Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 587/2020-T
Data da decisão: 2021-07-28  IRC  
Valor do pedido: € 92.469,25
Tema: IRC. Dedutibilidade dos gastos. Depreciações de elementos do activo. Ónus da prova. Diligências complementares.
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Sumário:

I - O ónus da prova que, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, incumbe ao contribuinte, no tocante aos direitos que pretende fazer valer perante a Administração, apenas se reporta aos factos tributários que lhe digam directamente respeito, não sendo exigível que sobre o sujeito passivo recaia a consequência desvantajosa, no plano probatório, da não demonstração documental de aquisição dos bens no âmbito de uma relação comercial em que não é parte.

II - Havendo dúvidas sobre a realização de despesas por impossibilidade de apresentação dos documentos de suporte e admitindo a Administração Tributária, no âmbito de um procedimento inspectivo, que a prova pudesse ser efectuada por outros meios que não os meramente documentais, incumbia à Autoridade Tributária, em ordem ao princípio da verdade material, realizar as diligências complementares que se mostrassem ser necessárias.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., LDA, com o n.º de contribuinte e de pessoa colectiva..., com sede social na Rua..., n.º..., ..., ...-... Porto, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação adicional de IRC referentes aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, e o de acto de liquidação de IRC referente ao exercício de 2018, no montante global de € 92.469,24, a que acrescem juros compensatórios, bem como dos despachos de indeferimento  das reclamações graciosas n.º ...2019... e  n.º ...2019... contra eles deduzidas.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente foi alvo de uma acção de inspecção tributária de âmbito parcial, incidente sobre o IVA e o IRC, com referência aos períodos de tributação de 2014, 2015, 2016 e 2017, e tornada extensiva ao exercício de 2018, e que tiveram por base a existência de divergências relativamente a fornecimento de bens e que vieram a originar correcções em sede de IRC.

 

No tocante aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, estão em causa facturas emitidas pela C... e aquisições realizadas em 2012 e 2013.

No que se refere às facturas, não subsistem quaisquer dúvidas de que os bens que delas constam foram efetivamente adquiridos pela Requerente e integram o património e estão alocados à exploração do seu estabelecimento comercial, denominado “B...”.

A própria Autoridade Tributária pôde verificar no local a existência dos bens constantes das facturas de compra à C..., tendo lavrado um auto de inventário e confirmado o descritivo das facturas, igualmente constando do processo de inspecção as facturas directamente enviadas à Administração Tributária pelo Turismo de Portugal/COMPETE 2020.

 

As correcções são, por outro lado, resultantes de erros e insuficiências que são imputados à contabilidade da C..., quando é certo que a contabilidade da Requerente se encontra coberta pela presunção de veracidade, nos termos do artigo 75.º da LGT, e só poderia ser posta em causa se fossem detectados omissões, erros ou inexactidões relativamente aos dados e apuramentos inscritos nos seus próprios registos contabilísticos, tendo em conta que à Administração que cabe o ónus da prova dos factos constitutivos do direito a efectuar a liquidação adicional de imposto.

 

Acresce que, em caso de dúvida, competia à Autoridade Tributária ordenar a realização de diligências complementares para o completo esclarecimento da verdade material.

 

Conclui-se que os bens que constam das facturas emitidas pela C... existem e constam do imobilizado presente no estabelecimento hoteleiro da Requerente, não podendo afirmar-se que as facturas de suporte das vendas são falsas ou que o fornecimento foi realizado por uma outra entidade.

 

Relativamente às amortizações e depreciações de bens adquiridos em 2012 e 2013, que a Autoridade Tributária desconsiderou por se não encontrarem documentalmente comprovados, a Requerente refere que a documentação anterior a 2014 não pôde ser exibida por virtude da ocorrência de sinistro por roubo, em 21 de Dezembro de 2013, que foi devidamente participado às autoridades.

Acrescenta que as facturas existiam e foram registadas, dando origem à dedução do IVA, como o demonstra o facto de a Administração ter logrado obter, no âmbito de diligência instrutória, as facturas referentes a bens adquiridos em 2012 e 2013 que foram objecto de concessão de um subsídio pela QREN. Sendo incompreensível que a Autoridade Tributária, apesar de não ter posto em causa a ocorrência do sinistro que provocou o desaparecimento dos documentos contabilísticos, ter desconsiderado as aquisições de bens por ausência de suporte documental.

A Requerente alega ainda ter apresentado a reclamação graciosa n.º ...2019... em que discute a impossibilidade de deduzir, na declaração Modelo 22 de IRC, os prejuízos fiscais para apuramento da matéria tributável relativa ao exercício de 2018, por terem sido absorvidos pelas liquidações adicionais relativas aos períodos de tributação de 2014, 2015, 2016 e 2017.

