Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 585/2020-T
Data da decisão: 2021-10-01  ISP  
Valor do pedido: € 92.226,61
Tema: Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE). Competência do tribunal arbitral em razão da matéria.
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SUMÁRIO:

1.            A Portaria de Vinculação, tendo por função permitir a exequibilidade do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que no seu artigo 4.º se declarou não auto-exequível, configura um regulamento de execução, não proibido pelo n.º 5 do artigo 112.º, da Constituição da República Portuguesa. Assim sendo, as pretensões tributárias sobre as quais os tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD se podem pronunciar têm de ser “relativas a impostos”, como estabelecido no seu artigo 2.º da citada Portaria;

2.            A CESE, não obstante as diversas alterações legislativas sofridas pelo regime instituído pelo artigo 228.º, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, designadamente as resultantes da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, continua a revestir caraterísticas de tributo bilateral, uma vez que as mesmas não são de molde a alterar a sua a qualificação como contribuição financeira;

3.            Esta conclusão tem por consequência a incompetência material do Tribunal Arbitral para decidir do litígio em análise, pois a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária se restringe à apreciação de pretensões relativas a impostos administrados pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dr.ª Mariana Vargas e Dr. Jesuíno Alcântara Martins (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25 de janeiro de 2021, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

Em 30 de outubro de 2020, A..., SA, com o NIPC ... e sede na ..., n.º ..., ..., em Lisboa (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mº Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, e, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A. Objeto do pedido:

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) relativa ao ano de 2019, bem como da decisão proferida na reclamação graciosa que a confirmou, por ilegalidade derivada da inconstitucionalidade do regime da CESE, aprovado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014), na formulação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2019).

Cumulativamente, pede a Requerente reembolso do montante pago, da quantia de € 92 226,61, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Síntese da posição das Partes

a.            Da Requerente:

A Requerente, que até ao final de 2018 beneficiou de isenção de CESE, invoca a inconstitucionalidade do regime deste tributo, na redação em vigor para o ano a que respeita a autoliquidação que contesta, face às alterações que lhe foram sendo sucessivamente introduzidas pelas Leis n.º 33/2015, de 27 de abril, n.º 42/2016, de 28 de dezembro, n.º 114/2017, de 29 de dezembro e, sobretudo, pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro.

 

Entende a Requerente que tais alterações obrigam a uma reformulação da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 7/2019) e do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 8 de janeiro de 2020), que qualificaram a CESE como contribuição financeira, obrigando à sua requalificação como verdadeira contribuição especial, suscetível de recondução ao regime constitucional dos impostos.

 

Defende a Requerente que a versão do regime da CESE, emergente das sucessivas alterações, especialmente da que lhe foi aportada pela Lei do Orçamento do Estado para 2019, lhe fez perder as caraterísticas que levaram à sua qualificação jurisprudencial como mera contribuição financeira, pois atualmente mais não é do que um mecanismo de recuperação, pela via fiscal, de eventuais ganhos extraordinários que imputa aos respetivos sujeitos passivos, pelo (suposto) contributo que tiveram para a constituição a agravamento da dívida tarifária do SEN e respetiva sustentabilidade, sendo, nesta medida, herdeira das contribuições especiais “históricas”, previstas nos Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de março, Decreto-Lei n.º 54/95 de 22 de março e no Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de março, que criaram, respetivamente, o Regulamento da Contribuição Especial devida pela valorização de imóveis decorrente da construção da nova ponte sobre o Rio Tejo, o Regulamento da Contribuição Especial devida pela valorização de imóveis decorrente da realização da EXPO 98 e o Regulamento da Contribuição Especial devida pela valorização dos imóveis beneficiados com a realização da CRIL, CREL, CRIP, CREP, travessia ferroviária do Tejo, troços ferroviários complementares, extensões do metropolitano de Lisboa e outros investimentos.

 

A Requerente entende que o regime que criou a CESE tem subjacente um racional em tudo semelhante ao que presidiu à criação daquelas contribuições especiais, na medida em que também neste caso o legislador pretende incutir aos sujeitos passivos o ónus de suportar supostos aumentos de valor ou enriquecimentos associados os regimes remuneratórios que lhes foram aplicáveis, no pressuposto de que tal foi a causa determinante para a origem e constituição da dívida tarifária do SEN, pelo que “está sobretudo em causa a imputação dos danos económicos associados à dívida tarifária do SEN aos respetivos sujeitos passivos, tendo como pressuposto, de entre outros, uma associação entre a referida dívida e o conjunto de sobrecustos existentes no sistema e que se lhes imputam, numa base indiscriminada”, conforme a intenção declarada pelo legislador de, por esta via, “adotar uma estratégia de minimização dos encargos decorrentes dos CIEG” e do seu inequívoco reflexo na dívida tarifária do SEN.

 

Concluindo pela qualificação da CESE como contribuição especial, equiparada no respetivo regime legal e constitucional aos impostos pelo artigo 4.º, n.º 3, da LGT, vem a Requerente pedir a declaração da inconstitucionalidade do seu regime, com a consequente anulação da autoliquidação referente ao ano de 2019, bem como da decisão da reclamação graciosa que a manteve.

 

A desconformidade constitucional do regime da CESE, reside, segundo a Requerente,

(1) numa inconstitucionalidade material, por violação do princípio da tributação pelo lucro real, dada a existência de uma base de tributação exclusivamente alicerçada em ativos;

(2) numa inconstitucionalidade material, por violação do princípio da segurança jurídica, na sua vertente da proteção da confiança, face à reiterada violação da sua condição “extraordinária”;

(3) numa inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade, enquanto necessidade e proibição do excesso, por ausência de conexão entre os fundamentos fiscais ou creditícios que suportam o respetivo regime e os factos, legalmente consagrados e publicamente conhecidos, quanto ao destino da respetiva receita, em especial tendo por referência a evolução da dívida tarifária do SEN; e

(4) numa inconstitucionalidade material indireta, por violação do princípio da não-consignação, consagrado na Lei de Enquadramento Orçamental, enquanto Lei de valor reforçado.

 

b.            Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), vindo defender, por exceção e por impugnação, a legalidade e a manutenção dos atos impugnados.

 

Na defesa por exceção, vem a Requerida suscitar a incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do litígio.

 

Entende a AT que, embora a Requerente afirme que “a CESE deve ser qualificada como contribuição especial ou, bem assim, como uma imposição patrimonial que deva seguir o regime constitucional dos impostos”, daí tirando a conclusão de que a apreciação da legalidade da CESE integra o âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, tal não corresponde à previsão normativa que se extrai dos artigos 2.º e 4.º, do RJAT, em conjugação com o artigo 2.º, da Portaria de Vinculação.

 

Por um lado, a Requerente pretende alterar a qualificação jurídica da CESE, como contribuição financeira, jurisprudencialmente consolidada, por força da evolução normativa do respetivo regime e a AT defende que ab início a CESE, foi (e continua a ser) uniformemente qualificada juridicamente como contribuição financeira e, por outro, a competência legalmente conferida aos tribunais arbitrais tributários apenas abrange as pretensões relativas a impostos administrados pela AT.

 

Na defesa por impugnação, considera a Requerida que, sendo o cerne do pedido a inconstitucionalidade do regime da CESE, lhe não compete recusar a aplicar normas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, pois está sujeita ao princípio da legalidade administrativa, conforme estatuído nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, 3.º, n.º 1, do CPA e 55.º, da LGT.

