Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 617/2018-T
Data da decisão: 2019-08-19  IRC  
Valor do pedido: € 45.333,07
Tema: IRC – Dedutibilidade de gastos.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

Em 6 de dezembro de 2018, A..., Ld.ª, com o NIPC ... e com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Coimbra, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de vinculação), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

A. Objeto do pedido:

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2018..., n.º 2018... e n.º 2018...; das demonstrações de acerto de contas n.º 2018..., n.º 2018... e n.º 2018...; e das liquidações de juros n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018... e n.º 2018..., referentes ao períodos de tributação de 2014, 2015 e 2016, no montante total de € 67 312,76, requerendo a sua anulação parcial pela quantia de € 45 333,07 (quarenta e cinco mil, trezentos e trinta e três euros e sete cêntimos), valor económico que atribui ao pedido.

 

B. Síntese da posição das Partes

a.            Da Requerente:

A Requerente, que exerce a título principal a atividade de arrendamento de bens imobiliários (CAE 68200) e, a título secundário, as atividades relacionadas com alojamento em estabelecimentos hoteleiros com restaurante e de alojamento de curta duração (CAE 55119 e 55204, respetivamente), bem como de comércio por grosso não especializado (CAE 46900), alega, em síntese, que as correções ao lucro tributável dos exercícios de 2014, 2015 e 2016, subjacentes às liquidações de IRC impugnadas, carecem de fundamento legal, decorrendo da errónea interpretação e aplicação do artigo 23.º, do Código do IRC.

 

Reportam-se tais correções, com as quais a Requerente não se conforma, à não-aceitação por parte da Requerida de gastos relacionados com três imóveis de sua propriedade, sitos em Lisboa, Leiria e Coimbra, respetivamente, adquiridos com o intuito de poder deles retirar rendimento, gastos que a AT considera como não dedutíveis, por alegadamente não se destinarem a obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

 

Para além do mais, a Requerente imputa ao procedimento de inspeção o vício de violação dos deveres procedimentais de colaboração e de atuação segundo as regras da boa-fé, enquanto vício autónomo de violação de lei, que considera evidente pela leitura de vários excertos do Relatório de Inspeção Tributária, “através da tentativa de forçar, sem qualquer suporte a nível de prova, nexos artificiais entre acontecimentos não relacionados ou da ênfase injustificadamente atribuída a situações irrelevantes” (…) “que o presente Tribunal Arbitral não pode ignorar, na apreciação do caso sub judice”.

 

Alega a Requerente que os referidos gastos devem ser aceites para efeitos fiscais, ao abrigo das normas vigentes no Código do IRC, por respeitarem a imóveis por si utilizados com um intuito empresarial e como via de prosseguir os seus fins estatutários, “mesmo nos casos e períodos temporais em que um determinado imóvel (no todo ou em parte) não gerou rendimentos suscetíveis de serem dados a tributação, tais ativos são efetivamente relevantes para a prossecução da sua atividade comercial e económica”, pois a aceitação fiscal de um determinado gasto não está condicionada à existência, no mesmo período de tributação, de proveitos tributáveis em sede de IRC.

 

Quanto ao imóvel de Lisboa, alega a AT que o mesmo não teve utilização empresarial nem registou qualquer rendimento, tendo sido indicado como residência de um dos sócios da Requerente; porém, ignora que este imóvel foi adquirido com a finalidade de ser arrendado para habitação, no âmbito da atividade de “arrendamento de bens imobiliários” desenvolvida pela Requerente, sendo um bem apto a gerar rendimentos no futuro, em função dos planos e estratégias empresariais que a Requerente quisesse delinear e prosseguir.

 

Tendo-se chegado a equacionar a sua venda num contexto de subida de preços no mercado imobiliário, este imóvel de Lisboa acabou por ser objeto de um contrato de arrendamento habitacional, celebrado em 19.03.2018 e que subsiste até à presente data.

 

Nem o referido imóvel foi utilizado enquanto residência do sócio da Requerente mencionado no Relatório, pois este reside há largos anos em Londres, residência através da qual a AT tem estabelecido contactos via postal com aquele cidadão.

 

O imóvel de Leiria, constituído por rés-do-chão, primeiro e segundo andares, tem o último piso arrendado à B..., tendo os dois primeiros sido cedidos à C..., para que esta ali desenvolvesse um projeto de galeria de arte e bar de apoio. Para o feito, foram os dois primeiros pisos integralmente reabilitados e adaptados pela Requerente, na expetativa de poder daí obter rendimentos.

 

A galeria de arte e o bar de apoio passaram a ser comercialmente explorados pela C... em dezembro de 2011, exploração interrompida pelo incêndio ocorrido em 06.01.2012, que danificou consideravelmente o imóvel no seu todo, estando a sua recuperação a ser feita à medida da capacidade económica da Requerente.

 

Por esse motivo, não é de estranhar que, relativamente ao rés-do-chão e primeiro andar deste imóvel, não tenham sido registados proveitos na contabilidade da Requerente nem que, dado o breve período de exploração pela C..., tivesse chegado a ser formalizado qualquer contrato de arrendamento entre as duas sociedades, porquanto esta ficou impedida de ali exercer a sua atividade e de gerar os seus próprios rendimentos.

 

Relativamente ao imóvel de Coimbra, entendeu a AT que “não é crível que os 500,00 € mensais possam ser a contrapartida da utilização dos sócios-pais da moradia de Coimbra como sua residência principal, uma moradia isolada (Tipo T7) com piscina, numa zona residencial nobre e paisagisticamente privilegiada, inserida num lote com 1.500 m2 e com uma área bruta de construção de cerca de 720 m2, incluindo também a eletricidade, a água e a manutenção da piscina, do jardim e da climatização, quando, por outro lado, o sp recebe/cobra à B..., pela locação de um apartamento (r/c) T3 em Lisboa, 600,00 € mensais”.

