Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 572/2019-T
Data da decisão: 2021-01-13  IRS  
Valor do pedido: € 30.227,98
Tema: IRS - Transparência fiscal - Agrupamento Europeu de Interesse Económico – Declaração de substituição – Ónus da prova
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Pedro Miguel Bastos Rosado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:  

 

I. Relatório

 

1. A..., contribuinte fiscal nº...., residente na Rua ..., nº ..., ..., ...-... ..., doravante designado por Requerente, apresentou, em 28 de agosto de 2019, pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade e a consequente anulação dos seguintes actos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS):

(i) Acto de liquidação de IRS n.º 2019..., de 2019-06-29, relativo a IRS do ano de 2015 (Demonstração de Liquidação de IRS - nº do documento 2019...), nos termos do qual resultou o valor a pagar de € 8.977,62;

(ii) Acto de liquidação de IRS n.º 2019..., de 2019-06-29, relativo a IRS do ano de 2016 (Demonstração de Liquidação de IRS - nº do documento 2019...), nos termos do qual resultou o valor a pagar de € 21.250,36, sendo Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada por Requerida ou AT.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 29 de agosto de 2019, e posteriormente notificado à AT.

 

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou, em 14 de outubro de 2019, o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo legal.

 

4. Em 14 de outubro de 2019, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 14 de novembro de 2019.

 

6. Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

6.1. Que “Em consequência das novas declarações de substituição apresentadas pelo B... e já validadas pela Autoridade Tributária, o lucro tributável do B... voltou a ser alterado, deixando agora de ser devido imposto em qualquer dos exercícios, uma vez que ficou refletido que o B...  nunca obteve os rendimentos em causa, nem foram realizados os serviços então contabilizados por recomendação da AT, conforme se pode verificar pela análise das declarações de substituição validadas “;

 

6.2. Que “Conforme fica claro dos Mod. 22 validados pela Autoridade Tributária, o lucro tributável no B... no ano de 2015 foi de € 9.312,10 (nove mil trezentos e doze euros e dez cêntimos) e no ano de 2016 foi de € 2.796,00 (dois mil setecentos e noventa e seis euros)”;

 

6.3. Que “não podem ser imputados ao Requerente os valores notificados nas demonstrações de liquidação de IRS referentes a 2015 e 2016 e, consequentemente, o imposto aí calculado”;

 

6.4. Que “A AT liquidou imposto com base na integração de lucros tributáveis resultantes de declarações Mod. 22 que já não se encontram vigentes à data, pelo que deve ser anulada por ilegal.”.

 

7. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta com documentos e remeteu o “processo administrativo” (adiante designado apenas por PA).

 

8. Na sua resposta, a AT defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

9. Ainda na sua Resposta, a AT invocou, em síntese, o seguinte:

 

9.1. Que “… pese embora submetidas e validadas (por não apresentarem erros), as declarações de substituição não se encontram vigentes, nem tão pouco liquidadas (…), não produzindo qualquer efeito na esfera nem da declarante, nem, naturalmente, do aqui A.”; 

 

9.2. Que “Os atos de liquidação em causa não padecem de ilegalidade”. 

 

10. Por despacho de 14 de maio de 2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi determinado que, restringindo-se a controvérsia a questões de direito, se afigurava, em consonância com o preceituado artigo 113.º, n.º 1, do CPPT, serem desnecessárias alegações e, como tal, foi a sua produção dispensada.

 

11. Dada a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a suspensão de prazos desde 9 de março de 2020 até 2 de junho de 2020, bem como a complexidade de algumas das questões a decidir, o Tribunal decidiu a prorrogação do prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do artº 21º nº 2 RJAT (Despachos de 13 de julho de 2020, de 14 de setembro de 2020 e de 13 de novembro de 2020).