 

Assim, a decisão da reclamação graciosa que indeferiu a pretensão da Requerente, com base nos elementos ao dispor da AT, deverá ser mantida, bem como a autoliquidação por aquela efetuada, por uma e outra obedecerem às normas legais em vigor.

 

Não podendo ser imputado qualquer erro à atuação administrativa, que tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, também não haverá lugar ao pagamento dos peticionados juros indemnizatórios.

 

*

Por Despacho Arbitral de 7 de maio de 2021, foi a Requerente convidada a exercer o contraditório sobre a matéria de exceção suscitada na contestação.

 

Em resposta, veio a Requerente defender a improcedência da exceção suscitada e reafirmar a competência do Tribunal Arbitral para a decisão do mérito da causa, por considerar que a conclusão sobre a qualificação do tributo em causa, sendo central na apreciação do presente litígio, não terá qualquer impacto na conclusão pela competência do Tribunal Arbitral, pois,

(i) se se concluir pela qualificação da CESE como contribuição especial ou como imposição patrimonial que deva seguir o regime constitucional dos impostos, impor-se-á a conclusão de que a apreciação da legalidade da autoliquidação integra o âmbito de competência material dos tribunais arbitrais;

(ii) se a conclusão for a de que se trata de uma contribuição financeira, esta enquadra-se inequivocamente no conceito de “tributo” a que alude o artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, entendendo-se como tal os impostos e outras espécies tributárias criadas por lei – como será o caso da CESE.

 

Explicitando o entendimento vertido em (ii), conclui a Requerente que, se o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, estabelece que a vinculação da AT aos tribunais arbitrais depende do disposto na Portaria de Vinculação, de acordo com cujo artigo 2.º, “[o]s serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro”, não pode o mesmo ser interpretado restritivamente, abarcando apenas a categoria de “impostos”, o que se traduziria na degradação de uma previsão normativa que deveria ser legal em norma meramente regulamentar, contrariando o disposto no artigo 112.º, n.º 5, da CRP.

 

No sentido de que a competência dos tribunais arbitrais se estende à apreciação da legalidade dos atos de liquidação, autoliquidação e pagamentos por conta de todos os tributos administrados pela AT, aponta, segundo a Requerente, o aditamento da alínea e) ao artigo 2.º da Portaria de Vinculação, operado pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, ao excluir da arbitrabilidade as “[p]retensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição anti abuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”, mas não as relativas à dos restantes tributos cuja administração está cometida à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

*

Não havendo lugar a produção de prova adicional e estando em causa exclusivamente matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, foram as Partes notificadas do Despacho Arbitral de 21 de maio de 2021, em que se decidiu dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, bem como a produção de alegações escritas, tendo sido designado o dia 25 de julho de 2021 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, advertindo-se a Requerente de que deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente. Em nome do princípio da colaboração das partes, foi ainda solicitado o envio das peças processuais em formato WORD.

 

Pelo Despacho Arbitral de 13 de julho de 2021, foi, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º, do RJAT, prorrogado por dois meses o prazo para emissão da decisão final.

 

Em 16 de julho de 2021, a Requerente remeteu aos autos requerimento de aditamento ao Pedido arbitral.

 

Através do Despacho arbitral de 8 de setembro de 2019, foi a Requerida notificada para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre o teor do pedido da Requerente, que nada veio dizer.

 

O referido pedido veio a ser deferido, por despacho de 1 de outubro, que se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

 

II. SANEAMENTO

1.            O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 25 de janeiro de 2021, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

2.            As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3.            O processo não padece de vícios que o invalidem.

4.            A matéria de exceção será apreciada e decidida a final.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:

 

A.           Factos Provados:

1. A Requerente é uma sociedade comercial que detém centros eletroprodutores, com recurso a fontes de energia renovável, que no ano de 2019 beneficiou do um regime de remuneração garantida feed-in tariff (FIT) (facto admitido por acordo das Partes);

2.            Por referência àquele ano de 2019, a Requerente procedeu à autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), tendo para o efeito apresentado, em 28 de outubro de 2019, uma declaração modelo 27, na qual inscreveu (cfr. Doc. 1 junto ao PPA, que se dá como reproduzido):

a.            Quadro 4 – Identificação do setor de atividade – Campo 04 – Outro – Produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores hídricos;

b.            Quadro 5 – Apuramento da base tributável – Campo 5.4 – Outros ativos aplicáveis

                Ativos afetos     Ativos regulados              Base tributável

Ativos fixos tangíveis      01 –        10.525.948,87  02 –            0,00 03 –       10.525.948,97

Ativos fixos intangíveis  04 –             324.239,98   05 –           0.00   06 –            324.239,98

Ativos fixos financeiros (afetos a concessões ou atividades licenciadas)  07 –                        0,00   08 –           0,00   09 –                      0,00

TOTAL   13 – 10.850.188,85

c.              Quadro 6 – Demonstração da liquidação da Contribuição

Total dos ativos com taxa de contribuição 0,850% (5.12 + 5.13)  10.850.188,85 x 0,850% =           03 –                        92.226,61

Total da contribuição extraordinária a pagar       04 –                        92.226,61

 

3.            A Requerente procedeu ao pagamento da CESE autoliquidada, da quantia de € 92 226,61, em 30 de outubro 2019 (cfr. Doc. 2 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

4.            Em 2 de junho de 2020, a Requerente apresentou, no Serviço de Finanças de Lisboa..., reclamação graciosa da autoliquidação da CESE do ano de 2019, que deu origem à abertura do procedimento n.º ...2020... (Doc. 3 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

5.            O projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi notificado à Requerente através do ofício n.º... da Unidade de Grandes Contribuintes, datado de 9 de julho de 2020 (Doc. 4 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

6.            A decisão definitiva de indeferimento da reclamação graciosa foi notificada à Requerente por ofício da Unidade de Grandes Contribuintes, datado de 30 de julho de 2020 (Doc. 5 junto ao PPA, que se dá como reproduzido).

 

B.            Factos não provados:

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C. Fundamentação da matéria de facto provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados decorreram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e ao PA, bem como da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.

 

 

III.2 DO DIREITO

1.            Da competência do Tribunal Arbitral

a.            A (não) arbitrabilidade das pretensões relativas a contribuições financeiras

Na Contestação, veio a Requerida suscitar a exceção dilatória da incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do pedido objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

Por se tratar de questão processual que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa (artigos 576.º e 577.º, alínea a), do CPC, e 89.º, n.º 4, alínea a), do CPTA, subsidiariamente aplicáveis ao processo arbitral tributário ex vi artigo 29.º, do RJAT), deve a mesma ser de apreciação prioritária.

 

Fundamenta a Requerida a incompetência material do tribunal arbitral na letra do artigo 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que veio estabelecer o objeto e termos da vinculação das então DGCI e DGAIEC, a que sucedeu, à jurisdição dos Tribunais Arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, junto do CAAD, limitando-a à “apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”, com as exceções ali previstas, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuições financeiras, como será o caso da CESE, tal como reconhecido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 7/2019, de 8 de janeiro e, na sequência deste, pelo Supremo Tribunal Administrativo .

