Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 572/2020-T
Data da decisão: 2021-09-14  IVA  
Valor do pedido: € 624.160,02
Tema: IVA. Sujeitos passivos mistos. Locação financeira e ALD. Afectação real e pro rata. Percentagem. Ofício circulado 30108, de 30.01.2009.
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ACÓRDÃO

 

SUMÁRIO:  I - O disposto no artigo 23º-2, do CIVA,  permite que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação e reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.  II - O Ofício Circulado da Administração Fiscal nº 30 108, de 30-1-2009 que concretiza a citada imposição de condições especiais, não viola os princípios da legalidade e da reserva da Lei.

 

RELATÓRIO

 

A….., S.A., pessoa coletiva n.º ………, com sede no Edifício …….., Avenida ……….., …….., 1990-…. Lisboa, veio, em 26 de outubro de 2020, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante RJAT) e da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição do tribunal arbitral.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 19 de janeiro de 2021.

 

O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente n.º 3……………, decisão, com a qual não se conforma, e por objeto mediato as liquidações de IVA relativas aos períodos tributários de dezembro de 2018 e de dezembro de 2019, consubstanciados nas declarações periódicas n.º 1………….. e n.º 1……………, e, bem assim, nas liquidações resultantes das declarações periódicas n.º 1……………, n.º 1…………., n.º 1…………., n.º 1…………., n.º 1……………, n.º 1……………, n.º 1……………, n.º 1………….., n.º 1…………, n.º 1…………….., n.º 1………………, n.º 1………………, n.º 1……………., n.º 1………………., n.º 1…………………, n.º 1…………………., n.º 1…………….., n.º 1……………., n.º 1……………, n.º 1…………….., n.º 1……………, e n.º 1………………, atos cuja anulação pretende, por ilegais.

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA respondeu, defendendo-se por impugnação, a 3 de maio de 2021, mas não juntou o processo administrativo.

A inquirição da testemunha arrolada pela Requerente teve lugar no dia 07-06-2021, pelas 10h15, na sede do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, na Av. Duque de Loulé, n.º 72-A, em Lisboa e via CISCO WEBEX MEETINGS.

O Tribunal notificou a Requerente e a Requerida para, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 20 dias e, em cumprimento do disposto no artigo 18.º n.º 2.º do RJAT, designou até ao dia 20-09-2021 para o efeito de prolação da decisão arbitral. A audiência foi gravada e dela foi lavrada ata.

Requerente e Requerida apresentaram alegações escritas a 29 de junho de 2021.

 

SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

 

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

 

QUESTÕES DECIDENDAS

 

A questão a decidir no presente processo arbitral é fundamentalmente uma, embora se possa subdividir nas seguintes:

 

A - A imposição genérica da correção plasmada pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 ao método pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do Código do IVA carece de base legal e a imposição do coeficiente de imputação específico, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, apurada caso a caso, viola o direito da União Europeia, em concreto o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA?

B - O coeficiente de imputação específico consubstancia um critério objetivo passível de fundar a aplicação do método da afetação real, de acordo com o disposto no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA?

e, finalmente,

C - O regime de dedução do IVA proíbe a Administração Tributária de impor a aplicação da sua correção ao pro rata de dedução em casos, em que os gastos gerais são sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos aos seus clientes e não pela atividade isenta?

 

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

Resumidamente, a Requerente alega que é uma instituição financeira, que se dedica sobretudo (em cerca de 90%) ao financiamento no ramo automóvel, através da celebração de contratos de locação financeira (ou “leasing”), de aluguer de longa duração (ou “ALD”) e de crédito ao consumo e que, em sede de IVA, é, portanto, um sujeito passivo misto, com operações sujeitas e não isentas, que conferem direito à dedução do imposto suportado a montante (as operações de locação financeira e as operações de aluguer de longa duração); e (ii) operações isentas, que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante (as operações de crédito ao consumo).

