Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 576/2020-T
Data da decisão: 2021-12-07  IVA  
Valor do pedido: € 468.172,07
Tema: IVA. Locação financeira e ALD. Métodos de dedução parcial: afectação real e pro rata. Ofício circulado n.º 30108, de 30.01.2009.
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SUMÁRIO: A norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.

 

DECISÃO ARBITRAL

1.            RELATÓRIO

 

A..., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida ..., n.º ..., ...-... Lisboa, veio, em 27 de Outubro de 2020, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante RJAT) e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição do tribunal arbitral.

É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 19 de janeiro de 2021.

O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, autuada sob o n.º ..., decisão com a qual não se conforma, e por objeto mediato a (auto)liquidação de IVA relativa ao último período de 2017, com o n.º ....

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA apresentou Resposta a 5 de Maio de 2021 e protestou nessa peça juntar o processo administrativo, sendo certo que não chegou a juntá-lo aos autos.

Na sua Resposta, a Requerida defendeu-se por excepção, invocando a extemporaneidade do pedido de pronúncia arbitral, pelo que o Tribunal proferiu despacho, a 6 de Maio de 2021, convidando a Requerente a pronunciar-se.

A Requerente veio por requerimento de 17 de Maio pugnar pela improcedência da excepção e o Tribunal proferiu despacho no dia 18 a determinar a inquirição das testemunhas arroladas.

A inquirição teve lugar no dia 22 de junho de 2021, na sede do CAAD em Lisboa e via CISCO WEBEX MEETINGS.

No final da inquirição, o Tribunal notificou a Requerente e a Requerida para, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo sucessivo de 10 dias, fixou, para a prolação da decisão final, o termo do prazo fixado no artigo 21.º n.º 1 do RJAT e convidou a Requerente a proceder ao pagamento da taxa de justiça subsequente e comunicar o pagamento ao CAAD nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

A audiência foi gravada e dela foi lavrada ata junta aos autos.

Requerente e Requerida apresentaram alegações escritas a 5 de julho de 2021e 12 de julho de 2021, respetivamente.

A 8 de Setembro de 2021, o Tribunal proferiu despacho prorrogando por dois meses do prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivada da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica e, a 12 e Novembro, o Tribunal proferiu novo despacho prorrogando o mesmo prazo por mais dois meses, com o mesmo fundamento.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

Resumidamente, a Requerente alega que é uma instituição financeira, que exerce normal e habitualmente a actividade comercial prevista no artigo 4.º n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro. No âmbito da sua actividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção constante no n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto. Como exemplo destas, poderão ser destacadas as operações de financiamento/concessão de crédito ou as operações associadas a pagamentos. Simultaneamente, a Requerente também realiza operações que conferem direito à dedução do IVA. Como exemplo destas, a locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos, entre outras (artigo 20.º n.º 1 al. b) do CIVA). Por tudo isto, a actividade desenvolvida pela Requerente encontra-se abrangida por distintos regimes de dedução de IVA.

Por essa razão,  relativamente às operações de locação financeira realizadas no ano de 2017, a Requerente apura o imposto dedutível com base no chamado método pro rata, que está consagrado para este efeito no artigo 23.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA e nos artigos 173.º e ss. da Directiva IVA e que, no período em crise, liquidou o imposto a entregar ao Estado, de acordo com as instruções genéricas fixadas pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, que estabelece que “(...) deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.”

Em consequência, a Requerente apurou uma percentagem de dedução de apenas 8% para 2017 – em vez da percentagem superior de 18% para 2017 que a empresa teria aplicado, se não tivesse cumprido as instruções da Administração Tributária, excluindo do pro rata a componente de capital das rendas facturadas nesse ano no âmbito dos contratos de locação financeira.

A Requerente considera ilegais as instruções da AT, por violação do disposto no artigo 23.º do Código do IVA e nos artigos 173.º e ss. da Directiva IVA, que, considera, violam ainda o princípio da neutralidade e da igualdade de tratamento fiscal.

A posição da Requerente é que a imposição, pela AT ao sujeito passivo, do método da afectação real, nos termos previstos no artigo 23.º, n.º 3 do Código do IVA, depende de a AT determinar que a utilização do método do pro rata conduz a distorções significativas na tributação.

 

Por outro lado, entende, o método da afectação real implica a aferição do imposto (parcialmente) dedutível com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos nas actividades/operações sujeitas a distintos regimes de IVA, com e sem direito à dedução.

 

Na sua opinião, relativamente a métodos de dedução, o Código do IVA prevê apenas dois métodos de dedução parcial, o pro rata e a afectação real, ainda que a Directiva IVA permita que os Estados-Membros adoptem outros métodos de dedução para além destes, nomeadamente, no caso do pro rata, que estipulem que determinadas verbas sejam, ou não, consideradas para cálculo da percentagem de dedução.