 

Por seu turno, a Requerente, embora defendendo a qualificação da CESE como contribuição especial ou imposição patrimonial que deve seguir o regime constitucional dos impostos, vem invocar a irrelevância da respetiva qualificação jurídica, enquanto tributo administrado pela AT, pelo que não pode o artigo 4.º, do RJAT, ser interpretado restritivamente, abarcando apenas a categoria de “impostos”, como consta do artigo 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, o que se traduziria numa deslegalização, em violação do disposto no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, por via da remissão para uma Portaria que promovesse a restrição da competência dos tribunais arbitrais, originariamente prevista num diploma com força de lei.

 

Por outro lado, ainda que a CESE deva ser qualificada como mera contribuição financeira, defende a Requerente uma interpretação atualista do artigo 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, face à alteração que lhe foi introduzida pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, pelo o aditamento da alínea e), na qual se utiliza a expressão “liquidação de tributos”, assim clarificando e reforçando o entendimento de que a vinculação dos tribunais arbitrais abrange qualquer espécie de tributos administrados pela Requerida.

 

Cumpre apreciar.

 

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, abrangendo as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (alínea a) e à declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (alínea b).

 

No entanto, estabeleceu o legislador no artigo 4.º, do RJAT – “Vinculação e funcionamento”, que a aplicação do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ficaria submetida aos termos e condições a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, quanto ao tipo e valor máximo dos litígios abrangidos.

 

Neste contexto, viria a ser publicada a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação), a qual fixou um segundo nível de delimitação das pretensões arbitráveis.

 

Sobre a necessidade e razão de ser deste segundo nível de delimitação da competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária escreve Carla Castelo Trindade  que “A questão está intimamente relacionada com o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários (…) como corolário dos princípios da legalidade (…) e da igualdade (…).

(…) Ora, a arbitragem, como tradicionalmente era entendida, dependia de acordo das partes ou seja de convenção arbitral. Assim, se o recurso à arbitragem dependesse da disponibilidade da Administração Tributária em ir ou não a juízo arbitral, estar-se-ia a contrariar uma das premissas do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários (…).

(…) Foi por isso que o legislador obrigou, através do seu artigo 4.º, a que a Administração Tributária se vinculasse, através de portaria, à jurisdição arbitral e não a cada litígio em concreto”.

 

A Portaria de Vinculação, tendo por função permitir a exequibilidade do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que no seu artigo 4.º se declarou não auto-exequível , configura, portanto, um regulamento de execução, não proibido pelo n.º 5 do artigo 112.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

 

A este respeito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 112.º, da CRP : “O preceito do n.º 5 também não proíbe os chamados reenvios normativos (ou remissões normativas), designadamente nos casos em que a lei remete para a administração a edição de normas regulamentares executivas ou complementares da disciplina por ela estabelecida. (…) a intervenção regulamentar visa regular aquilo que a lei se absteve de regular (…)”.

Conclui-se, portanto, que, tendo a Portaria de Vinculação a natureza de regulamento de execução, dada a remissão normativa que para ela é feita pelo n.º 1 do artigo 4.º, do RJAT, como condição de exequibilidade do próprio regime da arbitragem em matéria tributária, remissão constitucionalmente permitida, não ocorre a invocada deslegalização.

 

Reitera-se, assim, que não assiste razão à Requerente quando alega que o Governo ao reduzir o âmbito da vinculação da AT à categoria de impostos está a reduzir o âmbito material de competência dos tribunais arbitrais mediante mera portaria, o que acarreta a desconformidade com a Constituição e com a lei, devendo o artigo 2.º da Portaria de vinculação ser objeto de uma interpretação conforme com a lei sob pena de inconstitucionalidade.

Ora, para além dos argumentos atrás referidos, repete-se que é o próprio legislador que habilita que por portaria se defina o tipo e valor dos litígios abrangidos pela sujeição à arbitragem tributária, o que bem se compreende como sublinhado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 248/2019-T, onde se pode ler que a referida disposição “concretiza o disposto no n.º 1 do art. 4.º do RJAT que, na redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, dispõe: “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

“Como se escreveu no recente acórdão proferido no processo n.º 182/2019-T deste CAAD: “A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa por conseguinte um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral. Tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, mas poderia estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.

“Nesse sentido, a Portaria de vinculação tem uma finalidade semelhante à que decorre do n.º 2 do artigo 187.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos para a arbitragem administrativa. Nos termos dessa disposição, a partir do momento em que cada ministério assume, por portaria, a sua vinculação à jurisdição dos centros de arbitragem, ele fica vinculado a submeter-se a uma decisão arbitral, relativamente aos tipos de litígios compreendidos no âmbito da portaria. Trata-se de um instrumento colocado na livre disponibilidade dos ministérios, que são livres de assumirem, por portaria, a sua vontade de se submeterem à arbitragem dos centros institucionalizados relativamente a certos tipos de litígios e dentro de certos limites, sendo essa opção da Administração que confere aos interessados o direito potestativo de se dirigirem a um centro de arbitragem para dirimirem litígios que possam ser submetidos aos tribunais arbitrais”.

“Deste modo, a Portaria n.º 112-A/2011 delimitou, no que aqui importa, o âmbito da vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD em função do tipo de litígios abrangidos, ou seja, da matéria da causa, assim conformando uma competência em razão da matéria dos tribunais arbitrais tributários.

“Daí que a aferição da competência para o julgamento de um litígio por parte de um tribunal arbitral tributário constituído sob a égide do CAAD se deva orientar pelos parâmetros já bem elucidados pelo acórdão proferido no processo n.º 48/2012-T, que vale a pena recordar:

 “A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do [RJAT].

“Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

“Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral”.

 

Assim sendo, conclui-se que também as pretensões tributárias sobre as quais os tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD se podem pronunciar têm de ser “relativas a impostos”, como estabelecido no artigo 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

Nem a outra conclusão pode conduzir o aditamento da alínea e) daquele artigo 2.º pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, em que se exclui a arbitrabilidade das “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição anti abuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

 

Tal como foi esclarecido no Acórdão proferido no processo do CAAD n.º 855/2019-T, “(…) a alteração introduzida pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, mediante o aditamento da alínea e), como resulta da nota preambular, foi determinada pela circunstância de a Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, ter passado a prever, através da alteração do artigo 63.º do CPPT, com a inclusão de um n.º 11, que “a impugnação da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa”. A nova disposição da alínea e) não tem, por conseguinte, outro objectivo que não seja o de assinalar que a impugnação judicial da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso carece também de ser precedida de impugnação administrativa, tratando-se, nesse sentido, de uma norma paralela à da alínea a), em que se impõe idêntica exigência no tocante a pretensões relativas a actos autoliquidação, substituição tributária e pagamentos por conta.

Por outro lado, a referência na falada alínea e) à “liquidação de tributos” explica-se porque o artigo 63.º do CPPT e o seu novo n.º 11 se referem à “liquidação de tributos com base em disposição antiabuso”, limitando-se a norma regulamentar a reproduzir a expressão que constava do artigo 63.º. Tratando-se de uma excepção à regra de vinculação que consta do proémio do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 – que se traduz numa mera condição de procedibilidade da acção e não um critério de competência -, a norma aditada não poderia ter o efeito de alterar o próprio âmbito aplicativo que resulta desse preceito, permitindo que o inciso “pretensões relativa a impostos” passasse a ser lido como “pretensões relativas a tributos”.

