Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 571/2021-T
Data da decisão: 2022-11-16  IRC  
Valor do pedido: € 782,40
Tema: Código do IRS – Artigo 72.º, do Código do IRS – arrendamento – aplicação da Lei no tempo
Versão em PDF

 

                                                           Decisão Arbitral

 

O árbitro Dr. Francisco Carvalho Furtado designado pelo Concelho Deontológico do CAAD, para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 17 de Novembro de 2021, decide o seguinte:

 

         1. Relatório

 

A…-, residente na Rua …, Braga (doravante designada como “Requerente”), contribuinte n.º …, notificado da decisão proferida sobre a reclamação graciosa n.º …, em que contestou a legalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2020 … veio ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação do antedito acto de liquidação de IRS e, bem assim, do despacho que recaiu sobre a reclamação graciosa.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 10 de Setembro de 2021.

O signatário comunicou a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.

Em 29 de Outubro de 2021, as Partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 17 de Novembro de 2021.

Em síntese o Requerente invoca que:

  1. O contrato de arrendamento, não obstante outorgado em Outubro de 2018 apenas produziu efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2019;
  2. Assim, tendo o contrato sido celebrado pelo prazo de 10 anos, é-lhe aplicável a redução de taxa prevista no artigo 72.º, n.º 4, do Código do IRS com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de Janeiro;
  3. A alteração ao artigo 72.º Código do IRS promovida pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, não é aplicável ao caso concreto por ser posterior à data de início dos efeitos do contrato de arrendamento;
  4. O disposto no artigo 330.º da Lei n.º 2/2020 de 31 de Março, que determina a natureza interpretativa da alteração ao artigo 72.º Código do IRS promovida pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, impõe uma situação de retroactividade que é proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa;
  5. Termina pedindo a anulação do acto de liquidação e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.

 

A AT em 31 de Janeiro de 2022 juntou aos autos o procedimento administrativo e apresentou a sua Resposta.

 

Em síntese a Requerida defende-se afirmando:

  1. Na data de assinatura do contrato de arrendamento – 10 de Outubro de 2018 -, a taxa de IRS aplicável e prevista no artigo 72.º do Código do IRS era de 28%;
  2. A redacção do artigo 72.º do Código do IRS introduzida pela Lei n.º 3/2019 aplicou-se a novos contratos de arrendamento e respectivas renovações contratuais bem como às renovações de contratos de arrendamento verificadas a partir de 1 de Janeiro de 2019;
  3. Uma vez que o contrato de arrendamento em causa foi assinado em 10 de Outubro de 2018, não pode ser considerado um contrato novo em 1 de Janeiro de 2019;
  4. De todo o modo, o benefício de redução de taxa apenas é aplicável aos contratos de arrendamento habitacional, conforme previsto pela redacção introduzida pela Lei n.º 119/2019;
  5. Norma essa que, atento o disposto no artigo 330.º, da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, tem natureza interpretativa;
  6. Termina referindo não se verificarem os pressupostos legais para aplicação da redução de taxa prevista no artigo 72.º do Código do IRS, devendo ser mantido o acto de liquidação em causa.

 

Não existindo diligências probatórias adicionais dado que ao requerente prescindiu da inquirição da testemunha que havia arrolado, em 26 de Janeiro de 2022 as Partes foram notificadas para, querendo, apresentarem as suas alegações.

Em 17 de Maio de 2022 a Requerida apresentou as suas alegações.

Em 18 de Maio de 2022 o Requerente apresentou as suas alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

 

