Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 557/2020-T
Data da decisão: 2021-06-11  IRC  
Valor do pedido: € 126.515,84
Tema: IRC - Juros de mora; Meios de pagamento; Cheque; Mora do credor.
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 SUMÁRIO: Constitui-se em mora o credor que, tendo recebido atempadamente do devedor do imposto um cheque, meio de pagamento legalmente aceite e sem vícios ou irregularidades previstos na lei, decide, com base em informações de entidade externa por si encarregada, não o apresentar a pagamento. Havendo mora do credor, é-lhe imputável o atraso no cumprimento da obrigação. O devedor, que não incorreu em mora, não é, por isso, devedor de quaisquer juros.

 

DECISÃO ARBITRAL

1. RELATÓRIO

 

1.1          A..., S.A., número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., com sede na  ... n.º ..., ...-... Lisboa, veio, em 20 de outubro de 2020, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante RJAT) e da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição do tribunal arbitral.

 

1.2          É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

 

1.3          O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 14 de janeiro de 2021.

 

1.4          O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, com a qual não se conforma, e por objeto mediato as liquidações de IRC de 2018 e de juros de mora que lhe estão subjacentes e, bem assim, as liquidações de IRC de 2018 e de juros de mora que as vieram alterar, cuja anulação pretende.

 

1.5          Resumidamente, a Requerente alega que as liquidações em crise, que resultaram num montante a pagar de € 131.024,27 – entretanto reduzido para € 126.515,84 – a título de juros de mora, foram efetuadas com base no falso pressuposto de que a Requerente não efetuou o pagamento do imposto devido pelo Grupo tributado em IRC pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, do qual é a sociedade dominante, dentro do prazo legalmente estipulado para o efeito.

A Requerente afirma que submeteu a declaração de rendimentos Modelo 22 do grupo fiscal da qual é a sociedade dominante, relativa ao exercício de 2018, tendo sido apurado IRC a pagar no montante de € 110.129.784,51 e que no dia imediatamente seguinte, em 27 de junho de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do montante apurado por meio do cheque número .... a sacar sobre o B... .

 

Sustenta que tendo o cheque sido aceite pela tesouraria do Serviço de Finanças de Lisboa – ..., que emitiu o respetivo comprovativo de pagamento, a decisão de devolução do cheque apresentado a pagamento, por se encontrar, alegadamente, adulterado, sendo, consequentemente, considerado nulo o pagamento efetuado em 27 de junho de 2019 lhe é alheia.

 

Mais defende que o cheque não padecia de qualquer vício ou irregularidade e que, tivesse sido apresentado a pagamento, o Banco sacado o teria pago. Pelo que, tendo cumprido a sua obrigação em tempo, o atraso no pagamento do imposto devido não lhe é imputável, não sendo, portanto, devedora de quaisquer juros de mora.

 

1.6      A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA respondeu, defendendo-se por impugnação, a 3 de maio de 2021 e juntou nessa mesma data aos autos o processo administrativo.

 

Sumariamente, aceita que a Requerente entregou em 27 de junho de 2019, junto do Serviço de Finanças Lisboa ..., o cheque ..., no valor da dívida e para seu pagamento, que o aceitou, tendo, em conformidade, sido aposto no DUC, vinheta a comprovar o pagamento, mas que “Por ofício de 2 de julho de 2019, foi o cheque devolvido pela entidade C..., SA”.

 

Mais aceita que, estando em conformidade com o disposto no artigo 16.º o DL n.º 191/99, de 5-6-1999, o cheque foi, numa primeira fase, aceite pelos serviços da Requerida, mas que existiu um terceiro interveniente  - no caso, a C..., SA- no procedimento, com quem contratou ao abrigo do n.º 1 do artigo 8.º, e que a validação da conformidade do cheque para se proceder ao efetivo pagamento foi levada a cabo por essa entidade, distinta da ora Requerida, que considerou existir uma “desconformidade formal deste meio de pagamento” e, como tal, “impediu que o mesmo fosse apresentado à compensação”.

