n.º 2 do artigo 64.º do Código do IRC e, no facto de que «o sujeito passivo não recorreu ao procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC, que lhe permitia fazer prova do preço efetivo na transmissão dos imóveis.» Concluindo, assim, no sentido de «que as diferenças positivas entre o valor patrimonial definitivo e o valor constante do contrato, relativamente aos imóveis acima descritos sujeitos a transmissão onerosa em 2016 por parte da sociedade A..., LDA (cujo somatório ascende a € 400.800,00) não foi acrescida ao resultado líquido do exercício (no campo 745 do quadro 07 da modelo 22 de IRC), de modo que não foi o valor patrimonial tributário definitivo dos imóveis acima identificados (superior ao respetivo valor de alienação) considerado para efeitos de determinação do lucro tributável do sujeito passivo.»

 

14.          Conforme resulta do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0820/15, de 03.09.2016 indicado pela Requerida:

«I - Para determinação do lucro tributável do vendedor e do comprador deve ser tido em conta o valor resultante da fixação do VPT de um prédio quando seja inferior ao estipulado no contrato de compra e venda, constituindo uma presunção de rendimentos o valor constante do contrato que lhe seja inferior, art.º 64, do CIRC.

II - Por não serem admitidas nas normas de incidência tributária presunções inilidíveis - art. 73.º da LGT - o legislador estabeleceu no CIRC um procedimento no seu art. 139.º para prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário permitindo que aí se faça a ilisão de tal presunção.

III - Tal procedimento é accionado pelo sujeito passivo e, como indica o n.º 5 do art. 139.º do CIRC rege-se pelo disposto nos artigos n.º 4 do artigo 86.º, 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações.

 

IV- Este procedimento constitui condição necessária à abertura da via contenciosa, n.º 7 do art. 130.º do CIRC.

 

V - O sujeito passivo de imposto sobre o rendimento pode utilizar os seguintes meios contenciosos: impugnação judicial do acto que fixou o valor patrimonial tributário do imóvel; acção administrativa especial para sindicar a legalidade do acto final do procedimento tributário que instaurou com vista à prova do preço efectivo da transmissão; impugnação judicial do acto de liquidação de IRC, art. 58º-A do CIRC ao abrigo do mesmo preceito legal, com fundamento em qualquer ilegalidade ou erro praticado no procedimento destinado à prova do preço efectivo, podendo oferecer qualquer meio de prova adequado à demonstração do preço efectivamente praticado.

VI - A sentença que analisou detalhada e acertadamente a suscitada questão da condição de procedibilidade, ao fazê-lo, após ter indicado que o processo era o próprio, estava implicitamente a decidir que se não verificava qualquer erro na forma de processo porque as questões a dirimir poderiam ser conhecidas no processo em que estava a ser proferida.»

 

15.          Mais referindo este aresto, com pertinência para o caso em apreço, em alusão à sentença recorrida objeto do mesmo, que:

«(…) A consideração do VPT para efeito de determinação do lucro tributável em IRC, quando o valor constante do contrato seja inferior, constitui uma presunção de rendimentos. Não obstante, esta presunção pode ser ilidida mediante o procedimento previsto no art. 139.º.

(…) Deste modo, o legislador criou um procedimento em ordem a permitir ao sujeito passivo de IRC demonstrar que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT e, assim, afastar a presunção resultante do referido art. 64º do CIRC.

(…)

Este procedimento constitui condição necessária à abertura da via contenciosa, como resulta expressamente do n.º 7 do art. 139.º do CIRC, ou seja, o procedimento previsto no n.º 3 do art. 139.º do CIRC, que visa a demonstração pelo sujeito passivo de que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT, constitui uma condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis – neste sentido, vide Acórdão do STA de 06-02-2013, proc. nº 0989/12.»

 

16.          O legislador consagrou um mecanismo administrativo próprio para que os contribuintes pudessem ilidir a presunção legal, considerando condição prévia da impugnabilidade do ato a liquidar que daí resultasse.

 

17.          Não existe, neste caso concreto, um mecanismo enquadrado no âmbito do procedimento judicial arbitral para se ilidir a presunção em causa.

 

18.          Sucede que, nos presentes autos, a Requerente pretende demonstrar e comprovar que o preço efetivamente pago na transmissão dos imóveis é o constante da escritura de compra e venda e não o resultante das correções levadas a cabo pela AT, para daí retirar as devidas consequências quanto ao ato de liquidação de IRC.