 

Porém, entende, o legislador português não transpôs para o Código do IVA o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), ou seja, a possibilidade de os Estados-Membros mitigarem o pro rata.

 

Sustenta que, no caso, a convocação do critério de imputação específico determinado pelo ponto 9 do método a pro rata n.º 30108 resulta precisamente de não ser possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos “custos comuns”, circunstância que é reconhecida por diversa jurisprudência arbitral.

 

Pelo que tal critério não é um pro rata nos termos do artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, nem se qualifica como afectação real, para efeitos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, pois não é possível o recurso a critérios objectivos. Conclui que, assim, não tendo enquadramento quer nos n.ºs 1 e 4 (método pro rata), quer no n.º 2 do citado artigo 23.º do Código do IVA, configura um método que não está previsto na lei e a sua aplicação viola o disposto nos artigos 20.º e 23.º do Código do IVA.

 

Invoca em apoio da sua posição diversas decisões do CAAD e sobretudo o Acórdão do TJUE C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd, onde foi julgado que sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.

 

Nas suas alegações, a Requerente considera que se devem considerar provados factos que necessariamente determinam a procedência do pedido de pronúncia arbitral, decorrentes quer da prova documental quer da prova testemunhal produzida a 22 de junho de 2021.

 

Enfatiza que cabe à Requerida demonstrar a falta de ligação dos bens e serviços de utilização mista à actividade de disponibilização do bem locado e que, não o tendo feito, o método pro rata é o que se melhor afigura. Ademais, reforça o facto de a Requerida não ter indicado nem demonstrado as distorções na tributação e só essa prova lhe permitiria impor o método de afectação real.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

Sumariamente, a Administração Tributária considera que as instruções vertidas no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 não são ilegais e são obrigatoriamente aplicáveis ao cálculo do IVA dedutível da Requerente, por força do disposto no artigo 23, n.º 3, alínea b), do Código do IVA, que permite à Administração Tributária afastar a aplicação do regime de pro rata quando o mesmo conduza a distorções significativas no apuramento do imposto a deduzir e pugna pelo indeferimento do pedido de pronúncia arbitral. Entendendo, inclusive, que cabe à Requerente a prova da não existência destas distorções, aquando da utilização do método pro rata, uma vez que é ela que se arroga o direito.

No seu entender, o artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA confere à AT o poder de obrigar o sujeito passivo a adoptar o método previsto no Ofício-circulado n.º 30108, tendo em vista afastar distorções significativas na tributação.

Para a AT, o coeficiente de imputação específico é o único adequado, salvaguarda a neutralidade e está de acordo como as normas de direito europeu, nomeadamente os artigos 173.º a 175.º da Directiva IVA, e de direito interno (artigos 16.º e 23.º do Código do IVA).

Sustenta que a renda de locação financeira mobiliária decompõe-se em duas partes, uma correspondente ao capital ou amortização financeira que traduz o “reembolso da quantia emprestada” (quantia que constitui o preço de aquisição do bem dado em locação), outra de juros e encargos, que constitui a remuneração do locador, pelo que, tendo o locador, no momento de aquisição do bem objecto da locação, exercido o direito à dedução integral do IVA que onerou essa aquisição, por via do método da imputação directa, deve ser expurgado do cálculo da percentagem de dedução a parte da renda que corresponde ao valor de amortização financeira, pois esta consubstancia a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado.

Deste modo, entende, é apenas o diferencial (genericamente de juros) que se encontra conexo com a aquisição de recursos de utilização mista (indistintamente em operações com e sem direito à dedução) e entendimento diverso permitiria um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido nos inputs de utilização mista;

Invoca em abono da sua posição o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais, C-183/13, de 10 de Julho de 2014, e defende que a interpretação deste tribunal europeu vincula os tribunais nacionais, nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição;

Invoca, bem assim, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 052/19.0BALSB, de 4 de Março de 2020, que vem confirmar que a norma do artigo 23.º, n.º 2  do Código do IVA reproduz, em substância, a regra da Sexta Directiva que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços, em linha com a jurisprudência anterior daquele Supremo Tribunal (arestos proferidos nos processos n.º 081/13, de 4 de Março de 2015, n.º 0970/13, de 3 de junho de 2015, n.º 01874/13, de 17 de junho de 2015, n.º 0330/14, de 27 de Janeiro de 2016, e n.º 0485/17, de 15 de Novembro de 2017, entre muitos outros) e uniformizada no recente Acórdão Uniformizador de 24 de Março de 2021, no processo 87/20.0BALSB.

Desta forma, conclui, não ocorre violação do princípio da legalidade, da neutralidade e da reserva de lei, pois o artigo 23.º do Código do IVA determina expressamente nos seus n.ºs 3 e 2 que a AT pode impor condições especiais (incluindo um método pro rata mitigado), pelo que não só o conteúdo das normas que constam do Ofício-circulado é conforme ao direito (Directiva IVA), como o seu estabelecimento através desse processo está de acordo com as instruções do legislador.