Que, por essa razão, a Requerente apura o imposto dedutível com base no chamado método pro rata, que está consagrado para este efeito no artigo 23.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA e nos artigos 173.º e ss. da Diretiva IVA e que, nos períodos em crise, liquidou o imposto a entregar ao Estado (ou o crédito de imposto a reportar para os períodos seguintes, consoante os casos) de acordo com as instruções genéricas fixadas pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, que estabelece que, muito embora as rendas dos contratos de locação financeira sejam integralmente sujeitas a IVA, no cálculo da percentagem dedutível do IVA sobre os gastos comuns, os sujeitos passivos devem desconsiderar a parte dessas rendas que corresponde à amortização financeira, considerando apenas a parte relativa aos juros.

Em consequência, a Requerente apurou uma percentagem de dedução de apenas 11% para 2018 e de apenas 9% para 2019 – em vez das percentagens muito superiores de 57% para 2018 e de 53% para 2019 que a empresa teria aplicado se não tivesse cumprido as instruções da Administração Tributária, excluindo do pro rata a parte das rendas do leasing e do ALD relativa à amortização financeira.

A Requerente considera ilegais as instruções da AT, por violação do disposto no artigo 23.º do Código do IVA e nos artigos 173.º e ss. da Diretiva IVA.

A posição da Requerente é que a imposição, pela AT ao sujeito passivo, do método da afetação real, nos termos previstos no artigo 23.º, n.º 3 do Código do IVA, depende de a AT determinar que a utilização do método do pro rata conduz a distorções significativas na tributação.

 

Por outro lado, entende, o método da afetação real implica a aferição do imposto (parcialmente) dedutível com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos nas atividades/operações sujeitas a distintos regimes de IVA, com e sem direito à dedução.

 

Na sua opinião, relativamente a métodos de dedução, o Código do IVA prevê apenas dois métodos de dedução parcial, o pro rata e a afetação real, ainda que a Diretiva IVA permita que os Estados-Membros adotem outros métodos de dedução para além destes, nomeadamente, no caso do pro rata, que estipulem que determinadas verbas sejam, ou não, consideradas para cálculo da percentagem de dedução.

 

Porém, entende, o legislador português não transpôs para o Código do IVA o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), ou seja, a possibilidade de os Estados-Membros mitigarem o pro rata.

 

Sustenta que, no caso, a convocação do critério de imputação específico determinado pelo ponto 9 do citado  Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, resulta precisamente de não ser possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos “custos comuns”, circunstância que é reconhecida por diversa jurisprudência arbitral.

 

Pelo que tal critério não é um pro rata nos termos do artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, nem se qualifica como afetação real, para efeitos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, pois não é possível o recurso a critérios objetivos. Conclui que, assim, não tendo enquadramento quer nos n.ºs 1 e 4 (método pro rata), quer no n.º 2 do citado artigo 23.º do Código do IVA, configura um método que não está previsto na lei e a sua aplicação viola o disposto nos artigos 20.º e 23.º do Código do IVA.

 

Invoca em apoio da sua posição diversas decisões do CAAD e sobretudo o Acórdão do TJUE C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd, onde foi julgado que sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.

 

Nas suas alegações, a Requerente considera que se deve considerar provado que não é um Banco, i.e., que o seu modelo de negócio assenta na sua relação com os retalhistas do setor automóvel (vendedores/revendedores), que são os seus canais de distribuição ou pontos de venda, e não no modelo tradicional dos Bancos e que os seus custos são sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos locados aos clientes, quer na vertente de relação com os retalhistas do setor automóvel, quer na vertente de análise de risco. No mais, reiterou o já afirmado no pedido de pronúncia arbitral.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

Sumariamente, a Administração Tributária considera que as instruções vertidas no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 não são ilegais e são obrigatoriamente aplicáveis ao cálculo do IVA dedutível da Requerente, por força do disposto no artigo 23, n.º 3, alínea b), do Código do IVA, que permite à Administração Tributária afastar a aplicação do regime de pro rata quando o mesmo conduza a distorções significativas no apuramento do imposto a deduzir e pugna pelo indeferimento do pedido de pronúncia arbitral.