 

19.          É facto que este valor está na génese da liquidação do IRC do exercício de 2016, mas é facto, igualmente, e verdadeiro, que este valor poderia ser o que a Requerente pretende agora fazer prova se tivesse diligenciado e acionado o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC.

 

20.          Procedimento este que foi previsto pelo legislador precisamente com esse propósito: prova do preço efetivo, nestas circunstâncias em que a alienação de bens imóveis é feita por um valor inferior ao VPT fixado.

 

21.          Se a Requerente tivesse acionado este procedimento que se «rege pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da LGT, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º4 do artigo 86.º da mesma Lei»,  estaria agora em condições para vir, através do presente pedido de pronúncia arbitral, discutir a alegada (i)legalidade do ato tributário de IRC do ano de 2016, bem como, a alegada (i)legalidade do procedimento, caso não tivesse sido alcançado um valor por acordo dos peritos. 

 

22.          Nos termos do disposto no artigo 139.º, n.º 7 do CIRC, este procedimento consubstancia, como refere, e bem, o Acórdão do STA supracitado [proc. n.º 0820/15, de 09.03.2016], «(…) condição necessária à abertura da via contenciosa, ou seja, é uma condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis.»

 

23.          Mais aduzindo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 0881/12, de 03.12.2014, que:

«I – Tanto o acto de determinação do valor patrimonial tributário definitivo de imóvel como o acto de indeferimento do pedido formulado em procedimento tributário que o alienante do imóvel, enquanto sujeito passivo de IRC, tenha instaurado para prova do preço efectivo da transmissão por virtude de o valor de venda declarado ser inferior ao valor patrimonial tributário fixado (arts. 58º-A e 129º do CIRC, a que correspondem os actuais arts. 64º e 139º), afectam, de forma actual e imediata, os direitos e interesses legalmente protegidos desse sujeito passivo, e, por isso, há que assegurar-lhe a tutela judicial efectiva em relação a estes dois actos (pese embora a lei apenas considere aquele primeiro como “destacável” para efeitos contenciosos), com a possibilidade da sua impugnação contenciosa autónoma e imediata, subtraída ao regime regra da impugnação unitária.

II – Pelo que a este sujeito passivo de imposto sobre o rendimento assistem os seguintes meios contenciosos:

(i)           impugnação judicial do acto que fixou o valor patrimonial tributário do imóvel;

(ii)          acção administrativa especial para sindicar a legalidade do acto final do procedimento tributário que instaurou com vista à prova do preço efectivo da transmissão;

(iii)         impugnação judicial do acto de liquidação de IRC que vier a resultar da aplicação do disposto no art. 58º-A do CIRC, ou, se não houver lugar a liquidação de imposto, do acto de correcção ao lucro tributável efectuada ao abrigo do mesmo preceito legal, sendo de notar que nesta impugnação pode ainda invocar qualquer ilegalidade ou erro praticado no procedimento destinado à prova do preço efectivo, bem como recorrer a qualquer meio de prova adequado à demonstração do preço efectivamente praticado.»

 

24.          Face ao exposto, não tendo a Requerente dado início ao procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, mediante o qual poderia fazer a prova do preço efetivamente pago na transmissão dos bens imóveis em causa nos presentes autos, não pode agora vir fazê-lo, nesta sede, nem poderá impugnar a legalidade do ato de liquidação de IRC, razão pela qual procede a exceção invocada quanto à «inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato», sendo, consequentemente, a Requerida absolvida do pedido, nos termos do artigo 576.º/1 e 2 e artigo 579º do CPC, ex vi artigo 2.º- e) do RJAT.

 

25.          Nestes termos, fica prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios imputados ao ato de liquidação impugnado.  

 

VII. DECISÃO

 

26.          De harmonia com o exposto, decide-se julgar procedente a exceção «da inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato», ficando prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios, e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.

 

VIII. VALOR DO PROCESSO:

 

Fixa-se o valor do processo em € 46.076,22 (quarenta e seis mil, setenta e seis euros e vinte e dois cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

IX. CUSTAS:

 

Custas a cargo da Requerente, de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do RJAT, do artigo 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 2.142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de novembro de 2021.

 

O Árbitro

(Jorge Carita)