Essa reclamação foi indeferida por se encontrar ainda pendente de apreciação a reclamação graciosa n.º ...2019... incidente sobre aqueles actos tributários de liquidação adicional.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a excepção dilatória da incompetência do tribunal relativamente ao pedido efectuado no âmbito da reclamação graciosa n.º ...2019..., referente à autoliquidação de IRC de 2018, por considerar que o que se pretende é o reconhecimento de um direito a deduzir prejuízos fiscais nesse período de tributação, o que se não enquadra no âmbito da competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária.

 

Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária reproduz as conclusões constantes do Relatório de Inspecção Tributária e, em matéria de direito, refere, em síntese, o seguinte.

 

A Requerente considerou na sua contabilidade depreciações em activos fixos tangíveis com base em facturas emitidas pela sociedade C..., relativamente às quais existem indícios fundados de que não titulam quaisquer transmissões ou prestação de serviços.

 

O Relatório de Inspecção Tributária relativo à Requerente faz referência às irregularidades da contabilidade da C... na medida em que é o conjunto dessas irregularidades que demonstra que as mercadorias constantes das facturas emitidas à A... dificilmente terão sido transmitidas por aquela entidade, uma vez que esta não tem suporte documental da sua aquisição e da sua existência nos inventários.

 

E o facto de os serviços inspectivos terem verificado a existência desses bens no estabelecimento da Requerente não determina com evidência que esta tenha adquirido efetivamente os bens à C... no período de 2014 a 2018.

 

Havendo indícios sérios e credíveis de que determinada operação comercial titulada por uma factura não é real, cabe ao contribuinte o ónus da prova da veracidade da transacção, e, nesse sentido, competia à C... ter efectuado a prova da aquisição dos bens que alegadamente terá vendido à A... .

 

Por outro lado, a Requerente não facultou elementos contabilísticos anteriores a 2014, que permitissem comprovar as deduções das depreciações relativamente às aquisições de imobilizado efetuadas em 2012 e 2013, limitando-se a invocar o facto de ter sido alvo de roubo em 21 de Dezembro de 2013 e de o mesmo ter sido participado à GNR que elaborou o auto de notícia.

 

A dedução das depreciações e amortizações dos activos apenas é possível se a respectiva aquisição estiver comprovada nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IRC e o facto da Autoridade Tributária ter obtido parte das facturas solicitadas através de um pedido efectuado à entidade responsável pela concessão do subsídio QREN demonstra que seria possível obter os documentos comprovativos que lhe permitiriam efectuar a dedução das depreciações.

 

Assim sendo, não tendo sido produzida pelo sujeito passivo a prova legal que lhe conferia esse direito, não é possível aceitar os gastos relativos a depreciações e amortizações dos bens que foram adquiridos em 2012 e 2013.

 

No tocante à reclamação graciosa n.º ...2018..., e independentemente da  invocada excepção da incompetência do tribunal para apreciar essa questão, o certo é que nos termos do artigo 100.º da LGT e do artigo 52.º, n.º 4, do CIRC, em caso de procedência total ou parcial de processo judicial, sempre haveria lugar  à reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, que se reflecte na autoliquidação de IRC relativa a 2018, no tocante à eventual dedução de prejuízos fiscais.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, por despacho de 26 de Maio de 2021, o tribunal notificou a Requerente para se pronunciar sobre a matéria de excepção.

 

Em resposta, a Requerente considerou que o objecto do processo, na parte referente ao exercício de 2018, é o acto de liquidação de IRC referente a esse exercício, por não ter sido possível deduzir, na respectiva declaração Modelo 22, os inerentes prejuízos fiscais em virtude das liquidações adicionais promovidas relativamente aos anteriores períodos de tributação de 2014, 2015, 2016 e 2017, concluindo que o que está em causa é a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos que integra a competência do tribunal arbitral.

 

Por despacho de 15 de Junho de 2021, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a produção de prova testemunhal e remeteu o processo para alegações.

 

A Requerente não alegou e a Requerida limitou-se a dar como reproduzido o alegado na resposta.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 25 de Janeiro de 2021.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção da incompetência do tribunal arbitral, que será analisada seguidamente.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II – Saneamento

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

4. A Autoridade Tributária suscita a excepção dilatória da incompetência do tribunal relativamente ao pedido que tem por base o despacho de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2019... que incide sobre a autoliquidação de IRC de 2018, por considerar que está aí em causa uma pretensão dirigida ao reconhecimento do direito a deduzir prejuízos fiscais nesse período de tributação que se não enquadra no âmbito da jurisdição arbitral.

 

Cabe começar por dizer que a Requerente não impugna apenas a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, mas também o acto de liquidação subjacente que se refere ao exercício de 2018.

 

É claro que o tribunal não dispõe de competência para conhecer do pedido referente ao indeferimento da reclamação graciosa pela linear razão de que essa decisão, como resulta da matéria de facto dada como assente, não chegou a pronunciar-se sobre a legalidade do acto de liquidação,  limitando-se a ponderar que a sua apreciação estava dependente da decisão a proferir na impugnação administrativa entretanto deduzida contra os actos de liquidação relativos aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017.