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. O Requerente é usufrutuário do prédio urbano sito no Distrito do Porto, Concelho do Porto, União das Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória inscrito na respectiva matriz sob o artigo … (Doc. 1, junto ao Requerimento Inicial);
  2. O Requerente, em 10 de Outubro de 2018 celebrou contrato de arrendamento com B…, Lda. (Doc. 1, junto ao Requerimento Inicial);
  3. O arrendamento foi celebrado pelo prazo de dez anos com início em 1 de Janeiro de 2019 e fim em 31 de Dezembro de 2028 (Doc. 1, cláusula 3, junto ao Requerimento Inicial);
  4. Em 19 de Novembro de 2018, o Requerente apresentou a Declaração Modelo 2 de Imposto do Selo n.º … (processo administrativo instrutor);
  5. Em 29 de Maio de 2020, o Requerente apresentou a Declaração de Rendimentos de IRS relativa aos rendimentos auferidos em 2019, a que foi atribuído o número de identificação …, tendo declarado as rendas auferidas com o contrato mencionado em a) (Doc. 3, junto ao Requerimento Inicial);
  6. O Requerente foi notificado do acto de liquidação de IRS n.º 2020 … praticado pela Autoridade Tributária e Aduaneira por referência ao ano fiscal de 2019, e de que resulta o valor a pagar de € 17.590,74 (Doc. 4, junto ao Requerimento Inicial);
  7. O valor sujeito a tributação autónoma foi de € 31.683,66 (Doc. 4, junto ao Requerimento Inicial);
  8. Por ofício datado de 1 de Julho de 2021, o Requerente foi notificado do despacho do Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária, da Direcção de Finanças de …, nos termos do qual a reclamação graciosa apresentada contra o acto de liquidação de IRS n.º 2020 … foi indeferida (Doc. 6, junto ao Requerimento Inicial.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelo Requerente e no processo administrativo.

 

3. Matéria de direito

 

            3.1. A questão que é objecto do processo

 

Antes de mais, há que esclarecer que o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].

Por isso, os actos têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. ( [1] )

Assim, a questão decidenda no presente processo é a de saber:

  1. Um contrato de arrendamento não habitacional celebrado em 10 de Outubro de 2018 mas cujos efeitos se iniciam a 1 de Janeiro de 2019 é um contrato novo para efeitos de aplicação do artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de Janeiro?
  2. O artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro é aplicável ao caso concreto?
  3. A atribuição de natureza interpretativa ao artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, viola o princípio da não retroactividade da Lei fiscal?
  4. Estão verificados os pressupostos de reconhecimento do direito do Requerente, e correlativa condenação da Requerida, a juros indemnizatórios?

 

            3.2. Apreciação da questão

 

A primeira questão a apreciar é a de saber se o contrato de arrendamento, celebrado em 10 de Outubro de 2018 mas cujos efeitos apenas se iniciam em 1 de Janeiro de 2019 é um contrato novo, para efeitos da aplicação da redução de taxa prevista no artigo 72.º, do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de Janeiro.

 

De acordo com os cânones gerais de hermenêutica jurídica, designadamente em face do disposto no n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, aplicável na interpretação da lei fiscal ex vi n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” É, pois, este exercício interpretativo que importa, agora, promover.

 

Em primeiro lugar, a atentas as regras de exegese jurídica, importa atentar no elemento literal das normas relevantes e, desde logo, do artigo 72.º, do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2019, de 9 de Janeiro, e cujos efeitos se iniciam a 1 de Janeiro de 2019. Assim:

 

Previa a referida Lei:

Artigo 72.º

[...]

1 - ...

2 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração igual ou superior a dois anos e inferior a cinco anos, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

3 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento celebrados com duração igual ou superior a cinco anos e inferior a dez anos, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

4 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração igual ou superior a dez anos e inferior a 20 anos, é aplicada uma redução de catorze pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

5 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração superior a 20 anos, é aplicada uma redução de dezoito pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

6 - (Anterior n.º 2.)

7 - (Anterior n.º 3.)

8 - (Anterior n.º 4.)

9 - (Anterior n.º 5.)

10 - (Anterior n.º 6.)

11 - (Anterior n.º 7.)

12 - (Anterior n.º 8.)

13 - (Anterior n.º 9.)

14 - (Anterior n.º 10.)

15 - (Anterior n.º 11.)

16 - (Anterior n.º 12.)

17 - (Anterior n.º 13.)»

Artigo 3.º

Programas de construção para renda acessível

1 - O Governo, por portaria do membro do governo responsável pela área da habitação, define as rendas máximas a cobrar e restantes requisitos dos programas de construção de habitação para arrendamento acessível, independentemente do custo real da construção, que devam ser considerados como habitação a custos controlados para efeitos de determinação da taxa de IVA aplicável.

2 - Os programas de construção de habitação de renda acessível previstos no número anterior devem garantir a afetação dos imóveis a essa finalidade pelo prazo mínimo de 25 anos.

3 - Em caso de afetação dos imóveis a finalidade diferente dentro do prazo referido no número anterior, a entidade responsável pelo programa ou, em caso de concessão, o concessionário, são responsáveis pelo pagamento ao Estado dos valores correspondentes à redução de IVA liquidado resultantes da aplicação da taxa reduzida.