No seu entender, o artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA confere à AT o poder de obrigar o sujeito passivo a adotar o método previsto no Ofício-circulado n.º 30108, tendo em vista afastar distorções significativas na tributação.

Para a AT, o coeficiente de imputação específico é o único adequado, salvaguarda a neutralidade e está de acordo como as normas de direito europeu, nomeadamente os artigos 173.º a 175.º da Diretiva IVA, e de direito interno (artigos 16.º e 23.º do Código do IVA).

Sustenta que a renda de locação financeira mobiliária decompõe-se em duas partes, uma correspondente ao capital ou amortização financeira que traduz o “reembolso da quantia emprestada” (quantia que constitui o preço de aquisição do bem dado em locação), outra de juros e encargos, que constitui a remuneração do locador, pelo que, tendo o locador, no momento de aquisição do bem objeto da locação, exercido o direito à dedução integral do IVA que onerou essa aquisição, por via do método da imputação direta, deve ser expurgado do cálculo da percentagem de dedução a parte da renda que corresponde ao valor de amortização financeira, pois esta consubstancia a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado.

Deste modo, entende, é apenas o diferencial (genericamente de juros) que se encontra conexo com a aquisição de recursos de utilização mista (indistintamente em operações com e sem direito à dedução) e entendimento diverso permitiria um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido nos inputs de utilização mista;

Invoca em abono da sua posição o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais, C-183/13, de 10 de julho de 2014, e defende que a interpretação deste tribunal europeu vincula os tribunais nacionais, nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição;

Invoca, bem assim, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 052/19.0BALSB, de 4 de março de 2020, que vem confirmar que a norma do artigo 23.º, n.º 2  do Código do IVA reproduz, em substância, a regra da Sexta Diretiva (em vigor à data dos factos) que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços, em linha com a jurisprudência anterior daquele Supremo Tribunal (arestos proferidos nos processos n.º 081/13, de 4 de março de 2015, n.º 0970/13, de 3 de junho de 2015, n.º 01874/13, de 17 de junho de 2015, n.º 0330/14, de 27 de janeiro de 2016, e n.º 0485/17, de 15 de novembro de 2017, entre muitos outros) e uniformizada no recente Acórdão Uniformizador de 24 de março de 2021, no processo 87/20.0BALSB.

Desta forma, conclui, não ocorre violação do princípio da legalidade, da neutralidade e da reserva de lei, pois o artigo 23.º do Código do IVA determina expressamente nos seus n.ºs 3 e 2 que a AT pode impor condições especiais (incluindo um método pro rata mitigado), pelo que não só o conteúdo das normas que constam do Ofício-circulado é conforme ao direito (Diretiva IVA), como o seu estabelecimento através desse processo está de acordo com as instruções do legislador.

Mais defende que a utilização de bens e serviços de utilização mista por parte da Requerente não foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos locados. Em relação à disponibilização dos veículos locados, os inputs em que o locador incorre circunscrevem-se essencialmente à aquisição desses veículos e os restantes inputs que emergem na vigência do contrato de locação, decorrem das vicissitudes deste e situam-se ao nível do financiamento e da gestão do contrato e que todos os custos em que a Requerente incorre inerentes à gestão do contrato encontram-se refletidos na parte da renda que corresponde aos juros e que constitui a remuneração do locador.

A Requerida juntou alegações escritas sustentando que a Requerente não logrou provar que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da instituição bancária foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos, ponto fundamental sobre o qual, no seu entender, importava não só produzir prova, como demonstrar e quantificar através de elementos fidedignos que corroborassem que os inputs em que incorre com a disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira são predominantes em relação aos inputs gastos com o financiamento e gestão.