 

Havendo uma relação de prejudicialidade entre as liquidações adicionais operadas naqueles anteriores períodos de tributação e a autoliquidação relativa a 2018 e tendo a Autoridade Tributária fundado a sua decisão nessa mesma relação de causa/efeito, acabou por decidir com base num argumento meramente formal que não implicou a análise da legalidade da liquidação.

 

Entre as espécies processuais que integram o processo judicial tributário, o CPPT distingue entre a “impugnação da liquidação de tributos”, aí se incluindo os actos de autoliquidação, a que se refere o artigo 97.º, n.º 1, alínea a), e a impugnação de "actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação", a que alude o artigo 97.º, n.º 1, alínea p), que segue a forma do recurso contencioso, e, como resulta do n.º 2 desse artigo, é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos. Por efeito da remissão do artigo 191.º do CPTA, a remissão efectuada pelo artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT considera-se agora feita para a forma de processo que lhe corresponde no CPTA e, portanto, para a acção de condenação à prática de acto devido quando esteja em causa a omissão ou recusa da prática de acto administrativo.

Encontrando-se o âmbito de jurisdição dos tribunais arbitrais delimitado por pretensões dirigidas à declaração de ilegalidade de tributos (artigo 2.º, n.º 1, do RJAT), e estando excluídas da sua competência contenciosa as acções administrativas que não sejam de mera impugnação, o tribunal é incompetente, tendo em conta o seu objecto, para conhecer da decisão de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2019... .

 

Por outro lado, embora a Requerente tenha igualmente impugnado o acto de autoliquidação de IRC relativo a 2018, pelas razões já expostas, subsiste uma relação de prejudicialidade entre esse acto e as liquidações adicionais referentes aos anos precedentes, que também são impugnadas, e, como decorre do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, em caso de procedência da impugnação que constitui causa prejudicial, a Administração está obrigada a restabelecer a situação que existiria se os actos tributários declarados ilegais não tivessem sido praticados, adoptando os actos e as operações necessárias para o efeito.

 

E, sendo assim, a Requerente não tem interesse processual em impugnar o referido acto de autoliquidação referente a 2018.

 

Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

 

A)           A Requerente iniciou a sua actividade em 23 de Maio de 2008, encontrando-se colectada para a actividade de “Turismo em Espaço Rural” (CAE 55202), e é sujeito passivo para efeitos de IRC no regime geral com contabilidade organizada.

B)           A Requerente explora uma unidade hoteleira de 5 estrelas, designada “B...”, situada na freguesia de ..., no município de ..., com um total de 18 quartos e que começou a operar em 2012.

C)             A Requerente foi alvo de uma acção de inspecção tributária externa em sede de IRC, credenciada pelas Ordens de Serviço n.ºs 012018..., 012018..., 012018..., 012018... e 012018..., incidente sobre os exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, e que tiveram por base a existência de divergências relativamente a um dos seus fornecedores.

D)           O procedimento inspectivo titulado pela Ordem de Serviço n.º 012018... tornou-se extensivo ao exercício de 2018.

E)            A acção inspectiva deu origem a correcções à matéria coletável de IRC por desconsideração de depreciações de bens adquiridos em 2012 e 2013, por falta de suporte documental, e por desconsideração de depreciações de bens adquiridos nos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017 e que respeitam a facturas emitidas pela sociedade C..., que se encontram descritas:

 

                Ponto RIT            Descrição            2014      2015      2016       2017

                III-2.2.2.1             Depreciação de aquisições efetuadas em 2012 e 2013    35.456,54€          44.024,90€                53.992,76€          53.992,76€

                III-2.2.2.3             Depreciação relacionado com faturas emitidas pela C... 2.602,81€            71.933,33€                74.536,14€          124.672,02€

(1)                          TOTAL DAS CORREÇÕES 38.059,35€          116.041,72€        128.695,88€        178.831,76€

(2)                          Resultado tributável declarado  -984,34€               -5.113,60€           -1.861,88€           31.039,91€

(3)=(1)-(2)                          Resultado tributável declarado após correção    37.111,01€          110.928.12€        126.834,00€                209.871,67€

 

F)            O Relatório de Inspecção Tributária, que aqui se dá como reproduzido, fundamenta as correcções em causa, na parte relevante, nos seguintes termos:

 

III-2.2.2 – Correções em sede de IRC

III-2.2.2.1 — Depreciações de aquisições efetuadas em 2012 e 2013

O sujeito passivo facultou-nos os elementos contabilísticos relativos aos exercícios de 2014 a 2018 que solicitámos. No entanto, não nos facultou elementos contabilísticos anteriores a 2014, que também solicitámos, esclarecendo que os mesmos foram alvo de um roubo a 21-12-2013, juntando um auto de notícia elaborado pela GNR a título de prova. No entanto, para além de não nos ter facultado documentos anteriores a 2014 também não nos facultou os registos contabilísticos, que seriam dados informatizados. No auto de notícia a gerente de facto da A... refere apenas o roubo de documentos, e não de um computador.