 

II. Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

 

III. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Dão-se como provados os seguintes factos com potencial relevo para a decisão:

 

A)  Nos anos de 2015 e 2016, o Requerente era um dos membros do Agrupamento Europeu de Interesse Económico, com a denominação B..., AEIE, NIF ..., com uma participação de 33,33% (documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral – nomeadamente o doc. nº 4 e modelos 22 do B... - e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

B) O B... foi objeto de uma ação inspectiva ao abrigo das Ordens de Serviços números OI2018... e OI2018... da AT, para os exercícios de 2015 e 2016 (documento nº. 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

C) Na sequência da inspecção realizada, em 18 de outubro de 2018, o B... procedeu à entrega das declarações modelo 22 relativas aos exercícios de 2015 e 2016, com a inscrição do regime de transparência fiscal como regime de tributação os rendimentos, tendo declarado os valores de lucros tributáveis de 90.058,35 € no exercício de 2015 e de 171.139,75 € no exercício de 2016 (documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral – modelos 22 do B... e relatório de inspeção - e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

D) O Requerente foi notificado pela AT no dia 01.02.2019 pelo ofício número 3101, ao abrigo do artigo 59º da LGT, no âmbito do princípio da colaboração, para proceder à submissão das declarações de rendimentos modelo 3 de IRS, dos exercícios de 2015 e de 2016 (documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral – doc. nº 4 e anexos - e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

E) O Requerente não apresentou a suas declarações de IRS relativas aos exercícios de 2015 e 2016 (documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral – doc. nº 4 e anexos - e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

F) Em 18 de abril de 2019, o B... procedeu à entrega de novas declarações de substituição modelo 22, relativas aos exercícios de 2015 e 2016, com a inscrição do regime de transparência fiscal como regime de tributação os rendimentos, tendo declarado os valores de lucros tributáveis de 9.312,10 € no exercício de 2015 e de 2.796,00 € no exercício de 2016 (documentos nºs 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

G) No sistema informático da AT, Consulta de IRC – Declarações, as novas declarações de substituição entregues pelo B... surge registadas como “Doc. Não Liquidável” (documentos nºs 1 e 2 juntos com a Resposta, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

H) O Requerente foi notificado, em 30 de abril de 2019, pela AT do  projeto de correções do relatório de inspeção relativamente aos anos  de 2015 e de 2016 (documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral – doc. nº 4 e anexos - e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

I) Em 15 de Maio de 2019, o Requerente exerceu o seu direito de audição (documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral – doc. nº 4 e anexos - e processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

J) Relativamente ao ano de 2015, foi emitida e enviada ao Requerente a liquidação de IRS n.º 2019..., de 2019-06-29 (Demonstração de Liquidação de IRS - nº do documento 2019...), nos termos do qual resultou o valor a pagar de € 8.977,62 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

L) Relativamente ao ano de 2016, foi emitida e enviada ao Requerente a liquidação de IRS n.º 2019..., de 2019-06-29 (Demonstração de Liquidação de IRS - nº do documento 2019...), nos termos do qual resultou o valor a pagar de € 21.250,36 (documento n.º 2. junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

M) Em 28 de agosto de 2019, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2. Fundamentação da matéria de facto dada como provada

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, nos documentos juntos pela Requerida na Resposta e no processo administrativo, cuja autenticidade não foi colocada em causa. 

 

3. Factos não provados

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

IV. Matéria de Direito

 

1. Da legalidade das liquidações de IRS

 

1.1 Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

Que não podem ser imputados ao Requerente os valores notificados nas demonstrações de liquidação de IRS referentes a 2015 e 2016 e, consequentemente, o imposto aí calculado, uma vez que o B... apresentou declarações de substituição Modelo 22 de  IRC em que o lucro tributável foi no ano de 2015 de  € 9.312,10  e no ano de 2016 de  € 2.796,00, declarações estas que foram recebidas e estão validadas pela AT.

 

E que a AT liquidou imposto com base na integração de lucros tributáveis resultantes de declarações modelo 22 de IRC que já não se encontram vigentes à data.

 

Pelo que se está perante uma “errónea quantificação da matéria tributária”, que “constitui uma ilegalidade, in casu, um significativo desfasamento entre a verdade material dos factos, em concreto, da real quantificação dos rendimentos e lucros obtidos e os que foram contabilizados pela Autoridade Tributária, como tal, verifica-se uma evidente divergência na matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do ato administrativo, manifestado nas demonstrações de liquidação de IRS dos anos 2015 e 2016 notificadas ao Requerente.”