Artigo 4.º

Regulamentação

O Governo regulamenta, no prazo de 60 dias a partir da data de entrada em vigor da presente lei, os termos em que se verificam as reduções de taxa previstas nos n.os 2, 3, 4 e 5 do artigo 72.º CIRS, na redação conferida pela presente lei.

Artigo 5.º

Entrada em vigor, aplicação no tempo e produção de efeitos

1 - A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, produz efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019 e aplica-se a novos contratos de arrendamento e respetivas renovações contratuais, bem como às renovações dos contratos de arrendamento verificadas a partir de 1 de janeiro.

2 - No final de 2019, o Governo procede à reavaliação do regime fiscal estabelecido na presente lei, no sentido de apresentar à Assembleia da República as propostas de alteração que se justifiquem em função dos resultados da sua aplicação.

 

Do elemento literal do n.º 1 do artigo 5.º, da Lei n.º 3/2019, resulta que este regime se aplica a novos contratos de arrendamento. Importa, pois determinar o que são novos contratos, sendo certo que o legislador não se refere a contratos celebrados após 1 de Janeiro de 2019, o que resolveria a questão.

O princípio geral vigente no ordenamento jurídico nacional é o de liberdade contratual, previsto no artigo 405.º, do Código Civil, nos termos do qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos. No caso em apreço é indisputado que as partes pretenderam assegurar a assinatura do acordo em Outubro de 2018 mas, no exercício da sua liberdade contratual, postergaram o início dos efeitos para Janeiro de 2019. Assim é forçoso concluir que o feixe de direitos e obrigações emergentes da relação contratual concreta apenas se iniciou em 1 de Janeiro de 2019 designadamente a obrigação de pagamento da renda e correlativo direito a recebe-la como contrapartida de se proporcionar o gozo do prédio. Tanto assim é que o termo previsto para o mesmo é 31 de Dezembro de 2028 e não 9 de Outubro de 2028.

 

Em face do que se deixa referido conclui-se que, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica atendendo ao elemento literal da interpretação, mas também à unidade do sistema jurídico, o legislador pretendeu aplicar este regime aos contratos que iniciem a sua vigência a partir de 1 de Janeiro de 2019. Estamos, pois, perante um contrato novo.

 

A segunda questão a analisar prende-se com a aplicabilidade da alteração à Lei promovida pela pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, que restringe a aplicabilidade do regime aos contratos de arrendamento para habitação permanente.

 

É certo que o IRS é um imposto periódico (por contraposição aos impostos de obrigação única), na justa medida em que não se verifica numa única operação sendo antes o resultado de diversas operações ao longo de um lapso de tempo pré-determinado (o ano fiscal).

 

Assim, o IRS de 2019 compreende todas as operações relevantes realizadas entre 1 de Janeiro de 2019 e 31 de Dezembro do mesmo ano, conforme previsto no artigo 143.º, do Código do IRS.

Assim, aquando da entrada em vigor da redacção do artigo 72.º, do Código do IRS que decorre da Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, ainda não se havia verificado o facto tributário por referência ao ano fiscal de 2019. Perante tal enquadramento, é evidente que não estamos perante uma retroactividade de 1.º grau – a Lei nova pretende-se aplicar a factos que se verificaram por inteiro no âmbito da legislação antiga. Sendo que é esta retroactividade que é repudiada pelo n.º 3 do artigo 103º, da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, no caso concreto estamos perante a denominada retroactividade de 3.º grau em que os factos não se verificaram por inteiro no domínio da Lei antiga. Esta, embora não expressamente repudiada pelo n.º 3 do artigo 103.º, da Constituição da República Portuguesa suscita a questão de saber se na esfera do Contribuinte foram geradas expectativas em tal modo que os princípios da justiça e da certeza (cfr. artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária), impõe restrições na aplicação da Lei nova a factos passados. Parece-nos ser o caso.

É inegável que com a Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro houve uma alteração significativa do âmbito de aplicação do regime previsto no artigo 72.º do Código do IRS,

 

No caso concreto estamos perante um facto complexo de formação sucessiva, sendo o rendimento recebido em cada um dos meses que compõe o ano civil.

Nos termos do artigo 12.º, da Lei Geral Tributaria.

Artigo 12.º

Aplicação da lei tributária no tempo

1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer tributos retroativos. (Redação da Lei n.º 7/2021, de 26/02)​

2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

3 - As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.