Analisando os mapas de amortizações relativos aos exercícios de 2014 a 2017 constatámos que nestes exercícios estão a ser depreciados bens adquiridos em 2012 e 2013. Relativamente aos bens cuja aquisição foi alvo de um subsídio do QREN solicitamos à entidade responsável pela atribuição do subsídio, através do Ofício no 2019... de 15/01/2019 para nos remeterem os documentos comprovativos dessas aquisições, o que veio acontecer, através de e-mail que nos foi remetido em 16/01/2019. No entanto, relativamente aos bens cuja compra não foi subsidiada não dispomos de qualquer documento, uma vez que o sujeito passivo não os facultou.

Sendo a gerente de facto Contabilista Certificada, tinha que ter conhecimento de que apenas poderia ser reconhecer como gasto em sede de IRC e deduzir IVA, desde que tivesse na sua posse faturas passadas em forma legal.

Estipula o n.ºs  3 e 4 do art.º 23.º do CIRC o seguinte:

3 Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.

4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos:

a)            Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;

b)           Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;

c)            Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;

d)           Valor da contraprestação, designadamente o preço;

e)           Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados."

Ademais, o n.º 1 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (LCT) estabelece que a regra do ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos invocados no procedimento tributário recai sobre quem os invoque. Assim, para que a administração tributária se pronuncie sobre a legitimidade do gasto deduzido impõe-se ao contribuinte demonstrar a existência dos pressupostos que lhe conferiram o direito à dedução do gasto e a sua conformidade com as normas legais que lhes estão subjacentes.

Para aferir da legitimidade dos gastos referidos, impõe-se a necessária verificação da existência dos pressupostos e sua conformidade com as normas legais aplicáveis, nomeadamente a observância dos registos contabilísticos e requisitos dos documentos que suportam o gasto deduzido, uma vez que o no 4 do artigo 123.º do Código do IRC refere que "Os livros, registos contabilísticos e respetivos documentos de suporte devem ser conservados em boa ordem durante o prazo de 10 anos."

Nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 23.º do Código do IRC só são aceites como gastos quando estejam documentalmente comprovados. Assim, iremos proceder à desconsideração das amortizações do Ativo Fixo Intangível e as depreciações do Ativo Fixo Tangível dos bens adquiridos antes de 2014 cuja documentação de aquisição não nos foi facultada e que constam dos mapas das amortizações e depreciações na posse do sujeito passivo, que nos foram entregues (anexo 1)

 

DESCRIÇÃO        AMORT/DEPREC

DO EXERCICIO DE

2014      AMORT/DEPREC

DO EXERCÍCIO DE

2015      AMORT/DEPREC

DO EXERCICIO DE

2015      AMORT/DEPREC

DO EXERCICIO DE

2015

ATIVOS FIXOS INTANGÍVEIS        6.813,47€            6.813,47€             6 813,47€            6.813,47€

ATIVOS FIXOS TANGÍVEIS            28.643,07€          37.211,43€          47.179,29€          47.179,29€

TOTAL   35.456,54€          44.024,90€          53.992,76€          53.992,76€

 

[…]

III.2.2.2.3- Depreciações relacionadas com faturas emitidas peta C...- 2014 a 2017

Foi concluído em função do descrito no ponto III.1, haver indícios fundados de que as faturas emitidas pela C..., não titulam qualquer transmissão/prestação de serviços. Assim, serão desconsideradas as depreciações dos Ativos Fixos Tangíveis reconhecidos como gasto nos anos de 2014 a 2017, nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º do Código da IRC, em virtude das faturas em causa não titularem transmissão de bens/prestação de serviços efetuadas por aquela empresa.

A partir do documento que nos foi enviada pela Contabilista Certificada Sra D..., por email de 11/01/20191 (anexo 2) e dos mapas de amortizações e depreciações que nos foram entregues (anexo 1), serão desconsideradas, por anos, as seguintes depreciações:

 

ANO DE DEPRECIAÇÃO ANO DE AQUISIÇÃO       VALOR AQUISIÇÃO         TAXA DE DEPRECIAÇÃO                DEPRECIAÇÃO

2014      2014      36.453,91€          7,14%    2.602,81€

                2014      291.021,09€                        o,oo€

TOTAL 2014                                                       2.602,81€

2015      2014      36.453,91€          7,14%    2.602,81€

2015      2014      291.021,09€                        36.377,64€

201S      2015      263.623,10€        12,50% 32.952,89€

TOTAL 2015                                                      

2016      2014      36.453,91€          14,28% 5.205,62€

2016      2014      291.021,09€                        36.377,64€

2016      2015      263.623,10€        12,50%

2016      2016      401.087,00€                        o,oo€

TOTAL 2016                                                       74.536,14€

2017      2014      36.4S3,91€                          5.205,62€

2017      2014      291.021,09€                        36.377,64€

2017      2015      263.623,10€        12,50% 32.952,89€

2017      2016      401.087,00€        12,50% 50.135,88€

2017      2017      502.087,50€        0,00%    0,00€

TOTAL 2017                                                       124.672,02€

 

