Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 575/2019-T
Data da decisão: 2020-12-13  IRC  
Valor do pedido: € 82.498,82
Tema: IRC – Tributações Autónomas; Dedução do Pagamento Especial por Conta (PEC).
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SUMÁRIO:

 

I.             Para não frustrar os objectivos tributários prosseguidos com a tributação através de tributações autónomas não são admitidas deduções à respectiva colecta que não estejam expressamente previstas na lei, designadamente, está excluída a possibilidade de dedução dos montantes apurados a título Pagamento Especial por Conta (PEC).

II.            Esta interpretação normativo-legal dos preceitos tributários do CIRC não foi alterada com a introdução do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC por efeito da aprovação da Lei n.º 7-A/2016.

III.          A norma extraída do artigo da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, quando interpretada no sentido de afastar a dedução relativa a Pagamentos Especiais por Conta da colecta apurada em sede de tributações autónomas, não é inconstitucional.

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Victor Calvete e Luís Menezes Leitão, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 30 de Agosto de 2019, A..., Lda., NIPC..., com sede na ..., n.ºs ... e ..., ..., ..., ...-... Algés, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da demonstração de liquidação de IRC  n.º 2014..., do ano de 2013, no valor de €33.531,36, e da demonstração de liquidação de IRC n.º 2015..., do ano de 2014, no valor de €48.967,46, na medida correspondente à não dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma do Pagamento Especial por Conta (PEC) efectuado em sede de IRC, assim como da decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa n.º ...2018... e n.º ...2018..., que tiveram as referidas demonstrações de liquidação como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que os Pagamentos Especiais por Conta podem ser deduzidos à colecta de tributações autónomas porque: (i) a colecta das tributações autónomas é considerada como colecta do IRC, sendo aquelas parte integrante deste imposto; (ii) podem ser deduzidos à colecta de IRC apurada nos termos do artigo 90.º do CIRC; (iii) as regras de liquidação previstas no artigo 90.º do CIRC são aplicáveis às tributações autónomas e (iv) o entendimento da Requerente vai na linha de alguma da jurisprudência do CAAD que já se pronunciou sobre esse tema.

 

3.            No dia 30-08-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 22-10-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 21-11-2019.

 

7.            No dia 06-01-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é uma sociedade de direito português, à data dos factos designada B..., Lda., que se dedica à importação, comercialização e distribuição de vestuário.

2-            Em 04-11-2014, a Requerente submeteu a declaração Modelo 22 de IRC respeitante ao período de tributação iniciado em 01-07-2013 e encerrado em 30-06-2014.

3-            No período de tributação iniciado em 01-07-2013 e encerrado em 30-06-2014, a Requerente apurou um prejuízo fiscal de €1.026.165,37.

4-            A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2014..., referente ao exercício de 2013, da qual resultou o montante a pagar de €33.351,36 relativo exclusivamente a tributações autónomas em IRC.

5-            Em 27-11-2015, a Requerente submeteu a declaração modelo 22 de IRC respeitante ao período de tributação iniciado em 01-07-2014 e encerrado em 30-06-2015.

6-            No período de tributação iniciado em 01-07-2014 e encerrado em 30-06-2015 a Requerente apurou um prejuízo fiscal de €1.069.514,28.

7-            A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2015..., referente ao exercício de 2014, da qual resultou o montante a pagar de €48.967,46, relativo exclusivamente a tributações autónomas em IRC.

8-            Nos exercícios de 2013 e 2014, a Requerente tinha os seguintes montantes de Pagamentos Especiais por Conta (PEC) efectuados nos exercícios anteriores disponíveis para dedução:

 

9-            Os referidos PEC não foram deduzidos à colecta das tributações autónomas, dos anos de 2013 e 2014.

10-         A Requerente efectuou o pagamento dos montantes apurados nas liquidações de IRC relativas aos exercícios de 2013 e 2014.

11-         Em 05-11-2018, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa de autoliquidação e IRC respeitante ao exercício de 2013, tendo requerido a anulação e a restituição do imposto indevidamente pago, no montante total de €33.531,36, resultante da não dedução à colecta do IRC gerada pelas tributações autónomas do valor dos Pagamentos Especiais por Conta (PEC) disponíveis para utilização em 2013, no mesmo montante.

12-         Através do Ofício n.º ... da Direcção de Serviços do IRC, a Requerente foi notificada para se pronunciar, querendo, sobre o projecto de indeferimento da reclamação graciosa.

13-         A Requerente foi notificada do despacho da Directora de Serviços do IRC, de 21 de Junho de 2019, que indeferiu o pedido de revisão oficiosa relativo ao exercício de 2013.

14-         Em 05-11-2018, a Requerente apresentou, ainda, um pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2014, e requereu, para além da sua anulação, a restituição da importância de €48.967,46 correspondente ao imposto indevidamente pago em virtude de não ter deduzido ao Pagamento Especial por Conta (PEC) à colecta das tributações autónomas em IRC.

15-         Através do Ofício da Direcção de Serviços de IRC datado de 3 de Abril de 2019, a Requerente foi notificada para se pronunciar sobre a proposta de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

16-         Posteriormente, a Requerente foi notificada do despacho da Directora de Serviços de IRC, de 07 de Maio de 2019, que indeferiu o pedido de revisão oficiosa, relativo ao exercício de 2014.

17-         Não se conformando com as decisões de indeferimento dos referidos pedidos de revisão oficiosa, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

A questão principal a decidir nos presentes autos, sendo, sem dúvida, de alguma complexidade na sua resolução, é, todavia, simples na sua formulação, e prende-se com saber se é ou não possível a dedução à parte da colecta de IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, dos montantes pagos a título de Pagamento Especial por Conta.

                Convoca a Requerente em seu abono, assentando, no essencial, a sua argumentação no quanto ali se expende, decisões proferidas em processos arbitrais do CAAD, podendo citar-se no sentido da posição da Requerente, as decisões dos processos n.º 744/2015-T, 775/2015-T, 602/2016-T, 326/2016-T, e em sentido oposto as proferidas nos processos n.º 209/2013-T e 166/2014-T, entre várias outras.

A problemática subjacente às tributações autónomas, tem sido, nesta como noutras matérias, objecto de acirrado contencioso entre os contribuintes e a Autoridade Tributária, situação a que não será, de todo, estranha, a natureza própria, anti-sistémica até, de que aquelas se revestem, no quadro dos impostos sobre o rendimento, onde germinaram.

                Efectivamente, a discussão que deflagrou com as novas taxas de tributação autónoma introduzidas pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, e incidiu inicialmente sobre a natureza do facto tributário subjacente àquele tipo de tributação, abriu um percurso exploratório profundo sobre a natureza das tributações autónomas e da sua relação com os impostos sobre o rendimento, em especial o IRC, que passou pelas problemáticas da dedutibilidade do valor das tributações autónomas à colecta de IRC, e pela natureza, presuntiva, ou não, das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, sem que até à data tenha havido uma intervenção legislativa definitiva, doutrinalmente sustentada e coerente, no sentido de clarificar o devido enquadramento das tributações em causa no edifício do imposto sobre rendimento de onde emergem, sucedendo-se, antes, intervenções legislativas desconexas e conjunturais, que em nada contribuem, pelo contrário, para a clarificação da natureza e função de tais tributações.