 

Todavia, este imóvel, constituído por três pisos, tem vindo a ser usado pela Requerente, no contexto da sua atividade económica, para entabular contratos com pessoas jurídicas distintas e no contexto de igualmente distintas finalidades.

 

Parte deste imóvel esteve arrendado à B... entre 2012 e 2016, para que esta o usasse no contexto da sua própria atividade; o mesmo imóvel encontra-se parcialmente arrendado (em cerca de 2/3), desde 2012, aos sócios D... e E..., para fins habitacionais; aí funciona, desde 2015, a sede social da Requerente e, desde julho de 2018, vem sendo parcialmente utilizado pela Requerente no contexto da atividade de alojamento local.

 

Por isso a Requerente entende que este imóvel é efetivamente utilizado para a prossecução dos seus fins estatutários (os quais compreendem o arrendamento de bens imóveis) e para obtenção de rendimentos sujeitos a tributação em sede de IRC, não podendo considerar-se que um tal arrendamento é desprovido de uma finalidade empresarial.

 

Entende a Requerente que a não-aceitação dos gastos relacionados com os referidos imóveis contraria a visão da doutrina e da jurisprudência sobre a noção de “gasto” ou “custo”, enquanto “despesa com um fim empresarial, o que não quer dizer um fim imediata e diretamente lucrativo, mas, sim que tem, na sua origem e na sua causa, um fim empresarial.” (Saldanha Sanches), pois “vigora claramente na ordem jurídica portuguesa um princípio geral de aceitação de todos os gastos e perdas incorridos pelo sujeito passivo” (António Martins), não sendo admissíveis “juízos subjetivos do controlador público sobre a bondade da gestão empreendida” (António Moura Portugal).

 

Assim, “Um custo indispensável não tem de ser um custo que directamente implique a obtenção de proveitos. Há vários custos que só mediatamente cumprem essa função e que nem por isso deixam de ser considerados indispensáveis, nos termos do artº.23, do C.I.R.C.” (Acórdão do STA, de 07.05.2015, processo n.º 07287/14).

 

Segundo a Requerente, o facto de os imóveis de que é proprietária “não terem gerado, de forma plena e a todo o tempo, rendimentos suscetíveis de serem tributados em sede de IRC não poderá legalmente obstar, à luz do disposto no artigo 23.º, do Código do IRC, à dedução dos encargos suportados com os mesmos”, enquadrados na atividade da empresa e realizados no seu interesse.

 

Tanto mais que, relativamente ao imóvel de Coimbra, embora parecendo desconsiderar os efeitos do contrato de arrendamento habitacional existente entre a Requerente e os seus sócios, ao abrigo do “princípio da substância sobre a forma”, a AT não invoca expressamente a aplicação da cláusula geral antiabuso a que se refere o n.º 2 do artigo 38.º, da LGT, nem segue a tramitação procedimental própria do uso dessa cláusula, conforme o artigo 63.º, do CPPT.

 

E, embora parecendo discordar do modo como a Requerente tem vindo a estabelecer e a manter relações comerciais e económicas com entidades com as quais mantém relações especiais, em momento algum a AT invoca o disposto no artigo 63.º, do Código do IRC, nem decorre do Relatório que a Requerente tenha infringido o princípio da plena concorrência, não se justificando a desconsideração fiscal de determinados gastos por si incorridos no contexto da sua atividade económica, ao abrigo do artigo 23.º, do Código do IRC.  

 

Conclui a Requerente que as correções ao lucro tributável dos períodos de 2014, 2015 e 2016, não têm qualquer fundamento legal e, em consequência, as liquidações de IRC, juros compensatórios e de acerto de contas subsequentes terão necessariamente de ser anuladas na respetiva proporção, por ilegais.

 

b.            Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (adiante PA), em que veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, dizendo que:

 

A Requerente é uma sociedade por quotas de cariz familiar, constituída por pais e filhos em 1998, cuja gerência tem vindo a ser exercida desde então pela sócia-mãe e que «há bastante tempo que não declara rendimentos derivados do exercício das atividades constantes do seu cadastro fiscal (muito embora continue a declarar nas diversas IES que os seus rendimentos provêm em exclusivo do comércio por grosso não especializado)» e cujos rendimentos declarados decaíram desde o ano de 2011, com uma ligeira inversão da tendência de queda em 2014 e 2015, retomada em 2016.

 

Não é percetível a política de rendimentos e de preços seguida pela Requerente para com a sociedade B..., com a qual mantém ininterruptamente relações especiais e da qual obtém rendimentos quase em exclusivo.

 

Relativamente ao imóvel de Lisboa, foi impossível vislumbrar qualquer utilização empresarial ou qualquer rendimento gerado pelo seu arrendamento e, de acordo com os dados disponíveis do Registo Comercial, foi sempre indicado como residência do sócio-filho entre os anos de 2009 e 2015, pelo que se impugnam os efeitos pretendidos retirar dos documentos 12 e 13 juntos ao pedido de pronúncia arbitral (ppa), por não constituírem prova cabal e plena de que residia, nos anos indicados, em Londres.

 

O único contrato de arrendamento exibido pela Requerente relativamente ao dito imóvel, data de 18.03.2018; no entanto, já antes desse arrendamento o imóvel registava consumos de água e de eletricidade que indiciavam uma utilização regular e frequente desses serviços.

 

Não se provando que o sócio-filho tivesse, entre 2014 e 2017, a sua residência em Londres, conclui-se que o dito imóvel era por este utilizado com frequência, tendo a Requerente suportado e deduzido custos que não concorreram para o exercício da sua atividade comercial.

 

No que respeita ao imóvel de Leiria, verifica-se que os seus dois primeiros pisos não geraram rendimentos, por não existir qualquer contrato de arrendamento sobre aquele espaço, desde 2008 sede da sociedade C..., Lda., de que são sócios e gerentes os “sócios-pais”, e cuja atividade estatutária consiste em “Bar e Galeria de arte”.