G)           No Relatório de Inspecção Tributária, as correções efectuadas quanto às depreciações relacionadas com faturas emitidas pela C..., nos exercícios de 2014 a 2017, encontram-se justificadas com base em considerações formuladas em relação a esta última entidade, enquanto fornecedora dos bens, que são assim sintetizadas:

 

III-1.2 — Conclusão

a)            Tendo presente o exposto será de concluir que o sujeito passivo declarou compras e deduziu IVA, no período de 2014 a 2018, sem suporte documental;

b)           Quanto às fotocópias dos documentos que nos foram entregues relativas ao período de 2006 a 2008, não há evidência contabilística, declarativa, nem outro elemento concreto que comprovasse que aquelas compras se tenham verificado;

c)            Não foram apresentados os originais dos documentos de 2006, 2007 e 2008, com os quais pretendeu provar de que tinha adquirido os bens que supostamente vendeu à A... nem os meios financeiros utilizados para o pagamento das mencionadas faturas;

d)           Como já foi referido anteriormente, a C..., tomou a iniciativa de emitir diversas notas de crédito, em 18/10/2018 (seis dias antes do início do procedimento inspetivo) relacionados com bens/prestação de serviços constantes em faturas emitidas à A..., o que vem comprovar que a C... emitiu faturas sem que consubstanciassem efetivas transações;

e)           O comportamento da C... pelo menos anos de 2014 a 2018, ao deduzir IVA e considerar gastos, em sede de IRC, sem suporte documental, ou registos contabilísticos, propiciou que a A... deduzisse indevidamente IVA e solicitasse os respetivos reembolsos de valor superior àquele que teria direito e considerasse indevidamente gastos, em sede de IRC;

f)            A C... não tem estrutura empresarial adequada para efetuar aquela quantidade de vendas/prestação de serviços, pelos motivos apontados ao longo do presente relatório;

g) Concluímos que os documentos que nos foram entregues não titulam compras efetuadas pela C..., nos anos de 2006 a 2008, relacionadas com as faturas emitidas à A..., entre 2014 a -2018, pelo que, as faturas emitidas pela C... à A..., serão consideradas "falsas por não titularem qualquer transação.

h)           Pelo facto da Sra D a E..., ser gerente de facto e Contabilista Certificado, de ambas as empresas, a mesma sabia que os bens constante das faturas emitidas pela C..., não poderiam ter sido vendidos pela C..., já que, não logrou provar, através dos documentos que foram apresentados, nos termos do art.º 74.º, n.º 1, da LGT, que os bens na posse da A..., relacionados com os inventariados por nós, em 28/01/2019, tenham sido adquiridas à C..., bem como aqueles que não foram inventariados por nós.

i)             Consta do procedimento inspetivo no âmbito da Ordem de Serviço no 012008..., de 27/02/2008, que o sujeito passivo não detinha em 10/07/2008, o valor dos bens relativo aos documentos que nos foram entregues (que têm todos datas a anteriores 10/07/2008) para justificar o inventário alegadamente elaborado em 30/10/2013.

Em face do que foi exposto. concluímos que as faturas emitidas pela C... à A..., não titulam transmissões de bens e prestacões de serviços por aquela realizados.

H)           No decurso do procedimento inspectivo, a Autoridade Tributária, ao abrigo do Despacho n.º DI2019..., elaborou um auto de inventário de bens existentes na unidade hoteleira pertencente à Requerente, que constitui o documento n.º 5 junto ao pedido arbitral, e que aqui se dá como reproduzido.

I)             A solicitação da Requerente, a Autoridade Tributária emitiu certidão, que constitui o documento n.º 6 junto ao pedido, da qual consta a informação do inspector tributário que procedeu ao auto de inventário, e que é do seguinte teor:

1. Encontrando-se a decorrer uma ação inspetiva externa ao SP desenvolvido ao abrigo das ordens de serviço 012018.../.../.../... com extensão ao período 2014 a 2018, tornou-se pertinente efetuar um controlo dos bens situados nas instalações do SP em janeiro de 2019;

2.            Nesse sentido, deslocámo-nos ao "B...", sito na ..., ..., a 28-01-2019, tendo verificado, por amostragem, que os bens alvo de faturação pela C..., Lda. (NIF...) ao SP entre 2014 e 2018 se encontravam efetivamente no Hotel.

3.            Foi elaborado um "Auto de Inventário", cujas cópias foram facultadas ao SP e juntas aos processos 012018.../... /.../... e 012018.../... /.../012019.../..., que se pretendiam informar.

4.            Cumpridos os propósitos do presente Despacho, propomos o encerramento do mesmo.

J)            Em 1 de Outubro de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os actos de liquidação em IRC relativos aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, a que foi atribuída o n.º ...2109....

K)           A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 15 de Julho de 2020 do Chefe de Divisão dos Serviços de Finanças, praticado ao abrigo de subdelegação de competências, e que manifestou concordância com a informação dos serviços, que constitui o documento n.º 1 junto com o pedido, que aqui dá como reproduzido, e, no essencial mantém as conclusões do Relatório de Inspecção Tributária.