 

A Requerida invoca que, não tendo a Requerida pago o tributo devido em tempo, se constituiu em mora e que os juros, em direito fiscal, obedecem, desde logo, ao principio da legalidade tributária, que não se encontram na disponibilidade das partes, sendo devidos nas condições em que a lei preveja e que uma dessas previsões é a do artigo 44.º da LGT, segundo a qual «são devidos juros de mora quando o sujeito passivo não pague imposto devido no prazo legal.»

 

De facto, sustenta, aquela entidade, a C..., SA, contratada pela Requerida, considerou que se tratava de “de um cheque adulterado”, o que teria determinado “a sua nulidade, nos termos no n.º 1 e 2 do artigo 19.º do DL 191/99”, e que foi por essa razão que o devolveu ao Serviço de Finanças que, aceitando essa informação da C..., SA, disso notificou a Requerente.

 

Mais defende que não é imposição legal que a mora seja devida a comportamento culposo do contribuinte, como no caso dos juros compensatórios, pelo que sempre serão devidos os juros quando haja atraso no cumprimento da obrigação, independentemente de culpa.

 

Como tal, termina, não tendo o imposto devido pela Requerente, relativo ao exercício de 2018, no valor de 110.129.784,51€, dado entrada nos cofres do Estado dentro do respetivo prazo legal, que terminava a 30/06/2019, mas apenas nove dias depois, a 9/07/2019, são sempre devidos os juros de mora liquidados.

 

1.7       Não tendo qualquer das partes arrolado testemunhas ou requerido outras diligências de    prova, o Tribunal proferiu despacho indicando a data provável para a prolação da decisão.

 

1.8    Notificadas, as partes não vieram opor-se, nada vieram requerer nem apresentaram alegações.

 

2. SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

 

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

 

3. MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

 

1.            Em 26 de junho de 2019, a Requerente submeteu a declaração de rendimentos Modelo 22 do grupo fiscal da qual é a sociedade dominante, relativa ao exercício de 2018, tendo sido apurado IRC a pagar no montante de 110.129.784,51€;

 

2.            Em 27 de junho de 2019, a Requerente emitiu, para pagamento daquele montante o cheque número ...a sacar sobre o B...;

 

 

3.            O cheque apresentado para pagamento continha, nos campos relativos ao numerário e por força do valor a pagamento, onze casas decimais, uma das quais, porque o cheque em causa apenas representa dez casas decimais, foi inscrita fora daqueles campos;

 

4.            O valor por extenso estava corretamente preenchido e o cheque não apresentava vício ou irregularidade para além do facto que se descreve em 3;

 

 

5.            O cheque foi entregue na tesouraria do Serviço de Finanças de Lisboa –..., que o aceitou e emitiu o selo comprovativo do pagamento;

 

6.            A C..., SA é uma entidade contratada pela Requerida;

 

7.            Aquela entidade apôs no verso do cheque os dizeres “Cheque c/ excesso de “casas” decimais, sistema não assume” e devolveu-o ao Serviço de Finanças;

 

8.            A Requerida não apresentou o cheque a depósito ou pagamento;

 

9.            O Banco sacado declarou que, “se tivesse sido confrontado em sede de compensação para pagamento do cheque em anexo, teria favorecido o pagamento do mesmo, porquanto o valor indicado no extenso não tem rasura e o mesmo prevalece sobre o valor em algarismos”;

 

10.          No dia 8 de julho de 2019, a Requerente foi notificada da decisão da Requerida de considerar nulo o pagamento efetuado em 27 de junho de 2019, nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 19.º do Decreto Lei n.º 191/99, de 5 de junho;

 

11.          Em 9 de julho de 2019, a Requerente efetuou a favor da Requerida uma transferência bancária daquele valor apurado, relativamente ao IRC de 2018, de 110.129.784,51€;

 