No mais, remeteu para tudo quanto alegado em sede de Resposta, que deu por integralmente reproduzida, chamando especialmente a atenção para a jurisprudência do STA que vem decidindo a favor da AT em questões similares e para a uniformização de jurisprudência pelo Acórdão proferido pelo STA a 24 de março de 2021 no processo nº 87/20.0BALSB.

 

MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

1.            A Requerente é uma instituição financeira, que se dedica sobretudo (em cerca de 90%) ao financiamento no ramo automóvel, através da celebração de contratos de locação financeira (ou “leasing”), de aluguer de longa duração (ou “ALD”) e de crédito ao consumo;

 

2.            A Requerente é, em sede de IVA, um sujeito passivo misto, com operações sujeitas e não isentas, que conferem direito à dedução do imposto suportado a montante (as operações de locação financeira e as operações de aluguer de longa duração); e (ii) operações isentas, que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante (as operações de crédito ao consumo);

 

3.            Entre 6 de março de 2018 e 10 de fevereiro de 2020, a Reclamante submeteu as suas declarações periódicas de IVA relativas aos períodos tributários de 2018 e de 2019, das quais resultou imposto a entregar ao Estado ou crédito de imposto a reportar consoante os casos;

 

4.            Naquelas declarações periódicas, a Requerente aplicou uma percentagem de dedução de IVA sobre os gastos comuns de 11% para 2018 e de 9% para 2019, cumprindo as instruções genéricas fixadas pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009;

 

5.            Todavia, por entender que a percentagem de dedução deveria ser de 57% para 2018 e de 53% para 2019, a de 9 Requerente, no dia 6 de março de 2020, apresentou à Administração Tributária uma Reclamação Graciosa, pedindo a anulação parcial daquelas liquidações de IVA relativas aos períodos de 2018 e de 2019;

 

6.            No dia 27 de julho de 2020, a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa (entretanto autuada com o n.º 3…………………), proferida pelo Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira;

 

Factos não provados

 

Não ficou provado:

- que utilização de bens ou serviços da instituição bancária requerente tenha sido sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos objeto dos contratos de leasing e ALD.

 

Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerentes e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta por ambas e analisada criticamente, sendo tal factualidade reforçada pelo depoimento da testemunha, B……, economista e director financeiro da Requerente.

 

Na verdade, esta testemunha, de forma convincente e qualificada, assegurou ao Tribunal que o “score business” da Requerente centra-se essencialmente nas operações de ALD e Leasing   (cerca de 90% da atividade) e só residualmente pratica operações de crédito ao consumo gerais ou tradicionais e daí que a não discriminação dos custos específicos na faturação, sendo que aqueles integram os custos gerais que, ulteriormente, são imputados a cada atividade (ALD e Leasing e mútuo geral) com base no pro rata.

Todavia não ficou demonstrado de forma segura e convincente,  que a aquisição e disponibilização dos veículos objeto dos contratos de leasing e ALD fosse a fonte principal dos custos e despesas no exercício da atividade mista da Requerente sendo que  (i) os gastos gerais se encontram englobados na taxa de juro que é suportada pelos clientes no pagamento da renda,   (ii) que o juro é calculado de forma a cobrir o risco, os custos diretos e indiretos e,  a sobrar uma parte para remunerar o Banco e para distribuição dos lucros aos accionistas, (iii) que as comissões que a Requerente cobra servem para remunerá-la de custos com pessoal e gastos gerais; (iv) que a Requerente emite uma fatura inicial com despesas de abertura/iniciais de contrato, após a celebração do contrato de locação financeira, em que é liquidado IVA, a suportar pelo cliente, com a nomenclatura de despesas administrativas e que tais despesas englobam os custos iniciais de contrato, incluindo com a disponibilização de veículos; e, finalmente,  (v) que, quando há atrasos no débito, a Requerente emite fatura, acrescida de IVA, com a nomenclatura de despesas por reenvio de débitos diretos por atraso de pagamento.