                Neste quadro, decisões jurisprudenciais casuísticas, sucedem-se a intervenções legislativas igualmente casuísticas, gerando um quadro de incerteza e instabilidade onde, contribuintes e Autoridade Tributária não têm outra via de procurar o Direito aplicável, que não a litigiosidade perpetuada, resvalando para o intérprete judicativo a ingrata tarefa de, no emaranhado normativo gerado, servir a Justiça possível.

Vejamos, então.

 

*

Quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, é conveniente desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:

o             Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: artigo 72.º do actual CIRS, e, crê-se, a prevista no actual n.º 11 do artigo 88.º do CIRC);

o             Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex.: n.º 7 do artigo 88.º do actual CIRC);

o             Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respectiva dedutibilidade (ex.: números 1 e 2 do artigo 88.º do actual CIRC).

Sob um ponto de vista da funcionalidade/finalidade/fundamento das tributações autónomas sobre gastos (excluindo, portanto a tributação autónoma de rendimentos), têm, também sido surpreendidos vários tipos, como sejam:

o             o desincentivar de determinados comportamentos do contribuinte tendentes a estar associados a situações de fraude ou evasão fiscal, como acontece, por exemplo, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas não documentadas, ou pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados;

o             o combate à erosão da base tributável, como acontece, em geral, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas dedutíveis;

o             o desincentivar de determinados gastos de causação presumidamente não empresarial, como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;

o             a tributação de distribuição encapotada de rendimentos a terceiros, não tributados na esfera destes (fringe benefits), como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;

o             a penalização pela realização de determinadas despesas, que não afectam a base tributável, nem tem subjacente qualquer distribuição não tributada de rendimentos a terceiros, ou potencial fraudulento ou evasivo, mas que o legislador, porventura, terá considerado luxuosas ou sumptuárias, como acontece com as tributações autónomas sobre determinados pagamentos a gestores, administradores ou gerentes (actual artigo 88.º/13 do CIRC), bem como a tributação autónoma sobre encargos com viaturas na medida em que exceda a taxa normal IRC.

Estes dados tornam-se importantes porque por si mesmos evidenciam a disparidade e heterogeneidade das situações sujeitas a tributações autónomas, e a inutilidade de, em sede jurisprudencial, sintetizar e procurar uma natureza jurídica própria e unitária, comum a todas as situações.

Deste modo, dever-se-á centrar a discussão na concreta questão colocada pela Requerente e procurar uma resposta, devidamente fundada, para os termos restritos daquilo que está em causa nos autos, que será então saber se é, ou não, possível a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, dos montantes pagos a título de Pagamento Especial por Conta.

Devidamente equacionada, nestes termos, a questão a solucionar nos autos, cumprirá ainda ter presente que o referente fundamental da resposta a dar àquela, será o formulado no artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual deverá ser reconstituído, a partir dos textos, o pensamento legislativo, que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Neste quadro, o desiderato da presente decisão será, não o de teorizar sobre a natureza jurídica das tributações autónomas em geral, ou de qualquer dos seus vários tipos, mas antes o de apurar se o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era ou não, à data do facto tributário em questão nos autos, no sentido de ser possível  utilizar a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, dos montantes pagos a título de Pagamento Especial por Conta.

Inútil será, julga-se, procurar uma base conceptualista, assente numa definição dogmática de conceitos monolíticos de IRC e de Tributações Autónomas, retirados de normação estranha à matéria decidenda, professando um “ontologismo escolástico” que procure “deduzir de forma puramente lógica, a partir de conceitos abstractos superiores, outros, cada vez mais concretos e plenos de conteúdo” , metodologicamente ultrapassado.

Almejar-se-á, deste modo, apenas averiguar qual a solução que, face ao direito constituído, devidamente interpretado, se afigura caber ao caso concreto, não se tomando a resposta dada à questão decidenda como uma evidência acabada, exacta e com um grau extremo de rigor e exactidão, mas, meramente, como aquela que, reflexivamente, se apresentou aos seus subscritores como a, juridicamente, melhor .

*

                A base da pretensão da Requerente é literalmente simples e linear e resulta da constatação de que, sendo as tributações autónomas IRC e fazendo-se a sua liquidação nos termos do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC, a tal liquidação aplicar-se-ão as deduções previstas no seu n.º 2.

                Efectivamente é o seguinte, o teor dos normativos em causa:

“1 - A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste;

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efectuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

a) A correspondente à dupla tributação internacional;

b) A relativa a benefícios fiscais;

c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;

d) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.”.

Sob um ponto de vista semântico-literal, aceite o pressuposto – que ora se aceita – de que a liquidação das tributações autónomas se faz nos termos do n.º 1 do artigo 90.º transcrito, nenhum outro sentido é possível retirar da letra da lei, que não a apresentada pela Requerente, e por toda a jurisprudência arbitral em que se abona.

Sucede que a leitura jurídica, por impositivo legal (e também lógico-racional) não se cinge, nem deve cingir, ao texto das normas enquanto realidade semântico-gramatical, devendo antes colocar-se num plano axiológico-racional, ancorado em todos os elementos da interpretação jurídica.

                Daí que, em ordem a obter aquilo que seja a leitura correcta do texto, seja necessário realizar determinados testes a nível do edifício sistemático onde a norma interpretanda se enquadra, de modo a validar, face ao mesmo, e à luz dos critérios de racionalidade, congruência e razoabilidade que necessariamente norteiam aquela estrutura normativa, a interpretação literalmente sugerida.

                Assim, e desde logo, a montante, não se pode descurar, como bem aponta a entidade Requerida, que “não há uma liquidação única de IRC, mas antes dois apuramentos; Isto é, dois cálculos distintos que, embora, processados, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 90.º do CIRC, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º do mesmo código, são efectuados com base em parâmetros diferentes, pois cada uma se materializa na aplicação das suas próprias taxas, previstas nos artigos 87.º ou no 88.º do CIRC, às respectivas matérias colectáveis determinadas igualmente de acordo com regras próprias”. Tal significa que dos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do CIRC, converge a liquidação de duas formas de imposição relativas ao mesmo imposto, mas radicalmente distintas, a saber, o IRC tradicional, ou stricto sensu, e as tributações autónomas.

                A natureza das tributações autónomas, como indicado já, tem sido objecto de ampla discussão na doutrina e jurisprudência recentes.

Uma corrente tem olhado para as mesmas como um imposto sobre a despesa, que tributaria determinados tipos de gastos, de uma forma totalmente desligada do rendimento, em termos de haver mesmo quem sustente que as mesmas constituem um tributo próprio, que apenas casualmente estaria integrado nos códigos do IRS e IRC.