Mais defende que a utilização de bens e serviços de utilização mista por parte da Requerente não foi sobretudo determinada pela disponibilização dos bens locados. Em relação à disponibilização destes, os inputs em que o locador incorre circunscrevem-se essencialmente à aquisição desses veículos e os restantes inputs que emergem na vigência do contrato de locação, decorrem das vicissitudes deste e situam-se ao nível do financiamento e da gestão do contrato e que todos os custos em que a Requerente incorre inerentes à gestão do contrato encontram-se reflectidos na parte da renda que corresponde aos juros e que constitui a remuneração do locador.

A Requerida juntou alegações escritas sustentando que a Requerente não logrou provar que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da instituição bancária foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos, ponto fundamental sobre o qual, no seu entender, importava não só produzir prova, como demonstrar e quantificar através de elementos fidedignos que corroborassem que os inputs em que incorre com a disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira são predominantes em relação aos inputs gastos com o financiamento e gestão.

No mais, remeteu para tudo quanto alegado em sede de Resposta, que deu por integralmente reproduzida, e chamou a atenção para a jurisprudência do STA que vem decidindo a favor da AT em questões similares e para a uniformização de jurisprudência proferido pelo STA – processos 101/19; 84/19; 87/20; 32/20; 63/20; 113/20.

 

EM SEDE DE EXCEPÇÃO:

A Requerida defendeu-se ainda por excepção, invocando a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, sustentando que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que constitui o objecto imediato do pedido de pronúncia arbitral,  foi expedida para o correio electrónico da Requerente a 13 de Julho de 2020, pelo que, nos termos do disposto no artigo 39.º, n.º 10 do CPPT, segundo o qual as notificações efectuadas electronicamente consideram-se efectuadas no 15.º dia posterior ao registo da disponibilização no sistema VIA CTT, a Requerente se considera notificada a 28 de Julho de 2020.

 

A Requerente, porém, veio, em resposta, sustentar que a notificação da decisão final da reclamação graciosa não foi expedida pela Autoridade Tributária para a conta de correio electrónico da Requerente a 13 de Julho de 2020, mas que tal só aconteceu a 14 de Julho de 2020, tendo juntado ao processo cópia do envelope digital extraído pela Requerente da sua caixa de postal electrónica com um carimbo do dia 14 de Julho de 2020.

 

2.            SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para conhecer do pedido de anulação do ato de (auto)liquidação de IVA controvertido e da decisão da reclamação graciosa que o confirmou.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

 

Relega-se o conhecimento da matéria de excepção para momento posterior ao da decisão sobre a matéria de facto, por ser esta determinante ao respectivo conhecimento.

 

VALOR:

Fixa-se o valor do processo em €468.172,07 (quatrocentos e sessenta e oito mil, cento e setenta e dois euros e sete cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

3.            MATÉRIA DE FACTO

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

1.            A Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a atividade comercial prevista no artigo 4.º n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.

 

2.            No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras que não conferem direito à dedução de IVA por serem enquadráveis na norma de isenção constante do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA.

 

3.            Realiza, também, operações que conferem o direito à dedução deste imposto, como locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos, entre outras (artigo 20.º n.º 1 al. b) do CIVA).

 

4.            Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos do exercício do direito à dedução, o método da imputação direta, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do CIVA.

 

5.            Foi o que sucedeu no âmbito da aquisição dos bens objeto dos contratos de locação financeira – v.g. a aquisição de uma viatura/máquina para subsequente locação financeira –, relativamente aos quais foi deduzido, na íntegra, o IVA suportado, como resultado de tais bens estarem diretamente ligados a operações tributadas, realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira –, que conferem o direito à dedução.

 

6.            Do mesmo modo, nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

 

7.            Por outro lado, nas situações em que a Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, e logrou determinar critérios objetivos do nível de utilização efetiva, aplicou o método da afetação real, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA (por exemplo: no que respeita aos encargos especificamente associados à aquisição de terminais de pagamento automático (“TPA”).

 

8.            Por fim, para determinar o quantum do IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços – afetos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, isto é, aos recursos de utilização mista –, a Requerente aplicou o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

 

9.            A atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente rege-se por um manual de procedimentos no qual são indicadas as tarefas subjacentes.