 

Na sua resposta, a AT defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e invocou, em síntese, que “em cumprimento destas disposições legais, o lucro tributável apurado nos exercícios de 2015 e 2016, nos montantes respectivamente, de 90.058,35 € e 171.139,75 € serão considerados lucros dos seus membros, repartidos entre si em partes iguais e tributados em conformidade, conforme anexos I e II ao Relatório Inspectivo.”, sendo que o B... “declarou precisamente, aqueles lucros” e “fê-lo, voluntariamente”.

 

E que das declarações que o B... apresentou, resultaram “liquidações válidas, eficazes, e vigentes no ordenamento jurídico”.

 

E que, as subsequentes declarações de substituiçao apresentadas pelo B...“pese embora submetidas e validadas (por não apresentarem erros), as declarações de substituição não se encontram vigentes, nem tão pouco liquidadas” (…) não produzindo qualquer efeito na esfera nem da declarante, nem, naturalmente, do aqui A.”.

 

Pelo que, conclui, os atos de liquidação em causa não padecem de ilegalidade, devendo ser mantidos.

 

1.2 Apreciação das questões suscitadas pelo Requerente

 

A questão essencial suscitada pelo Requerente prende-se, em suma, com a alegada ilegal imputação ao Requerente de 33,33% do lucro tributável do B..., conforme as primeiras declarações modelo 22 de IRC apresentadas voluntariamente pelo B... na sequência de uma ação de inspeção da AT, sendo que esta entidade entregou, posteriormente, novas declarações de substituição com a indicação de lucros tributários diversos.

 

Ou seja, saber se, tendo o B... apresentado novas declarações de substitução modelo 22 de IRC, as mesmas têm a virtualidade de alterar ou substituir, sem mais, as declarações de modelo 22 de IRC anteriormente apresentadas e que serviram de base à imputação dos lucros ao Requerente e, como tal, as primeiras declarações modelo 22 de IRC já não se encontrariam vigentes à data das liquidações de IRS aqui em crise.

 

                Vejamos:

 

O AEIE é uma figura do direito comunitário e foi criada pelo Regulamento (CEE) 2137/85 do Conselho, de 27 de Julho de 1985, com o mesmo objectivo de facilitar, desenvolver e rentabilizar a actividade económica dos seus membros, não sendo, igualmente, seu objectivo, realizar lucros para si.

 

Tal como nos ACE, a sua actividade deve ser complementar da dos seus membros.

 

Na lei portuguesa é o Decreto-Lei nº 148/90, de 9 de Maio que complementa a regulamentação do AEIE e no seu artigo 2º determina que o AEIE adquire personalidade jurídica com a inscrição definitiva da sua constituição no registo comercial.

 

Os lucros obtidos pelo agrupamento serão considerados como lucros dos membros e repartidos entre eles na proporção prevista no contrato de agrupamento ou, se omisso, em partes iguais.

 

Em consequência, a tributação destas entidades segue, portanto, as regras da transparência fiscal, pois, como dispõe o artº 40º do mencionado Regulamento “os lucros ou perdas resultantes da actividade do agrupamento só são tributáveis ao nível dos seus membros”.

 

O AEIE é uma estrutura flexível que permite aos seus participantes articularem uma parte das suas actividades económicas, mantendo, porém, a sua própria independência económica e jurídica.

 

A criação de um AEIE dá origem a uma entidade jurídica independente dotada de capacidade jurídica, cujo objectivo consiste em facilitar e desenvolver a actividade económica dos seus membros ou melhorar os resultados desta actividade.

 

Na parte que aqui interessa, dispõe o artigo 6º do IRC, sob a epígrafe “Transparência fiscal”, que:

 

1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:  

a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;

b) Sociedades de profissionais;

c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público. 

2 - Os lucros ou prejuízos do exercício, apurados nos termos deste Código, dos agrupamentos complementares de empresas e dos agrupamentos europeus de interesse económico, com sede ou direcção efectiva em território português, que se constituam e funcionem nos termos legais, são também imputáveis directamente aos respectivos membros, integrando-se no seu rendimento tributável.

3 - A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do acto constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.

 

Por seu turno, o artigo 20º do CIRS, sob a epígrafe “Imputação especial”, dispõe que:

 

1 - Constitui rendimento dos sócios ou membros das entidades referidas no artigo 6.º do Código do IRC, que sejam pessoas singulares, o resultante da imputação efetuada nos termos e condições dele constante ou, quando superior, as importâncias que, a título de adiantamento por conta de lucros, tenham sido pagas ou colocadas à disposição durante o ano em causa.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, as respetivas importâncias integram-se como rendimento líquido na categoria B.

