Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 562/2019-T
Data da decisão: 2020-07-15  IRC  
Valor do pedido: € 268.907,98
Tema: IRC - Princípio da especialização dos exercícios: duplicação da contabilização de rendimentos; Perdão de juros de mora debitados.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I -  Relatório

               

A..., S.A., NIPC..., com sede em ..., ...–... ..., Barcelos (doravante “Requerente”), veio, nos termos legais, pedir pronúncia arbitral sobre:

                                - (i)legalidade da liquidação adicional de IRC, relativo ao exercício de 2014, com o número 2018..., de 18 de dezembro de 2018, da qual resultou a fixação de um prejuízo fiscal de € 2.088.613,39 (em lugar dos € 3.257.778,52 que, no entender da Requerente, seria o valor correto)

                - (i)legalidade do indeferimento expresso de reclamação graciosa, relativa à referida liquidação, notificado em 02 de junho de 2019,

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA e ADUANEIRA.

A Requerente designou como árbitro o Prof. Doutor Rui Duarte Morais; a Senhora Diretora Geral da Administração Tributária e Aduaneira designou como árbitro o Prof. Doutor Henrique Fiúza; os árbitros indicados pelas Partes designaram, por acordo, o Sr. Conselheiro Carlos Cadilha como árbitro presidente.

Todos os árbitros aceitaram as respetivas designações, às quais nenhuma das partes se opôs.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 29-11-2019.

                Em 28-02-2020, realizou-se uma reunião em que foi produzida a prova testemunhal requerida.

                As partes prescindiram da apresentação de alegações.

              

                O tribunal arbitral é competente. As partes são legítimas e gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão devidamente representadas. O processo é tempestivo.

Não há exceções de que cumpra conhecer nem outros obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

II  - Alegações das partes

 

1 – No requerimento inicial, a Requerente alega, em suma, o seguinte: em 2012, havia emitido e enviado notas de débito a diversos Clientes, exigindo-lhes, por essa forma, o pagamento de juros de mora por atraso no pagamento do preço de empreitadas (de obras públicas) por ela realizadas. Estão em causa notas de débito perfazendo um total de 1.169.155,13 euros. Seguindo um seu procedimento habitual, não considerou tal valor como rendimento tributável do exercício de 2012, contabilizando-o numa conta de “proveitos diferidos”, pois a sua prática era a de apenas reconhecer juros de mora (debitados como “forma de pressão” sobre os Clientes em atraso no pagamento, nomeadamente entes públicos) como proveitos do exercício em que eram pagos, ou a obrigação do seu pagamento aceite pelo Cliente. Havendo acordos de pagamento, o normal era a Requerente prescindir do recebimento de tais juros, anulando as notas de débito em causa através da emissão de correspondentes notas de crédito.

Relativamente ao exercício de 2012, a Requerente foi objeto de uma inspeção pela AT, a qual considerou que, por aplicação das regras da especialização dos exercícios, o referido valor deveria ter sido incluído no cálculo do rendimento tributável desse ano e não de exercícios posteriores, como decorria da prática da Requerente, tendo, em consequência sido liquidado o imposto devido. Esta correção oficiosa do rendimento tributável foi confirmada por acórdão arbitral (proc. n.º 582/2017-T).

Em 2014, seguindo a prática descrita (que manteve, não obstante a correção administrativa operada relativamente a 2102), a Requerente teria anulado as referidas notas de débito, emitidas em 2012. Ora, como em razão da liquidação oficiosa relativa ao ano de 2012, o valor em causa passou a ser fiscalmente considerado como proveito deste exercício, dando origem à correspondente tributação, a “anulação” efetuada em 2014 teria que originar um gasto de igual valor. É da não consideração do valor das notas de débito “anuladas” como não rendimento (ou “valor a excluir da tributação”) que resulta a divergência entre o montante de prejuízo fiscal, relativo a 2014, apurado pela Requerente. e o fixado pela AT.