 

10.          No âmbito da atividade de aquisição de bens a locar, da sua transmissão e/ou disponibilização aos seus clientes, a Requerente dispõe de vários balcões físicos, aos quais os clientes podem dirigir-se com vista a espoletar a celebração de um contrato de locação financeira, por exemplo, e cada balcão tem associado os seus consumos de eletricidade, água, dispositivos eletrónicos, telecomunicações, papel, entre outros;

 

11.          A atividade de locação financeira é composta por dois tipos de subactividades: i) aquisição dos bens que são locados e à sua transmissão e disponibilização aos clientes; ii) financiamento propriamente dito e nomeadamente, no que toca à i), implica a intervenção de várias áreas internas da Requerente: áreas de negócio, direção de risco, área de desenvolvimento de negócio, direção de compras, direção de operações, assessoria jurídica e direção financeira.

 

12.          Em 9 de Fevereiro de 2018, a Requerente submeteu a sua declaração periódica de IVA relativa ao período tributário de 2017;

 

13.          Naquela declaração periódica, a Requerente aplicou uma percentagem de dedução de IVA sobre os gastos comuns de 8% para 2017, cumprindo as instruções genéricas fixadas pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, resultando no montante de 374.537,65€;

 

14.          Todavia, entende que a percentagem de dedução deveria ter sido de 18% para 2017, que resulta no montante de 824.709,72€ e, sustentando esse entendimento, a Requerente apresentou à Administração Tributária uma reclamação graciosa, pedindo a correção pro rata de dedução apurado no ano 2017;

 

15.          No dia 14 de Julho de 2020, a Requerente foi notificada por via da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa (entretanto autuada com o n.º ...), proferida pelo Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Factos não provados

 

Não se provou que para determinar a medida do IVA dedutível a Requerente aplicou o método da percentagem de dedução previsto no artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA. Antes, ficou assente que calculou o IVA dedutível do ano 2017 mediante a aplicação, aos recursos de utilização mista, do método consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado, do coeficiente de imputação específico.

Também não se provou que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da instituição bancária foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos.

Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerentes e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta por ambas, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas.

No que respeita à data da notificação da decisão da reclamação graciosa, o Tribunal fundou a sua convicção no documento junto pela Requerente com o requerimento em que veio responder à matéria da excepção, que não foi impugnado pela Requerida, que não mais se referiu à matéria de excepção, designadamente, nas alegações.

No que respeita ao facto julgado não provado, a convicção do Tribunal fundou-se no depoimento das testemunhas B... e C... que, na verdade, não só não provaram como contrariaram a tese da Requerente, designadamente quando afirmaram que os gastos gerais se encontram englobados na taxa de juro que é suportada pelos clientes no pagamento da renda;  que o juro é calculado de forma a cobrir o risco, os custos diretos e indiretos e ainda sobrar uma parte para remunerar o Banco e para distribuição dos lucros aos accionistas; que as comissões que a Requerente cobra servem para remunerá-la de custos com pessoal e gastos gerais;  que a Requerente emite uma factura inicial com despesas de abertura/iniciais de contrato, após a celebração do contrato de locação financeira, em que é liquidado IVA, a suportar pelo cliente, com a nomenclatura de despesas administrativas e que tais despesas englobam os custos iniciais de contrato, incluindo com a disponibilização de veículos; e, finalmente, que, quando há atrasos no débito, a Requerente emite factura, acrescida de IVA, com a nomenclatura de despesas por reenvio de débitos diretos por atraso de pagamento.

 

4.            MATÉRIA DE DIREITO:

 

I – EXCEPÇÃO: DA TEMPESTIVIDADE DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

 

O prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1 al. a) do RJAT conta-se nos termos do artigo 279.º do CC, transferindo-se o seu termo, quando os prazos terminarem em dia em que os serviços ou os Tribunais estiverem encerrados, para o primeiro dia útil seguinte. Este prazo começa a contar a partir dos factos previstos no artigo 102.º, n.º 1 do CPPT.

 

Face ao carimbo aposto no envelope electrónico, a Requerente foi notificada electronicamente da decisão final da reclamação graciosa em 14 de Julho de 2020. Nos termos do artigo 39.º, n.º 10 do CPPT, as notificações electrónicas consideram-se efectuadas no décimo quinto dia posterior ao registo da disponibilização no sistema VIA CTT. Ora, nos termos do artigo 279.º do CC, uma vez que a data de envio desta notificação foi em 14 de Julho de 2020, este vai contar como dia “zero” para efeitos de contagem de prazo, pelo que o mesmo só vai começar a contabilizar desde 15 de Julho de 2020.

 

Por isto, a perfeição da notificação deu-se a 29 de Julho de 2020. Este dia é considerado o dia zero para efeitos de contagem do prazo para pedido de pronúncia arbitral, pelo que o prazo de 90 dias termina a 27 de Outubro de 2020.

 

Impõe-se concluir que o pedido de pronúncia arbitral apresentado a 27 de Outubro de 2020 pela Requerente não foi extemporâneo, improcedendo a excepção invocada pela Requerida.