 

Sobre a matéria das entidades sujeitas ao regime da transparência fiscal, escreve o Dr. Rui Morais, in «Apontamentos ao IRC», 2007, pag. 36, que: “7...] A incidência do IRC sobre os lucros (incluindo os distribuído aos sócios, no caso, pessoas físicas) faz com que aconteça uma dupla tributação económica, pois que os dividendos são considerados rendimento de capital, tributáveis em IRS na pessoa dos sócios.

Esta questão avulta estando em causa saciedades em que o elemento pessoal é dominante. A diferenciação económica entre a sociedade e os respectivos sócios esbate-se, sendo, portanto, menos clara a existência de diferentes capacidades contributivas. O “valor” da sociedade não resulta tanto do capital investido mas das pessoas dos sócios, os quais, em muitos casos, nela exercem a sua actividade profissional. O lucro dos sócios é, em larga medida, a remuneração do êxito do seu trabalho.

Inversamente, poderão ocorrer situação em que a interposição de uma sociedade pode resultar num economia de Imposto. A sociedade aparecerá, então, como uma estrutura forma que titula determinadas fontes geradoras de rendimento, “abrigando-os da tributação que aconteceria se auferidos directamente pelos s6cios, pelo menos durante o intervalo temporal até à sua distribuição a estes.

Ou seja, duas diferentes motivações - justiça fiscal ou prevenção de certas formas de elisão fiscal - podem ditar que se ignorem as consequências normais que, em termos de imposto, decorrem da personalidade jurídica das sociedades, que se consagre aquilo que, vulgarmente, é designado por transparência fiscal [...]”

 

Também o preâmbulo do Decreto-Lei nº 442-6/88, que aprova o CIRC, define como objetivo da consagração do regime de transparência fiscal no sentido de criar neutralidade, combate à evasão fiscal e eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos aos sócios/membros.

 

Ora, o regime da transparência fiscal aplicado aos AEIE assenta na bipartição do sujeito passivo, à qual vai corresponder uma desconsideração da personalidade jurídico tributária dos AEIE a que se aplica e na aplicação de técnicas especiais de tributação que, de forma abreviada, se podem enunciar da seguinte forma:

- Atribui-se a qualidade de sujeito passivo do imposto ao à entidade transparente (sujeito passivo instrumental);

- As entidades transparentes devem apurar o lucro tributável e/ou matéria coletável e cumprir as obrigações contabilísticas e declarativas que o CIRC impõe a todas as sociedades do regime geral associadas a esse apuramento, mas não são sujeitos passivos relativamente ao pagamento do IRC (Cf. artigo 12º do CIRC);

- Estabelece-se como sujeito passivo da obrigação de pagamento do imposto, resultante do lucro tributável apurado pela entidade transparente, os membros desta (sujeitos passivos efetivos);

- Imputa-se o lucro tributável apurado pela entidade transparente, de acordo com as disposições do regime regra de IRC, aos membros, respeitando o estabelecido no pacto social ou, se este nada estabelecer presumindo-se que a participação se faz em partes iguais (cf. artigo 6.º, n.º 3 do CIRC);

- O lucro tributável imputado é rendimento líquido (ou lucro/prejuízo) do membro (cf. artigo 20.º do CIRS e 20.º do CIRC);

- Os membros da entidade transparente são sujeitos passivos da obrigação de pagamento do imposto (IRS ou IRC) que corresponda ao lucro tributável que lhes foi imputada pela entidade transparente.

 

Em termos sintéticos, o regime tem por base o princípio da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, por razões pragmáticas que resultam da natureza das pessoas colectivas ou entidades abrangidas, nas quais, é o elemento pessoal e não o elemento capital que é determinante para a actividade económica desenvolvida, situação que é complementada com o mecanismo da imputação do rendimento gerado na entidade transparente aos seus membros, para que apenas estes sejam tributados (cf. os artigos 6.º, n.º 3 e 12.º do CIRC e 20.º do CIRS).

 

Nas pessoas coletivas ou entidades em causa, o principal objetivo é a facilitação do exercício da atividade dos sócios ou membros, pelo que faz sentido a desconsideração da forma jurídica e da personalidade tributária da pessoa coletiva ou entidade transparente, focando-se o legislador fiscal na substância organizacional ao tributar os membros como se exercessem diretamente a atividade.