 

MATÉRIA DE DIREITO:

 

A - A imposição genérica da correção plasmada pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 ao método pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do Código do IVA carece de base legal e a imposição do coeficiente de imputação específico, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, apurada caso a caso, viola o direito da União Europeia, em concreto o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA?

 

Na perspetiva da Requerente, não se extrai do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, nem de qualquer norma de direito interno, suporte legal que conferisse à AT o poder de impor ao sujeito passivo um método de pro rata diferente do indicado no 23.º, n.º 4 do Código do IVA.

 

O tema de direito a decidir prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvem as atividades de leasing e ALD em simultâneo com as atividades de concessão de crédito e foi objeto de duas pronúncias no Tribunal de Justiça, nos processos Banco Mais, C-183/13, de 10 de julho de 2014, e Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de outubro de 2018, a que acresce o profuso debate na jurisprudência nacional da última década.

É assim considerável o lastro adquirido nesta matéria, pelo que as questões de direito suscitadas foram já aprofundadas e clarificadas pelo Tribunal de Justiça, no que respeita à interpretação do Direito da União Europeia, em concreto da Diretiva IVA, e pelo Supremo Tribunal Administrativo, em relação ao direito interno, destacando-se neste último caso dois importantes e recentes acórdãos do pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferidos nos processos n.ºs 084/19.8BALSB e 0101/19.1BALSB, de 24 de fevereiro de 2021 e de 20 de janeiro de 2021, respetivamente, todos no sentido da admissibilidade do critério de imputação específica consagrado no n.º 9 do Ofício-circulado n.º 30108, à luz do direito da União Europeia e da legislação nacional.

No que respeita ao Acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd, há que fazer notar que estava em causa uma sociedade financeira do Reino Unido – que também realizava operações de leasing automóvel –, mas cujo direito do Reino Unido, diferentemente do que acontece em Portugal, obrigava à desagregação das rendas de leasing em duas operações para efeitos de IVA.

 

A componente do juro estava isenta de imposto e apenas a componente da amortização era tributada, sendo que, a somar a isto, as autoridades fiscais locais também excluíam a componente de amortização do pro rata, por entenderem que os custos mistos estavam predominantemente associados à componente juro do financiamento, que era o cerne da actividade.

 

Assim, estando a componente de juros isenta enquanto operação de crédito, o método aplicado pelo Reino Unido tinha um resultado mais gravoso para os contribuintes e não tão rigoroso quanto o assumido a nível nacional, uma vez que, para o cálculo da percentagem de dedução, não eram tidas em conta as despesas com os bens e serviços repercutidos na componente juros.

 

O raciocínio do Acórdão Volkswagen não pode ser aplicado à situação em concreto porquanto o IVA incide sobre a totalidade da renda, abarcando a componente juro; componente essa que, de acordo com o Acórdão do TJUE C-183/13,  secundado pelo Acórdão Fundamento, constitui a contrapartida dos custos (bens e serviços) incorridos no financiamento e na gestão dos contratos de locação financeira suportados pelo locador financeiro, uma vez que constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel – ponto 34 do Acórdão TJUE C-183/134.

 

Diversamente, a jurisprudência arbitral que se pronunciou inicialmente sobre esta matéria propendia para a inadmissibilidade do mencionado critério de imputação específica, em linha com a argumentação da Requerente, por entender que se estaria perante um terceiro método, sem cabimento no artigo 23.º do Código do IVA, resultando, desse modo, violado o princípio da legalidade tributária.

 

Porém, na sequência dos acórdãos para uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de março de 2020,  no processo n.º 7/19, e assistiu-se a uma inflexão no sentido das decisões arbitrais, de que são exemplos as proferidas nos processos n.º 759/2019-T, de 5 de setembro de 2020, e n.º 927/2019-T, de 21 de setembro de 2020, concluindo-se, ao contrário da Requerente, que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno”.