 

POSTO ISTO,

 

II - QUESTÃO DE FUNDO

 

A questão decidenda prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvem as actividades de leasing e ALD em simultâneo com as actividades de concessão de crédito, é sobretudo uma questão de Direito e não é uma questão nova, tendo sido já amplamente debatida em Tribunais, arbitrais e judiciais, e objecto de pronúncia por parte do TJUE, jurisprudência que, aliás, quer a Requerente quer a Requerida citam, pretendendo ambas que vai no sentido que propugnam.

 

É considerável o lastro já adquirido sobre este tema, considerando que a questão objecto de duas pronúncias no Tribunal de Justiça, nos processos Banco Mais, C-183/13, de 10 de Julho de 2014, e Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de Outubro de 2018, a que acresce o profuso debate na jurisprudência nacional da última década.

 

No que respeita ao Acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd., porém, há que fazer notar que estava em causa uma sociedade financeira do Reino Unido – que também realizava operações de leasing automóvel –, mas cujo direito do Reino Unido, diferentemente do que acontece em Portugal, obrigava à desagregação das rendas de leasing em duas operações para efeitos de IVA.

 

A componente do juro estava isenta de imposto e apenas a componente da amortização era tributada, sendo que, a somar a isto, as autoridades fiscais locais também excluíam a componente de amortização do pro rata, por entenderem que os custos mistos estavam predominantemente associados à componente juro do financiamento, que era o cerne da actividade.

 

Assim, estando a componente de juros isenta enquanto operação de crédito, o método aplicado pelo Reino Unido tinha um resultado mais gravoso para os contribuintes e não tão rigoroso quanto o assumido a nível nacional, uma vez que, para efeitos de dedução, não eram tidas em conta as despesas com os bens e serviços repercutidos na componente juros. Os inputs incorridos não eram aí sequer considerados para efeitos do exercício do direito à dedução (o que o Tribunal de Justiça não aceitou), diversamente do que ocorre na situação vertente, em que o IVA incorrido com os gastos mistos é efetivamente deduzido em parte, sendo a respetiva medida determinada de forma aproximada à realidade, através do método de imputação específica concretizado no ponto 9 do citado Ofício-circulado n.º 30108.

 

O raciocínio do Acórdão Volkswagen não pode, pois, ser transposto de forma direta para a situação concreta, porquanto, no caso português, o IVA incide sobre a totalidade da renda, abarcando a componente do juro; componente que, de acordo com o Acórdão do TJUE C-183/13, constitui a contrapartida dos custos (bens e serviços) incorridos no financiamento e na gestão dos contratos de locação financeira suportados pelo locador financeiro, uma vez que constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel – ponto 34 do Acórdão TJUE C-183/13.

 

 A questão em causa nos presentes autos já se colocou por diversas vezes ao Supremo Tribunal Administrativo, que respondeu de forma uniforme nos diversos Acórdãos proferidos a seu respeito – veja-se, a título de exemplo, os Acórdãos proferidos pela Secção de Contencioso Tributário do STA a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, a 3 de Junho de 2015 no Processo n.º 0970/13, a 17 de Junho de 2015 no Processo n.º 01874/13, a 27 de Janeiro de 2016 no Processo n.º 0331/14 e a 15 de Novembro de 2017 no Processo n.º 0485/17 e, mais recentemente, em dois Acórdãos do pleno da Secção de Contencioso Tributário, proferidos nos processos n.ºs 084/19.8BALSB e 0101/19.1BALSB, de 24 de Fevereiro de 2021 e de 20 de Janeiro de 2021, respectivamente, foi no sentido da admissibilidade do critério de imputação específica consagrado no n.º 9 do Ofício-circulado n.º 30108, à luz do direito da União Europeia e da legislação nacional.

 

Diversamente, a jurisprudência arbitral que se pronunciou inicialmente sobre esta matéria propendia para a inadmissibilidade do mencionado critério de imputação específica, em linha com a argumentação da Requerente, por entender que se estaria perante um terceiro método, sem cabimento no artigo 23.º do Código do IVA, resultando, desse modo, violado o princípio da legalidade tributária.

 

Porém, na sequência do Acórdão do STA de 4 de Março de 2020, no processo n.º 07/19, assistiu-se a uma inflexão no sentido das decisões arbitrais, de que são exemplos as proferidas nos processos n.º 759/2019-T, de 5 de Setembro de 2020, n.º 927/2019-T, de 21 de Setembro de 2020, e n.º 276/2020, de 27 de Abril de 2021, concluindo-se, ao contrário da Requerente, que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno”.

 

O Acórdão do STA de 24 de Março de 2021, proferido no processo 087/20.0BALSB, veio uniformizar jurisprudência no sentido de que:

“Nos termos do disposto no artº. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações (inputs promíscuos) através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”.

Na tese da Requerente, o artigo 23.º do Código do IVA só prevê dois métodos de dedução, o pro rata e a afectação real, constituindo o coeficiente de imputação específico um terceiro método, desprovido de base legal, pois, em seu entender, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de utilização dos recursos mistos e, por essa razão, não tem assento no mencionado preceito, nem em qualquer outro previsto na lei interna.