4 - Não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.

 

A resposta à questão em apreço resulta do n.º 2 da supra citada disposição legal – a Lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor. A solução legal parece, pois, ser a da aplicação de pro rata temporis aplicando-se a Lei nova aos factos ocorridos no período após a sua entrada e vigor. Contudo, é preciso descortinar a que período é que se alude no n.º 2 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária: a) a parte do período em vigor posterior à entrada em vigor da Lei nova; ou, b) o novo período de tributação que se inicie posteriormente à entrada em vigor da nova Lei? Recorrendo aos elementos de hermenêutica jurídica, designadamente a unidade do sistema jurídico e os princípios estruturantes da certeza e justiça ínsitos nos artigos 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária, julgamos ser a segunda opção a mais correcta. Com efeito, a opção pela aplicação de uma multiplicidade de regimes num único período de tributação não só acarreta sérias dificuldades de aplicabilidade da norma, como frusta as legítimas expectativas que os contribuintes depositaram na Lei aplicável naquele concreto período de tributação quando tomaram as suas decisões económicas. Em face do que se deixa exposto, concluímos que a redacção do artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, resultante da Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, não é aplicável no caso concreto e ao ano de 2019.

 

Por fim, importa analisar as consequências de o artigo 330.º, da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, atribuir natureza interpretativa à redacção do artigo 72.º, do Código do IRS que decorre da Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro. Desde logo, em face da conclusão anterior de que tal redacção ser inaplicável ao caso concreto a questão perde importância.

No entanto, a verdade é que o Tribunal Constitucional tem julgado não conforme à constituição, designadamente o n.º 3, do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, as normas interpretativas em matéria tributária.

Neste sentido veja-se a decisão sumária n.º 631/2021, proferida no Processo n.º 679/2021:

§ 3.º – A proibição constitucional de impostos com natureza retroativa

8. No domínio fiscal rege, desde a revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição: ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa. Consequentemente, o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir nos impostos existentes modificações que, com efeitos retroativos, os agravem. Segundo a jurisprudência constitucional, retira-se daquele preceito uma proibição de estatuir consequências jurídicas novas que constituam ex novo ou agravem situações fiscais já definidas, nomeadamente o quantum devido a título de certo imposto e previamente definido em razão da verificação de todos os factos relevantes à luz do direito aplicável antes da estatuição das consequências jurídicas novas. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 128/2009:

«Decorre deste preceito constitucional, que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão “retroatividade” usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.

Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte, na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a jurisprudência do Tribunal.

As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas quando imposta a retroatividade em “termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes”. Desenvolvendo este critério, disse o Tribunal que a retroatividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse “de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afetados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram”.

[…]

Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroatividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjetiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objetiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroatividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objetividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt) .

Quer isto dizer que, atualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroatividade da lei fiscal, a mera natureza retractiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.»

Na verdade, o Tribunal Constitucional tem vindo a explicitar o enquadramento constitucional dos limites à repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas e a diferenciá-los em função da intensidade da projeção dos respetivos efeitos sobre a esfera jurídica das pessoas. Assim, na síntese do Acórdão n.º 575/2014:

«O Estado de direito é um estado de segurança jurídica. E a segurança exige que os cidadãos saibam com o que podem contar, sobretudo nas suas relações com os poderes públicos. Saber com o que se pode contar em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o legislador, de rever ou alterar, de acordo com as diferentes exigências históricas, opções outrora tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o passado.

A Constituição não proíbe, em geral, que as novas escolhas legislativas – tomadas pelo legislador ordinário no quadro da sua estrutural habilitação para rever opções antes tomadas por outros legisladores históricos – façam repercutir os seus efeitos sobre o passado. Mas, para além disso, não proíbe nem pode proibir genericamente que o legislador recorra a uma “técnica” de modelação da repercussão dos efeitos das suas escolhas em face da variabilidade dos graus de intensidade de que ela pode revestir. Na verdade, a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas pode assumir uma intensidade forte ou máxima, sempre que a lei nova faça repercutir os seus efeitos sobre factos pretéritos, praticados ao abrigo de lei anterior, redefinindo assim a sua disciplina jurídica. Mas pode também assumir uma intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio, sempre que a lei nova, pretendendo embora valer sobre o futuro, redefina a disciplina de relações jurídicas constituídas ao abrigo de um (diverso) Direito anterior. Neste último caso, designa-se este especial grau de repercussão dos efeitos das novas decisões legislativas como sendo de «retroatividade fraca, imprópria ou inautêntica», ou ainda, mais simplesmente, de «retrospetividade». Como quer que seja, e não sendo o recurso por parte do legislador a qualquer uma destas formas de retroação da eficácia dos seus atos genericamente proibida pela Constituição, a convocação legislativa de qualquer uma destas técnicas não deixa de colocar problemas constitucionais, face justamente ao imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de direito.