Como se impõe concluir, na interpretação sistemática da lei, o intérprete deve dar prevalência ao sentido que permita garantir a concordância material com outras disposições do sistema, e, no contexto significativo da norma que está em causa, essa concordância terá de ser estabelecida em relação ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, que define o âmbito de competência dos tribunais por referência a tributos, e no artigo 3.º, n.º 2, da LGT, que inclui no conceito amplo de tributos os impostos, as taxas e as contribuições financeiras. Tendo usado o autor da portaria de vinculação um conceito com um significado jurídico preciso para delimitar o âmbito da vinculação (pretensões relativas a impostos), não faria sentido, mesmo numa interpretação baseada no elemento sistemático, que se atribuísse a esse enunciado linguístico um sentido não consentâneo com a unidade do sistema.”

No mesmo sentido, ficou consignado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 248/2019-T o seguinte:

 

«18. Para além da letra imediata do corpo do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, esta circunscrição da jurisdição arbitral tributária às pretensões respeitantes a impostos em sentido técnico-jurídico preciso impõe-se igualmente por força do elemento sistemático da interpretação (art. 9.º, n.º 1 do Cód. Civil e art. 11.º, n.º 1 da LGT).

É que a articulação sistemática do art. 2.º do RJAT e do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 evidencia a clara finalidade delimitativa-restritiva dos termos da vinculação estabelecida por aquele último preceito, por força do qual, no círculo circunscrito pelo art. 2.º do RJAT (as pretensões “referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro”), a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD concerne, primariamente, como consigna o corpo do artigo, unicamente à apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida e, depois, dentro deste âmbito dos impostos que a AT administra, não compreende, como decorre da referência à exceção constante da parte final do corpo do preceito, as pretensões enumeradas nas diversas alíneas desse artigo pelo menos sem satisfação dos requisitos previstos.

19. Impõe-se, aliás, assumir que o poder jurisdicional de um tribunal arbitral do CAAD não pode nunca ser auto-realizável ou auto-atribuído pelo próprio tribunal e pelas partes, mas pressupõe, de modo rigoroso, a exata aplicação das regras legais e regulamentares que balizam a competência e a vinculação à jurisdição arbitral. A importância do escrupuloso cumprimento das regras de competência a que estão sujeitos os tribunais arbitrais tributários em sede de exercício da sua Kompetenz-Kompetenz deduz-se, aliás, da seguinte apreciação do importante acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2016, n.º 14: “a matéria tributária situa-se no âmago das atribuições do Estado, nela se evidenciando a necessária prossecução de interesses públicos absolutamente essenciais a uma comunidade politicamente organizada, razão que levou a CRP, no n.º 1 do artigo 103.º, a estatuir que «o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado». Se não for possível sindicar judicialmente a decisão de um tribunal arbitral tributário que, à revelia do quadro regulamentar estabelecido, se considere competente numa certa matéria, então tal significará que não existe nenhuma forma de assegurar que funções tributárias que o Estado deve exercer não lhe serão “confiscadas”, sem controlo por um tribunal do Estado”.

Respeitando, nesta decorrência, o enunciado restritivo e a intenção delimitativa da Portaria de Vinculação, conclui-se que o presente Tribunal Arbitral constituído no âmbito do CAAD apenas possui competência para apreciar pretensão indicada no artigo 2.º do RJAT, na medida estrita em que o pedido de pronúncia arbitral respeite a imposto cuja administração esteja cometida à AT.»

 

Chegados à conclusão de que a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária se restringe à apreciação pretensões relativas a impostos, nos termos acima assinalados, impõe-se agora apreciar e decidir sobre a qualificação jurídica da CESE, na sua formulação à data dos factos.

 

b.            A qualificação jurídico-tributária da CESE (em vigor para o ano de 2019)

O regime da CESE, na sua formulação inicial, aprovado pelo artigo 228.º, da Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro) já foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 7/2019, de 8 de janeiro, processo n.º 141/16, 2.ª Secção e, posteriormente, na Decisão Sumária n.º 229/2020, processo n.º 181/20, 1ª Secção, que concluíram pela sua qualificação como contribuição financeira.

 

No Acórdão n.º 7/2019, relembra o Tribunal Constitucional os conceitos das diversas espécies tributárias, conforme a distinção já elaborada, entre outros, no Acórdão n.º 539/2015, processo n.º 27/15, do Plenário, em que esteve em causa a análise da constitucionalidade da “Taxa de Segurança Alimentar Mais”:

 

“«[…]

É conhecida e tem sido frequentemente sublinhada, mesmo na jurisprudência constitucional, a distinção entre taxa e imposto.

O imposto constitui uma prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida com o propósito de angariação de receitas que se destinam à satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, e que, por isso, tem apenas a contrapartida genérica do funcionamento dos serviços estaduais. O que permite compreender que os impostos assentem essencialmente na capacidade contributiva dos sujeitos passivos, revelada através do rendimento ou da sua utilização e do património (artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária). A taxa constitui uma prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa efetivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo, assumindo uma natureza sinalagmática. A taxa pressupõe a realização de uma contraprestação específica resultante de uma relação concreta entre o contribuinte e a Administração e que poderá traduzir-se na prestação de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares (artigo 4.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária).

A taxa tem igualmente a finalidade de angariação de receita. Mas enquanto que nos impostos esse propósito fiscal está dissociado de qualquer prestação pública, na medida em que as receitas se destinam a prover indistintamente às necessidades financeiras da comunidade, em cumprimento de um dever geral de solidariedade, nas taxas surge relacionado com a compensação de um custo ou valor das prestações de que o sujeito passivo é causador ou beneficiário. Assim, a bilateralidade das taxas não passa apenas pelo seu pressuposto, constituído por dada prestação administrativa, mas também pela sua finalidade, que consiste na compensação dessa mesma prestação. Se a taxa constitui um tributo comutativo não é simplesmente porque seja exigida pela ocasião de uma prestação pública, mas porque é exigida em função dessa prestação, dando corpo a uma relação de troca com o contribuinte’ (Sérgio Vasques, em ‘Manual de Direito Fiscal’, pág. 207, ed. de 2011, Almedina).

Entretanto, a revisão constitucional de 1997 introduziu, a propósito da delimitação da reserva parlamentar, a categoria tributária das contribuições financeiras a favor das entidades públicas, dando cobertura constitucional a um conjunto de tributos parafiscais que se situam num ponto intermédio entre a taxa e o imposto (artigo 165.º, n.º 1, alínea i)). As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em ‘Constituição da República Portuguesa Anotada’, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em ‘As taxas e a coerência do sistema tributário’, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora).”.

[…]».”.

 

O regime da CESE, aprovado pelo artigo 228.º, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro teve inicialmente como principal objetivo o de “financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético”, através da constituição de “um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético” (artigo 1.º, n.º 2), objetivo que continuou a manter-se.

 

Esse fundo, a que se referia o artigo 11.º do regime da CESE na sua redação inicial – o  Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), viria a ser criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, com a natureza de património autónomo sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira, que tem por objetivo estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida tarifária e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEG), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

 

De acordo com o artigo 2.º do citado Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, para o objetivo de redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), o FSSSE contaria com a receita obtida com a CESE.