 

Assim, sem prejuízo de reconhecer que o artigo 173.º, n.º 2 alínea c) da Directiva IVA contempla tal possibilidade, atribuindo essa prerrogativa aos Estados-Membros, sustenta que a norma comunitária não foi em parte transposta pelo legislador português, que não previu a possibilidade de um pro rata mitigado.

 

Afigura-se, todavia, que sem razão.

 

Desde logo, no processo C-183/13, o Tribunal de Justiça considerou que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA, correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva, posição que foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplos acórdãos. Neste âmbito, referimos, a título ilustrativo, além dos supracitados, os acórdãos de 29 de Outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de Março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de Novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

 

Com efeito, o legislador português reproduziu no artigo 23.º do Código do IVA o essencial do regime de dedução parcial, i.e., aplicável aos recursos de utilização mista, previsto nos artigos 173.º a 175.º da Directiva IVA.

 

Tal como na Directiva, o método do pro rata é consagrado como método supletivo de dedução do IVA (artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código). Alternativamente, os sujeitos passivos podem optar pelo método da afectação real, sem prejuízo de a AT poder “impor condições especiais ou […] fazer cessar esse procedimento” se verificar que o mesmo provoca ou pode provocar [em função dos critérios objectivos empregues] distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 2 do Código). Por fim, pode ser a própria AT a impor a afectação real em detrimento do pro rata quando o sujeito passivo exerça actividades distintas ou este método seja passível de causar distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 3 do Código).

 

Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça C-183/13, inexistindo, na Directiva, regras que concretizem o método da afectação real, cabe aos Estados-Membros estabelecê-las, tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida directiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas”.

 

Importa, para tanto, ter em conta as características específicas próprias às actividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução.

 

Declara a este propósito o recente acórdão (Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 084/19.8BALSB) que a norma do artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “ao permitir que a AT imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA”, que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou parte dos bens ou serviços, nos exactos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA.

 

Assim, não se verifica o vício de ilegalidade que a Requerente sindica em relação ao ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, que funda a liquidação controvertida, esclarecendo o Acórdão, também daquele Supremo Tribunal (Pleno), no processo n.º 101/19.1BALSB, que a expressão «afectação real» empregue pelo artigo 23.º do Código do IVA corresponde à expressão «utilização» adoptada na Sexta Directiva, a qual, “por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efectivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (cit. José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, in «Desfazendo  mal-entendidos em matéria do direito à dedução…», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, número 1, pág. 50). Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «…com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito»”.

 

E agora, acrescentamos nós, menos dúvidas existirão, pois, a própria Directiva passou a mencionar, em vez da expressão «utilização», outra coincidente com a empregue no Código do IVA: a “afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”.

 

Seguindo ainda este aresto, “[a] questão que ficava era a de saber se o método previsto no ponto 9 do ofício circulado n.º 30108 [...] era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efectiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Directiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.

 

E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.

 

Desde que fosse apurado que a utilização de bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira (parágrafo 33 do acórdão). […].

 

Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redacção do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.

 

Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária”.

 

Sobre a alegação de que um pro rata mitigado não constitui um método de afectação real, a que a aqui Requerente também adere, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que não é assim, porque não existe apenas uma forma de proceder à afectação de bens e serviços. “A confirmar que o sistema de afectação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da actividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito, segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução. Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.”

 

E conclui que, sob este prisma, as referências à violação do princípio da legalidade e da reserva de lei não têm cabimento.

 

Posição que, pelas razões acima expostas, aqui se acompanha.

 

SÉRGIO VASQUES vai mais além e conclui que “aquilo que, no contexto do sistema IVA, consubstancia o método da afectação real, é questão que não está na disponibilidade dos tribunais nacionais determinar.”, numa remissão implícita para a competência do Tribunal de Justiça para dirimir tal questão, conforme este a exerceu no caso Banco Mais  .

 

Assente o pressuposto de que o critério de imputação específica é enquadrável no método da afectação real, uma segunda questão que daí deriva prende-se com saber se esse método constitui um critério objectivo e é ajustado, no sentido de constituir “uma modalidade do cálculo de dedução que reflicta objectivamente a parte real das despesas efectuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.”

 

Com efeito, de acordo com o Tribunal de Justiça, importa que o critério adoptado seja mais preciso do que o resultante do método residual do pro rata, considerando as especificidades do sujeito passivo, o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais.

 

Neste âmbito, o citado Ofício-circulado n.º 30108 invoca que se trata de um método menos susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação. O que, de uma forma geral, é uma asserção válida, atentas as características-padrão da actividade de locação financeira.

