Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 619/2020-T
Data da decisão: 2021-06-14  IRS  
Valor do pedido: € 29.397,41
Tema: IRS - Mais-valias imobiliárias obtidas por residente em outro Estado da EU.
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SUMÁRIO:

 

I – A lei nacional não pode violar os princípios e as normas da União Europeia, por força da primazia concedida pela Constituição.

 

II – Seguindo o entendimento do TJUE, que se impõe aos tribunais nacionais, viola o art.º 63 do TFUE (proibição de restrições aos movimentos de capitais) a não abrangência, pelo disposto na al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS (consideração em apenas 50% do seu valor) das mais-valias imobiliárias obtidas em Portugal por residentes em outros Estados integrantes da União Europeia, e

 

                III – A possibilidade de opção, aberta aos residentes em outros Estados-membros, pela tributação segundo as regras gerais aplicáveis aos residentes não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do regime fiscal que constitui a regra.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

A..., NIF..., residente em Rue ..., ... Paris, França, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição do tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

 

A)           O pedido

 

O Requerente pede a anulação da liquidação de IRS nº n.º 2020..., relativa ao ano de 2019, do qual resultou imposto a pagar no valor de € 29.397,41, com data limite de pagamento em 8 de Setembro de 2020.

Pede, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

B)           Posição das partes

 

O Requerente entende, em suma, que: (i) a liquidação impugnada não se encontra suficientemente fundamentada; (ii) a tributação das mais-valias imobiliárias obtidas em Portugal por residentes em outros Estados-membros, por o imposto incidir sobre a totalidade do ganho (e não apenas sobre 50%, como sucede relativamente aos residentes), ainda que feita por aplicação de uma taxa especial de 28%, constitui uma discriminação negativa violadora de um princípio fundamental  da União Europeia; (iii) a mais-valia tributável não ter sido corretamente apurada.

 

 

Na sua resposta, a Requerida sustenta: (i) estar a liquidação suficientemente fundamentada; (ii) a alegada discriminação ter sido ultrapassada pela adição ao artigo 72.º do CIRS do seu atual n.º 14, o qual criou a possibilidade de opção, relativamente a alguns rendimentos, nomeadamente as mais-valias imobiliárias, pela tributação segundo as regras gerais aplicáveis no caso de serem auferidos por residentes em território português. Mais, alega que o Requerente não exerceu tal opção pois não preencheu os “campos” 9 (opção pelas taxas do artigo 68.º do CIRS), e 11, (declaração do total dos rendimentos obtidos no estrangeiro) do quadro 8 da sua declaração e ter a liquidação sido processada com base nos valores declarados pelo sujeito passivo.

 

 

C)           Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 13/11/2020.

 A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a sua designação (árbitro singular) competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.

O árbitro designado aceitou tempestivamente a nomeação.

 O tribunal arbitral, em razão da pandemia, apenas ficou constituído em 03/05/2021.

 Por despacho arbitral de 01/06/2021, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT e não haver lugar à produção de alegações, por manifestamente desnecessárias. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.

 

II - SANEAMENTO

 

O Tribunal encontra-se regularmente constituído, é competente e a ação é tempestiva. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades.

 

III – PROVA

 

III.1 - Factos provados

 

a)            O Requerente tem domicílio fiscal em França, pelo que procedeu à entrega da declaração de IRS, referente ao ano de 2019, na qualidade de não residente.

b)           De tal declaração consta, como único rendimento tributável em Portugal, a mais-valia realizada, nesse período, com a venda de 1/3 da propriedade do primeiro dos imóveis indicados em c).

c)            Em 11 de outubro de 2018, por partilha de herança, o ora Requerente adquiriu 1/3 (um terço) da propriedade dos seguintes imóveis: UM - fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, com arrecadação, que faz parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia do ...; DOIS -oitenta e oito / mil avos da fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “q”, correspondente ao rés-do-chão direito, que faz parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de ... .

d)           A liquidação ora impugnada teve por base os valores (de aquisição e de realização) declarados.

e)           O Requerente não exerceu a opção pela tributação por aplicação das taxas gerais do CIRS, de acordo com o previsto nos (atuais) n.º 14 e 15 do art.º 72º do CIRS.

f)            Para calcular o imposto devido, a tal mais-valia a AT aplicou a taxa especial de 28%, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

g)            O Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado.

 

Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos, não tendo sido questionados pela AT na sua resposta.

 

 

III.2 - Factos não provados

 

Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.

 

 

IV- O DIREITO

 

1 – Insuficiência de fundamentação

 

Como é sabido, a fundamentação de um ato administrativo é havida como sendo suficiente quando permite que um normal destinatário compreenda o sentido e a razão de ser da decisão. A densidade de fundamentação exigível depende, pois, da maior ou menor complexidade da situação, do potencial de litígio envolvido.

No caso, quanto aos factos, nada haveria a fundamentar, pois, em rigor, a administração nada decidiu, tendo-se limitado a processar a liquidação com base nos valores declarados pelo Requerente.

Quanto à fundamentação de direito, é indiscutível, desde logo pelo teor do requerimento inicial, que o Requerente compreendeu perfeitamente que o cálculo do imposto foi feito por aplicação da já referida taxa especial de 28%.