É, com efeito, evidente que a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas, qualquer que seja a forma ou o grau de que se revista, diminui ou fragiliza a faculdade, que os cidadãos de um Estado de direito devem ter, de poder saber com o que contam, nas relações que estabelecem com os órgãos de poder estadual. Precisamente por isso, a Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liberdade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3). A razão pela qual a Constituição exclui a possibilidade de existência de leis retroativas nesses casos reside precisamente na intensidade da condição de insegurança pessoal que do contrário resultaria no quadro de um Estado de direito democrático como é aquele que o artigo 2.º institui.»

No respeitante ao domínio fiscal, o Tribunal Constitucional entende que a proibição da retroatividade do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo por isso tão somente os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (assim, por exemplo, v. os Acórdãos n.ºs 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010; o caráter “absoluto” da proibição em apreço foi, todavia, questionado no Acórdão n.º 171/2017).  

 

9. A mencionada proibição constitucional tem implicações relativamente às leis interpretativas em matéria fiscal.

Como se explicou nos Acórdãos n.ºs 267/2017 e 395/2017, devido à integração da lei interpretativa na lei interpretada estatuída no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, a primeira é necessariamente retroativa, já que a mesma é considerada como “fazendo parte” da segunda.

Trata-se, evidentemente, de uma ficção temporal – a ficção de que um facto presente (a entrada em vigor da lei interpretativa) ocorreu no passado (a entrada em vigor da lei interpretada); e a retroatividade das normas interpretativas resulta dessa ficção (assim, v. o Acórdão n.º 395/2017).

Concretizando no que se refere à norma ora em apreciação (cfr. supra o n.º 7), o caráter interpretativo atribuído à determinação, em 2016, de uma associação necessária da isenção prevista em preceito vigente desde 2003 a certas garantias e operações financeiras, com exclusão de outras, implica que tal exclusão abranja também garantias prestadas e operações financeiras realizadas antes de 2016: ainda que as mesmas tenham sido consideradas isentas, e a menos que os efeitos de tal isenção se devam considerar salvaguardados nos termos da parte final do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil (v.g. por sentença transitada em julgado), tais garantias e operações passam a dever ser tributadas de acordo com o sentido legalmente fixado sobre o alcance da isenção.

Daí suscitar-se a questão da solvabilidade constitucional, designadamente à luz do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, das leis interpretativas que agravem situações fiscais anteriormente definidas em consequência da ocorrência do pertinente facto tributário.

 

§ 4.º – A inconstitucionalidade de leis interpretativas no âmbito de aplicação da

proibição da retroatividade fiscal (artigo 103.º, n.º 3, da Constituição)

10. A especificidade da lei interpretativa prende-se com a intenção e a força vinculante do próprio ato normativo: por contraposição à lei inovadora, aquela visa ou declara pretender fixar apenas o sentido correto de um ato normativo anterior. A mesma não pretende criar direito novo, antes tem como objetivo esclarecer o sentido “correto” do direito preexistente. «O órgão competente que cria uma lei (p. ex. a Assembleia da República) tem também a competência para a interpretar, modificar, suspender ou revogar» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 176). Está em causa, afinal, uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico do ato interpretando (cfr. idemibidem). E, por ser de valor igual a este último, a lei interpretativa determina-lhe o sentido para todos os efeitos, independentemente da correção hermenêutica de tal interpretação. Por isso, a interpretação da lei fixada pelo próprio legislador – a chamada “interpretação autêntica” – «vale com a força inerente à nova manifestação de vontade» do respetivo autor (cfr. Autor cit., ibidem, p. 177). Daí a aludida consequência de a lei interpretativa se integrar na lei interpretada (cfr. o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil).