L)            Em 1 de Outubro de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o acto de liquidação em IRC relativo ao exercício de 2018, a que foi atribuída o n.º ... .

M)          A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 15 de Julho de 2020 do Chefe de Divisão dos Serviços de Finanças, praticado ao abrigo de subdelegação de competências, e que manifestou concordância com a informação dos serviços, que constitui o documento n.º 4 junto com o pedido, e, na parte relevante, é do seguinte teor:

Da apreciação do pedido

1.            Em 2019/05/24, a reclamante apresentou a declaração Modelo 22 referente ao exercício de 2018, na qual foi apurado um lucro tributável de € 23.751,73.

2.            Em sede de reclamação graciosa vem solicitar que a matéria coletável do exercício de 2018 possa ter em consideração os prejuízos dedutíveis de exercícios anteriores, cuja utilização não se mostrou possível em sede de autoliquidação, pelo facto de os mesmos terem sido utlizados no âmbito de liquidações adicionais efetuadas aos exercícios de 2014 a 2017, decorrentes de correções efetuadas pelos serviços de inspeção, no âmbito das ordens de serviço n.ºs 012018.../.../.../... .

3.            Tendo interposto a reclamação graciosa n.º ...2019..., pondo em causa as correções suprareferidas, efetuadas aos exercícios de 2014 a 2017, defende agora a correção à matéria coletável apurada no ano de 2018.

4.            No entanto, o processo de reclamação graciosa n.º ...2019... encontra-se ainda pendente de decisão.

5.            Deste modo, encontrando-se pendente de decisão a reclamação graciosa supra identificada, referente aos exercícios de 2014 a 2017, deverá a reclamante aguardar o trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida no âmbito do referido processo, que caso lhe venha a ser favorável produzirá os respetivos efeitos na sua esfera de tributação, por via de correções a efetuar oficiosamente pela Administração Fiscal.

6.            Assim resulta do disposto no art. 100.º da LCT, que determina que "A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.".

CONCLUSÃO

Perante o exposto, entende-se que a reclamação graciosa em apreço deve ser INDEFERIDA.

N) O pedido arbitral deu entrada em 30 de Outubro de 2020.

 

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

 

                Matéria de direito

 

5. A primeira questão em debate prende-se com a desconsideração fiscal de depreciações, na esfera jurídica da Requerente, relacionadas com a aquisição de bens que tinham como suporte documental facturas emitidas pela C..., e que os serviços inspectivos concluíram que não titulavam qualquer transmissão ou prestação de serviços.

 

Como resulta com evidência do Relatório de Inspecção, a correcção tributária não foi determinada por quaisquer insuficiências ou inexactidões dos registos contabilísticos da Requerente, nem por falhas declarativas que lhe sejam imputáveis, mas por meros indícios recolhidos num procedimento inspectivo paralelo que teve por objecto a situação tributária da C... .

 

 Basicamente, a Autoridade Tributária considerou que os bens em causa, a que se referem as facturas emitidas pela C... a favor da Requerente, no período de 2014 a 2018, não poderiam ter sido vendidos por aquela empresa uma vez que ela não provou que os tenha adquirido, de onde se extraiu a conclusão de que as facturas são falsas por não titularem qualquer transação.

 

Para chegar a esse resultado indiciário, a Autoridade Tributária teve em atenção que as fotocópias das facturas de 2006, 2007 e 2008 que foram entregues aos serviços inspectivos, e pelas quais a C... pretendeu provar que tinha adquirido os bens que posteriormente vendeu à Requerente, não apresentam evidência contabilística e declarativa, nem foram acompanhadas dos meios de pagamento utilizados, e que a C...  não tem estrutura empresarial adequada para efectuar a aquisição de todos aqueles bens (RIT, ponto III.1.2, pág. 25).

 

Os considerandos formulados no Relatório de Inspecção Tributária em resposta às objecções colocadas pela Requerente, em sede de audição prévia, são também elucidativos. Aí se afirma que “a C... não provou que as mercadorias constantes das facturas emitidas à

A..., tenham sido adquiridas pela C...” e que “cabe ao sujeito passivo provar, o que não o fez, nos termos do n.º 1 do 74.º da LGT, que a C... tinha efetivamente comprado os bens facturados à A...” (RIT, ponto 6, pág. 51). Adiante ainda se refere que “o facto de não existirem diferenças significativas entre o projecto de relatório de inspeção da C... e A..., deve-se a que grande parte das correções efectuadas tiveram por  base o facto de se ter concluído que a C... não provou que tenha adquirido os bens constantes das facturas emitidas à A...” (RIT, ponto 10, pág. 54).

 

Em suma, as correcções tributárias efectuadas em relação à Requerente assentam essencialmente no incumprimento do ónus da prova, por parte do fornecedor, da aquisição dos bens que foram ulteriormente vendidos à Requerente através das facturas emitidas no período de 2014 a 2018.