 

Esta sociedade iniciou a exploração do espaço em dezembro de 2011 e, em 06.01.2012, terá ocorrido um incêndio no imóvel, o que não é conclusivo face à prova documental junta ao ppa, que se impugna, não fazendo sentido que a Requerente não tivesse celebrado contrato de arrendamento no início da atividade da C..., “se o seu propósito não fosse, pura e simplesmente, não cobrar renda tout court pela cedência do espaço”.

 

Desconhece-se, se o bar e galeria, explorado pela sociedade C..., continuaram ou não em plena atividade após o sinistro, porquanto, de acordo com as imagens da plataforma informática Google Maps, de 2014, o imóvel em questão encontra-se reabilitado e apto a gerar rendimentos.

 

Deverá, pois, concluir-se que a ora Requerente suportou e deduziu gastos incorridos por uma outra sociedade, alheia aos seus interesses económicos, por não contribuírem para a realização do seu escopo social.

 

O imóvel de Coimbra tem vindo a ser usado como escritório e armazém da Requerente e, sobretudo, como residência principal dos sócios-pais, por uma renda mensal de € 500,00, a partir de 2017, tendo estado até aí parcialmente arrendado à B... .

 

O arrendamento aos sócios não foi considerado pela Inspeção Tributária, “ao abrigo do princípio da substância sob a forma”, mantendo-se a situação registada no ano anterior, de arrendamento á B..., por € 500,00 mensais, “e manutenção da afetação a fins não empresariais da área residencial utilizada pelos sócios e família”.

 

Conclui a Requerida que, face ao disposto no artigo 23.º, do Código do IRC, “não podem ser aceites fiscalmente os valores deduzidos a título de gastos nos anos de 2014, 2015 e 2016, de € 59.125,02, € 63.798,71 e € 62.658,68, respetivamente”.

 

Segundo a AT, a alegada violação dos princípios da colaboração e cooperação revela-se “descabida”, por falta de prova, relevando da litigância de má-fé e tendo por único intuito a anulação do procedimento de inspeção.

 

Termina a AT por requerer a dispensa de inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, por considerar a prova documental produzida suficiente à boa decisão da causa, pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado, com a consequente absolvição da Requerida de todos os pedidos.

 

*

No dia 15 de maio de 2019 teve lugar, no CAAD, a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, na qual foi produzida prova testemunhal com inquirição do Senhor F..., residente em Coimbra e contabilista certificado da Requerente desde o seu início, tendo a Requerente prescindido do depoimento da outra testemunha por si arrolada.

 

Na mesma reunião foram admitidos, por acordo das Partes, diversos documentos probatórios, tendo estas sido no ato notificadas para apresentação de alegações escritas, pelo prazo sucessivo de 15 dias com início na Requerente e com direito de vista à Requerida dos documentos supervenientes, no mesmo prazo.

 

Foi designado o dia 15 de julho de 2019 como data para a prolação da decisão final, advertindo-se a Requerente de que, até essa data, deveria dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 4.º, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

A Requerente apresentou alegações escritas no prazo designado, nas quais reiterou os argumentos aduzidos no pedido de pronúncia arbitral. A Requerida não produziu alegações nem se pronunciou sobre os novos documentos de prova oferecidos pela Requerente em 15 de maio de 2019.

 

Pelo despacho arbitral de 4 de julho de 2019, foram as Partes notificadas do adiamento da decisão final para o termo do prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 21.º, do RJAT.

 

II. SANEAMENTO

1.            O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 18 de fevereiro de 2019, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

2.            As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3. Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar e decidir.

4.            O processo não padece de vícios que o invalidem.

5.            A cumulação de pedidos é admissível, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, na medida em que o pedido de pronúncia arbitral formulado, e a respetiva procedência, dependem da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, no caso concreto, do artigo 23.º, do Código do IRC.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário [CPPT], subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), sob pena de nulidade, cominada pelo n.º 1 do artigo 125.º, do mesmo CPPT.

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental anexa ao pedido de pronúncia arbitral e ao processo administrativo, bem como da prova testemunhal produzida, fixa-se como segue:

 

A – FACTOS PROVADOS

1.            A Requerente é uma sociedade por quotas de cariz familiar (pais e filhos) constituída em 1998, inicialmente com sede em Leiria e, desde fevereiro 2015, na Rua ..., n.º ...- ..., em Coimbra, que à data da ação inspetiva exercia a título principal a atividade de comércio por grosso não especializado, com o CAE 46900 e, a título secundário, as atividades de arrendamento de bens imobiliários, CAE 68200, e de alojamento em estabelecimentos hoteleiros com restaurante, com o CAE 55119 (cfr. pág. 4 do Relatório de Inspeção Tributária – RIT);

2.            Atualmente, a Requerente exerce a título principal a atividade com o CAE 68200 e, a título secundário, as atividades alojamento em estabelecimentos hoteleiros com restaurante e de alojamento de curta duração, com os CAE 55119 e 55204, respetivamente, bem como de comércio por grosso não especializado, com o CAE 46900 (cfr. cópia da certidão permanente emitida em 12.07.2017, junta ao PPA como documento n.º 1);

3.            A Requerente é proprietária de diversos imóveis que explora através da celebração de contratos de arrendamento para fins não habitacionais e para fins habitacionais, entre os quais, com interesse para os autos, (i) apartamento sito na Rua ..., n.º ... –... Esq.º – Lisboa; (ii) prédio urbano sito no ..., n.ºs ... e ...– Leiria e, (iii) prédio urbano sito na Rua ..., n.º ...- ..., em Coimbra (PPA e RIT);

4.            Através das ordens de serviço OI2017..., de 26.11.2017, OI2018..., de 10.01.2018, OI2018... e OI2018..., ambas de 04.04.2018, foi a Requerente alvo de um procedimento de inspeção tributária externo, inicialmente de âmbito parcial, por referência ao IVA do período 16.12T, que viria a ser transformado em procedimento externo polivalente, abarcando o IRC dos exercícios de 2014 a 2016, do que a Requerente foi notificada, bem como da ampliação do prazo do procedimento credenciado pela OI2017... (cfr. RIT, pág. 4);