 

Este regime da transparência fiscal impõe que a determinação do lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades tipificadas no artigo 6.º do CIRC, se faça segundo as regras gerais constantes do CIRC e aplicáveis a quem exerce uma atividade económica lucrativa e é residente em Portugal, por as incluir nas pessoas colectivas sujeitas a IRC

 

Todavia, ao retirar as entidades transparentes da sujeição ao pagamento de IRC, declarando-as isentas da obrigação de pagamento do imposto (cf. artigo 12.º do CIRC), o regime impõe que tais entidades imputem o locro tributável ou a matéria colectável nelas gerada e apurada a cada um dos seus sócios ou membros e que essa imputação se faça obrigatoriamente no exercício do seu apuramento (quando desse apuramento resulta matéria colectável de valor positivo).

 

Para além da imputação ter uma exigência relativa ao momento em que deve ser efectuada, tem outras relativas ao montante a imputar a cada sócio ou membro.

               

A entidade transparente é assim um centro de agregação de rendimentos dos membros que a compõem, e também de custos partilhados, necessários à obtenção dos rendimentos, pelo que o lucro tributável, que apura e imputa aos membros como rendimento líquido (cf. artigo 6º, n.º 3 do CIRC e 20º do IRS), foi apurada deduzindo esses custos comuns partilhados pelos seus membros.

 

É entendimento do Tribunal de que o B..., AEIE, NIF ..., é um Agrupamento Europeu de Interesse Económico e, como tal, sujeito ao regime da transparência fiscal nos termos das disposições legais atrás referidas.

 

Ao Tribunal também dúvidas não existem de que o Requerente era um dos membros do Agrupamento Europeu de Interesse Económico, com a denominação B..., AEIE, NIF..., com uma participação de 33,33%, não colhendo desde logo as alegações do Requerente nos artigos 22º, 23º e 24º do seu  PPA, pois é irrelevante, no âmbito do regime de transparência fiscal, que o Requerente tenha participado ou não na gestão e decisões do AEIE ou eventualmente não  exista qualquer registo de transferência da esfera do B... para a esfera pessoal do Requerente de pagamento de eventuais lucros auferidos. Com efeito, a imputação dos lucros do exercício é independente da sua efectiva distribuição.

 

                Assim sendo, não é, desde logo, ilegal a imputação do lucro do exercício declarado pelo B..., nas suas declarações modelo 22 de IRC, ao aqui Requerente, a título de rendimento da categoria B, pois tal é imposto pelas regras do regime da transparência fiscal.

 

Só assim poderá o regime de transparência fiscal cumprir os seus propósitos de neutralidade, assegurando a igualdade de tratamento fiscal entre membros de AEIE e profissionais independentes titulares de rendimentos da categoria B de IRS, bem como o combate à evasão fiscal.

 

Como se referiu antes, a questão essencial é saber se, tendo o B... apresentado novas declarações de substitução modelo 22 de IRC, as mesmas têm a virtualidade de alterar ou substituir, sem mais, as declarações de modelo 22 de IRC anteriormente apresentadas e que serviram de base à imputação dos lucros ao Requerente e, como tal, as primeiras declarações modelo 22 de IRC já não se encontrariam vigentes à data das liquidações de IRS aqui em crise.

 

Recorde-se que, como decorre da matéria de facto dada como provada, na sequência da inspecção realizada pela AT, em 18 de outubro de 2018, o B... procedeu à entrega das declarações modelo 22 relativas aos exercícios de 2015 e 2016, com a inscrição do regime de transparência fiscal como regime de tributação os rendimentos, tendo declarado os valores de lucros tributáveis de 90.058,35 € no exercício de 2015 e de 171.139,75 € no exercício de 2016.

 

E que, como decorre da matéria de facto dada como provada, em 18 de abril de 2019, o B... procedeu à entrega de novas declarações de substituição modelo 22, relativas aos exercícios de 2015 e 2016, com a inscrição do regime de transparência fiscal como regime de tributação os rendimentos, tendo declarado os valores de lucros tributáveis de apenas 9.312,10 € no exercício de 2015 e de apenas 2.796,00 € no exercício de 2016.