                Não obstante, tem obtido acolhimento recorrente na jurisprudência do CAAD , o entendimento de que as tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, integram o regime dos impostos regulados pelos códigos onde se integram, visando, ainda que de uma forma enrevesada, o rendimento tributado por aqueles.

Com efeito, e como se teve oportunidade de escrever noutra sede , “a complexidade gerada pelas sucessivas alterações na arquitetura do CIRC conduziram (...) a um edifício normativo atípico, no qual se poderá discernir um core correspondente ao que se poderá chamar IRC tout court (ou em sentido estrito), que a Requerente pretende que esgote tudo o que seja designado por IRC, e uma periferia que integra regulamentações “marginais”, subtraídas, em grande parte, à lógica, natureza e princípios do IRC tout court, mas que, não obstante, ainda se situam no “campo gravitacional” daquele.

E é no processo de concretização desta zona de difícil definição que todas as decisões analisadas (...) operam, não podendo as mesmas ser devidamente compreendidas sem que se compreenda também que, de facto, o que todas as decisões em questão estão a fazer é apurar quais as consequências que a “gravitação” em torno do core do IRC aportam para as matérias em cada uma delas abordadas.”.

Nesse sentido, “dentro do quadro hermenêutico acima desenhado, (...) por força da evolução histórica do respetivo regime legal, se constituiu um tipo de IRC que integra um núcleo duro (...) e um grupo de normações adjacente, que comunga de parte da lógica e do regime daquele, mas que em muitos aspectos diverge dos mesmos.”. E, mais adiante, “da consideração do texto legislativo, estaticamente e na sua evolução histórica, resulta que o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário”.

Isto porque “o regime legal das tributações autónomas em questão nos autos apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas do seu principal referente de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é devidamente compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.”.

Daí que não “se entenda que “a definição de IRC constante dos artigos 1.º e 3.º do CIRC” esteja “realmente ultrapassada por uma nova definição de aplicação transversal/geral”, sendo essa uma postura epistemológica própria de um conceptualismo que, liminarmente, se repudiou.

Pelo contrário: trata-se do reconhecimento daquilo que, face ao quadro legal vigente, se impõe como o mais razoável: o abandono definitivo de qualquer definição de aplicação transversal/geral de IRC, e o reconhecimento do regime deste como uma realidade complexa e multifacetada, irredutível a uma definição daquela índole, que apenas um conceptualismo fundamentalisticamente abstracionista poderá pressupor.”.

                Por isso, “Tudo aquilo que se tem vindo a dizer evidencia que a evolução do regime legal do IRC transmutou-o numa realidade complexa e multifacetada, aos mais diversos níveis, que se reflete, na matéria que nos ocupa nestes autos, na tal “natureza dual” de que falava o Prof. Saldanha Sanches na passagem citada no Acórdão 617/2012 do TC.

O reconhecimento desta dualidade de natureza não prejudica, contudo, como se entende estar subjacente quer à citação em causa quer à jurisprudência que a cita, que se considere que o sistema, apesar de dual, seja o mesmo . Dito de outro modo, apenas faz sentido falar-se de um sistema dual, se o sistema em questão, globalmente considerado, for, ainda, o mesmo. Caso contrário falar-se-ia não de um sistema de natureza dual, mas de dois sistemas distintos, o que, por tudo o que se vem dizendo, não será o que ocorre. E, in casu, o sistema será o regime do IRC, que operando ora pelo lucro, ora pelos gastos, visa e prossegue as finalidades próprias daquele imposto, incluindo, evidentemente, a arrecadação de receita para o Estado.”.

                Por fim, “Em jeito de conclusão, face a tudo o que se vem de expor, e em favor de um rigor conceptual, dir-se-á ainda que se pende para o entendimento de que as tributações autónomas, tal como existem actualmente, se poderão configurar como um imposto “híbrido” , incidindo sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação”.

                O quanto vem de se dizer, ecoa, de alguma forma, na jurisprudência que vem sendo produzida pelo Tribunal Constitucional (TC), como acontece com o Acórdão 197/2016, de 13-04-2016 .

                Com efeito, reconhecendo o TC que a matéria das tributações autónomas é “regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento”, confirma o mesmo Tribunal que a mesma “é materialmente distinta da tributação em IRC”, e que “estamos (...) perante factos tributários distintos e que são objeto de um tratamento fiscal diferenciado”, indo mesmo ao ponto de afirmar que “o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos” e que aquela tributação “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros”, afirmações que terão de ser lidas, julga-se, cum grano salis, enquadrando-as nas limitações que as contextualizam, reportando-as à existência de uma “base de incidência” consistente em “certas despesas que constituem factos tributários autónomos”, e na “sujeição a taxas específicas”, compreendendo-se assim que a tributação autónoma “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa” (o que não quer dizer que seja alheia ao rendimento e lucros em geral), e que a distinção entre a tributação autónoma e o IRC, sendo profunda e vincada, se deve cingir ao necessário para salvaguardar a especificidade daquela ao nível da respectiva teleologia, base de incidência e taxas específicas, sem prejudicar a integração no mesmo edifício normativo.

Efectivamente, crê-se, não estará o TC a defender que a tributação autónoma constitui um imposto sobre a despesa stricto sensu, completamente alheio e distinto do IRC, sob pena de, não só ser desmentido pela sistemática da lei fiscal  e, expressamente, pelo próprio legislador , como também de condenar irremediavelmente as tributações autónomas a uma inconstitucionalidade formal, por violação do disposto na al. i) do artigo 165.º, n.º 1 da CRP , na medida em que as leis autorizativas da criação daquelas não licenciaram a criação de um novo imposto sobre a despesa .

Não obstante, e sem prejuízo do que vem de se expor, não se poderá, na apreciação da matéria em causa, desprezar a (enfaticamente afirmada pelo TC) profunda distinção formal e teleológica entre a tributação autónoma em IRC e a tributação geral neste imposto (IRC stricto sensu).

Em suma: já anteriormente se detectou, por um lado, a futilidade de procurar um conceito unitário de IRC que acomode, coerentemente, o regime das tributações autónomas, e que, por outro, a via metodologicamente mais profícua de gerar soluções juridicamente adequadas para a problemática em causa passa por compreender o regime do IRC actual como produto de uma evolução historicamente explicada que conduziu à edificação de uma estrutura de natureza dual ou híbrida, compreendendo um núcleo principal correspondente ao IRC tradicional, e uma parte adjacente, conexionada com aquele e fazendo parte da mesma realidade normativa global, com especificidades próprias das quais resulta um afastamento, em vários e substanciais aspectos, do regime principal, em termos de os princípios e soluções gerais, não obstante, por vezes, se aplicarem, por outras vezes, serem contraditórios, e como tal, inaplicáveis, com a natureza própria dessa tal “normação adjacente” que se consubstancia nas designadas tributações autónomas.