 

Tendo em conta tais objetivos, considerou o Tribunal Constitucional que “Ainda que não referida a uma contraprestação direta, específica e efetiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objetivos «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético» (artigo 1º, n.º 2, do regime da CESE). É, a par do objetivo da redução da dívida tarifária – que é uma das suas causas –, o objetivo da promoção de mecanismos para financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, bem como de medidas de apoio às empresas, que gerará, igualmente, contrapartidas, ainda que difusas, dirigidas aos sujeitos passivos da CESE. A existência destas presumidas contraprestações que vão além do mero objetivo da redução tarifária, e que a criação do FSSSE garante, assegura, também, o caráter estrutural de bilateralidade ou sinalagmaticidade da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto, já que nelas é possível identificar a satisfação das utilidades do sujeito passivo do tributo como contrapartida do respetivo pagamento. É a participação de um especial setor da atividade económica nos benefícios/custos presumidos da adoção destas políticas de financiamento que permite isolá-los dos demais contribuintes, sujeitando-os à contribuição criada pelas normas em apreciação, sem que essa diferenciação possa considerar-se violadora da Constituição, como veremos. Assim, apesar de não pressupor uma contraprestação direta, específica e efetiva, razão pela qual não pode ser qualificada como taxa, a CESE, reveste características de bilateralidade na relação entre o Estado e os sujeitos passivos do tributo, pela conexão entre a origem das receitas e o seu destino.

Não estamos, por isso, perante uma cobrança de tributo para participação nos gastos gerais da comunidade, numa pura angariação de receitas, que vise prover, indistintamente, às necessidades financeiras do Estado, que traduza o cumprimento de um dever geral de cidadania e solidariedade, como o dever de pagar impostos, em que esteja ausente uma qualquer contraprestação pública dedicada. Isto porque não é finalidade imediata e genérica deste tributo a obtenção de receitas, a serem afetadas, geral e indiscriminadamente, à satisfação de encargos públicos.

O facto de não ser possível individualizar-se, de forma concreta e absolutamente objetiva, uma compensação efetiva que, pelo seu conteúdo e natureza, seja especificamente dirigida aos sujeitos passivos que desenvolvam a atividade da recorrente, mas apenas as vantagens difusas, tal não retira caráter comutativo às prestações que visem financiar os objetivos que vão além da redução da dívida tarifária, já que estas contrapartidas não estão dissociadas de prestações públicas, ainda que genericamente destinadas a um grupo específico, sendo de presumir que os sujeitos passivos da CESE beneficiarão dos mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético. Ou seja, no caso da CESE, estamos perante um tributo comutativo, em virtude de, ainda que de forma difusa, ser possível identificar nos objetivos do FSSSE, a que foi consignada, contraprestações destinadas a um determinado grupo de sujeitos passivos que mantêm suficiente proximidade com as finalidades que este prosseguirá, e no qual se se incluirá a recorrente.”

(…)

“Independentemente de se considerar esta consignação de receitas decisiva para a caracterização do tributo em causa, a verdade é que a natureza de contribuição financeira da CESE resulta, inequivocamente, da presença de um sinalagma, ainda que difuso, que lhe confere bilateralidade, nos termos atrás desenvolvidos.

Aliás, a circunstância de ser ainda possível identificar, na CESE, quer a tributação de benefícios, mesmo que reflexos, destinados a um especial conjunto ou categoria de sujeitos passivos, quer o objetivo de cobrir os custos que as soluções regulatórias desse financiamento pressupõem, legitima materialmente a consignação de receitas, por lei considerada excecional.

Por todas estas razões, não pode deixar de se considerar que a CESE assume as características de uma contribuição financeira.”.

 

No mesmo Acórdão n.º 7/2019, testou ainda o Tribunal Constitucional a conformidade da CESE com os princípios da equivalência, da proporcionalidade e da proibição de consignação de receitas, tendo-se pronunciado nos seguintes termos:

(i) Quanto ao princípio da equivalência

“Garantido que esteja que a contribuição lançada encontra justificação no benefício recebido/custo provocado relativo a uma prestação diferenciada de que efetiva ou presumivelmente beneficiará/ou terá provocado um grupo seu sujeito passivo, estará assegurado o sinalagma que justifica a diferenciação tributária, bem como o respeito pelo princípio da equivalência.

No caso, como atrás se demonstrou, a sujeição à CESE do grupo constituído pelos operadores económicos em que a recorrente se inclui não é desprovida de contrapartidas. Nem quando globalmente considerado o grupo de operadores no setor da energia, nem quando especificamente considerados aqueles que operam no setor do gás natural. Aliás, na definição da consignação de receitas, é para o setor da energia globalmente considerado que são destinadas a maior parte das verbas, visando o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e de apoio às empresas, já que apenas um terço é reservado à redução da dívida tarifária do SEN.

É, em suma, o carácter sinalagmático, atrás enunciado, que traduz a verificação da equivalência necessária, pelo que não pode deixar de se concluir não existir desrespeito pelo princípio da equivalência. Ao mesmo tempo, a assinalada bilateralidade, encontrada na contraprestação correspondente à sujeição à CESE, retira-lhe o carácter de imposto que incidiria sobre o património das empresas do setor energético que a ela estão obrigadas. Como descrevemos, a estrutura bilateral do tributo justifica que se distinga estes sujeitos passivos dos demais contribuintes, respeitando-se, por isso mesmo, o princípio da equivalência, afastando-se uma injustificada desigualdade.”.

 

(ii) Quanto ao princípio da proporcionalidade

“Garantido que esteja que a contribuição lançada encontra justificação no benefício recebido/custo provocado relativo a uma prestação diferenciada de que efetiva ou presumivelmente beneficiará/ou terá provocado um grupo seu sujeito passivo, estará assegurado o sinalagma que justifica a diferenciação tributária, bem como o respeito pelo princípio da equivalência.

(…)

No caso, ao lançar esta contribuição, o legislador definiu uma base de incidência subjetiva suficientemente estreita, com a preocupação de delimitar, com a certeza possível, os sujeitos passivos que virão a beneficiar de presumida prestação, em troca da sujeição a este tributo. Deliberadamente, afastou a solução de fazer repercutir a responsabilidade desta contraprestação em toda a comunidade, que, se assim não fosse, custearia, através dos impostos, prestações públicas de que a sociedade, no seu todo, não seria causadora ou beneficiária. Concebido como encargo a suportar por estes operadores económicos, a consagração deste tributo é, desde logo, acompanhada da proibição da sua repercussão nos consumidores, por via tarifária (artigo 5.º do Regime jurídico da CESE).

Consequentemente, a incidência subjetiva da CESE abrange um conjunto justificável e diferenciável de destinatários que irão, através dela, compensar prestações que presumivelmente serão por estes provocadas ou aproveitadas – seja, a redução tarifária do SEN, ou, no caso dos operadores económicos desempenhando a atividade da requerente, os encargos com os mecanismos de promoção da sustentabilidade do setor energético –, mantendo estes inegável proximidade com as finalidades procuradas com o lançamento da CESE, nesse sentido assumindo aquela contraprestação uma natureza grupal, razão justificadora da tributação que sobre o grupo recai, distinguindo-o dos demais contribuintes.