 

E que foi com base nas primeiras declarações modelo 22 de IRC que a AT imputou ao Requerente 33,33% do referido lucro, tendo por conseguinte emitido e notificado ao Requerente as liquidações de IRS aqui em crise.

 

Na parte que aqui interessa, dispõe o artigo 122º do IRC, sob a epígrafe “Declaração de substituição”, que:

 

1 - Quando tenha sido liquidado imposto inferior ao devido ou declarado prejuízo fiscal superior ao efectivo, pode ser apresentada declaração de substituição, ainda que fora do prazo legalmente estabelecido, e efectuado o pagamento do imposto em falta.

 

2 - A autoliquidação de que tenha resultado imposto superior ao devido ou prejuízo fiscal inferior ao efectivo pode ser corrigida por meio de declaração de substituição a apresentar no prazo de um ano a contar do termo do prazo legal.

 

As declarações de substituição tem por objetivo permitirem a correção dos valores apurados e declarados, por iniciativa do sujeito passivo, consubstanciando-se em regularizações voluntárias dos erros cometidos pelo contribuinte.

Para tal a lei impõe prazos e condições para tais declarações serem apresentadas, distinguindo: a) as situações em que tenha sido liquidado imposto inferior ao devido ou declarado prejuízo fiscal superior ao efetivo, pode ser apresentada fora do prazo legalmente estabelecido, e efetuado o pagamento do imposto em falta.; e b) as situações, em que tenha resultado imposto superior ao devido ou prejuízo fiscal inferior ao efetivo no prazo de um ano, a contar do termo do prazo legal.

Assim, a situação enquadrar-se-ia no n.º 2 do art.º 122º do CIRC, isto porque da apresentação das primeiras declarações modelo 22 do IRC teria resultado imposto superior ao devido, pelo que o prazo de apresentação seria de um ano a contar do termo do prazo legal.

 

Nos anos de 2015 e 2016, dispunha o artº 112º do CIRC (actualmente o artº 120º do CIRC) que a declaração periódica de rendimentos (commumente designada por modelo 22 do IRC) deve ser enviada, anualmente, por transmissão electrónica de dados, até ao último dia do mês de Maio, independentemente de esse dia ser útil ou não útil. (Redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 292/2009, de 13/10).

 

Tal significa que o termo do prazo legal para o envio da modelo 22 de IRC relativa ao ano de 2015 seria o último dia do mês de Maio de 2016 e que o termo do prazo legal para o envio da modelo 22 de IRC relativa ao ano de 2016 seria o último dia do mês de Maio de 2017.

 

Todas as declarações modelo 22 de IRC do B..., sejam a iniciais em 2018, se as novas de substituição em 2019, foram apresentadas manifestamente para além do prazo de um ano a contar do termo do prazo legal, previsto no número 2 do artigo 122º do CIRC.

 

Estabelece o artigo 75º da Lei Geral Tributária (LGT), sob a epígrafe “Declaração e outros elementos dos contribuintes”, que:

 

1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos. (Redação da Lei  n.º 80-C/2013 de 31 de Dezembro)

2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;

b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;

c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na presente lei.

d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A.

3 - A força probatória dos dados informáticos dos contribuintes depende, salvo o disposto em lei especial, do fornecimento da documentação relativa à sua análise, programação e execução e da possibilidade de a administração tributária os confirmar. (Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro)

 

Como foi decidido no Acórdão do STA de 4 de maio de 2016 (Proc. 0415/15)

“I - Contrariamente ao que sucede nos casos em que a declaração de rendimentos é apresentada nos termos previstos na lei – aí se incluindo o prazo legal para a sua apresentação, pois que os termos previstos na lei o incluem também -, a declaração de rendimentos tardiamente apresentada não beneficia da presunção de verdade estabelecida no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, sendo livremente valorada.