Sendo que, como é já consabido, essa natureza própria, ou específica, assente numa lógica estranha ao edifício principal do IRC tradicional, se caracterizará, essencialmente, pelas notas sobejamente reconhecidas como próprias às tributações autónomas, designadamente, quer quanto à sua forma de imposição (o carácter instantâneo do respectivo facto tributário e a circunstância de este consistir num gasto), quer quanto à sua ratio anti-sistemática (o facto de algumas das tributações autónomas terem uma vertente dirigida directamente para o rendimento de pessoas singulares e/ou uma vertente sancionatória, bem como uma finalidade antiabuso).

Assim, não se poderá, crê-se, na senda da solução a obter para a questão decidenda, obliterar que, não obstante convergirem, efectivamente, na forma de liquidação regulada nos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do CIRC aplicável, as tributações autónomas e o IRC stricto sensu (ou tradicional), provêm, a montante de geografias profundamente distintas, facto que não poderá deixar de ser devidamente ponderado e tido em conta, nas soluções a encontrar a jusante, designadamente e para o que ao caso interessa, no que diz respeito à leitura a fazer da norma do artigo 90.º do referido Código.

Deste modo, como se vem de expor, considera-se  que a integração das tributações autónomas no IRC apenas é viável num contexto que reconheça naquele um sistema com uma natureza dual, que se poderá por comodidade designar por IRC em sentido amplo, integrando um sistema base correspondente ao IRC tradicional, ou stricto sensu, e um sistema periférico, autónomo, que fazendo ainda parte do mesmo sistema global, tem especificidades funcionais e axiológicas próprias, das quais decorre o afastamento da aplicação das normas próprias daquele sistema base, sempre que tal se justifique à luz da coerência do próprio sistema (das razões que justificam a sua autonomia).

*

                Prosseguindo a senda interpretativa em curso para jusante, passar-se-á a aferir das decorrências da limitação daquele processo hermenêutico à camada literal do objecto interpretativo em análise.

                Como acertadamente aponta a entidade Requerida na sua resposta, o entendimento, proposto pela Requerente, segundo o qual a expressão “montante apurado nos termos do número anterior” deve ser entendida como abrangendo o somatório do montante do IRC, apurado sobre a matéria colectável determinada segundo as regras do capítulo III e às taxas previstas no artigo 87.º do mesmo Código, e o montante das tributações autónomas, calculado com base nas regras previstas no artigo 88.º, implicaria que na base de cálculo dos pagamentos por conta devidos em IRC, se incluíssem, também, os valores relativos às tributações autónomas, e não apenas os relativos ao IRC stricto sensu.

                Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 105.º do Código do IRC, que: “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

                Ora, entendendo-se que o teor normativo do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão veda qualquer distinção, para efeitos de outras normas que para o mesmo remetam, entre o imposto liquidado a título de tributação autónoma e o imposto liquidado a título de IRC stricto sensu, ter-se-ia, coerentemente e nos mesmos termos, de concluir que os pagamentos por conta seriam devidos em função da soma de ambos os valores, sendo que tal solução não poderá – crê-se – ter-se por conforme ao espírito de um legislador razoável.

                Efectivamente – e não sendo os pagamentos por conta thema decidendum do presente processo – sem que se justifique grande profundidade nesta análise, sempre se dirá que aquele tipo de pagamentos, conforme é doutrinal e jurisprudencialmente reconhecido, têm por base uma intenção de adiantamento da tributação que será devida a final, atendendo ao lucro tributável do ano anterior.

                Neste sentido, por exemplo, escreveu-se no Ac. do STA de 07-03-2007, proferido no processo 0877/06 , que (sublinhado nosso):

“Da definição legal de “pagamento por conta” retira-se uma imbricação inevitável, necessária e essencial entre “pagamento por conta” e “imposto devido a final”.

Por modo tal que o “título” (palavra da lei) do “pagamento por conta” é o “imposto devido a final”.

O que significa que o “pagamento por conta” é, nos próprios termos da lei, uma entrega pecuniária antecipada, feita, por conta do imposto devido a final, no período de formação do facto tributário.

O que significa, ainda, que o “pagamento por conta” tem de ser aferido com referência à situação contabilística da empresa no fim do período a que se refere o pagamento por conta.

O que decididamente quer dizer que, se nenhuma quantia pecuniária houver de ser (antecipadamente) entregue por conta do imposto devido a final, no concernente período de formação do facto tributário (a que se refere o “pagamento por conta”) – mormente por inexistência de lucro tributável revelado pela contabilidade, a esse tempo –, aquele “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo.(...)

E, assim, se não houver lucro tributável, não há imposto devido.”.

                Ora, (pelo menos algumas) das tributações autónomas, conforme também noutra sede se indicou já , não incidem directamente sobre o rendimento, fazendo-o de uma forma meramente mediata ou indirecta, sendo essa a justificação para, não obstante as mesmas integrarem o regime do IRC lato sensu, operarem pela via da despesa e, consequentemente, serem devidas ainda que o sujeito passivo não apresente lucro tributável.

                Assim sendo, como se crê que é, será destituído de sentido que aos contribuintes que não apresentem lucro tributável, se exija pagamento por conta com base em imposto liquidado sobre despesas que realizaram e que foram objecto de tributação autónoma.

Isto mesmo é corroborado pela natureza distinta do facto tributário subjacente ao IRC stricto sensu e às tributações autónomas. Com efeito, sendo o primeiro um facto tributário de natureza continuada e o segundo um facto tributário de natureza instantânea, apenas relativamente ao primeiro poderá fazer sentido divisar um adiantamento de imposto (pagamento por conta), e já não quanto ao segundo cuja prática gera, imediatamente, uma obrigação de imposto.

Todavia, e voltando agora ao caso concreto, a mesma leitura literal em que assenta, essencialmente, a pretensão da Requerente, conduziria, tal como afirma a Requerida, a que “na base do cálculo dos pagamentos por conta definida no n.º 1 do art. 105.º do Código do IRC, fossem incluídas as tributações autónomas”, já que aquela norma dispõe (tão lapidarmente como o artigo 90.º/2 do CIRC) que: “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

Ora, não estando tal em causa no caso sub iudice, pode-se especular que, seguramente, se, em coerência, a Requerente tivesse considerado que para efeitos do referido artigo 105.º/1 do CIRC aplicável se incluía a colecta das tributações autónomas, não deixaria de chamar a atenção para o facto de o ter feito, ou seja, de ter calculado pagamentos por conta que possa ter suportado com base, também, naquela colecta, salientando a consequente injustiça que seria ter estado a suportar tais pagamentos, considerando que o artigo 105.º/1 do CIRC abrangia a colecta de tributações autónomas, e não se interpretasse, paralelamente, o artigo 90.º/2 do mesmo diploma, da mesma forma.