 

De facto, a remuneração da actividade de leasing e ALD, apesar de juridicamente configurada como uma renda unitária, do ponto de vista económico corresponde tendencialmente a apenas uma das duas componentes compreendidas nesta renda, “os juros e outros encargos”, o que é reflectido no tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16, que as equipara às operações de financiamento ou concessão de crédito.

 

O valor do capital que é “amortizado” (no sentido de reembolsado ou pago), representa o valor do bem escolhido pelo locatário e que a este foi cedido. Ou seja, quando essa quantia é paga pelo locatário, nomeadamente via rendas, não constitui a remuneração da actividade do locador, mas o pagamento parcelar do custo de aquisição do bem locado, in casu, viaturas automóveis, ou, dito de outro modo, o reembolso gradual e progressivo do preço da viatura que findo o contrato, e se este se executar e desenvolver dentro da normalidade, passará para a esfera jurídica do locatário.

 

Assim, a actividade do locador, que disponibiliza a viatura ao locatário porque despendeu os meios financeiros para o efeito, é remunerada pela componente da renda, aqui denominada de “juros e outros encargos”, que excede o valor do reembolso do capital usado para adquirir a viatura.

 

Do ponto de vista do IVA, o valor do imposto liquidado na renda (output) referente à componente de reembolso do capital (originariamente usado para adquirir a viatura) está afecto por imputação directa, à dedução, na sua esfera, do IVA incorrido na aquisição dessa viatura (input). O valor do capital debitado ao locatário e do IVA liquidado corresponderá ao do custo de aquisição da viatura e do respectivo IVA deduzido, em virtude dessa imputação/afectação directa, e em razão de tal componente, não contemplar, à partida, qualquer margem para acomodar ou prever outros inputs, como os de utilização mista em causa nesta acção, nem o “lucro” da operação.

 

Deste modo, é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afecto ao input da viatura adquirida para locação) que, em princípio, reflecte a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representa, em regra, a (única) remuneração económica dos gastos da actividade de leasing e ALD, pois a outra, a do capital, esgota-se com o input da aquisição da viatura, não sobrando qualquer valor para imputar a outros gastos/inputs.

 

Assim sendo, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da actividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, em princípio, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação directa.

 

Caso contrário, estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da actividade geral, com juros e capital do leasing. Nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fracção que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante actividade.

 

O método do pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se-ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela actividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstracto, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão directa com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante actividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.

 

Ao contrário do afirmado pela Requerente, o critério em análise é um critério de natureza objectiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objectivos comummente aceites e aplicados no método da afectação real, como o número de pessoas afectas às actividades, o número de horas homem incorridas, ou os metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objectivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso.

 

Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afectação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exacta medida de consumo dos recursos por cada uma das actividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto não dedutível em imposto efectivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa).

 

Aplica-se, neste contexto, o entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, reiterado nos dois recentes acórdãos do Pleno acima identificados (de 2021), de que quando o acto de liquidação adicional do IVA se fundamenta no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução.

 

Desta forma, caberia “ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.”

 

Prova que a Requerida não só não logrou fazer como foi, aliás, contrariada pelas testemunhas por ela arroladas.

 

Atento o que foi acima exposto:

 

a)            O citado Ofício-circulado n.º 30108 não constitui uma mera interpretação administrativa do artigo 23.º do Código do IVA. Como resulta dos seus próprios termos, contém uma normação prescritiva, legalmente habilitada no n.º 2 do artigo 23.º daquele Código, impondo, com os fundamentos contemplados no n.º 8 do Ofício, a adoção do coeficiente de imputação específico atrás descrito. Trata-se, pois, do exercício da faculdade ou prerrogativa de determinar “condições especiais” atribuída pelo citado n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA à Autoridade Tributária;

b)           A imposição da referida metodologia de dedução parcial não é arbitrária, fundamentando o ponto 8 do Ofício-circulado n.º 30108 o seguinte: o método da percentagem de dedução (pro rata) “é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a «distorções significativas na tributação»”. Variáveis que, como antes se explicitou, têm de ter comparabilidade económica, indissociável da neutralidade do IVA, não se podendo retirar um rácio válido ou proporção que represente uma presunção do consumo de recursos pelas diversas atividades, quando as realidades que constituem o termo de comparação são objeto de métricas distintas, a saber:

i)             Atividade financeira – juros provenientes da concessão de crédito;

ii)            Atividade de leasing e de ALD – juros + capital;

c)            Nos moldes preconizados na orientação administrativa, para que a comparação das operações tenha “coerência” e traduza uma proporção adequada, quer a atividade financeira, quer a atividade de leasing, substancialmente equiparadas/áveis numa perspetiva económica, devem considerar a remuneração, i.e., os juros;