Improcede pois esta alegação.

 

2 - Quantificação da matéria coletável.

 

Temos, em primeiro lugar, o facto de o n.º 2 do artigo 43.° do CIRS (limitação da incidência de imposto a 50% das mais-valias imobiliárias – al. b)) prever a sua aplicação apenas a transmissões efetuadas por  residentes. Há que saber se a sua não aplicabilidade a residentes em outros estados-membros da EU viola o art.º 63 do TFUE (proibição de restrições aos movimentos de capitais).

 

A questão foi apreciada pelo TJUE no Acórdão Hollmann, de 11 de Outubro de 2007, que concluiu pela existência de uma discriminação violadora do Direito da União.

 

Na sequência de tal acórdão, o nosso regime legal foi alterado, tendo sido instituída uma opção que permite aos residentes noutro Estado-membro a escolha pelo englobamento das mais-valias imobiliárias e, assim, serem tributados em condições similares às dos residentes  (opção que o Requerente não exerceu).

 

Porém, há que ter presente a jurisprudência do TJUE relativa à existência de este tipo de opções. No acórdão Gielen, de 18-03-2010, num caso análogo, ainda que envolvendo o princípio da livre circulação de pessoas, o Tribunal concluiu: esta conclusão  não é posta em causa pelo argumento de que os contribuintes não residentes podem optar pela equiparação, que lhes permite escolher entre o regime discriminatório e o regime aplicável aos residentes, dado que essa opção não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE  em razão do seu carácter discriminatório. Por outro lado, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento  é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. Decorre do exposto que a escolha concedida ao contribuinte não residente através da opção de equiparação, não neutraliza a discriminação.

 

Como é sabido, a jurisprudência do TJUE vincula os tribunais nacionais.

 

Assim, é simples de compreender a existência de numerosas sentenças e decisões arbitrais concluindo pela existência de tal incompatibilidade.

 

2.1- Apuramento da mais-valia tributável

 

Nos nº 100 a 112 do seu requerimento inicial, o Requerente questiona o valor da mais-valia apurada, pretendendo que ela seria de € 92.166,62 (nº 105 do requerimento inicial) e não de €105.065,66, como constante da demonstração da liquidação.

 

Apreciando:

Temos, em primeiro lugar, que resulta do doc. 1 junto ao requerimento inicial que a liquidação foi processada com base nos valores declarados pelo Requerente (que não se tratou de uma liquidação corretiva).

 O Requerente não alega ter cometido um qualquer erro na indicação dos valores que fez constar da sua declaração. Mais, não alega quais os valores que fez constar da sua declaração, o que, só por si, determinaria o indeferimento da sua pretensão, por não cumprido o necessário ónus de alegação.

 

A Requerente, no requerimento inicial, como que procedeu a um “recálculo” da mais-valia obtida, como base em valores (de aquisição e de realização) que não se sabe se correspondem aos por si declarados.

De todo o modo, parece evidente que este “recálculo” enferma de erro, pois, como dado por provado, em 11 de outubro de 2018, por escritura pública de partilha, o ora Requerente adquiriu 1/3 (um terço) dos direitos de propriedade relativos a dois imóveis Respeitando o alegado «valor de aquisição» a dois imóveis e tendo sido alienada a quota, pertença do Requerente, relativa a um apenas um deles, o valor de aquisição a ser considerado no cálculo da mais-valia nunca poderia ser o montante de € 23.500,14, como este pretende (nº 103 do requerimento inicial), por este se referir a dois imóveis.

Pelo que improcede o alegado quanto a erro de cálculo do valor da mais-valia tributável

 

 

               

4- Anulação parcial

 

Sendo ilegal a liquidação impugnada, tal não significa, porém, que deva ser anulada na sua totalidade, como peticiona o Requerente.

É hoje pacífico o entendimento que a liquidação é um ato divisível, devendo o tribunal concluir pela sua anulação parcial (uma anulação limitada á extensão da ilegalidade), sendo o caso e se para tal tiver elementos suficientes.

No presente caso, é patente que foi considerado como matéria coletável a totalidade do rendimento, quando devia ter sido considerado apenas metade de tal valor, pelo que se anula apenas em 50% a liquidação impugnada, pois não há outros rendimentos a considerar, pois só nesta medida está inquinada por ilegalidade .

 

VI- Juros indemnizatórios

 

 Nos termos da al. d) do nº 3 do art. 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

A ilegalidade da liquidação impugnada, como acima exposto, decorreu da aplicação da norma legal violadora do Direito da União Europeia (uma norma «ilegal»).

Tem assim a Requerente o direito a receber, juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais, ainda que relativamente apenas à parte do pagamento efetuado que lhe deve ser devolvida. 

 

V-  Decisão

 

- Anula-se parcialmente a liquidação impugnada, devendo ser devolvido ao Requerente metade do valor de imposto pago.

 

 

- Condena-se, ainda, a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais, relativamente à parte do pagamento efetuado a ser devolvida. 

 

VI - Notificação ao Ministério Público

Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.

 

CUSTAS na proporção do decaimento, que foi de 50% para cada uma das partes.

 

VALOR: € 29.397,41

 

14 de junho de 2021

 

O Árbitro

Rui Duarte Morais