Sendo – evidentemente – este um argumento inultrapassavelmente especulativo, e, como tal insusceptível de servir de base, de per si, a soluções juridicamente fundadas, tal não obsta a que seja um factor de ponderação, evidenciador, por um lado, da instabilidade estrutural da inserção das tributações autónomas em IRC, tal como foi operada, e, por outro, da interligação normativa e da abrangência de perspectiva sistemática imprescindível à valoração das soluções propostas para o problema jurídico a decidir.

Entende-se que sob uma perspectiva sistemática, a posição que se adopte relativamente à matéria decidenda, pelo menos se no sentido pugnado pela Requerente, e adoptado pela jurisprudência que sustenta aquela, não pode deixar de ter reflexo na posição que se adopte relativamente à interpretação do referido artigo 105.º/1 do CIRC, já que, como atrás se apontou, a literalidade dos regimes é, precisamente, a mesma.

                Assim, deste ponto de vista haverá que ponderar, independentemente do que tenha sido a prática quer da AT quer da Requerente, não só se faz sentido que a norma do artigo 105.º/1 do CIRC imponha que a colecta das tributações autónomas entre no cômputo do cálculo dos pagamentos por conta, como a circunstância, atrás apontada, de o STA se ter já pronunciado, no acórdão atrás citado, no sentido de que perante a “inexistência de lucro tributável (...[o]...) “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo”.

 

*

                No percurso hermenêutico em curso, haverá igualmente que considerar a norma do n.º 5 do artigo 90.º do CIRC aplicável em questão, que dispõe que:

“As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respectivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo”.

                Esta norma remete directamente para o artigo 6.º do mesmo Código, que prescreve, no que para o caso releva, que:

“1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;

b) Sociedades de profissionais;

c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público.(...)

3 - A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do acto constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.”

                Fundamental no enquadramento desta questão é ainda o teor do artigo 12.º do mesmo Código, que refere que:

“As sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas.”.

                Não sendo, também, o tema das entidades sujeitas a regime de transparência fiscal objecto da presente causa, sinteticamente sempre se dirá, desde logo, que da leitura literal em que assenta a pretensão da Requerente, ou seja, de que as tributações autónomas integram, sem limitações e para todos os efeitos, a colecta de IRC, sempre resultaria uma de duas situações, igualmente inaceitáveis, a saber:

-              que as entidades a que se refere o art.º 6.º, n.º 1 do CIRC, se vissem obrigadas a suportar duplamente os encargos com tributações autónomas: (i) uma vez na esfera da sociedade, nos termos do artigo 12.º do CIRC, que expressamente o prevê, e (ii) outra vez nos termos conjugados dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º do CIRC, que impõe que a “a matéria coletável, determinada nos termos deste Código” relativamente a tais entidades é imputada aos sócios;

-              ou que, assim, não sendo, ou seja, se por via de algum tipo de interpretação se restringisse a expressão “matéria coletável, determinada nos termos deste Código”, dela expurgando as tributações autónomas, da conjugação das supra transcritas normas do n.º 5 do artigo 90.º, do artigo 6.º e do artigo 12.º, com a interpretação sustentada pela Requerente para o n.º 1 do artigo 90.º, resultaria que os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal estariam impedidos, por via do referido artigo 90.º, n.º 5, de deduzir aos montantes liquidados a título de tributação autónoma, as deduções previstas no n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que estes últimos montantes seriam suportados pela sociedade, enquanto as deduções seriam apenas facultadas aos sócios, discriminando-se assim injustificadamente os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal, dos restantes, que, na tese da Requerente, teriam a faculdade de fazer operar as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º, aos montantes liquidados, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, a título de tributação autónoma.

Não se pode deixar de notar ainda que, as tributações autónomas são, elas próprias também, a par das sociedades fiscalmente transparentes, uma situação atípica em sede de impostos sobre o rendimento (incluindo o IRC).

Uma vez mais, estamos aqui numa perspectiva de ponderação das implicações no edifício normativo do IRC, das interpretações propostas para a(s) norma(s) aplicáveis à situação sub iudice, não se tratando, evidentemente, de um argumento estruturante, mas antes acessório da solução que se venha a desenhar.

 

*

                Aqui chegados, cumpre explorar um pouco mais os limites da literalidade das normas no epicentro do presente litígio – o artigo 90.º, n.º 1 e 2 do CIRC aplicável – e das repercussões da mesma no quadro mais amplo da relação entre o IRC tradicional, e as tributações autónomas nesse imposto.

                Conforme acima se expôs já, no conjunto das tributações autónomas, ainda que restrito às que integram o regime do IRC em sentido amplo, convergem várias situações de origem e teleologia díspares.

                Assim, sinteticamente e a título de exemplo, encontram-se tributações autónomas que visam, isolada ou concomitantemente, desincentivar determinados comportamentos economicamente desvaliosos (ex.: remunerações excessivas a gestores), tributar os chamados fringe benefits (ajudas de custo; despesas com viaturas), mitigar a repercussão fiscal de despesas de empresarialidade integral duvidosa (idem), desincentivar comportamentos com elevado potencial de fraude (pagamentos a entidades sujeitas a regime fiscal claramente mais favorável) ou penalizar comportamentos que fomentam a chamada economia paralela (tributação das despesas confidenciais), ou que são tidos pelo legislador como sumptuários.

                A literalidade da interpretação proposta pela Requerente miscigena, nas estreitas vistas da letra da lei, todas aquelas situações – porquanto todas elas se liquidarão nos termos do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC aplicável, daí decorrendo, necessariamente, que à colecta de todas elas, se aplicará a solução propugnada pela Requerente, ou seja, a todas elas – sem excepção perceptível nem, muito menos justificada ou, sequer, tanto quanto se concebe, justificável – seriam aplicáveis todas as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC em questão.

                Ora, já atrás, e em outras ocasiões, se apontou a vã glória de fechar, num conceito substantivo unitário, todas as tributações autónomas, mesmo as que apenas ocorrem no âmbito do IRC, atenta a sua disparidade teleológica e funcional. E, aqui, emerge uma das principais fragilidades do edifício argumentativo onde se aloja a posição da Requerente, subjacente também à jurisprudência arbitral por si citada: a de assentar num postulado de unicidade de IRC e de tributações autónomas, tomando o todo pela parte que, concretamente, integra a matéria decidenda, por um lado, e numa valoração exclusiva do tipo de dedução prevista no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, que concretamente está em causa no caso sub iudice.

                Ou seja: a posição sustentada pela Requerente, bem como aquelas que a corroboram, não cuidam em momento algum de enquadrar as valorações por si efectuadas e de validar a aplicação da interpretação por si proposta à integralidade das tributações autónomas e das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º aplicável, bem como de valorar as implicações da aplicação da tese em questão, a todas as deduções possíveis a todas as colectas de todas as tributações autónomas abstractamente abrangidas por tal tese, para além de como se apontou já, se absterem de apreciar, numa perspectiva mais ampla, as consequências sistemáticas do acolhimento da leitura essencialmente literal que propõem para a conjugação das normas do n.º 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC.