Por isso mesmo, como se referiu no Acórdão n.º 267/2017, pode, de acordo com certa conceção,  falar-se de uma retroatividade meramente formal inerente a toda a lei – tida por “verdadeiramente” ou “genuinamente” – interpretativa: há retroatividade, porque tal lei se aplica a factos e situações anteriores, e a mesma retroatividade é “formal”, visto que a lei, «vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da [lei anterior – cujo sentido e alcance não se podiam ter como certos –] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 246). Com efeito, «a retroação [das leis interpretativas] justifica-se, além do mais, por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legítimas dos interessados. Estes podiam contar com a solução da [lei nova] interpretativa, visto ela corresponder a um dos vários sentidos atribuídos já pela doutrina e pela jurisprudência à [lei antiga]»: assim, é «de sua natureza interpretativa a lei que, sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adotado» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, pp. 286-287). 

Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior – qualificando-se já não como lei interpretativa, mas sim como lei inovadora –, será substancial ou materialmente retroativa (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito…, cit., p. 247).   

Nesta perspetiva, e tendo em conta a ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, relevará, então, que a lei verdadeiramente interpretativa é apenas formalmente retroativa, uma vez que se limita a declarar o direito preexistente; ao passo que a lei autoqualificada como interpretativa mas que em boa verdade seja inovadora se deva considerar como material ou substancialmente retroativa, porquanto, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.

Na verdade, pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Ora, uma lei que modifique o direito preexistente – o mesmo é dizer, que constitua direito novo – sob a capa de “lei interpretativa”, porque criadora de efeitos jurídicos novos para os respetivos destinatários, violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroativas; porém, a lei genuinamente interpretativa, porque se limite a declarar o direito que já vigora e com o qual os respetivos destinatários podem contar, não violará tal proibição, do mesmo modo que toda e qualquer interpretação jurídica, incluindo a feita pelos tribunais, também não pode considerar-se como produtora de efeitos jurídicos novos que frustrem «expectativas seguras e legitimamente fundadas».

 

11. Sucede que, do ponto de vista do direito constitucional, e no que se refere à interpretação da lei, não pode abstrair-se das diferenças orgânicas e funcionais entre legislador e julgador. É a relevância das mesmas, já salientada nos mencionados Acórdãos n.ºs 267/2017 e 395/2017, que cumpre aqui recordar e reiterar.

iurisdictio ou função de “dizer o direito” – de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-formais – compete constitucionalmente aos tribunais (cfr. o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, todavia, decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):

«Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional” – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“jurisdictio” como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem, anot. VI, p. 509).

Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados. Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/2013, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito […]».

Certo é que tal reserva não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma eventual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma (assim, v. o Acórdão n.º 267/2017). O conceito de lei interpretativa acolhe precisamente tal possibilidade. Porém, ao fazê-lo, o legislador tem de agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial. Mais: a lei que a si própria se qualifica como interpretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada.

Por isso mesmo, a atividade hermenêutica do legislador e dos juízes é essencialmente diferente, tornando-se necessário distinguir a interpretação legislativa da interpretação judicial, quer quanto ao seu fundamento, quer quanto ao seu processo (v. o Acórdão n.º 395/2017):

«Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fundamento a autoridade jurisdicional dos tribunais – ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis –, a interpretação legislativa baseia-se na autoridade política do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas – os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus – por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor.

É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpretação difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdicional – o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com fundamento no seu título constitucional para decidir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica.

Esta divergência de fundamento entre interpretação legislativa e judicial traduz-se – e aqui reside o segundo aspeto da distinção – nos diversos processos através das quais uma e a outra são geradas. Na verdade, o processo judicial e o legislativo são estruturados em função da natureza do poder que através deles se exerce. Em virtude da sua natureza jurisdicional, a interpretação judicial é realizada por tribunais compostos por juízes independentes e com formação técnica específica, no âmbito de pedidos de pronúncia sobre questões concretas relativas às situações jurídicas das partes, e através de decisões fundamentadas proferidas a partir de uma posição de imparcialidade. Já a interpretação legislativa, cujo fundamento é a autoridade política do legislador, reveste a forma de ato legislativo aprovado por um órgão com legitimidade democrática para tomar decisões políticas; o titular por excelência desse poder é a Assembleia da República, em que as leis são elaboradas, discutidas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo para decidirem os destinos da comunidade.»