 

6. Como resulta do disposto no artigo 75.º da LGT, os dados e apuramentos inscritos na contabilidade do sujeito passivo presumem-se verdadeiros e só quando a contabilidade contiver omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável é que cessa essa presunção, implicando que recaia sobre o sujeito passivo o ónus da prova dos factos que constam da escrita.

 

E como constitui jurisprudência pacífica, em aplicação do artigo 74.º da LGT, quando a liquidação de IRC tem por fundamento a não aceitação de custos declarados pelo contribuinte, por se considerar que as facturas em que este os pretende suportar não correspondem a operações realmente efectuadas, compete à Administração Tributária fazer a prova de que existem indícios sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade. E, estando em causa uma prova indiciária, esta tem de ser necessariamente consistente, traduzindo-se em factos que revelem uma probabilidade elevada de as operações tituladas pelas facturas terem sido simuladas, em vista a permitir recusar a dedução como custos de despesas que, em regra, devem ser dedutíveis face à cláusula geral do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC (cfr. acórdãos do TCA Norte de 13 de Outubro de 2016, Processo n.º 00388/11, e de 24 de Janeiro de 2017, Processo n.º 02905/06).

 

Só feita essa prova indiciária é que cabe ao sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da facturação.

 

Ora, no caso em análise, a Administração Tributária partiu da presunção de que as facturas emitidas a favor da Requerente entre 2014 e 2018 não respeitavam a bens efectivamente adquiridos por não ter sido feita a prova, num outro procedimento inspectivo, que os bens tenham sido adquiridos pelo seu fornecedor. Sendo essa, aliás, a circunstância que determinou – como é reconhecido – que os Relatórios de Inspecção Tributária incidentes sobre as duas entidades (C... e A...) sejam de idêntico teor, uma vez que as correcções tributárias efectuadas, em qualquer dos casos, tiveram por base o mesmo único facto - a ausência de prova de que a C... tivesse adquirido os bens constantes das facturas emitidas a favor da Requerente.

 

Como se deixa entrever, a Autoridade Tributária não imputa à Requerente quaisquer factos concretos que se consubstanciem em omissões, erros ou inexactidões dos registos contabilísticos ou de que resultem outros indícios que permitam concluir pela simulação das operações subjacentes à emissão das facturas, e limita-se a fazer extrapolações a partir de um outro procedimento inspectivo em que a Requerente não teve intervenção, recorrendo inclusivamente a considerações que têm a ver com a própria estrutura empresarial da entidade que, nesse procedimento, era objecto de indagação.

 

A Administração ignorou, por outro lado, diversos outros elementos que apontam no sentido de que os bens existiam e estavam alocados à exploração da unidade hoteleira pertencente à Requerente. Com efeito, os serviços inspectivos, no âmbito do procedimento desencadeado contra a Requerente, procedeu ao controlo parcial dos bens existentes no estabelecimento da Requerente, elaborou o respectivo auto de inventário, identificando os bens pelo descritivo, valor unitário e correspondente factura de compra, e na informação escrita que constitui o documento n.º 6 junto ao pedido arbitral, o inspector tributário interveniente atesta que se deslocou ao local, em 28 de Janeiro de 2019, e “verificou, por amostragem, que os bens alvo de faturação pela C... ao sujeito passivo, entre 2014 e 2018, se encontravam efetivamente no Hotel”.

 

Acresce que parte das aquisições foram efetuadas no âmbito de um processo de incentivos concedidos ao abrigo do programa COMPETE 2020 – a que o Relatório de Inspecção Tributária faz referência – e a documentação atinente às transacções não poderia ter deixado de ser auditada pela entidade gestora da atribuição dos subsídios.

 

E sendo a inventariação e avaliação dos bens uma das diligências instrutórias que cabe à Administração realizar no âmbito do procedimento inspectivo, em vista à averiguação da realidade tributária (artigo 2.º, n.º 2, alínea c), do RCPITA), dificilmente se compreende que o valor probatório do auto, que se destina a fazer fé das operações realizadas e dos resultados alcançados, tenha sido completamente desconsiderado apenas com base no argumento de que a existência dos bens em si não põe em causa a ausência de prova de que os bens foram adquiridos (RIT, ponto 6, pág. 51).

 

Resta acrescentar que o ónus da prova que, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, incumbe ao contribuinte, no tocante aos direitos que pretende fazer valer perante a Administração, apenas se reporta aos factos tributários que lhe digam directamente respeito. E não é exigível que sobre o sujeito passivo recaia a consequência desvantajosa da não realização da prova relativamente à aquisição dos bens pelo seu fornecedor a uma terceira entidade, quando é certo que essa relação comercial lhe é inteiramente alheia nem ele tem acesso à documentação de suporte que poderia justificar a validade da operação.

 

O pedido arbitral mostra-se ser procedente, nesta parte.

 

7. A segunda questão em análise refere-se à desconsideração fiscal de depreciações de aquisições efectuadas em 2012 e 2013 por se ter entendido que os gastos não se encontram documentalmente comprovados.