                A fenda no edifício fundamentador da posição da Requerente, bem como daquelas que a sustentam, abre-se assim, face a esta constatação, em duas direcções distintas: (i) por um lado, a leitura proposta pela Requerente para a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, não distingue, nem permite distinguir, entre tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis e outros tipos de tributação autónoma; (ii) por outro lado, da matéria de facto provada não resulta que as tributações autónomas em causa nos presentes autos não respeitem a tipos distintos de tributações autónomas, como por exemplo, tributações autónomas relativas a despesas não documentadas, a bónus e outras remunerações variáveis de gestores, administradores ou gerentes, ou a pagamentos a entidades sujeitas a um regime fiscal claramente mais favorável.

                Do quanto vem de se dizer resulta, desde logo que toda a argumentação relativamente à natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento das entidades sujeitas àquela, é insuficiente para a decisão da matéria sub iudice, porquanto, não se demonstra sequer que estejam exclusivamente em causa tributações autónomas onde se reconheçam as características em que aquela argumentação assenta.

                Tal visão, abriga em si, assim, o potencial de acoitar pretensões, em que se vise proceder a deduções nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, a tributações autónomas relativamente às quais não é válida a consideração da natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento das entidades sujeitas àquela, como as referidas, relativas a despesas confidenciais, pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados ou relativas a compensações por gestão.

                Ora, este tipo de resultado, não se poderá ter como querido por um legislador razoável, face a toda a sistemática do IRC em sentido amplo, incluindo as tributações autónomas. Efectivamente, não será sustentável que, tendo indo onde, juridicamente, o legislador do CIRC foi, tendo em vista, por exemplo, ao combate à economia paralela ou as transacções com os chamados (incorrectamente ) “paraísos fiscais”, fosse sua intenção que a respectiva carga de tributação autónoma, pudesse ser aligeirada por meio das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

 

*

                Dentro dos tópicos decisórios a considerar, caberá também fazer uma menção à entrada em vigor da redacção do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março), que veio dizer que:

“A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”

                Esta norma, é objecto do artigo 135.º da referida Lei que aprovou o OE de 2016, que refere que:

“A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”.

                Como é consabido, colocou-se a questão sobre se o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pelo OE 2016, tem (como a própria lei o diz), ou não, natureza interpretativa, bem como da constitucionalidade de tal natureza, sendo que tais questões ficaram ultrapassadas pelo Acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucional o referido artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março.

                Não obstante, a alteração legislativa em questão, continua a ter interesse para a matéria ora em causa, já que o legislador em sede de LOE 2016 optou por afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do Código do IRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC, confirmando que não existe qualquer obstáculo conceptual ou de princípio a que, por via interpretativa, se chegue a esse mesmo resultado.

                De resto, do próprio Código do IRC, na redacção vigente à data dos factos tributários, resultava já que o regime desse imposto pressupunha tal diferenciação ao nível do referido artigo 90.º, no sentido de que à colecta de tributações autónomas não era admissível, por princípio, qualquer dedução, resultando tal do disposto do n.º 12 do artigo 88.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7/11, que dispõe que:

“Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.”.

                A tributação autónoma em questão, salvo melhor opinião, deverá entender-se como sendo devida pela entidade que aufere os lucros, já que caso estivesse em causa a tributação autónoma da entidade que distribui lucros, nunca se colocaria a questão da dedução da retenção na fonte à colecta da tributação autónoma em causa, uma vez que, as retenções na fonte a que se reporta o art.º 90.º/2 do CIRC deverão ser consideradas retenções sobre rendimentos auferidos pela entidade devedora de IRC, e não de rendimentos pagos e retenções efectuados por esta, e, em todo caso, nunca se poria a questão da retenção na fonte sobre os lucros distribuídos ser deduzida à colecta (quer de IRC, quer de tributações autónomas), porquanto tal valor é retido à entidade isenta, não sendo, portanto, suportado pela entidade que distribui os lucros, e não sendo por isso, sempre salvo melhor opinião, a retenção na fonte susceptível de constituir qualquer penalização para a entidade que distribui os lucros.

Tal circunstância de a tributação autónoma ora em apreço se dever considerar devida pela entidade que aufere os lucros, e não pela que os distribui , não prejudicará a sua natureza de tributação autónoma, e será a tal colecta de tributação autónoma, liquidada e paga pela entidade isenta que não manteve as participações sociais por um ano, e que auferiu dividendos daquelas, que pode ser deduzida - excepcionalmente - o imposto retido na fonte, sendo, justamente, o sentido da previsão de que, nesse caso, o imposto retido não pode ser deduzido nos termos do artigo 90.º/2, a evidência de que as deduções previstas neste artigo não se aplicam à colecta de tributações autónomas, dado que se assim não fosse, a previsão do artigo 88.º/12 seria uma inutilidade num duplo sentido, uma vez que:

a.            a dedução do imposto retido na fonte à colecta da TA em causa, já decorria do referido art.º 90.º/2, pelo que não faria sentido afirmá-la no art.º 88.º/12;

b.            se o imposto retido na fonte fosse deduzido à colecta de TA, ao abrigo do art.º 90.º/2, nunca poderia ser deduzido duas vezes (pela mesma razão que não pode ser deduzido duas vezes à colecta de IRC), pelo que também a previsão do art.º 88.º/12 de que, deduzindo-se o imposto retido na fonte à colecta de TA não se pode deduzir o mesmo ao abrigo do art.º 90.º/2 seria, também ela, uma inutilidade.

                Assim, a referida norma, ao dispor que ao montante de imposto resultante da tributação autónoma, nas situações previstas no n.º 11, de 25% sobre os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção, pode ser deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, terá implícito o entendimento que, por regra, à colecta de tributações autónomas, não eram admissíveis deduções, designadamente as previstas no artigo 90.º/2 do CIRC, que previa já a possibilidade da dedução das retenções na fonte à colecta de IRC a que se referia o n.º 1 da mesma norma.

                Ou seja: se, como defende a Requerente e a jurisprudência em que se sustenta, já resultasse da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC que as retenções na fonte eram dedutíveis à colecta de tributações autónomas, incluindo a prevista no referido n.º 11, a norma do n.º 12 do artigo 88.º do CIRC, na parte em que permitia justamente tal dedução, era uma norma inútil, nada mais fazendo do que reafirmar, sem qualquer sentido, a regra geral.

                Mais: a norma em questão, do n.º 12 do artigo 88.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7/11, faz questão de afirmar que, caso seja operada a dedução das retenções na fonte ali em causa à tributação autónoma, não poderá “o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.”, evidenciando, crê-se, de forma suficientemente perceptível, que as deduções possíveis ao abrigo daquele referido artigo 90.º/2 não eram já aplicáveis à colecta resultante das tributações autónomas.