 

2 - A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta. em que defende a improcedência do pedido. Sustenta, em suma, que não ficaram provados os requisitos legais que permitiram à Requerente desconsiderar o valor titulado pelas notas de débito “anuladas” como um gasto fiscal. Tal só seria possível verificados os requisitos que permitissem considerar tais valores como imparidades em créditos ou créditos incobráveis, únicas circunstâncias em que a lei permitiria a consideração como gasto de um exercício de montantes faturados (“debitados”) em exercícios anteriores, ainda que a título de juros de mora. Mais, salienta que, em sede de audição prévia, foi reconhecida a razão da Requerente no tocante ao valor dos juros de mora, incluídos na correção administrativa de 2012, que haviam sido considerados por esta como proveitos em 2014, por os correspondentes valores terem sido pagos pelos respetivos clientes nesse exercício.

            

3- Tema a decidir

A questão a decidir é a seguinte: saber se o valor de 1.169.155,13 euros em causa foi considerado como rendimento tributável da Requerente, no ano de 2012, por força de correção administrativa, e quais as consequências legais de tal facto no apuramento do rendimento tributável (no caso, na quantificação do prejuízo fiscal) relativo ao exercício de 2014.

 

III - Fundamentação

 

1 - Matéria de Facto

 

Consideram-se  provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente dedica-se, entre outras, à atividade de empreitadas de obras públicas.

b)           No ano de 2012, a Requerente emitiu, em nome de B... e, I.P., as notas de débito n.º 12/120525, de 2012-10-23, no valor de 126.432,16 euros; n.º 12/120601, de 13-12-2012, no valor de 16.763,12 euros; n.º 12/120448, de 2012-09-11, no valor de 434.226,60 euros; n.º 12/120449, de 2012-09-11, no valor de 299.533,39 euros, tudo somando o total de 876.955,27 euros.

c)            No ano de 2012, a Requerente emitiu, em nome de C..., SA, as notas de débito n.º 12/120471, de 2012-09-20, no valor de 273.148,54; 12/120472, de 2012-09-20, no valor de 2.604,06, tudo somando o total de 275.752,60.

d)           No ano de 2012, Requerente emitiu, em nome de Município D... a nota de débito n.º 120490, de 02/10/2012, no valor de 16 457,26.

e)           As notas de débito acima referidas, como consta dos respetivos textos, titulam juros de mora.

f)            Em 2014, a Requerente emitiu, em nome de Município D..., a nota de crédito n.º 2014 A11/140016, de 19/09/2014, no valor da nota de débito referida em d), para «anulação» desta.

g)            Na contabilidade da Requerente, com referência a 31.12.2014, figura na conta “2829 – Outros proveitos diferidos”  um lançamento a débito no valor de 1 .839.181,80 por contrapartida a crédito de igual valor na conta “7919 – Outros juros” .

h)           Na listagem “Documentos registados em ganhos em 2014”, da autoria da Requerente, aparecem discriminadas as notas de débito atrás mencionadas em b) e c).

i)             Seguindo um seu procedimento habitual, a Requerente não considerou o valor das notas de débito referidas em b), c) e d) como rendimento tributável do ano da respetiva emissão, contabilizando-o numa conta de “proveitos diferidos”, pois

j)             Tais juros de mora apenas eram reconhecidos, contabilisticamente e fiscalmente, como proveitos do exercício quando pagos, ou quando a obrigação do seu pagamento fosse aceite pelo Cliente.

k)            Havendo acordos de pagamento, por vezes a Requerente prescindia do recebimento de tais juros, “anulando” as notas de débito em causa através da emissão de correspondentes notas de crédito.

l)             A prática da Requerente, referida em i) a K) foi, considerada ilegal por inspeção tributária referente ao ano de 2012, a qual considerou que, entre outros, os valores titulados pelas notas de débito acima referidas em b), c) e d) como rendimento tributável desse exercício, por ser aquele em que tais documentos haviam sido emitidos.

m)          A liquidação adicional de IRC resultante da inspeção referida no ponto anterior, referente ao exercício de 2012, foi, quando a esta questão da imputação temporal dos proveitos titulados por tais notas de débito, confirmada por acórdão arbitral no processo que correu termos no CAAD sob o n.º 582/2017-T.