5.            A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de determinação do lucro tributável, em sede de IRC, e no regime normal trimestral, em sede de IVA (cfr. PPA e RIT);

6.            A maior parte dos rendimentos obtidos pela Requerente no período da ação de inspeção, respeitam a rendas cobradas à sociedade B..., Ld.ª, com o NIPC..., com sede em Leiria, com a qual a Requerente se encontra em situação de relações especiais, nos termos do artigo 63.º, n.º 4, alíneas b) e d), do Código do IRC;

7.            Em sede de IRC, foram efetuadas as correções técnicas à matéria coletável dos exercícios de 2014, 2015 e 2016, pelos valores que constam do quadro seguinte, referentes a gastos não aceites fiscalmente, “porquanto a sua ocorrência não se destina a obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, conforme disposto no art.º 23, do Código do IRC”, relativos a A.1. Prédios; A.2. Ajudas de custo; A.3. Rendas em Itália; A.4. Seguros; B. Depreciações sobre o valor do terreno dos imóveis e C. Ativos Fixos tangíveis considerados como Fornecimentos e Serviços Externos (págs. 12 a 14 do RIT):

 

8.            A fundamentação das correções aos gastos da Requerente nos exercícios de 2014, 2015 e 2016, por referência aos prédios identificados supra (ponto 3), no valor global de € 185 582,41, conforme o quadro supra, consta de págs. 10/12 do RIT:

“1. Na sequência da análise feita à atividade desenvolvida pelo sp (através dos encargos e dos rendimentos registados nos anos em análise), em que se concluiu pela prestação de serviços relativos a imóveis, constatou-se também que alguns dos imóveis do sp ou parte deles, não estão a ser objecto de uma utilização para os seus fins empresariais senão vejamos:

1.1. O apartamento no ... em Lisboa (…) além de não ter sido possível vislumbrar qualquer utilização empresarial e de não registar qualquer rendimento, de acordo com os dados disponíveis do Registo Comercial, foi indicado em 2009 e em 2015, como residência do sócio-filho G...;

1.2. O designado «edifício da  ...» (... em Leiria) desde pelo menos 2013 que, os seus primeiros pisos, não estão locados à B..., tendo em conta por um lado, o valor da locação registado anualmente desde aquele ano (1.000,00€), e por outro, o aditamento ao contrato de arrendamento com a B..., no qual se refere que só está em locação o 2.º andar, situação de locação parcial do edifício, também visível na tabela de rendas facultadas pelo sp – vide Anexo 6 a fls. 2 e 7 a 9. Assim aqueles dois primeiros pisos, além de não gerarem quaisquer rendimentos, de acordo com os dados disponíveis do Registo Comercial, são desde 2008, a sede da sociedade C..., Lda com o NIPC..., de que são sócios e gerentes os «sócios-pais», e cuja atividade estatutária consiste precisamente em Bar e Galeria de arte:

1.3. A vivenda com 3 pisos em Coimbra, a qual além de uma parte (cerca de 70% da área, a crer na informação prestada à inspeção – vide Anexo 8, fls. 9 a 11) do piso inferior, ser usada como escritório e armazém da sociedade (e ainda como escritório aninhado da B..., para a elaboração de relatórios médicos, conforme antes referido em III.1.A.2), tem vindo a ser utilizada, sobretudo pelos sócios-pais, como sua residência principal.

(…)

3. Atendendo a que o «edifício da  ...» em Leiria e a vivenda em Coimbra, só parcialmente não estão a ter um uso empresarial, e com vista ao cálculo da percentagem dos prédios não utilizada, foi tido em conta a graduação fiscal das diversas áreas para efeitos da avaliação patrimonial tributária dada pela fórmula do art.º 40.º do Código do IMI, designadamente a diferença entre a área bruta privativa e a área bruta dependente, ali também previstas. Assim:

a) Para a vivenda de Coimbra, da conjugação da ficha de avaliação constante da respetiva matriz predial, com as plantas facultadas pelo sp, foi possível concluir que a área afeta a fins empresariais localizada no 1.º piso, foi considerada fiscalmente como área bruta dependente (gozando assim pata efeitos fiscais -na avaliação de uma redução de 70% - só é considerada 30% dessa área), tendo-se assim obtido um percentagem de não utilização do prédio em fins empresariais de 89%-vide cálculos em Anexo 8, a fls. 8;

b) Para o «edifício da  ...» em Leiria, foram consideradas as áreas das legendas para as diversas divisões desse piso (o 2.º andar - sótão na planta), constantes da planta de arquitectura que é a parte integrante da respetiva matriz predial, tendo-se assim obtido uma percentagem de não utilização do prédio em fins empresariais de 75% -vide cálculo em Anexo 8, a fls. 1.”;

9.            Em termos quantitativos, os gastos não aceites fiscalmente e contestados pela Requerente no PPA, “relativos a prédios (ou parte deles) não utilizados em fins empresariais”, foram, de acordo com o RIT (anexo 12), os seguintes:

 

10.          O imóvel de Lisboa foi adquirido e reabilitado pela Requerente com o objetivo de dele obter rendimento, através do seu arrendamento para habitação; porém não surgiu oportunidade que justificasse o seu arrendamento até março de 2018, tendo mesmo sido equacionada a sua alienação com a alta de preços no mercado imobiliário (prova testemunhal e docs. 10 e 11 juntos ao PPA);

11.          O sócio G... reside em Londres desde 2010, tendo alterado o registo da sua morada para o Reino Unido junto da AT em 2014 (prova testemunhal, docs. 12 a 14 juntos ao PPA e documentos supervenientes, datados de 2010 a 2017);

12.          Em 6 de janeiro de 2012 deflagrou um incêndio no segundo andar do prédio de Leiria, arrendado à sociedade B..., que, de acordo com o relatório da ocorrência elaborado pelos Bombeiros Municipais de ..., “(…) ocorreu numa divisão do edifício, que ficou totalmente destruída no seu interior. Foram ainda afectadas outras divisões pelo fumo e gases, provenientes da combustão”, dele “(…) tendo resultado como danos a destruição total da chaminé, destruição parcial da cobertura e pavimentos”, conforme declaração dos Bombeiros Voluntários de ... (Doc. 20 junto ao PPA);