II - A entrega tardia da declaração de rendimentos não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação oficiosa da liquidação de IRC na medida da diferença para menos, como julgado, pois que os valores aí declarados, por si só, não se presumem verdadeiros.”

http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/75371b426bb7f59080257fab005476ac?OpenDocument&ExpandSection=1

 

Também no Acórdão do STA de 15 de Novembro de 2017 (Proc. 0544/16), pode ler-se que:

“Nem se argumente com a presunção de veracidade das declarações, prevista no art. 75.º do LGT, pois ela só vale relativamente às que tenham sido apresentadas «nos termos previsto na lei», o que implica o respeito pelos prazos legais fixados para o efeito (Neste sentido, o seguinte acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: - de 4 de Maio de 2016, proferido no processo n.º 415/15, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931 /75371b426bb7f59080257fab005476ac.).

http://www.taxfile.pt/file_bank/news4817_32_1.pdf

 

Assim, é também entendimento deste Tribunal que a mera apresentação da declaração de rendimentos de substituição fora do prazo legal, embora dentro do prazo de caducidade, não implica, per se, a substituição das declarações anteriores, desde logo, porque não goza da presunção de verdade declarativa, sendo livremente valorada.

 

Sendo que a livre valoração feita por este Tribunal não poderá deixar de ser contra as pretensões do Requerente.

 

Com efeito, a AT procedeu a uma inspeção tributária ao B..., na sequência da qual esta entidade procedeu à entrega voluntária das primeiras declarações modelo 22 de IRC.

 

Sendo certo que, posteriormente, o B... apresentou novas declarações de substituição contendo valores de lucros bastante inferiores, os quais, por si só, não se presumem verdadeiros.

 

Competia assim ao Requerente fazer prova de que os novos valores correspondiam à verdade, podendo ter recorrido à contabilidade da entidade e a outros meios de prova.

 

Sucede, porém, que o Requerente limitou-se a juntar as novas declarações de substituição e a alegar que “em consequência das novas declarações de substituição apresentadas pelo B... e já validadas pela Autoridade Tributária, o lucro tributável do B... voltou a ser alterado, deixando agora de ser devido imposto em qualquer dos exercícios, uma vez que ficou refletido que o  B...   nunca obteve  os  rendimentos  em causa, nem foram realizados os serviços então contabilizados por recomendação da AT, conforme se pode verificar pela análise das declarações de substituição validadas “, que ”conforme fica claro dos Mod. 22 validados pela Autoridade Tributária, o lucro tributável no B... no ano de 2015 foi de € 9.312,10 (nove mil trezentos e doze euros e dez cêntimos) e no ano de 2016 foi de € 2.796,00 (dois mil setecentos e noventa e seis euros)” e que a AT ”liquidou imposto com base na integração de lucros tributáveis resultantes de declarações Mod. 22 que já não se encontram vigentes à data, pelo que deve ser anulada por ilegal.”

 

Ou seja, no entender do Requerente bastaria a submissão e aceitação pelo sistema informático da AT das novas declarações de substituição para que as anteriores declarações apresentadas na sequência da inspeção tributária já não se encontrasse “vigentes”.

 

E nada mais, de substancial, alegou e provou, que permitisse ao Tribunal concluir que os novos valores do lucro de exercício do B... nos anos de 2015 e 2016 eram muitíssimo mais reduzidos (os constantes das novas declarações de substituição), depois de AT ter levado a cabo uma inspeção tributária que parece ter comprovado (se atentarmos às primeiras declarações voluntariamente apresentadas pelo B...) que tal não corresponderá à verdade.

 

Face à lei e à jurisprudência invocada, tal alegação e prova pertenciam-lhe.

 

Porém, dos autos não emerge qualquer prova relevante no sentido da pretensão do Requerente, nem o Requerente se propôs realizá-la, sendo insuficiente a junção das ulteriores modelos 22 de IRC do B... .

 

Diversamente do que parece decorrer da Resposta da AT, a questão essencial não é o facto de o seu sistema informático considerar as novas declarações de substituição como “não liquidáveis”, mas sim a valoração a dar às referidas declarações, nos termos da lei.

 

                Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, o Tribunal tem que concluir que os actos impugnados de IRS não enfermam de vício de violação de lei, por errónea quantificação dos lucros, devendo ser mantidos.

 

V.  Decisão

 

Em face do exposto, o Tribunal Arbitral decide:

 

a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

 

b) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos.

 

VI.  Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 30.227,98 (trinta mil duzentos e vinte e sete euros e noventa e oito cêntimos).

 

VII.  Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros) a cargo do Requerente.

 

Lisboa, 13 de janeiro de 2021

 

O Árbitro,

Pedro Miguel Bastos Rosado