n)           A Requerente reconheceu como proveitos, contabilísticos e fiscais, do exercício de 2014 o montante das notas de débito relativas ao “B...” por “ter passado a ter expetativas sérias do recebimento de tais quantias” em razão de, nesse ano, se perspetivar um acordo quanto a tal dívida, em processo de arbitragem voluntária em que a ora Requerente era demandante e demandado o referido instituto.

o)           A Requerente reconheceu como proveitos, contabilísticos e fiscais, do exercício de 2014 o montante das notas de débito relativas à “C...” por, nesse ano, “ter passado a ter expetativas sérias do recebimento de tais quantias” em razão de decisão arbitral de 27/03 de 2014, que pôs termo a uma ação por ela interposta, conjuntamente com outros empreiteiros, contra o Município E... .

p)           A condenação do Município em tal ação arbitral implicaria – pelo menos no entender da Requerente - que este dotasse a C... (uma mera sociedade veículo) dos meios financeiros necessários para proceder ao pagamento das quantias em dívida, entre outros, a ela, Requerente.

 

                Os factos dados como provados em b) a i) constam de documentos juntos pela Requerente, na sessão de inquirição de testemunhas e posteriormente. São documentos que integram uma contabilidade que aparenta estar organizada segundo os preceitos legais aplicáveis (sem prejuízo da questão relativa ao critério de imputação temporal de proveitos relativos a juros de mora), gozando portanto de uma presunção legal de verdade que não foi, no mais, abalada ou sequer contestada. O teor de tais documentos foi, aliás, confirmado e explicitado pelas testemunhas, nomeadamente por F..., responsável pela contabilidade da Requerente, que depôs com manifesto conhecimento de causa, de forma que o tribunal arbitral considerou verdadeira e esclarecedora.

 

                O dado com provado em j) e k) resulta do depoimento das testemunhas e coincide com aquilo que havia já sido dado como provado em processos arbitrais anteriores.

                Os factos dados como provados em l) e m) constam da decisão arbitral (CAAD) n.º 582/2017-T, bem como do relatório de inspeção tributária relativo a 2012 integrante de tais autos.  A decisão de contabilização referida em n), o) e p) e as razões que a motivaram foram confirmadas pela testemunha G..., diretor financeiro das Requerente, que assumiu terem sido suas tais decisões. O afirmado por esta testemunha, que demonstrou ter pleno conhecimento dos factos e que, no entender do tribunal arbitral, depôs de forma verdadeira e esclarecedora, é coerente com os documentos 10 e 11, juntos aos autos pela Requerente, a pedido do tribunal arbitral, na sessão de audição de testemunhas, documentos esses cuja força probatória atribuída resultou da livre convicção do tribunal arbitral, depois de analisados no contexto de toda a demais prova produzida.

 

                Dos testemunhos e documentação referidos resulta evidente um lapso cometido pela Requerente, quer no requerimento inicial que deu origem ao presente processo, quer antes, em sede de reclamação graciosa: relativamente aos clientes B... e C..., não houve lugar, em 2014 à emissão de notas de crédito “anulando” as notas de débito emitidas em 2012, como aí afirmado, mas sim a “transferência” contabilística dos valores titulados por tais notas da conta “2829 – Outros proveitos diferidos” para a conta de proveitos desse exercício “7919 – Outros Juros” (ou seja, ao “fim do diferimento” de tais proveitos). A factualidade apurada não é pois coincidente com a inicialmente alegada pela Requerente, sendo que é apenas aquela que releva, atento o princípio do inquisitório, a procura da verdade material que norteia o processo fiscal. Os demais factos dados como provados constam do RIT, havendo sobre eles consenso.

 

Não existem factos não-provados relevantes para a boa decisão da causa.