Também o Acórdão do STA, já supramencionado, invocado pela Requerida, 24 de março de 2021, proferido no processo 87/20.0BALSB, que uniformiza jurisprudência no sentido de que:

“Nos termos do disposto no artº. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações (inputs promíscuos) através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”.

 

Na tese da Requerente, o artigo 23.º do Código do IVA só prevê dois métodos de dedução, o pro rata e a afetação real, constituindo o coeficiente de imputação específico um terceiro método, desprovido de base legal, pois, em seu entender, não constitui um critério objetivo que permita determinar o grau de utilização dos recursos mistos e, por essa razão, não tem assento no mencionado preceito, nem em qualquer outro previsto na lei interna. Assim, sem prejuízo de reconhecer que o artigo 173.º, n.º 2 alínea c) da Diretiva IVA contempla tal possibilidade, atribuindo essa prerrogativa aos Estados-Membros, sustenta que a norma comunitária não foi em parte transposta pelo legislador português, que não previu a possibilidade de um pro rata mitigado.

 

Afigura-se, todavia, que sem razão.

 

Desde logo, no processo C-183/13, o Tribunal de Justiça considerou que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA, correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Diretiva, posição que foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplos acórdãos. Neste âmbito, referimos, a título ilustrativo, além dos supracitados, os acórdãos de 29 de outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

 

Com efeito, o legislador português reproduziu no artigo 23.º do Código do IVA o essencial do regime de dedução parcial, i.e., aplicável aos recursos de utilização mista, previsto nos artigos 173.º a 175.º da Diretiva IVA.

 

Tal como na Diretiva, o método do pro rata é consagrado como método supletivo de dedução do IVA (artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código). Alternativamente, os sujeitos passivos podem optar pelo método da afetação real, sem prejuízo de a AT poder “impor condições especiais ou [] fazer cessar esse procedimento” se verificar que o mesmo provoca ou pode provocar [em função dos critérios objetivos empregues] distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 2 do Código). Por fim, pode ser a própria AT a impor a afetação real em detrimento do pro rata quando o sujeito passivo exerça atividades distintas ou este método seja passível de causar distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 3 do Código).

 

Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça C-183/13, inexistindo na Diretiva regras que concretizem o método da afetação real, cabe aos Estados-Membros estabelecê-las, tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida diretiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas”. Importa, para tanto, ter em conta as características específicas próprias às atividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução .

 

Declara a este propósito o recente acórdão (Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 084/19.8BALSB) que a norma do artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “ao permitir que a AT imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA”, que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou parte dos bens ou serviços, nos exatos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA.

 

Assim, não se verifica o vício de ilegalidade abstrata que a Requerente sindica em relação ao ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, que funda a autoliquidação controvertida, esclarecendo o acórdão, também daquele Supremo Tribunal (Pleno), no processo n.º 101/19.1BALSB, que a expressão «afetação real» empregue pelo artigo 23.º do Código do IVA corresponde à expressão «utilização» adotada na Sexta Diretiva, a qual, “por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efetivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (cit. José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, in «Desfazendo  mal-entendidos em matéria do direito à dedução…», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, número 1, pág. 50). Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «…com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito»”.

 

E agora, acrescentamos nós, menos dúvidas existirão, pois, a própria Diretiva passou a mencionar, em vez da expressão «utilização», outra coincidente com a empregue no Código do IVA: a “afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”.

 

Seguindo ainda este aresto, “[a] questão que ficava era a de saber se o método previsto no ponto 9 do ofício circulado n.º 30108 [...] era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efetiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Diretiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.

 

E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.

 

Desde que fosse apurado que a utilização de bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira (parágrafo 33 do acórdão). […].

 

Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redação do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.

 

Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária”.