No quadro de um modelo de Estado regulador, o objetivo do financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético é especialmente aproveitada pelo grupo de operadores económicos em que a recorrente se inclui. Como já se afirmou, neste contexto, é possível identificar uma suficiente conexão entre a origem da receita, cuja fonte são os agentes económicos sujeitos à CESE, e a sua finalidade, que a lei consignou ao FSSSE, de instituição de mecanismos para financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, de que o setor económico beneficiará.

É na promoção desta finalidade, e nos benefícios e encargos que daí advêm para determinados setores, que o legislador sustenta a imposição a operadores do setor económico da energia de um tributo que não recai sobre outros operadores económicos, nem sobre a generalidade dos cidadãos contribuintes. E esta prestação é inegavelmente útil à consecução do fim a que se destina, de assegurar as medidas do setor energético referidas, sem onerar a generalidade dos operadores de setores distintos e os cidadãos em geral, a que não se destinam, que as não causaram nem delas beneficiam.

É por esta mesma razão, de afastar do financiamento destas medidas de sustentabilidade energética os demais contribuintes que não lhes dão origem, nem delas beneficiarão de modo direto, que resulta patente que impô-las não se poderá considerar discriminatório.

(…)

Também no que respeita à incidência objetiva da CESE se considera estar garantido um nexo causal suficiente entre os ativos (no caso, ativos regulados) sobre os quais recai a CESE (artigo 3.º, n.º 1, do Regime jurídico da CESE) e as políticas públicas de cariz social e ambiental do setor energético.

A titularidade dos ativos tributáveis por parte das empresas que as normas legais sujeitam à CESE, cuja justificação radica na sustentabilidade sistémica do setor energético, torna-as presumíveis beneficiárias das políticas públicas de energia e da sua regulação. Os ativos não surgem como manifestação meramente hipotética da capacidade contributiva, que fosse exigida como receita para despesas gerais do Estado, mas como indicador que permite presumir a potencial utilidade das prestações públicas que aos operadores aproveitam, e os custos presumidos que provocam, já que os ativos são elementos essenciais ao desenvolvimento da atividade, sendo suficientemente adequados para diferenciarem aquele impacto. Também por esta razão, não pode ligar-se a sujeição do ativo ao tributo a qualquer demonstração de que estaríamos perante um imposto sobre o património das empresas. Na lógica do legislador, a titularidade de ativos em certa área da economia é um dado que permite aferir da suscetibilidade da empresa para ser causa de ou beneficiar de políticas de sustentabilidade, o que a distingue dos demais operadores de outras áreas e dos cidadãos. Não é, assim, uma forma de arrecadar receita, indistintamente (…)

(…)

Por outro lado, e relativamente às isenções previstas no artigo 4.º do regime da CESE, sendo, à partida, variado o leque de obrigados pelo tributo, a pretensão da sua criação será a de permitir, de algum modo, a distinção do seu impacto nos diferentes operadores económicos, visto que as diferenças normativas de regime já lhes definiram, previamente, distintos direitos e obrigações administrativas, ao modelarem a respetiva atividade. Ao estabelecer isenções, o legislador dá indicação de procurar atender aos diversos regimes jurídicos a que estão obrigados os operadores, em função da natureza da sua atividade, que os colocam em planos não coincidentes relativamente ao seu contributo para a sustentabilidade sistémica do setor energético. O mesmo se diga da opção de não estabelecer uma taxa única aplicável à base de incidência definida, que fosse indiferenciável para todos os operadores.

Daqui não se segue – o que é reforçado pela natureza do tributo em causa – que, da definição das isenções, ou da diferenciação introduzida, dentro de cada grupo de operadores económicos, em função do critério dos ativos como base de incidência, ou da distinção feita através da definição de taxas diferentes, tenham de resultar esforços com peso relativo rigorosamente igual, sob pena de se dever considerá-los arbitrários, já que, não apenas se entende que a definição das obrigações encontra fundamento nas características da sua atividade, como procura levar em conta os diversos contributos dos operadores para a sustentabilidade, verificando-se que a diferenciação não é arbitrária.

(…)

Assim, quer porque o critério escolhido pelo legislador para delimitar a base subjetiva e objetiva da CESE não é totalmente desligado da finalidade que com a contribuição financeira se procura realizar, quer porque o critério definidor do montante não é manifestamente injusto, flagrante e intolerável (Acórdão n.º 640/1995), não se deverá afastar as normas em causa.

Não haverá, em suma, como se conclui pelo que fica dito, violação dos princípios da equivalência e da proporcionalidade.”.

 

(iii) Relativamente ao princípio da proibição de consignação de receitas

“Relativamente à consignação de receitas, uma vez encontrada no caráter sinalagmático da relação entre a sujeição ao tributo e a prestação/benefício presumido para o sujeito passivo, a razão para o lançamento daquele e, tendo em conta o que vem de ser dito sobre o equilíbrio da adoção deste tributo, devendo a bilateralidade identificada ser considerada como argumento suficientemente atendível, então, há que concluir que também a opção pela consignação desta receita, que é por lei, em si mesma, excecional, não merece censura, não pondo em causa o princípio da equivalência ou da proporcionalidade.”.

 

Embora a Requerente, que assume ter beneficiado em 2019 do regime de remuneração garantida tecnicamente conhecida por feed-in tariff (FIT) e que, até 31 de dezembro de2018, beneficiou de uma isenção da CESE, aplicável aos sujeitos passivos que detivessem centros eletroprodutores com recurso a fontes de energia renovável, como é o seu caso, esgrima todos os argumentos já dilucidados pelo Tribunal Constitucional no supracitado Acórdão, vem advogar que a jurisprudência nele contida não tem aplicação na apreciação da constitucionalidade daquilo em que, com o decorrer dos anos, a CESE se transformou: a Requerente identifica três fases distintas que denomina por CESE I, correspondente à versão original do regime aprovada pela LOE 2014; por CESE 2, correspondente às alterações operadas pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril e pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro – LOE 2017; e, por CESE 3, resultante das alterações introduzidas por intermédio da LOE 2019.

 

A Requerente defende, em suma, que as sucessivas alterações introduzidas ao regime da CESE, em particular as decorrentes da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, transformaram a CESE em “um mecanismo de base corretiva através do qual é incutido aos respetivos sujeitos passivos uma sobrecarga contributiva adicional, com base nos respetivos ativos, no pressuposto de que estes têm uma especial responsabilidade pela internalização dos custos relativos à dívida tarifária do SEN”.

 

Em especial a alteração introduzida ao artigo 4.º do regime da CESE pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, ao excluir da isenção daquele tributo a produção de eletricidade abrangida por um regime de remuneração garantida – designadamente o regime de FIT, implicou uma compressão muito significativa do universo de beneficiários desta isenção.

 

Segundo a Requerente, tais alterações contribuíram para que a CESE, na versão em vigor à data dos factos, se tivesse transformado num tributo de pressuposto semelhante ao das contribuições especiais “históricas”, cobradas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de março, do Decreto-Lei n.º 54/95, de 22 de março e, ainda, do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de março, que impossibilitam a sua ancoragem no princípio da equivalência, como se de uma mera “taxa grupal” se tratasse,  a que se reconduziria a sua eventual qualificação como contribuição financeira.

 

Entende a Requerente que a CESE, com as alterações decorrentes da LOE 2019, mais não pretende senão “recapturar” um suposto enriquecimento diferencial presumido na esfera dos respetivos sujeitos passivos que, na visão do legislador, deveriam ter suportado o custo subjacente à dívida tarifária do SEN, a cuja existência são alheios.