12.          Em 13 de fevereiro de 2020, a Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2019 ... e da demonstração de liquidação de juros n.º 2020..., pela qual a AT procedeu à liquidação de juros de mora no montante de 131.024,27€, resultado da aplicação sobre o montante de 110.129.784,51€ da taxa de 4,825% no período compreendido entre 1 e 9 de julho de 2019;

 

13.          A Requerente pagou aquele valor de 131.024,27€ no dia 17 de março de 2020;

 

14.          Em 18 de junho de 2019 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra aquele ato de liquidação de juros de mora;

 

15.          Em 28 de maio de 2020 a Requerente apresentou uma declaração de substituição relativa ao IRC de 2018;

 

16.          Em 31 de julho de 2020 a Requerente foi notificada de novas liquidações de IRC e de juros de mora relativos ao exercício de 2018, bem como da respetiva demonstração de acerto de contas, das quais resultou imposto a reembolsar à ora Requerente, o que levou, por sua vez, ao recálculo dos juros de mora inicialmente liquidados por parte da AT, que foram reduzidos para 126.515,84€;

 

17.          Em 8 de setembro de 2020, a AT notificou a Requerente da sua decisão de indeferir a reclamação apresentada e de manter a liquidação de juros de mora, ainda que já reduzida àquele novo valor de 126.515,84€;

 

 

Factos não provados

 

Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerentes e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta quer por ambas e, bem assim, pelo Processo Administrativo, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas.

 

 

4. MATÉRIA DE DIREITO - QUESTÕES DECIDENDAS

 

Parece ao Tribunal que é apenas uma a questão decidenda:

 

O cheque entregue pela Requerente à Requerida era meio adequado ao pagamento do imposto devido?

 

e que é a resposta que se der a esta que decorrerão todas as restantes, designadamente, a de saber se o devedor entrou – ou não - em mora, se eram, ou não, em consequência dessa mora, devidos os juros que a AT liquidou e que a Requerente pagou.

 

                Ora, dúvidas não podem restar de que o cheque é, de facto, um dos meios de pagamento admitidos pela lei para a satisfação dos créditos tribuários. É o que resulta, designadamente, do n.º 1 do artigo 40.º da LGT, da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 492/88, de 30 de dezembro, que regulamenta a cobrança e as formas de reembolso do IRS e do IRC e onde se preveem, igualmente, os meios para o pagamento das prestações tributárias destes dois impostos e, bem assim, da alínea b) do n.º 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 191/99.

 

                A Requerente podia, portanto, em abstrato, pagar o imposto devido entregando à Requerida um cheque.

 

                A questão é que, perfazendo o imposto em dívida quantia com onze algarismos e prevendo o modelo do cheque em causa apenas dez campos, onde colocar dez algarismos, poderia a Requerente ainda assim usar este meio de pagamento, o que implicaria necessariamente preencher um dos algarismos fora dez campos gráficos que o cheque contém?

 

A utilização de não mais do que dez casas decimais num cheque é uma recomendação do Banco de Portugal, recomendação que se reflete no modelo de cheque aprovado por essa entidade nos termos da Instrução do Banco de Portugal n.º 26/2003.

 

Uma tal orientação ou instrução consubstancia, como bem alega a Requerente, uma indicação de boas práticas para os agentes do setor bancário e não tem a virtualidade de criar requisitos que a lei não prevê ou regular as condições da respetiva aceitação como meio de pagamento por parte das entidades sacadas.

 

Na verdade, essa matéria está regulada na Lei Uniforme relativa ao Cheque, aprovada pelo Decreto n.º 23.721, de 29 de março de 1934.

 

Aquela Lei Uniforme determina, no artigo 1.º, como requisitos do cheque que este contenha:

 

- A palavra "cheque" inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redação desse título;

- O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;

- O nome de quem deve pagar (sacado);

- A indicação do lugar em que o pagamento se deve efetuar;

- A indicação da data em que e do lugar onde o cheque e passado;

. a assinatura de quem passa o cheque (sacador).