 

Sobre a alegação de que um pro rata mitigado não constitui um método de afetação real, que a aqui Requerente também aduz, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que não é assim, porque não existe apenas uma forma de proceder à afetação de bens e serviços. “A confirmar que o sistema de afetação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da atividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito, segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução.

 

Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.”

 

E conclui que, sob este prisma, as referências à violação do princípio da legalidade e da reserva de lei não têm cabimento.

 

Posição que, pelas razões acima expostas, aqui se acompanha.

 

SÉRGIO VASQUES vai mais além e conclui que “aquilo que, no contexto do sistema IVA, consubstancia o método da afetação real, é questão que não está na disponibilidade dos tribunais nacionais determinar.”, numa remissão implícita para a competência do Tribunal de Justiça para dirimir tal questão, conforme este a exerceu no caso Banco Mais  .

 

B - O coeficiente de imputação específico consubstancia um critério objetivo passível de fundar a aplicação do método da afetação real, de acordo com o disposto no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA?

 

Assente o pressuposto de que o critério de imputação específica é enquadrável no método da afetação real, uma segunda questão que daí deriva prende-se com saber se esse método constitui um critério objetivo e é ajustado, no sentido de constituir “uma modalidade do cálculo de dedução que reflita objetivamente a parte real das despesas efetuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.”

 

Com efeito, de acordo com o Tribunal de Justiça, importa que o critério adotado seja mais preciso do que o resultante do método residual do pro rata, considerando as especificidades do sujeito passivo, o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais.

 

Neste âmbito, o citado Ofício-circulado n.º 30108 invoca que se trata de um método menos suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação. O que, de uma forma geral, é uma asserção válida, atentas as características-padrão da atividade de locação financeira.

 

De facto, a remuneração da atividade de leasing e ALD, apesar de juridicamente configurada como uma renda unitária, do ponto de vista económico corresponde tendencialmente a apenas uma das duas componentes compreendidas nesta renda, “os juros e outros encargos”, o que é refletido no tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16, que as equipara às operações de financiamento ou concessão de crédito.

 

O valor do capital que é “amortizado” (no sentido de reembolsado ou pago), representa o valor do bem escolhido pelo locatário e que a este foi cedido. Ou seja, quando essa quantia é paga pelo locatário, nomeadamente via rendas, não constitui a remuneração da atividade do locador, mas o pagamento parcelar do custo de aquisição do bem locado, in casu, viaturas automóveis, ou, dito de outro modo, o reembolso gradual e progressivo do preço da viatura que findo o contrato, e se este se executar e desenvolver dentro da normalidade, passará para a esfera jurídica do locatário.

 

Assim, a atividade do locador, que disponibiliza a viatura ao locatário porque despendeu os meios financeiros para o efeito, é remunerada pela componente da renda, aqui denominada de “juros e outros encargos”, que excede o valor do reembolso do capital usado para adquirir a viatura.

 

Do ponto de vista do IVA, o valor do imposto liquidado na renda (output) referente à componente de reembolso do capital (originariamente usado para adquirir a viatura) está afeto por imputação direta, à dedução, na sua esfera, do IVA incorrido na aquisição dessa viatura (input). O valor do capital debitado ao locatário e do IVA liquidado corresponderá ao do custo de aquisição da viatura e do respetivo IVA deduzido, em virtude dessa imputação/afetação direta, e em razão de tal componente, não contemplar, à partida, qualquer margem para acomodar ou prever outros inputs, como os de utilização mista em causa nesta ação, nem o “lucro” da operação.

 

Deste modo, é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afeto ao input da viatura adquirida para locação) que, em princípio, reflete a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representa, em regra, a (única) remuneração económica dos gastos da atividade de leasing e ALD, pois a outra, a do capital, esgota-se com o input da aquisição da viatura, não sobrando qualquer valor para imputar a outros gastos/inputs.

 

Assim sendo, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da atividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, em princípio, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação direta.