 

Assim, embora a CESE não possa formalmente ser considerada um imposto, atribui-lhe a Requerente a natureza jurídico-tributária de contribuição especial, a que deverá ser aplicado o regime constitucional dos impostos, porquanto, na sua componente mais substancial, apresenta a estrutura de uma contribuição de melhoria, associada ao especial desgaste de um bem público, neste caso o próprio SEN.

 

Por isso, defende a Requerente que as contribuições especiais com as caraterísticas aportadas à CESE pelas sucessivas alterações legislativas ao respetivo regime, são equiparadas a impostos pelo n.º 3 do artigo 4.º, da LGT e, nessa medida, padecendo de diversos vícios de inconstitucionalidade:

“(i) Uma Inconstitucionalidade Material, por violação do Princípio da Tributação pelo Lucro Real, relativamente à existência de uma base de tributação exclusivamente alicerçada em ativos;

(ii) Uma Inconstitucionalidade Material, por violação do Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente enquanto Proteção da Confiança, relativamente à reiterada violação da respetiva condição “extraordinária”;

(iii) Uma Inconstitucionalidade Material, por Violação do Princípio da Proporcionalidade, na sua vertente enquanto Necessidade e Proibição do Excesso, dada a ausência de conexão entre os fundamentos fiscais ou creditícios que suportam o regime da CESE e os factos, legalmente consagrados e publicamente conhecidos, quanto ao destino da respetiva receita, em especial tendo por referência a evolução da dívida tarifária do SEN; e

(iv) Uma Inconstitucionalidade Material Indireta, por violação do Princípio da Não-Consignação, tal como consagrado na Lei de Enquadramento Orçamental, que é uma Lei de Valor Reforçado.”.

 

Vejamos.

 

O n.º 2 do artigo 3.º, da LGT, procede a uma classificação tripartida dos tributos:

 

“2 - Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas.”

 

Nesta sequência, o artigo 4.º, da LGT, define os pressupostos em que assenta cada uma das duas primeiras espécies tributárias, ao estabelecer, nos seus n.ºs 1 e 2, que

 

(i) “1 - Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” e

(ii) “2 - As taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.”.

 

De entre as contribuições, tertium genus entre os impostos e as taxas, distinguiu o legislador as chamadas contribuições especiais, mencionadas no n.º 3 desse artigo 4.º, estabelecendo que:

“3 - As contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade são consideradas impostos.”

 

Sobre a inclusão deste último preceito na LGT, escreve Sérgio Vasques :

“Entre nós, prevaleceu por muito tempo o entendimento de que as contribuições têm por fundamento prestações que não se dirigem diretamente aos respetivos sujeitos passivos mas de que eles beneficiam de modo simplesmente “indireto” ou “reflexo”. Esta forma de ver as coisas, primeiro firmada por Achille Donato Giannini, servia bem às contribuições especiais tradicionais, devidas em virtude da realização de obras públicas, às quais se refere ainda o artigo 4.º, n.º 3, da LGT, com boa dose de anacronismo. (…) As modernas contribuições não visam compensar prestações que se dirijam ao sujeito passivo de modo “indireto” ou “reflexo”, da maneira que se pode dizer que as grandes obras públicas beneficiam os terrenos circundantes. O que em vez disso carateriza os tributos que hoje em dia encontramos a meio caminho entre as taxas e os impostos é o estarem voltados à compensação de prestações de que só presumivelmente se pode dizer causador ou beneficiário o sujeito passivo (…).  Em suma, o que as define é o visarem uma troca entre a administração e grupos de pessoas que se presume provocarem os mesmos custos ou aproveitarem os mesmos benefícios (…).”.

 

E, mais concretamente quanto às contribuições especiais por obras públicas (contribuições de melhoria), refere o Autor  que encontram expressão no artigo 4.º, da LGT, com o único propósito de fixar que estas “são consideradas impostos”, o que resulta de “terem sido instituídas contribuições especiais por obras públicas que apresentam os contornos típicos do impostos” – identificando as contribuições especiais estabelecidas pelos Decretos-Leis n.ºs 51/95, de 20 de março, 54/95, de 22 de março e 43/98, de 3 de março, a que a Requerente igualmente faz alusão, que tiveram por objetivo expresso “fazer «reverter para a comunidade, em geral, parte do benefício recebido pelos proprietários dos terrenos valorizados» com obras públicas que se reconhecem de «elevados custos». A verdade, porém, é que este fundamento comutativo é largamente desmentido pela sua estrutura, surgindo estas contribuições especiais por obras públicas como simples instrumentos de tributação de mais-valias urbanísticas latentes.

(…)

Mostra-se acertado por isso qualificar estas contribuições especiais como verdadeiros impostos, dada a ausência de uma genuína finalidade compensatória.”

 

Por sua vez, José Casalta Nabais  distingue entre as clássicas contribuições especiais e as demais contribuições financeiras, que têm em comum “não se reportarem seja a normais detentores de capacidade contributiva como nos impostos, nem a destinatários de específicas contraprestações como nas taxas, mas antes a grupos de pessoas ligadas seja por uma particular capacidade contributiva decorrente do exercício de uma atividade administrativa (nas contribuições especiais), seja ela partilha de uma específica contraprestação de natureza grupal (nas demais contribuições financeiras).

 

Incluindo nas contribuições especiais as “contribuições de melhoria” (de que dá como exemplo as contribuições especiais criadas pelos Decretos-Leis n.ºs 51/95, de 20 de março, 54/95, de 22 de março e 43/98, de 3 de março, acima citadas), “[n]aqueles casos em que é devida uma prestação, em virtude de uma vantagem económica particular resultante do exercício de uma atividade administrativa, por parte de todos aqueles que tal atividade indistintamente beneficia” e as “contribuições por maiores despesas”, nas situações em que “é devida uma prestação em virtude de as coisas possuídas ou de a atividade exercida pelos particulares darem origem a uma maior despesa das autoridades públicas”, adianta o Autor que as manifestações de capacidade contributiva “operam de maneira diferente consoante se trate de “contribuições de melhoria” ou de “contribuições por maiores despesas”, já que, enquanto nas primeiras a atividade administrativa pública provoca manifestações positivas dessa capacidade contributiva, aumentando-a, nas segundas, a atividade administrativa pública limita-se a obstar a que surjam manifestações negativas dessa capacidade, ou seja, limita-se a manter essa capacidade. Há assim uma contrapartida pública traduzida numa vantagem, que embora indeterminada relativamente a cada contribuinte como nos impostos, não deixa, a seu modo, de ser determinável na perspetiva do grupo beneficiado pela correspondente atividade administrativa”.

Já quanto às restantes contribuições financeiras a favor das entidades públicas, entende este Autor que elas “suportam financeiramente a atividade do atual estado regulador e supervisor que, de algum modo, têm por base uma contraprestação de natureza grupal (…) tendo o seu regime geral de constar de lei ou de decreto-lei parlamentarmente autorizado, e o seu montante suportar o correspondente teste da proporcionalidade, ou seja, o teste da proporcionalidade entre as taxas a pagar pelo conjunto dos regulados do correspondente setor de atividade sujeita a regulação pública e a respetiva contraprestação específica traduzida na prestação desse serviço de regulação e supervisão suportado pela correspondente entidade ou agência de regulação, conquanto se reporte efetivamente aos custos de prestação desse serviço e não a quaisquer outros.”.