 

                Um cheque emitido ou sacado em que falte algum daqueles requisitos determina, nos termos do artigo 2.º daquela Lei, que não possa produzir efeitos como cheque, ainda que lá se prevejam algumas exceções.

 

                Ao cheque emitido pela Requerente não faltava nenhum daqueles requisitos.

 

                A Lei Uniforme não contém qualquer menção a qualquer número limite algarismos ou “casas decimais”. A única referência a algarismos que aquela Lei contém é, aliás, quando, na primeira parte do artigo 9.º, determina que “O cheque cuja importância for expressa por extenso e em algarismos vale, em caso de divergência, pela quantia designada por extenso.”

 

                Pelo que, no caso, se dúvidas se levantassem quanto ao valor que estava inscrito nos campos destinados aos algarismos, sempre prevaleceria o valor inscrito no campo destinado ao extenso.

 

Por outro lado, como, mais uma vez, bem sustenta a Requerente, da leitura do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 492/88, de 30 de dezembro, que disciplina a cobrança e reembolsos do IRS e do IRC resulta que os pagamentos de impostos podem ser feitos em cheque, que estes pagamentos têm valor liberatório quando obedeçam aos requisitos previstos no artigo 8.º, a saber:

 

Os cheques para pagamentos a efetuar nas tesourarias da Fazenda Pública serão sempre cruzados,

emitidos à ordem do respetivo tesoureiro com os dizeres «pagamento de impostos», não podendo ser aceites sem terem inscrito no verso o número fiscal de pessoa singular ou o número do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, conforme se trate de pessoas singulares ou coletivas, e o número do documento de pagamento ou da liquidação constante da certidão, consoante se trate de guias de pagamento e notas de cobrança ou de dívida em fase de cobrança coerciva, respetivamente. A data de emissão do cheque deverá coincidir com a data da sua entrega ou de um dos dois dias anteriores, sem o que não será aceite. 3 - Sempre que for omitida a data de emissão, considerar-se-á esta como sendo a do dia da apresentação na tesouraria, competindo ao tesoureiro a sua aposição.

               

O artigo 10.º daquele Decreto lei regula as consequências da devolução do cheque por falta de provisão e o artigo 11.º, as da devolução por falta de requisitos.

 

                O artigo 14.º prescreve que a cobrança das dívidas de impostos se considera efetuada na data da entrega do respetivo meio de pagamento, sem prejuízo de “os pagamentos efetuados nas tesourarias da Fazenda Pública ou CTT por meio de cheques não visados só se consideram realizados depois do crédito em conta da respetiva importância, não sendo devidos, todavia, quaisquer juros ou encargos pelo tempo que mediar entre a entrega do cheque e o crédito em conta referido”. É neste contexto que o artigo 15.º, n.º 1, prevê que serão considerados nulos os pagamentos efetuados com cheques irregulares.

 

                Só que, ao contrário do que sustenta a AT, aqui requerida, a verificação da falta de provisão, da falta de requisitos ou, o que é o mesmo, da irregularidade do cheque dependem sempre da sua devolução por esse motivo, o que, naturalmente, tem de ser precedido de depósito e da subsequente apresentação a compensação ao Banco sacado.

 

                O que, no caso, por indicação de uma entidade contratada pela Requerida e por subsequente decisão da Requerida, não aconteceu.

 

Por sua vez, do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 191/99, de 5 de junho, que aprova o Regime da Tesouraria do Estado, resulta que a aceitação de cheques depende do cumprimento dos seguintes requisitos:             

 

 - Devem ser cheques cruzados e à ordem do respetivo tesoureiro;

 - No verso do cheque deve ser inscrito o número de identificação fiscal do Contribuinte e o número do documento de pagamento ou da liquidação;

 - A data de emissão deverá coincidir com a data da sua entrega, ou de um dos dois dias anteriores;

 - Os montantes do cheque e do documento de pagamento não podem diferir.

 

                E o artigo 19.º, n.ºs 1 e 2, daquele Decreto-Lei, prescreve, no que ao caso em apreço releva, que:

 

«1 - São considerados nulos os pagamentos que não permitam a cobrança da receita devido a vícios que afetem o respetivo meio de pagamento.