 

Caso contrário, estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da atividade geral, com juros e capital do leasing. Nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fração que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante atividade.

 

O método do pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela atividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstrato, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão direta com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante atividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.

 

Ao contrário do afirmado pela Requerente, o critério em análise é um critério de natureza objetiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objetivos comummente aceites e aplicados no método da afetação real, como o número de pessoas afetas às atividades, o número de horas homem incorridas, ou os metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objetivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso.

 

Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afetação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exata medida de consumo dos recursos por cada uma das atividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto não dedutível em imposto efetivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa).

 

C - O regime de dedução do IVA proíbe a Administração Tributária de impor a aplicação da sua correção ao pro rata de dedução em casos, em que os gastos gerais são sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos aos seus clientes e não pela atividade isenta?

 

No plano concreto, quanto a determinar se tal entendimento seria de afastar atentas as circunstâncias verificadas na esfera da Requerente, interessa notar que é a própria Requerente que afasta essa discussão, dizendo expressamente que a única questão (vício) que suscita e alega é de direito, pelo que não invoca quaisquer factos nesse pendor, nem ao tribunal, nesse caso, cabe indagar.

 

Aplica-se, neste contexto, o entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, reiterado nos dois recentes acórdãos do Pleno acima identificados (de 2021), de que quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamenta no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução.

 

Desta forma, caberia “ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.”

 

Prova que a Requerida não só não logrou fazer como foi, aliás, de algum modo contrariada pelo depoimento da testemunha inquirida.

 

EM CONCLUSÃO,

 

Pelos motivos expostos, julga-se não verificado o vício de ilegalidade alegado pela Requerente, em virtude de o critério de imputação específico consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 ter suporte legal no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA, sendo conforme ao direito da União Europeia, em concreto ao disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA e ao princípio da neutralidade fiscal. Conclui-se, assim, pela manutenção dos atos que constituem o objeto imediato e mediato do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Peticionou, por fim, a Requerente que, para além do reembolso da quantia que tinha sido voluntária e indevidamente paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

 

A este respeito dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Tendo-se determinado, nos presentes autos, que as liquidações em crise não estão viciadas por qualquer ilegalidade, fica prejudicada a apreciação do pedido de relativo aos juros indemnizatórios.

 

DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, acordam os árbitros deste Tribunal em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com as devidas e legais consequências.

 

* * *

 

Fixa-se o valor do processo em €624.160,02 (seiscentos e vinte e quatro mil e cento e sessenta euros e dois cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

O montante das custas é fixado em 9.180,00€ (nove mil cento e oitenta euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa e CAAD, aos 14 de setembro de dois mil e vinte e um.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

(Prof.ª Doutora Eva Dias Costa)

(Dra. Cristina Aragão Seia)

(Juiz José Poças Falcão - Presidente),

 

com a declaração de voto que segue:

                Mantendo embora e no essencial o entendimento que foi sustentado em casos análogos, por unanimidade,  nas decisões  dos Tribunais Arbitrais Coletivos a que presidi no âmbito do CAAD, designadamente nos processos nºs 311/2017-T e 498/2018-T , voto a presente decisão pelo dever imposto pelo artigo 8º, do Código Civil na consideração de que foram proferidos pelo STA em 4-3-2020 (Proc nº 07/19.4BALSB), 4-11-2020 (Proc 052/19.0BALSB) e 24-3-2021 (Proc 087/20.0BALSB) e publicados (www.dgsi.pt) acórdãos uniformizadores de Jurisprudência,  um deles (Processo nº 52/19.0BALSB) em sede de recurso interposto no citado processo arbitral nº 498/2018-T que, anulando a respetiva decisão arbitral,  sufragou, no essencial, a fundamentação que ora sustenta o presente acórdão e, designadamente, a legalidade do método previsto no ponto 9, do citado Ofício Circulado da Administração Tributária nº 30 108, de 30-1-2009.