 

Face às posições doutrinárias citadas, de acolhimento praticamente unânime pela mais recente doutrina tributária nacional, importa analisar em que medida as alterações legislativas introduzidas ao regime da CESE pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que vieram permitir o alargamento da respetiva base tributável, permitem qualificar este tributo como contribuição especial, suscetível de recondução ao regime constitucional dos impostos,  ou se, ao invés, é ainda possível distinguir neste tributo um nexo de bilateralidade e de causalidade bastantes a determinar a sua qualificação como contribuição financeira.

 

A Requerente identifica três fases distintas do regime da CESE, que designa por

(i) “CESE 1”, correspondente à versão original do regime aprovada pela LOE 2014;

(ii) “CESE 2”, correspondente às alterações operadas pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril e pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro (“LOE 2017”); e

(iii) “CESE 3”, resultante das alterações introduzidas por intermédio da LOE 2019.

 

Mais aduz que, através do regime que criou a CESE, “o legislador pretende incutir aos sujeitos passivos o ónus de suportar supostos aumentos de valor ou enriquecimento associados os regimes remuneratórios que lhes foram aplicáveis, no pressuposto de que tal é (ou foi) a causa determinante para a origem e constituição da dívida tarifária do SEN”, assim manifestando a pretensão de, tal como nas contribuições especiais históricas, “recuperar, pela via fiscal, putativos aumentos de capacidade contributiva na esfera do sujeito passivo”.

 

Pretensão, segundo a Requerente, especialmente visível na última daquelas alterações, que “prefigura a CESE 3”, resultante, entre outras, “das recomendações do

Relatório do Grupo de Trabalho conjunto sobre Custos Energéticos, de fevereiro de 2017, criado por posição conjunta do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda, onde era antecipada a possibilidade de um “[a]largamento da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético aos centros electroprodutores em regime especial (PRE)” e por via da qual “a isenção prevista no artigo 4.º, alínea a), do regime da CESE deixou de se aplicar sempre que a produção de eletricidade se encontre abrangida por um regime de remuneração garantida – designadamente o regime de FIT – o que implicou uma compressão muito significativa do universo de beneficiários desta isenção”.

 

Ora, a preocupação com a dívida tarifária do SEN, bem como a sua relação com os regimes de remuneração garantida, já se havia feito sentir em momento muito anterior ao da criação da CESE, como documenta a pergunta parlamentar com pedido de resposta escrita E-002620/2011 à Comissão, endereçada a esta Instituição da União Europeia em 17 de março de 2011 por um grupo de eurodeputados portugueses, sobre os denominados “Custos de Interesse Económico Geral” (CIEG), segundo a qual estes custos, em Portugal, estariam essencialmente relacionados com “subsídios às energias renováveis, compensação aos produtores e distribuidores de energia pela liberalização do mercado energético, financiamento da autoridade da concorrência, entre vários outros.”

 

E, muito embora desde então tenham vindo a ser diminuídos os subsídios à produção de eletricidade com recurso a fontes de energia renováveis, bem como a parcela dos CIEG a imputar às tarifas de venda ao consumidor final, o Relatório da ERSE sobre as “Tarifas e Preços para a Energia Elétrica e Outros Serviços em 2019” , informa que tais custos continuam a englobar o “Diferencial de custo da PRE”, ou seja, a diferença entre o preço de mercado e a remuneração garantida aos produtores de eletricidade em regime especial, cujo valor de referência para o ano de 2019 se encontrava previsionalmente estimado em 56,23 €/MWh (Cfr. “Proveitos permitidos e ajustamentos para 2019 das empresas reguladas do setor elétrico”, disponível em  https://www.erse.pt/media/yyyjqsxs/proveitos-e-ajustamentos-2019.pdf.).

O mesmo Relatório sobre tarifas e preços esclarece ainda que as receitas da CESE consignadas ao FSSSE , a afetar à cobertura de encargos decorrentes da redução da dívida tarifária do SEN, com impacto nas tarifas de 2019, foi de 154 M€ .

 

A Requerente, enquanto produtora de eletricidade em regime especial, tal como definido pelo artigo 18.º, do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 215-A/2012, de 8 de outubro, goza do direito de vender  toda ou parte da eletricidade produzida ao consumidor de último recurso – CUR (artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 29/2006, na redação do Decreto-Lei n.º 215-A/2012) beneficiando do regime de remuneração garantida FIT (feed-in tariff), a que se referia o artigo 33.º-G, do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, aditado pelo Decreto-Lei n.º 215-A/2012, que, do ponto de vista da ciência económica, reveste as caraterísticas de um preço mínimo garantido administrativamente, tendente a beneficiar o produtor.

 

Face ao destino legal das receitas arrecadas a título de CESE, afigura-se inegável que o conjunto dos sujeitos passivos a ela sujeitos e dela não isentos irão compensar, com o seu pagamento, as prestações por si presumivelmente provocadas ou aproveitadas, decorrentes quer da redução da dívida tarifária do SEN, quer as relacionadas com os mecanismos de promoção da sustentabilidade do setor energético.

 

Em especial, as vantagens de que beneficiam os produtores de eletricidade a partir de fontes de energia renovável, cujos custos integram os CIEG, constituindo encargos do SEN, parcialmente cobertos com as receitas da CESE, permitem, também em relação a estes e  sem necessidade de outras considerações, surpreender o caráter comutativo da CESE 3, não obstante o alargamento do universo dos sujeitos passivos não isentos, matéria atinente à liberdade de conformação do legislador na definição do âmbito da incidência dos tributos.

 

Deste modo, não se antevê motivo suficiente que permita alterar a qualificação jurídico tributária da CESE como contribuição financeira, jurisprudencialmente fixada nos arestos anteriormente referenciados.

 

c.            Conclusão

A CESE, não obstante as diversas alterações legislativas sofridas pelo regime instituído pelo artigo 228.º, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, designadamente as resultantes da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, continua a revestir caraterísticas de tributo bilateral, uma vez que as mesmas não são de molde a permitir alterar a sua a qualificação como contribuição financeira. Esta conclusão tem por consequência a incompetência material do Tribunal Arbitral para decidir do litígio em análise, pois a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária se restringe à apreciação de pretensões relativas a impostos administrados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos e pelos motivos melhor expostos supra, em “a.”.

 

Dá-se, pois, como provada a exceção suscitada pela Requerida em sede de Resposta.

 

Com a procedência da exceção da incompetência material fica prejudicado o conhecimento das demais questões de inconstitucionalidade, respeitantes ao regime jurídico propriamente dito da CESE, cuja análise pressupõe a competência do Tribunal. 

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos enunciados supra, julgando-se procedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, decide-se absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância.

 

V.VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 92 226,61 (noventa e dois mil, duzentos e vinte e seis euros e sessenta e um cêntimos).

 

VI.CUSTAS

Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2 754,00 (dois mil, setecentos e cinquenta e quatro euros), a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 1 de outubro de 2021.

 

Os Árbitros,

 

Fernanda Maçãs

(Presidente)

 

Mariana Vargas

(Vogal)

 

Jesuíno Alcântara Martins

(Vogal)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do D.L. n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.