                Efectivamente, a 2.ª parte da norma do n.º 12.º do artigo 88.º em análise visa evitar uma duplicação de dedução das retenções na fonte por ela abrangidas, o que só faz sentido se se perspectivar, como se verá infra, que da aplicação da norma do artigo 90.º/1 do CIRC não resulta – ao contrário do que sustenta a Requerente – uma colecta monolítica de IRC, mas que a referida cisão entre a colecta das tributações autónomas em IRC e a colecta geral do IRC se mantinha naquela norma, e que o artigo 90.º/2 apenas se aplicava a esta última, e não àquela.

                A não ser assim, também esta segunda parte do artigo 88.º/12 do CIRC careceria por completo de sentido, já que se, no âmbito do artigo 90.º/1 do CIRC, a colecta das tributações autónomas em IRC se fundisse numa só colecta de IRC, como pretende a Requerente e defende a jurisprudência arbitral em que se louva, seria evidente que nunca poderia haver dupla dedução de retenções na fonte a uma mesma, e única, colecta.

                Ou seja, e em suma, a opção do legislador quanto à limitação ínsita na última parte do artigo 88.º, n.º 21 do CIRC, na redacção que lhe foi introduzida pela LOE 2016, estava já implícita no Código de tal imposto, ao nível do artigo 88.º/12, do qual resultava já, nos termos expostos que:

-              por norma, a colecta das tributações autónomas não admitia deduções; e

-              o artigo 90.º/2 do CIRC não era aplicável à colecta das tributações autónomas.

 

*

                Sumariando o quanto atrás se veio dizendo, verifica-se, desde logo, que a interpretação sustentada pela Requerente assenta, essencialmente, no teor literal das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, não se descortinando nenhum fundamento substancial que justifique a solução em causa, tanto mais que os argumentos em que assenta tal posição restringem-se, essencialmente, às tributações autónomas de encargos dedutíveis e às deduções (benefício CIFEI, PEC e CDTJI) sendo que, por um lado, nada se prova a respeito de, no caso concreto, estarem em causa apenas tributações autónomas daquele tipo (e não de outros), e, por outro, da interpretação proposta sempre decorreria que todas as deduções previstas no artigo 90.º, n.º 2 do CIRC em causa se fariam a todos os tipos de tributação autónomas, incluindo, por exemplo, as relativas a pagamentos a entidades sujeitas a regimes de tributação claramente mais favoráveis, as relativas a despesas confidenciais ou as compensações a gerentes, e nenhum dos argumentos substanciais em que assenta a posição da Requerente permite justificar que tal aconteça.

                Por outro lado, como se viu, se é certo que o artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão não distingue entre a liquidação de tributações autónomas e a liquidação de IRC tradicional ou stricto sensu (sobre o lucro tributável), a verdade é que, a montante, o procedimento e a natureza dos dois tipos de imposição tributária é substancialmente distinto, como se viu e conforme a jurisprudência constitucional na matéria dá abundante conta, situação à qual não se poderá, julga-se, deixar de atender na matéria sub iudice.

                Acresce que, como também se viu, a ratificação da interpretação que sustenta o petitório da Requerente, seria, a jusante, geradora de assinalável turbulência no edifício normativo do IRC, designadamente no que diz respeito aos regimes do pagamento especial por conta, e das sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal.

                Por fim, e como se acabou atrás de ver, ao nível do artigo 88.º/12 do CIRC aplicável, resultava já, nos termos expostos, que:

-              por norma, a colecta das tributações autónomas não admitia deduções; e

-              o artigo 90.º/2 do CIRC não era aplicável à colecta das tributações autónomas.

                Por tudo isto, julga-se que na estrita conjugação do texto das duas normas, o legislador disse mais do que aquilo que queria, situação que, de resto, resultou não de descuido coevo da redacção de tais normas, mas, antes, da evolução histórica do regime normativo do IRC e, concretamente, da paulatina introdução naquele do regime relativo às tributações autónomas, sem que o mesmo se reflectisse, coerentemente, no teor do artigo 90.º, n. 2 do mesmo Código.

                Este desacerto, aliás, é patente na norma do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que dispondo que não são “efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado” de tributações autónomas, não ressalva o n.º 12 do mesmo artigo que prevê, precisamente, a possibilidade de deduções à tributação autónoma a que se refere.

                Estamos, assim, perante uma situação descrita pelo Ilustre Mestre Prof. Doutor Baptista Machado, em que: “Por vezes, embora raramente, será preciso ir mais além e sacrificar, em obediência ainda ao pensamento legislativo, parte de uma fórmula normativa, ou até a totalidade da norma. Trata-se de fórmulas legislativas abortadas ou de verdadeiros lapsos. Quando a fórmula normativa é tão mal inspirada que nem sequer alude com clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, poderá falar-se de interpretação correctiva. O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador.” .

                Com efeito, a fórmula normativa do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, tomada à letra, como faz a Requerente, abrange hipóteses, como se viu, que decididamente não estão no espírito da lei nem são conformes às especificidades e natureza próprias das diversas tributações autónomas. No caso, como se referiu já, não por má inspiração da própria norma, mas das sucessivas reformas que historicamente foram introduzindo as tributações autónomas em IRC, sem que as mesmas se reflectissem, correspondentemente, na redacção do artigo 90.º, n.º 2 de tal Código.

                Por outro lado, sistematicamente encarada, tal fórmula, reduzida à sua literalidade, é geradora de graves e inultrapassáveis incoerências, como se viu, para além de, como também se viu, o CIRC aplicável ter já, na norma do n.º 12 do artigo 88.º, evidências literais de que a norma do artigo 90.º/2 do mesmo Código não seria, por regra, aplicável à colecta de tributações autónomas, realizada no n.º 1 do artigo.

                Deste modo, tendo em conta a compreensão racional, histórica e sistemática da norma em questão, torna-se forçoso interpretar correctivamente a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, de modo a restringir a remissão que faz para o n.º 1 da mesma norma, na referência que faz “Ao montante apurado nos termos do número anterior”, limitando-a ao montante da colecta de IRC calculada mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código, e já não aos montantes apurados a título de tributações autónomas, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redacção textual antes da introdução das tributações autónomas no CIRC.

                O Tribunal Constitucional, no seu recente Acórdão n.º 516/2020 , pronunciou-se no sentido de que a interpretação ora propugnada não enferma de qualquer inconstitucionalidade, afirmando que “a interpretação resultante da norma extraída da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, quando interpretada no sentido de afastar a dedução relativa a benefícios fiscais da coleta apurada em sede de tributações autónomas não ofende o invocado parâmetro do princípio da legalidade fiscal, nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa”, e que “a interpretação normativa ora atacada não distorce ou transfigura os elementos essenciais do imposto em causa ao arrepio da imposição constitucional consubstanciada no princípio da legalidade fiscal. Ao não contrariar a configuração dos correspondentes elementos essenciais, tal dimensão de não dedutibilidade não só não fere o sentido constitucional da legalidade fiscal, como pode ser justificada com base na coerência do próprio instituto das tributações autónomas e as finalidades que, com a sua consagração, o legislador legitimamente visa prosseguir.”.