d)           A aplicação da directriz administrativa contida no Ofício-circulado n.º 30108 não carece da mediação de um ato administrativo em matéria tributária, cabendo a demonstração de não estarem preenchidos os respetivos pressupostos (a mencionada falta de coerência das variáveis utilizadas condutora de distorções significativas na tributação) aos sujeitos passivos que invocam o direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT;

e)           Não se verifica uma exigência de “prova diabólica”, circunscrevendo-se a questão de facto essencial à demonstração (de um facto positivo) de que a utilização mista dos bens e serviços foi também e manifestamente determinada pela disponibilização dos bens. Ónus que impendia sobre a Requerente e que esta não satisfez;

f)            No caso concreto, não tem cabimento a alegação da Requerente de que usou o método previsto no artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA (pro rata geral). Esta alegação é contraditória com a realidade declarativa demonstrada nos autos, e também afirmada pela Requerente, que evidencia ter sido aplicado o método do coeficiente de imputação específico previsto no Ofício-circulado (embora em discordância do mesmo), conduzindo ao apuramento do imposto dedutível que considera inferior àquele que lhe assistia (e que seria o que resultaria se fosse aplicado o método do pro rata). Deste modo, não se mostra necessária a emissão de um ato tributário concretizador da alteração do método usado pela Requerente, pois esta usou-o voluntariamente, não se suscitando qualquer alteração que devesse ser promovida por ato de autoridade;

g)            Nos termos da jurisprudência dos Tribunais superiores, não resulta violado o princípio da legalidade (artigos 103.º, n.ºs 2 e 3 e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição), desde logo, porque o método aplicado e as circunstâncias em que o foi constam de norma legal permissiva;

h)           Não se constata que a situação em apreço se afaste dos pressupostos e critérios subjacentes à interpretação do Tribunal de Justiça no processo C-183/13. Pelo contrário, afigura-se estarem em discussão circunstâncias de facto similares (nas suas propriedades essenciais) e as mesmas questões de direito;

i)             Nestes termos, não procede a alegada violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 20.º, n.º 5 da Constituição), nem a suscitação de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça constitui um meio processual ao dispor dos sujeitos passivos ou um direito subjetivo que lhes assista. O reenvio prejudicial é um mecanismo colaborativo entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, para assegurar a correta e uniforme interpretação do Direito Europeu;

j)             Improcede a arguida violação dos princípios da neutralidade do IVA e da igualdade de tratamento.

 

 

EM CONCLUSÃO,

 

Pelos motivos expostos, julga-se não verificado o vício de ilegalidade alegado pela Requerente, em virtude de o critério de imputação específico consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 ter suporte legal no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA, sendo conforme ao direito da União Europeia, em concreto ao disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA e ao princípio da neutralidade fiscal e da igualdade de tratamento entre Estados-membros.

 

Conclui-se, assim, pela manutenção dos atos que constituem o objeto imediato e mediato do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Peticionou a Requerente que, para além do reembolso da quantia que tinha sido voluntária e indevidamente paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

 

A este respeito dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Tendo-se determinado, nos presentes autos, que as (auto)liquidações em crise não estão viciadas por qualquer ilegalidade, fica prejudicada a apreciação do pedido de relativo aos juros indemnizatórios.

 

Finalmente,

 

DO PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE REENVIO PREJUDICIAL:

 

A título subsidiário, a Requerente solicita o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, em relação à consideração do valor das amortizações financeiras no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

 

Na verdade, a questão de interpretação do Direito Europeu discutida nos autos foi especificamente clarificada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito do caso Banco Mais, C-183/13, conforme ficou acima referenciado.

 

De acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Cilfit, a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

 

a)            A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou

 

b)           O Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou

 

c)            O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente. 

 

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas b) e c), podendo afirmar-se que o “acto” em questão está devidamente aclarado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça que já se pronunciou de forma firme, como o tem entendido também a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo supra-referida, pelo que actualmente não se suscitam dúvidas, nem há fundamento, para suscitar o reenvio prejudicial.

 

Pelo que, à semelhança do que vem sendo decidido por outros tribunais arbitrais constituídos neste CAAD que se têm debruçado sobre o tema  , o Tribunal considera desnecessário o reenvio prejudicial atendendo a que a Jurisprudência do TJUE sobre esta matéria fornece os elementos suficientes para a aplicação do direito europeu a este litígio.

 

5. DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:

 

-  Julgar improcedente a exceção de intempestividade suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira;

- Indeferir o pedido subsidiário de reenvio prejudicial para o TJUE;

-  Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

 

- Fixar o montante das custas em 7.344,00€ (sete mil trezentos e quarenta e quatro euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, e condenar a Requerente a suportá-las integralmente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, aos sete de dezembro de dois mil e vinte e um,

 

A Árbitro Presidente,

(Alexandra Coelho Martins)

 

O Árbitro Auxiliar,

(Fernando Marques Simões)

 

A Árbitro Auxiliar,

(Eva Dias Costa)