Deste modo, a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis e, na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer” (v. o Acórdão n.º 267/2017). Daí que a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não possam deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei revista igualmente um caráter material ou substancial (v., de novo, os Acórdãos n.ºs 267/2017 e 395/2017)

Significa isto que a interpretação legislativa, por ter a natureza própria do poder de que emana, e independentemente da intenção declarada ou implícita na lei que a consagra, tem sempre subjacente um juízo formulado segundo critérios político-legislativos. Objetivamente, isto é, pela sua própria natureza, a lei interpretativa fixa o sentido que o legislador entende politicamente mais vantajoso (cfr. o Acórdão n.º 395/2017). A eventual coincidência entre o sentido fixado por tal lei e aquele que seja apurado por via da interpretação judicial da lei interpretada não é impossível, mas também não é necessária. Todavia, o que aqui releva é que os resultados da interpretação legal e da interpretação judicial são expressões de atividades constitucionalmente distintas e que, por conseguinte, também se regem por diferentes parâmetros constitucionais.

 

12. Segundo esta perspetiva, fundada na diferença constitucional entre a função legislativa e a função jurisdicional, não pode aceitar-se a ideia de que uma lei “genuinamente interpretativa” – porque se limita a consagrar um dos sentidos possíveis da lei interpretada – não seja lesiva das «expectativas seguras e legitimamente fundadas» dos seus destinatários e, por isso mesmo, caso trate de matéria fiscal, a respetiva retroatividade – tida como meramente “formal” – nem sequer esteja abrangida pela proibição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

Como se entendeu no Acórdão n.º 395/2017:

«Sem dúvida que os cidadãos destinatários das leis, designadamente de leis com uma vocação ablativa, não devem ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável; não existe, nem sequer nos domínios penal ou fiscal, um qualquer «princípio da interpretação mais favorável» ao cidadão. Mas têm a expectativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica – assim como, na eventualidade de se verificar um litígio, de recorrerem aos tribunais para que estes apreciem, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhes cabe, e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas, o mérito jurídico do seu ponto de vista no caso concreto. Por outras palavras, os destinatários das leis têm a expectativa legítima de que estas sejam objeto de uma interpretação jurídica, porque é nesses exatos termos — enquanto sujeitos de direito – que aquelas se lhes dirigem. Ao consagrarem um sentido por razões de ordem política — constitutivas e não declarativas de direito –, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariabilidade e justiciabilidade da sua relação com a lei.

Não é outro, segundo se crê, o alcance das seguintes palavras que constam do Acórdão n.º 172/2000:

“[A] vinculação interpretativa que [as] leis [interpretativas] comportam, ao tornar-se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos […] leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica.”»

Consequentemente, a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. 

 

E no Acórdão n.º 172/00, o Tribunal Constitucional decidiu que:

 

 Ora, os fundamentos de proibição da retroactividade respeitam à segurança dos cidadãos. Assim, tal segurança é afectada perante alterações legislativas que, no momento da prática ou ocorrência dos factos que os envolvem, nem poderiam ser previstas nem tinham que o ser. Mas tal segurança também é afectada onde o seja a vinculação do Estado pelo Direito que criou, através de alteração de situações já instituídas ou resolvidas anteriormente.

 

            Desta sorte, se é verdade que as leis autenticamente interpretativas, não abalam, verdadeiramente, as expectativas concretas anteriores dos destinatários das mesmas, no caso de a interpretação tornada vinculativa já ser conhecida e tiver sido mesmo aplicada (cf. sobre essa natureza das leis autenticamente interpretativas, BAPTISTA MACHADO, ob.cit., p. 247), todavia, mesmo nesses casos, a vinculação interpretativa que tais leis comportam, ao tornar‑se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos (como acontece na situação presente) leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica.

 

            Nesta medida, poder‑se‑à entender que a lei interpretativa, ainda que autêntica, ao pretender vigorar para o período anterior à sua emissão, nos termos do artigo 13º do Código Civil, altera o contexto de auto‑vinculação dos órgãos de aplicação do Direito ao Direito e, consequentemente, afecta a segurança dos destinatários das normas protegida por uma proibição (constitucional) de retroactividade. Haverá, consequentemente, nesta última situação, uma garantia de segurança mais forte inerente à proibição de retroactividade.

 

Ora, a proibição constitucional explícita de retroactividade em matéria fiscal não pode ser interpretada de modo que exclua o sentido forte anteriormente referido de protecção da segurança, ou seja restritivamente em termos semelhantes à jurisprudência anterior do Tribunal, como se não tivesse sido alterado o texto constitucional e apenas resultasse dos princípios gerais. Na expressa proibição de retroactividade não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto‑vinculação do Estado pelo Direito.