 

Como resulta da matéria de facto dada como assente, o sujeito passivo, no âmbito do procedimento inspectivo, facultou os documentos contabilísticos relativos aos exercícios de 2014 a 2018 que haviam sido solicitados, mas não os referentes a anos anteriores, tendo esclarecido que estes haviam sido objecto de um roubo, ocorrido em 21 de Dezembro de 2013, que foi comunicado à autoridade policial e de que foi lavrado auto de notícia que se encontra junto aos autos de inspecção.

 

À luz desta factualidade, os serviços inspectivos argumentam que o auto de notícia apenas refere o desaparecimento de documentos, e não de meios informáticos, pelo que nada obstaria a que fossem juntos os registos contabilísticos informatizados. E, nessa linha de entendimento, a Autoridade Tributária, invocando o disposto no artigo 23.º, n.ºs 3 e 4, do CIRC, aceitou a depreciação de bens adquiridos em 2012 e 2013 que foram abrangidos por um subsídio do QREN, por terem sido entretanto remetidos, pela entidade gestora do programa, os documentos comprovativos das aquisições, mas não a depreciação de bens cuja compra não foi subsidiada e relativamente aos quais o sujeito passivo não facultou a documentação de suporte.

Não se põe em dúvida que, nos termos do n.º 3 do artigo 23.º do Código do IRC, os gastos dedutíveis “devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito”, e, segundo o subsequente n.º 4, no caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo deve conter os elementos essenciais que identifiquem a operação realizada.

No caso vertente, foi possível comprovar, através de iniciativa oficiosa da Administração, os gastos realizados com parte das aquisições que originaram as depreciações relativas a 2012 e 2013, através dos documentos que se encontram na posse da entidade que atribuiu os subsídios. E foi dada uma justificação convincente quanto à inexistência do suporte documental das operações não subsidiadas.

 

Não pode deixar de reconhecer-se, por outro lado, que a Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, a realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, nisso se traduzindo o princípio do inquisitório como meio instrumental da preparação de uma decisão justa e conforme à legalidade.

 

Um afloramento deste princípio surge no artigo 58.º da LGT, mas consta também do artigo 6.º do RCPITA onde se diz que “o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”. Esse mesmo princípio tem como necessária decorrência que a Administração deva levar a efeito as diligências que entenda serem úteis no âmbito do procedimento sem se encontrar subordinada à iniciativa do contribuinte.

 

Certo é que esse poder-dever é meramente complementar relativamente às obrigações declarativas e contabilísticas do sujeito passivo, apenas se justificando a realização de diligências oficiosas quando os elementos instrutórios que tenham sido recolhidos a partir dos registos contabilísticos do sujeito passivo não permitam esclarecer certos aspectos da relação tributária e se torne necessário uma mais completa indagação.

 

No entanto, no caso, a Administração socorre-se de uma mera ilação para desconsiderar os gastos não documentados, inferindo da expressa menção feita, no auto de notícia, ao roubo de documentos que a ocorrência não envolveu os meios informáticos, nem impossibilitou o sujeito passivo de comprovar os gastos através de registos contabilísticos informatizados.

 

Ora, nessa circunstância, havendo dúvidas sobre a realização das despesas e suscitando-se a possibilidade de a prova poder ser efectuada por outros meios que não os meramente documentais, incumbia à Autoridade Tributária, em ordem ao princípio da verdade material, realizar as diligências complementares que se mostrassem necessárias, ao invés de se escudar em mero juízo presuntivo necessariamente desfavorável ao contribuinte.

 

Acresce que as depreciações se encontravam registadas contabilisticamente, assim se compreendendo que os serviços inspectivos tivessem procedido à sua desconsideração fiscal, e, nesse caso, também esse registo contabilístico se encontra coberto pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT, tendo em consideração que a ausência de comprovação documental não resulta de omissão, erro ou inexactidão, mas de um acontecimento fortuito pelo qual o contribuinte não é responsável.

 

E, sendo assim, cabia à Administração fazer a prova da ilisão da presunção de veracidade dos elementos contabilísticos em causa, demonstrando fundamentadamente que se verificavam indícios bastantes da existência do facto tributário que é sujeito a imposto.

 

Também neste ponto, o pedido arbitral se mostra ser procedente.

 

Juros compensatórios

 

8.  A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação aos actos tributários de liquidação de IRC.

 

Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.

 

A procedência do pedido arbitral torna necessariamente inexigível o pagamento de juros compensatórios, pelo que também nesse ponto o pedido é procedente relativamente às liquidações adicionais de IRC referentes aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar o tribunal incompetente para conhecer da decisão de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2019...;

b)           Não tomar conhecimento do pedido arbitral relativamente ao acto de autoliquidação referente a 2018;

c)            Julgar procedente o pedido arbitral e anular o actos tributários de liquidação de IRC referentes aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017 e de liquidação de juros compensatórios e, bem assim, o despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... contra eles deduzida;

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 92.469,25, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 28 de Julho de 2021,

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

A Árbitro vogal

Maria do Rosário Anjos

 

O Árbitro vogal

Luís Menezes Leitão