Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 533/2019-T
Data da decisão: 2020-06-12  Selo  
Valor do pedido: € 518.169,60
Tema: Imposto do Selo – Valor do trespasse.
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

1.            Relatório

 

No dia 09-08-2019, a sociedade por quotas A..., LDA, pessoa coletiva n.º  ..., com sede no ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista, de forma imediata, à declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta, e de forma mediata, à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto do Selo n.º 2018... e da liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor total de 518.169,60 €.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD no dia 12-08-2019 e notificado à Requerida na mesma data.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º n.º 2 alínea a) do RJAT, foram designados como árbitros, pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em 10-05-2019, a Drª Fernanda Maçãs, como Presidente, a Profª Doutora Suzana Fernandes da Costa e o prof Doutor Eduardo Paz Ferreira, como vogais, tendo as nomeações sido aceites, no prazo e termos legalmente previstos.

Na mesma data foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 16-10-2019.

 

Em 17-10-2019, foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional e remeter ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.

Em 20-11-2019, a Requerida apresentou a sua resposta, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, tendo na mesma data junto aos autos o processo administrativo.

No dia 23-11-2019, foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidades deste, e tendo em conta que não há lugar a produção de prova nem foi invocada matéria de exceção. No mesmo despacho foi ordenada a notificação das partes para em 15 dias, apresentarem as suas alegações. Neste despacho, designou-se ainda o dia 16-04-2020 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral. Prazo este prorrogado para o dia 16 de julho, por despacho de 14 de abril de 2020, com os fundamentos nele consignados e que se dão por reproduzidos.

Em 09-12-2019, veio a Requerente juntar aos autos requerimento a solicitar a prorrogação do prazo para a produção de alegações escritas por um período adicional de 10 dias.

Em 10-12-2020, foi proferido despacho a deferir o pedido de prorrogação do prazo para produzir alegações por mais 10 dias, atentas as razões invocadas pela Requerente, e concedeu-se igual prazo à Requerida.

As Partes apresentaram alegações.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).

O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro e do artigo 102º n.º 1 alínea a) do Código do Procedimento e do Processo Tributário.

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Posição das partes

A Requerente começa por referir que, em 29-08-2014, foi celebrado entre a Requerente e a B..., sociedade domiciliada nos Países Baixos, o contrato de trespasse de estabelecimento comercial em atividade, tendo por objeto o trespasse, para a primeira, da atividade até então prosseguida pela C... – Sucursal em Portugal.

A Requerente refere que nos termos da cláusula segunda do aludido contrato, o trespasse do estabelecimento em causa incluía a transferência para a esfera da Requerente, dos seguintes elementos patrimoniais: o ativo imobilizado mencionado no anexo I, o ativo corrente mencionado no anexo I, os contratos relacionados com o estabelecimento e os contratos com terceiros e encomendas de terceiros, as posições contratuais nos contratos de trabalho, bem como trabalhadores, sendo os referidos contratos e trabalhadores mencionados no anexo I, o passivo mencionado no anexo I, e todo o demais ativo e passivo, conforme referido no anexo I.

A Requerente alega que constava da cláusula terceira que o preço acordado para o trespasse foi fixado pelas partes em 500.000 €, valor esse que a Requerente estava obrigada a pagar até 31-12-2014. Quanto ao preço, a Requerente refere ainda que o mesmo resultou do arredondamento para a centena de milhar superior, da avaliação do valor do trespasse à data de 31-08-2014 realizada por Revisor Oficial de Contas Independente, computado em 495.617,32 €.

De acordo com a Requerente, a avaliação do valor do trespasse que consta do parecer do Revisor Oficial de Contas Independente, foi levada a cabo mediante aplicação do método dos fluxos de caixa descontados, medido pelo EBITDA, acrescido do valor das disponibilidades e abatido da dívida ao sócio e dos resultados transitados não distribuídos à data de 31-12-2014, e de acordo com as Normas Técnicas e Diretrizes de Revisão/Auditoria da ordem dos Revisores Oficiais de Contas.