 

 

No caso em apreço, é evidente que a redacção do artigo 72.º, n.º 4, decorrente da Lei n.º n.º 119/2019, de 18 de Setembro, tem carácter inovador, não se limitando a interpretar a Lei anterior. Com efeito, é expressamente introduzida uma limitação à sua aplicação – apenas a contratos de arrendamento destinados à habitação permanente -, que não existia na redacção precedente da mesma disposição legal.

Conclui-se pois, também por este motivo pela inaplicabilidade do artigo 72.º, n.º 4 na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro por violação do princípio da proibição da retroactividade da Lei fiscal previsto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa

 

Conclui-se, pois, pela ilegalidade do acto de liquidação de IRS contestado, na parte em que aplica a taxa de IRS de 28% às rendas recebidas no âmbito do contrato de arrendamento celebrado em 18 de Outubro de 2018, por violação do disposto no artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS na redacção que lhe foi dada pelo Lei n.º 3/2019, de 9 de Janeiro, impondo-se a sua anulação, bem como do despacho do Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária, da Direcção de Finanças de …, nos termos do qual a reclamação graciosa apresentada contra o acto de liquidação de IRS n.º 2020 ….

 

Por fim, o Requerente pede o reembolso dos valores pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

 

O artigo 43.º da LGT dispõe que o contribuinte terá direito a ser ressarcido, através de juros indemnizatórios, sempre que o pagamento indevido de imposto seja imputável a erro dos serviços. “O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte (por exemplo, haverá anulação por erro imputável ao contribuinte quando a liquidação assentar em errados pressupostos de facto, mas o erro ter por base uma indicação errada na declaração que o contribuinte apresentou).” (Campos, Diogo Leite de; Rodrigues, Benjamim Silva, Sousa, Jorge Lopes de, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.º Ed. 2012 Encontro da Escrita, Lisboa, pág. 342).

 

Também o STA concretiza o conceito de erro imputável aos serviços (embora por referência ao artigo 78.º, da LGT, mas que aqui tem toda a aplicação) como qualquer ilegalidade independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram. “Como se refere no Ac. de 12/12/2001, rec. 26.233: «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços». Cfr., no mesmo sentido e por todos, os Acds. de 06/02/2002 rec. 26.690, 05/06/2002 rec. 392/02, 12/12/2001 rec. 26.233, 16/01/2002 rec. 26.391, 30/01/2002 rec. 26.231, 20/03/2002 rec. 26.580, 10/07/2002 rec. 26.668.” (cfr. Acórdão do STA – 2.ª Secção, proferido no Recurso n.º 1009/10, em 22 de Março de 2011, disponível em: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b1e7cc04381b03af802578620046b202?OpenDocument&ExpandSection=1).

 

No caso em apreço, o acto de liquidação de IRS é, no segmento contestado, ilegal, porque foi praticado com erro de direito e ofensa das normas e princípios jurídicos aplicáveis, sendo que tal erro não emerge de qualquer conduta do Requerente, pelo que é imputável aos Serviços.

 

Contudo, ao arrepio do que determina o artigo 74.º, da Lei Geral Tributária, o Requerente não fez prova nos autos de que pagou efectivamente o imposto que lhe foi liquidado.

 

Em face do exposto, improcede o pedido de condenação da Requerida no pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios.

 

4. Decisão

 

Nestes termos decide este Tribunal Arbitral em:

 

  1.  Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2.  Anular, no segmento contestado, a liquidação adicional de liquidação de IRS n.º 2020 … e o despacho do Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária, da Direcção de Finanças de …, nos termos do qual a reclamação graciosa foi indeferida;
  3. Julgar improcedente o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 782,40, por corresponder ao valor da liquidação impugnada.

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente e da Requerida na proporção do decaimento, que se fixa em 10% para o Requerente e 90% para a Requerida.

 

Lisboa, 16 de Novembro de 2022

O Árbitro

 

 

(Francisco Carvalho Furtado)



[1]             Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:

-   de 10-11-98, do Pleno, processo n.º 32702, publicado em AP-DR de 12-4-2001, página 1207;

-   de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em AP-DR de 10-2-2004, página 4289.

-   de 09/10/2002, processo n.º 600/02.

-   de 12/03/2003, processo n.º 1661/02.