 

III.2 – O Direito

 

2.1 - Relativamente aos valores titulados pelas notas de débito emitidas em nome dos clientes B... e C..., os factos dados como provados mostram uma clara duplicação na consideração dos respetivos valores como proveitos fiscais, em dois diferentes exercícios: o de 2012, por força da correção operada por ação inspetiva, confirmada por decisão arbitral transitada em julgado; o de 2014, por decisão do sujeito passivo, que, seguindo a sua prática habitual, por considerar terem acontecido nesse exercício factos reveladores de uma séria probabilidade de recebimento de tais quantias, as registou como proveitos, contabilísticos e fiscais, desse exercício, apesar de o seu efetivo recebimento só ter ocorrido posteriormente.

                Assim sendo, resulta evidente a afirmação de que da correção administrativa do lucro tributável de 2012 (da consideração como rendimentos desse exercício do valor dos juros de mora então debitados pela Requerente a estes dois Clientes), resultou o direito do sujeito passivo a uma correção simétrica, à anulação da relevação, por si feita, de tais valores como proveitos de 2014. De outra forma, haveria uma dupla tributação (melhor, dupla consideração como rendimento tributável) dos mesmos valores, em manifesta violação de princípios enformadores do nosso sistema fiscal, nomeadamente do princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real.

 

2.2 – Relativamente à nota de débito emitida em nome do município da D..., a questão é diferente: está em causa a anulação (o “perdão”) de uma quantia considerada (ainda que por força de uma correção administrativa) como proveito de exercício anterior.

                Como já se referiu, a AT, na sua resposta, argumenta que a «anulação» do crédito sobre o município da D..., em 2014, feita pela Requerente por via da consideração de um gasto igual ao proveito registado como rendimento de 2012, (contabilização de uma nota de crédito de igual valor) é ilegal. A consideração de um tal valor como gasto apenas poderia ter lugar verificados os pressupostos de aplicação dos regimes das imparidades em créditos ou dos créditos incobráveis, pressupostos estes que não foram invocados nem se terão verificado.

                Este entendimento encontra eco em jurisprudência recente do STA, nomeadamente no acórdão de 04/11/2015, que decidiu do processo n.º 0963/13, segundo o qual:

 I - O CIRC acolheu o modelo de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade para efeitos de apuramento do lucro tributável, como resulta do seu art. 17.º (na redacção em vigor à data).

II - O perdão de um crédito no âmbito de um acordo particular não permite à sociedade que o concedeu relevar o montante que deixou de receber como custo para efeitos fiscais, a menos que respeite as regras fiscais, seja pela constituição de provisões para créditos de cobrança duvidosa (arts. 34.º e 35.º do CIRC, na redacção em vigor à data), seja pelo regime dos créditos incobráveis (art. 39.º do mesmo Código).

                Ora é manifesto que a Requerente não alegou (nem ficaram provados) os pressupostos que lhe permitiriam considerar, em 2014, a existência de uma situação de imparidade ou incobrabilidade do crédito em questão  e que, nas circunstâncias descritas, nomeadamente o resultante da correção administrativa à liquidação de 2012, a “anulação” desta nota de débito consubstancia o perdão de um crédito.

                Pelo que, seguido o entendimento do STA em tal aresto – necessariamente, questionável  –, para cuja fundamentação no mais se remete, há que considerar que o pedido da Requerente de ver refletida na quantificação do seu  prejuízo fiscal relativo a 2014 o valor do crédito, relativo a juros de mora, sobre o Município D... anulado nesse exercício  não pode proceder.

 

                V - Decisão

Termos em que se conclui pela procedência parcial do presente pedido de pronúncia arbitral, sendo anulada a correção administrativa ao prejuízo fiscal da Requerente, relativo ao exercício de 2014, salvo no tocante ao crédito relativo a juros de mora sobre o município D... (montante da correção impugnada não anulado - 16 457,26 euros:). Consequentemente, anula-se parcialmente a decisão que versou sobre a reclamação graciosa.

Valor: € 268.907,98

 

Lisboa, 15 de julho de 2020.

 

O Árbitro Presidente

Carlos Cadilha

 

O Árbitro Vogal

Rui Duarte Morais

 

O Árbitro Vogal

Henrique Fiúza