                Também o STA, no seu Acórdão de 08-07-2020, proferido no processo 010/20.1BALSB, conclui já que “Para não frustrar os objectivos tributários prosseguidos com a tributação através de tributações autónomas não são admitidas deduções à respectiva colecta que não estejam expressamente previstas na lei, designadamente, está excluída a possibilidade de dedução dos montantes apurados a título do benefício fiscal SIFIDE II, aprovado pelo artigo 133.º da Lei n.º 55-A/2010.”, acrescentando, ainda, que “Esta interpretação normativo-legal dos preceitos tributários do CIRC e do Regime legal do SIFIDE II não foi alterada com a introdução do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC por efeito da aprovação da Lei n.º 7-A/2016.”.

                Admite-se, que se possa questionar a bondade da opção legislativa referida, implícita até à introdução do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, e a partir daí explícita, no que diz respeito à inadmissibilidade de outros tipos de dedução, para além da prevista no n.º 12.º do mesmo artigo 88.º, à colecta de outros tipos de tributação autónoma. Não obstante, julga-se que tal opção, agora expressa no referido artigo 88.º/21 do CIRC, se contém ainda dentro do espaço de discricionariedade legislativa, não ofendendo o conteúdo fundamental de qualquer preceito constitucional ao caso convocável.

                Face ao exposto, e julgando-se que, face ao direito aplicável ao facto tributário em questão na presente acção arbitral, não eram admissíveis as deduções, nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, à colecta de tributações autónomas efectuada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, deverá o pedido arbitral improceder.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, manter na ordem jurídica os actos tributários objecto da presente acção arbitral, absolvendo-se a Requerida do pedido e condenando-se a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 82.498,82, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Dezembro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Victor Calvete - Com declaração de voto de conformidade)

 

O Árbitro Vogal

(Luís Menezes Leitão - Com declaração de voto de vencido)

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Votei a decisão, embora reconheça – como, de resto, se escreve no seu texto – que “aceite o pressuposto – que ora se aceita – de que a liquidação das tributações autónomas se faz nos termos do n.º 1 do artigo 90.º transcrito, nenhum outro sentido é possível retirar da letra da lei, que não a apresentada pela Requerente, e por toda a jurisprudência arbitral em que se abona.”

Em contrapartida, toda a argumentação mobilizada para chegar a conclusão diversa, dando razão à Requerida, me parece teleológica e sistematicamente correcta – incluindo na dispensa de convocar o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, para firmar retroactivamente essa interpretação (sobre este ponto, v. O Bom, o Mau e o Vilão - Interpretação autêntica, “interpretação autêntica” de 2.º grau e a jurisprudência fiscal, Gestlegal, Coimbra, 2019).

O que me suscita esta declaração de voto, porém, é a lamentável distância entre uma coisa (a evidência prima facie da lei) e outra (o seu sentido “reconstruído”), não me convencendo o argumento, usado recentemente no Acórdão n.º 182/2020 do Tribunal Constitucional, de que a tarefa de vencer essa distância em normas de conduta – repito: em normas de conduta

“cabe, por definição, aos tribunais, aos quais a Constituição atribui a autoridade para, «através de decisões juridicamente fundamentadas e no termo de um processo de partes com igualdade de armas» (Acórdão n.º 395/2017), corrigir, sendo caso disso, a letra da lei, sempre que tal correção não signifique mais do que uma obediência pensante ou inteligente à norma.”

Entendo, pessoalmente, que essa disponibilidade do aplicador da lei para corrigir o sentido das normas desresponsabiliza o legislador (e, por essa via, altera a distribuição de poderes), suscita insegurança geral, gera desigualdade nos destinatários das normas consoante se conformam ou não com o sentido que lhe daria um destinatário normal, e é fonte de litigiosidade acrescida e custos escusados, estando ainda na origem da irritação da AT (se é que não do próprio legislador) com invocadas “teses peregrinas” – como invariavelmente são rotuladas as interpretação menos caridosas das insuficiências da lei.

Não obstante – ou justamente por isso –, entendo dever, em princípio, seguir a jurisprudência estabilizada e, ou, as indicações dos Tribunais Superiores que permitam uniformizar entendimentos (mesmo quando se afastam daquilo que um destinatário normal, colocado na posição do real destinatário, poderia deduzir do teor literal dos preceitos interpretados).

Tendo de presumir que a interpretação teleológica assumida pelo STA no acórdão uniformizador citado na decisão (proc. 010/20.1BALSB: “partindo desta compreensão interpretativa geral das tributações autónomas, que este Supremo Tribunal Administrativo continua a sufragar, admitir que as deduções que não podem ser efectuadas à colecta de IRC por ausência ou insuficiência desta pudessem ser deduzidas à colecta das tributações autónomas, seria frustrar a razão de ser desta categoria tributária autónoma.”) possa ser reiterada em matéria de Pagamento Especial por Conta, pareceu-me dever aderir à demonstração de que, minuciosamente vistas as coisas, a norma do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (no quadro legal em vigor à data das liquidações impugnadas) não admitia deduções de pagamentos especiais por conta à colecta de tributações autónomas.  

 

O Árbitro Vogal

(Victor Calvete)

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Vencido, em conformidade com o acórdão do CAAD 223/2018-T, que subscrevi, porque entendo que, sendo a liquidação do IRC única, nos termos do art. 90º CIRC, não existia, na data do período de tributação em causa, relativo aos exercícios de 2013 e 2014, possibilidade de estabelecer distinções em relação às deduções à colecta do IRC, independentemente de esta ser ou não relativa às tributações autónomas.

Efectivamente, das normas dos artigos 90.º, n.º 2, alínea d), e 93.º, n.º 1, do CIRC resulta que as deduções relativas ao pagamento especial por conta incidem sobre o montante de imposto directamente apurado sobre o rendimento declarado, incluindo naturalmente os custos que sejam objecto de tributação autónoma.

A norma do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, na redacção introduzida pelo artigo 134.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, hoje art. 88º, nº 22, CIRC, após a alteração da Lei 2/2020, de 31 de Março, não é passível de aplicação retroactiva, apesar de a lei lhe ter conferido natureza interpretativa. Efectivamente, essa norma é claramente inconstitucional, sendo que a inconstitucionalidade da sua aplicação aos pagamentos especiais por conta relativa aos exercícios anteriores a 2016 já foi expressamente declarada pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão 267/2017, publicado no Diário da República n.º 133/2017, Série II de 12/7/2017.

O acórdão do STA, de 08/07/2020, proferido no processo 010/20.1BALSB, invocado na decisão que fez vencimento não se refere aos pagamentos especiais por conta e em nada permite contrariar a douta decisão do Tribunal Constitucional sobre este assunto.

Por esse motivo, discordo da posição que fez vencimento, votando vencido o presente acórdão.

 

O Árbitro Vogal

(Luís Menezes Leitão)