13.          O rés-do-chão e o primeiro andar do edifício encontravam-se à data do incêndio disponibilizados pela Requerente à sociedade C..., para que esta ali desenvolvesse um projeto de galeria de arte e bar de apoio, integralmente reabilitados e adaptados pela Requerente para o efeito, sem que tivesse sido celebrado entre as sociedades qualquer contrato de arrendamento ou de cessão de exploração (Págs. 7/8 do RIT, prova testemunhal e Doc. 16 junto ao PPA);

14.          A galeria de arte e o bar de apoio começaram a ser explorados comercialmente pela C... em dezembro de 2011 (Docs. 17 e 18 juntos ao PPA e prova testemunhal);

15.          O sinistro foi participado pela B..., na qualidade de locatária do 2.º andar do edifício, à seguradora H... (ramo 0316, apólice ...), em 12 de janeiro de 2012 (Doc. 20 junto ao PPA e prova testemunhal);

16.          A sociedade C..., embora inativa, não cessou a atividade e mantém a sua sede no edifício de Leiria (prova testemunhal);

17.          O exterior do prédio de Leiria, localizado no centro histórico daquela cidade, encontra-se restaurado (Doc. 2 junto ao PA);

18.          O imóvel de Coimbra (i) foi objeto de um contrato de arrendamento habitacional celebrado em 1 de maio de 2012 entre a Requerente e os sócios-pais, D... e E...; (ii) cerca de 70% da área do piso inferior foi utilizada como escritório e armazém da Requerente; (iii) foi parcialmente locado à B...; (iv) para ali foi transferida a sede da Requerente, em fevereiro de 2015; (v) foi objeto de novo contrato de arrendamento habitacional com os sócios-pais, em 1 de janeiro de 2016, constando da respetiva cláusula 3.ª que “O imóvel destina-se a habitação, disponibilizando-se todas as zonas comuns da casa (salas e WC) para a realização de reuniões, encontros e eventos das empresas” (RIT e Anexo 6 ao RIT, prova testemunhal);

19.          Nos prédios arrendados, são genericamente fornecidos pela Requerente aos respetivos locatários “energia elétrica e/ou água e/ou outros serviços – nomeadamente controlo de pragas nos prédios de Leiria (…) – pág. 7 do RIT e anexos 7 e 13 ao RIT;

20.          Em 5 de junho de 2018, a Requerente exerceu o direito de audição sobre o projeto do Relatório de Inspeção Tributária (Doc. 6 junto ao PPA);

21.          O Relatório final foi notificado à Requerente em 29 de junho de 2018, tendo-se mantido as correções propostas (doc. 7 junto ao PPA);

22.          Em julho de 2018, a Requerente foi notificada das liquidações de IRC n.º 2018 ..., n.º 2018 ... e n.º 2018 ...; das liquidações de juros n.º 2018 ..., n.º 2018 ..., n.º 2018 ... e n.º 2018 ..., e das demonstrações de acerto de contas n.º 2018 ... (IRC e juros compensatórios de 2014, das quantias de € 20 357,11 e de € 2 845,24, respetivamente), n.º 2018 ... (IRC e juros compensatórios de 2015, de € 24 264,52 e de € 1 985,20, respetivamente) e n.º 2018 ... (IRC de 2016, nos valores respetivos de € 17 486,73 e de € 733,96), num montante total a pagar de € 67.312,76 (Doc. 8 junto ao PPA);

23.          A Requerente procedeu ao pagamento parcial das liquidações de IRC e juros compensatórios, pela quantia de € 11 405,54 (IRC e juros compensatórios de 2014 e de 2016), em 07.09.2018 e de € 10 574,15 (IRC e juros compensatórios de 2015), em 10.09.2018 (Doc. 9 junto ao PPA).

 

B – FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C – Motivação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, devendo escolher e recortar os factos pertinentes para o julgamento da causa em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos arts. 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Atendendo à posição das Partes nos respetivos articulados, à análise crítica da prova documental junta aos autos e da prova testemunhal produzida, dão-se como provados os factos enunciados supra.

 

III.2 MATÉRIA DE DIREITO

1.            Questões a decidir.

Como causa de pedir, invoca a Requerente diversos vícios, quer de índole formal, quer de natureza substantiva, suscetíveis de determinar a anulação dos atos tributários que impugna.

 

Do ponto de vista formal, a Requerente vem arguir a ilegalidade do procedimento de inspeção tributária, por violação dos princípios da cooperação a que se refere o artigo 9.º, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) e da colaboração mútuas, previsto no artigo 59.º, da Lei Geral Tributária (LGT).

 

Do ponto de vista material, considera a Requerente que as correções efetuadas pela AT ao lucro tributável dos exercícios de 2014, 2015 e 2016, na origem das liquidações de IRC e juros compensatórios objeto do pedido de pronúncia arbitral, enfermam de erro sobre os pressupostos de direito, por erro na interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 23.º, do Código do IRC.

 

Passaremos à apreciação dos referidos vícios, pela mesma ordem em que são invocados pela Requerente.

 

1.1.        Da ilegalidade do procedimento de inspeção tributária

A Requerente invoca a ilegalidade do procedimento de inspeção tributária, imputando à Requerida a violação dos princípios da cooperação e da colaboração mútuas, patente em diversas passagens do RIT, “através da tentativa de forçar, sem qualquer suporte a nível de prova, nexos artificiais entre acontecimentos não relacionados ou da ênfase injustificadamente atribuída a situações irrelevantes”

 

O procedimento de inspeção tributária, regulado pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias (artigo 2.º, n.º 1, do RCPITA), regendo-se, entre outros, pelos princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação (artigos 5.º a 10.º, do RCPITA).