2 - No caso da utilização de cheque, considera-se que o mesmo não permite a cobrança da receita quando:

a) Na sua emissão tiver existido preterição de algum dos requisitos formais que impossibilite o seu pagamento pelo sacado;

 

Não tendo o cheque sido apresentado a pagamento, não pôde também verificar-se qualquer das situações de impedimento de pagamento a que se referem aquela alínea a) - tão pouco, as das alíneas b) e c) -do n.º 2 do artigo 19.º, do Decreto-Lei n.º 191/99, de 5 de junho.

 

E, no que respeita ao número 1, os vícios que afetem o cheque, capazes de levar à nulidade do pagamento, não podem ser outros que não aqueles que se encontram estabelecidos na lei, já supracitados.

 

Jamais quaisquer irregularidades que a AT, que está adstrita ao princípio da legalidade, arbitrariamente lhes atribua, por sua própria iniciativa ou por indicação de entidades que contrata, como, no caso, a C... .

 

Aliás, como resultou da matéria dada como provada, o Banco sacado assegurou, em declaração escrita, que, “se tivesse sido confrontado em sede de compensação para pagamento do cheque em anexo, teria favorecido o pagamento do mesmo, porquanto o valor indicado no extenso não tem rasura e o mesmo prevalece sobre o valor em algarismos”;

 

Invoca ainda a Requerida, em sustento da sua decisão de liquidar os juros de mora em crise, o caráter imperativo da lei e o princípio da indisponibilidade do crédito tributário, sustentando que a mora e a liquidação e cobrança de juros não depende das razões que subsistirem à mora ou de qualquer juízo de censura sobre o agente.

 

No que lhe poderá assistir razão, que é, no entanto, irrelevante ao que aqui se decide. É que dúvidas não podem restar de que a Requerente, tendo apresentado, em tempo, meio adequado ao pagamento da dívida tributária, não se constituiu em mora.

               

Tendo a credora, a AT, aqui Requerida, decidido, por indicação de uma entidade que ela própria encarregou da missão de apresentar o cheque a pagamento e por razões que só a ela são imputáveis, decidido não apresentar o cheque a pagamento, é ela, credora, que se recusa a receber o pagamento e que, como tal, está em mora.

 

Na verdade, prescreve o artigo 814.º do Código Civil, aplicável à relação jurídica tributária ex vi da alínea d) do artigo 2.º da LGT, que o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos necessários ao cumprimento da obrigação.

 

Mais determina o artigo 814.º, que, a partir da mora do credor, o devedor apenas responde, quanto ao objeto da prestação, pelo seu dolo e que, durante esta, a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionados.

 

 

É, portanto, ilegal, porque violadora do disposto nos artigos 1.º da Lei Uniforme relativa ao Cheque, aprovada pelo Decreto n.º 23.721, de 29 de março de 1934, 2.º, 3.º, alínea b) e 8.º do Decreto-Lei n.º 492/88, de 30 de dezembro, 16.º do Decreto-Lei n.º 191/99, de 5 de junho814.º e 815.º do Código Civil, a liquidação de juros moratórios efetuada pela Requerida à Requerente, com a consequência prevista no artigo 163.º do CPA, que é a da anulabilidade.

 

 5. DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:

 

 

Julgar totalmente procedente o pedido da Requerente e anular, por ilegal, a liquidação de juros de mora em crise, com as consequências que daí legalmente decorrem.

 

 

 

* * *

 

Fixa-se o valor do processo em 126.515,84€ (cento e vinte e seis quinhentos e quinze euros e oitenta e quatro cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

O montante das custas é fixado em 3.060,00€ (três mil e sessenta euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

                Lisboa e CAAD, aos 11 de junho de dois mil e vinte e um.

 

Notifique-se.

 

Os Árbitros,

 

Manuel Luís Macaísta Malheiros

José Nunes Barata

Eva Dias Costa