 

O princípio da verdade material está consagrado no artigo 6.º, do RCPITA, e impõe que a Administração Tributária, no âmbito do procedimento de inspeção, procure recolher os elementos probatórios que permitam fundamentar o ato tributário.

 

Para tanto, dispõem os funcionários da AT das faculdades consagradas no artigo 29.º, do RCPITA, designadamente as de “examinar quaisquer elementos dos contribuintes que sejam susceptíveis de revelar a sua situação tributária, nomeadamente os relacionados com a sua atividade, ou de terceiros com quem mantenham relações económicas e solicitar ou efetuar, designadamente em suporte magnético, as cópias ou extractos considerados indispensáveis ou úteis” e de “tomar declarações dos sujeitos passivos, membros dos corpos sociais, técnicos oficiais de contas, revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas, sempre que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributários”.

 

O princípio da cooperação ou da colaboração mútua entre os funcionários da inspeção tributária e os sujeitos passivos e demais obrigados tributários, faz presumir de boa-fé dos intervenientes no procedimento, sendo dever dos primeiros, entre outros, o de ouvir os interessados para “esclarecimento das dúvidas sobre as suas declarações ou documentos” e cifrando-se a colaboração dos contribuintes na “prestação dos esclarecimentos que esta [AT] lhes solicitar sobre a sua situação tributária, bem como sobre as relações económicas que mantenham com terceiros” (artigo 59.º, n.º 3, alínea d) e n.º 4, da LGT).

 

Na situação em análise, estamos em crer que o relatório de inspeção revele terem sido observados os princípios orientadores da verdade material, do contraditório e cooperação, tendo sido facultado à Requerente o direito de audição e de participação na formação das decisões da AT no âmbito do procedimento inspetivo, tendo sempre sido notificada das decisões nele proferidas.

 

Ao que se depreende do teor do relatório da inspeção, apesar das divergências de pontos de vista sobre a realidade tributária da Requerente, não revela qualquer intenção persecutória, afigurando-se derivarem das dificuldades na apreensão do modelo de gestão prosseguido, tendo em conta, nomeadamente, os lapsos contabilísticos assumidos pela Requerente em sede de direito de audição, cujo prazo foi alargado a pedido do sujeito passivo, ou as irregularidades detetadas quanto ao cumprimento de algumas obrigações tributárias, como resulta da análise aos contratos de arrendamento de imóveis (Anexo 6 do RIT), em que se verificou que “cada um deles é assinado pela mesma pessoa enquanto representante de cada uma das partes, que os contratos não foram comunicados à AT, conforme previsto no art.º 60 do Código do Imposto de Selo – CIS, e que neles não há nota de ter sido liquidado o respetivo Imposto de Selo, conforme previsto no n.º 6 do art.º 23 do CIS (…)”.

 

Não se afigura, no entanto, que a atuação administrativa seja violadora dos princípios da boa-fé e da colaboração ou de qualquer outro dos princípios que norteiam o procedimento tributário (artigo 55.º, da LGT), nem que tenham sido excedidas as atribuições conferidas à AT no âmbito do procedimento de inspeção tributária (artigo 63.º, da LGT e RCPITA).

 

 Pelos motivos expostos, não podendo ser imputado ao relatório da inspeção qualquer vício invalidante que torne anuláveis os atos tributários subsequentes, improcede, nesta parte, o pedido de pronúncia arbitral.

 

1.2.        Do mérito das liquidações de IRC e juros compensatórios

O n.º 1 do artigo 23.º, do Código do IRC, na redação anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, continha uma cláusula geral de dedutibilidade de gastos, subordinada à sua indispensabilidade “para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”, indispensabilidade que, quer a doutrina quer a jurisprudência, vieram a considerar que “não pode ser entendida como uma relação de causalidade necessária entre um concreto gasto e o consequente proveito” (cfr. o Acórdão do STA, de 21/02/2018, Processo: 0791/13), devendo antes ter-se em conta a conexão dos custos com a atividade do sujeito passivo, ou seja, “nas operações resultantes do uso do seu património, em particular dos seus ativos (…) na forma como a sua gestão utilizará os ativos no âmbito das diversas operações (produtivas, comerciais, de investimento e desinvestimento, de financiamento geral, de aquisição de participações financeiras e outras) que, no seu conjunto, permitem que entidade em questão cumpra o seu objeto económico: a busca (imediata ou a prazo) de um excedente económico (lucro).” .

 

A redação atual do n.º 1 do artigo 23.º, do Código do IRC, na sequência do defendido pela jurisprudência e pela doutrina, abandonou o conceito de indispensabilidade, passando a consagrar, como princípio geral, a dedutibilidade dos gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo, ao dispor que:

 

“Artigo 23.º - Gastos e perdas

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.”.

 

Uma das atividades prosseguidas pela Requerente no período da inspeção e que ainda se mantém consiste no arrendamento de bens imobiliários, com o CAE 68200, com vista a cujo exercício adquiriu e é proprietária de diversos imóveis, que constituem os seus ativos, de acordo com a definição dada pelo Sistema de Normalização Contabilística (SNC), segundo a qual um ativo “é um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros” (§ 49 da Estrutura Conceptual).

 

Ora, não é o facto de um determinado ativo não estar a ser usado, total ou parcialmente, num determinado exercício económico, não gerando proveitos nesse exercício, que lhe poderá retirar o caráter de ativo, suscetível de gerar benefícios económicos futuros para a empresa que o detém, assim impedindo a dedução dos gastos associados à sua manutenção e conservação ou à reintegração do capital investido, porquanto essa será uma opção de adotada pelos respetivos órgãos sociais no âmbito da sua liberdade de gestão, não competindo à AT substituir-se àqueles na formulação de juízos de natureza empresarial, porquanto “saber se corresponde ou não à mais eficaz defesa dos interesses da empresa é uma questão que não pode ser resolvida mediante a atribuição de um poder de intervenção do Estado” .

 

Deste modo, a AT apenas poderá desconsiderar os gastos que não se inscrevem no âmbito da atividade do sujeito passivo e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objetivos alheios ao escopo social (teoria do ato anormal de gestão, ou seja, daquele que “embora legítimo, não presidiu o interesse societário” ).

 

É que, contrariamente ao que acontece em sede de IVA, em que o direito à dedução do imposto suportado pelas empresas nos seus inputs exige, a fim de garantir a neutralidade do imposto, a afetação dos bens ou serviços a uma atividade efetivamente tributada, a dedutibilidade dos gastos em sede de IRC não depende da realização de proveitos num determinado exercício, ou que exista uma correlação direta entre ganhos e gastos, ainda que estes respeitem a ativos não utilizados no exercício em causa, pois tal não utilização apenas releva de uma opção de gestão, que não se traduzindo comprovadamente em atos anormais, a AT não poderá sindicar.

 

Posto isto, passaremos à análise das correções contestadas pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral, referentes a “custos e gastos relativos a prédios (ou parte deles) não utilizados em fins empresariais” – depreciações, eletricidade, água, seguro, condomínio e outros gastos, nos exercícios de 2014 (€ 59 125,02), 2015 (€ 63 798,71) e 2016 (€ 62 658,68), no valor total de € 185 582,41, a que se refere o RIT (pág. 12 e anexo 12).

 

No que respeita ao apartamento sito ao ..., em Lisboa, o qual não gerou rendimentos nos exercícios a que respeita a ação de inspeção, alega a AT que tendo o mesmo constituído residência do sócio G..., não poderão ser fiscalmente aceites os gastos incorridos pela Requerente, por não terem causa empresarial.

 

Contudo, tendo ficado provado que o referido sócio residiu em Londres nos anos indicados e não sendo a não integração do imóvel na atividade operacional da Requerente, nos exercícios em causa, suscetível de alterar a sua natureza de ativo da sociedade, nem logrando a AT provar, como lhe competia, que aqueles gastos (depreciações, eletricidade, água, seguro, condomínio, pelos valores de € 7 316,51, em 2014; € 7 678,21, em 2015 e € 8 805,31, em 2016) não tenham sido incorridos no interesse do sujeito passivo, devem os mesmos ser aceites na sua íntegra.

 

Quanto ao imóvel de Leiria, constituído por rés-do-chão, 1.º andar e 2.º andar, este último locado à B..., e em que ocorreu um incêndio em 6 de janeiro de 2012, considera a AT, que por terem os dois primeiros pisos deste edifício sido cedidos pela Requerente à C..., sociedade inativa no período a que respeita a ação inspetiva e relativamente à qual a Requerida afirma que “desconhece-se, por que não se tem que saber, se o bar e galeria, explorado pela sociedade C..., continuaram ou não em plena actividade após o sinistro” (artigo 51.º da resposta), apenas seriam fiscalmente dedutíveis os gastos correspondentes à parte arrendada àquela primeira entidade.

 

Assim, quanto a este imóvel, que, conforme os cálculos constantes do RIT (pág. 12 e anexo 8), apenas está afeto à atividade empresarial da Requerente na percentagem de 25%, foram desconsiderados gastos decorrentes de depreciações (€ 21 199,54, em 2014; € 21 989,03, em 2015 e, € 21 989,03, em 2016), assim como gastos relativos a consumos de água (€ 96,99, em 2015 e € 296,64, em 2016, embora no RIT – pág. 21 – se afirme que “também se constata que existem nos anos em análise consumos de água no edifício suportados pelo sp, sendo certo que as instalações de água e eletricidade são comuns aos 3 pisos”) e outros gastos (€ 3 186,64, em 2015, valor em que se inclui o controlo de pragas – pág. 7 do RIT).

 

É certo que não ficou provado que a inatividade prolongada da sociedade C..., registada no período a que respeita a inspeção, se tivesse ficado a dever à ocorrência do incêndio no edifício de Leiria, em 6 de janeiro de 2012, nem a prova documental ou testemunhal produzidas permitem aferir quais os danos que, em concreto, afetaram as instalações daquela sociedade.

 

Porém, não pode a AT afirmar o desconhecimento sobre o exercício (ou não) da atividade da C..., para daí extrair a conclusão de que esta empresa (ainda) ocupa o rés-do-chão e o primeiro andar do edifício em que se localiza a sua sede, e que, por não gerarem rendimentos para a Requerente, não se encontra o mesmo, na sua totalidade, afeto a fins empresariais. Tal conclusão é-lhe vedada pelo princípio do inquisitório (artigo 58.º, da LGT), que impõe à AT a realização de “todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”, princípio que se situa a montante das regras sobre o ónus da prova a que se refere o artigo 74.º, da LGT.

 

Não tendo a AT logrado provar, como lhe competia (artigo 74.º, n.º 1, da LGT) que os gastos suportados pela Requerente por referência ao prédio de Leiria, o tivessem sido em benefício de terceiros, por respeitarem na sua maior parte a encargos inerentes à propriedade daquele ativo (como é o caso das depreciações – artigos 23.º, n.º 2, alínea g), 29.º e seguintes do Código do IRC e Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro) ou a fornecimentos de água e outros gastos suportados em benefício do locatário único, eventualmente incluídos no valor das rendas, pois que, relativamente aos imóveis “com rendimentos cobrados, são também fornecidos genericamente ao locatário energia elétrica e/ou água e/ou outros serviços”, como se reconhece na página 7 do RIT, devem os mesmos ser aceites na sua totalidade.

 

Finalmente, quanto à vivenda de Coimbra, apenas parcialmente afeta à atividade da Requerente (pág. 12 do RIT e anexo 8), a AT desconsiderou em 89% os gastos declarados nos exercícios em análise, referentes a depreciações (€ 20 680,27, em 2014; € 20 680,27, em 2015 e € 20 680,27, em 2016), eletricidade (€ 3 996,81, em 2014; € 6 200,99, em 2015 e € 4 796,61, em 2016), água (€ 2 094,53, em 2014; € 2 153,63, em 2015 e € 2 328,60, em 2016), seguro (€ 1 167,48, em 2014; € 1 126,22, em 2015 e € 1 099,59 em 2016), condomínio – o que se deverá certamente a lapso da AT (€ 89,00, em 2015) e outros gastos (€ 2 669,87, em 2014; € 597,73, em 2015 e € 2 662,63, em 2016).

 

A justificação dada pela AT para estas correções foi a de que: (i) “A partir de 2014 passa a ser reconhecida nos resultados do exercício a utilização por parte da B..., do escritório da sociedade na vivenda em Coimbra” – pág. 5 do RIT; (ii) “em Fevereiro de 2015, a sede [da Requerente] muda para Coimbra, para a Rua ..., n.º..., uma moradia habitacional (…), e, a qual é também a residência dos sócios-pais e morada de família”; (iii) “A vivenda com 3 pisos em Coimbra, a qual além de uma parte (cerca de 70% da área, a crer na informação prestada à inspeção – vide anexo 8, fls. 9 a 11) do piso inferior ser usada como escritório e armazém da sociedade (e ainda como escritório aninhado da B..., para a elaboração de relatórios médicos, conforme antes referido em III.1.A.2) tem vindo a ser utilizada sobretudo pelos sócios-pais, como sua residência principal” – pág. 10 do RIT e, (iv) “constatou-se que apenas foram apresentados os contratos do alegado arrendamento da moradia ao sócio-pai, um com data de 2012.05.01 e outro com data de 2016.01.01, apesar de não haver até abril de 2017, qualquer fatura emitida ao sócio-pai, as emitidas, e apenas desde 2014, até àquela data quanto a este imóvel eram à B...(…)” – pág. 25 do RIT e anexo 5, fls. 19 e 20.

 

Como já foi referido supra, não é o facto de um determinado ativo de uma empresa não estar a ser usado, total ou parcialmente, para fins empresariais, num determinado exercício económico, que lhe poderá retirar o caráter de ativo, suscetível de gerar benefícios económicos futuros para a empresa que o detém, de molde a impedir a dedução dos gastos associados à sua manutenção e conservação ou à reintegração do capital investido.

 

No entanto, há que distinguir entre os gastos com aquela função, que não podem deixar de ser havidos como efetuados no interesse societário, como é o caso das depreciações ou dos seguros, daqueles que não servindo o escopo empresarial, são incorridos em benefício de terceiros.

 

Atendendo ao exposto e, não tendo a Requerente logrado provar o recebimento de quaisquer rendas referentes à parte do imóvel cedida aos sócios, não poderão ser aceites como fiscalmente dedutíveis, na percentagem apurada pela AT, os encargos relativos aos fornecimentos de eletricidade, água e outros gastos relativamente àquela parte, pelas quantias globais de € 8 761,21 (2014), € 8 952,35 (2015) e € 9 787,84 (2016), mantendo-se as correspondentes correções ao lucro tributável dos exercícios mencionados.

 

Pelos motivos que vêm a ser expostos relativamente aos imóveis identificados, deverão ser anuladas as liquidações na parte correspondente às correções indevidamente efetuadas, por errada interpretação e aplicação do artigo 23.º, do Código do IRC, nos montantes de € 50 363,80 (2014), € 54 846,36 (2015) e € 52 870,85 (2016), com as demais consequências legais.

 

2.            Questões de conhecimento prejudicado

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

 

                Tendo em conta o que ficou exposto no ponto precedente, fica prejudicado o conhecimento das questões abordadas pela Requerente, relativas aos preços de transferência a que se refere o artigo 63.º, do Código do IRC, e à aplicação da cláusula geral antiabuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º, da LGT.

 

Quanto à primeira daquelas questões, porquanto, visando os “preços de concorrência” garantir o princípio da plena concorrência nas operações comerciais entre entidades relacionadas, nomeadamente através do “método do preço comparável de mercado”, que a AT manifestamente não utilizou nas correções ao lucro tributável dos exercícios em análise, aceitando os valores das rendas constantes dos elementos contabilísticos da Requerente.

 

No que respeita à segunda questão, quanto ao arrendamento da vivenda de Coimbra aos sócios da Requerente nos exercícios de 2014, 2015 e de 2016, estamos em crer que a mesma se reconduz à aplicação das regras sobre o ónus da prova: tendo a AT provado, com base na contabilidade da Requerente, que apesar de terem sido apresentados os contratos do arrendamento da moradia ao sócio, um com data de 2012.05.01 e outro com data de 2016.01.01, até abril de 2017, não havia sido emitida qualquer fatura em seu nome, cabia à Requerente fazer a contraprova do alegado, o que não logrou fazer.

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados, decide-se em, julgando parcialmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:

a.            Declarar a ilegalidade parcial das liquidações de IRC n.º 2018..., de 27.07.2018 e de juros compensatórios n.º 2018..., bem como da demonstração do acerto de contas n.º 2018..., referentes ao exercício de 2014, determinando a sua anulação na parte correspondente à matéria tributável de € 50 363,80;

b.            Declarar a ilegalidade parcial das liquidações de IRC n.º 2018..., de 02.08.2018 e de juros compensatórios n.º 2018... e n.º 2018..., bem como da demonstração do acerto de contas n.º 2018..., referentes ao exercício de 2015, determinando a sua anulação na parte correspondente à matéria tributável de € 54 846,36;

c.            Declarar a ilegalidade parcial das liquidações de IRC n.º 2018..., de 02.08.2018 e de juros compensatórios n.º 2018..., bem como da demonstração do acerto de contas n.º 2018..., referentes ao exercício de 2016, determinando a sua anulação na parte correspondente à matéria tributável de € 52 870,85.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 45 333,07 (quarenta e cinco mil, trezentos e trinta e três euros e sete cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2 142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a repartir na proporção de 14,82% a cargo da Requerente e de 85,18% a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de agosto de 2019.

 

O Árbitro,

Mariana Vargas

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.