Entretanto, em 2018 foi objeto de uma ação de inspeção tributária de âmbito parcial, abrangendo o Imposto do Selo de 2014. Na sequência desta inspeção tributária, a AT efetuou uma liquidação adicional de Imposto de Selo.

A Requerente alega que a liquidação adicional de Imposto do Selo assenta em vários erros sobre os pressupostos de facto e de direito determinativos da sua ilegalidade.

Segundo a Requerente, a tributação em sede de Imposto do Selo corresponde ao resultado da aplicação da taxa de 5% sobre o valor declarado/acordado pelas partes no contrato de trespasse de estabelecimento comercial em atividade celebrado em 29-08-2014. E tendo sido acordado pelas partes no contrato que o preço era de 500.000 €, entende a Requerente que o Imposto do Selo a liquidar teria que ser liquidado sobre este valor e não outro.

A Requerente alega ainda que a avaliação efetuada pelo Revisor Oficial de Contas Independente assentou num método plenamente válido e admissível e que está de acordo com as melhores práticas de mercado, não merecendo qualquer reparo.

Quanto ao valor do trespasse fixado pela AT em 9.469.000 €, a Requerente refere que o mesmo foi erradamente fixado, desde logo porque considerou que a B... teria direito a receber da Requerente aquele valor pelo trespasse.

A Requerente refere que a AT considera que a Requerente assumiu a dívida financeira líquida da B... no valor de 9.000.000 €, passando a deter um ativo de igual montante em resultado da assunção de tal dívida. De acordo com a Requerente, a AT identificou uma compensação de saldos utilizada nas relações comerciais, em que a Requerente, em vez de assumir um passivo de 9.496 milhares e um ativo de 9.000 milhares de euros, reconheceu um passivo de 500 milhares de euros que corresponde ao valor final a pagar à sucursal. No entanto, para a Requerente este pressuposto de facto não se verifica, já que nos termos do contrato de trespasse celebrado, o valor atribuído ao negócio, tendo em cona os ativos e passivos transmitidos, foi de 500.000 €, e o passivo liquido de 9.000.000 € foi transmitido para a Requerente, permanecendo uma dívida exigível cujo pagamento passou a ser da sua exclusiva responsabilidade.

Para a Requerente, o método utilizado pela AT é ilegal, uma vez que não se encontra previsto no artigo 9º do Código do Imposto do Selo.

Por outro lado, entende a Requerente que a AT não fundamentou nem o recurso a métodos indiretos para a determinação da matéria tributável em sede de Imposto do Selo, nem a adequação do critério alternativo concretamente adotado.

Conclui a Requerente afirmando que a correção em sede de Imposto do Selo contestada padece de vários erros sobre os respetivos pressupostos de direito, na medida em que viola frontalmente o disposto no artigo 9º, n.º 1, 2, e 3 do Código do Imposto do Selo, e bem assim nos artigos 87º a 90º da Lei Geral Tributária (LGT).

Quanto à liquidação de juros compensatórios, a Requerente alega que tal ato não foi acompanhado de qualquer fundamentação, que justificasse ou demonstrasse os pressupostos de facto e de direito da sua exigibilidade, tal como previsto no n.º 1 do artigo 35º da LGT.

Termina a Requerente pedindo a declaração de ilegalidade os atos tributários de liquidação e Imposto do Selo e de juros compensatórios, e o reembolso do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta, apresentou defesa por impugnação, referindo, em suma, que não se verifica qualquer vício de fundamentação e que as correções não enfermam de qualquer ilegalidade.

A AT começa por fazer alusão à ausência nos normativos relevantes do Código do IS e da TGIS de qualquer definição do termo «trespasse» bem como de diretrizes claras sobre o modo de cálculo do valor de uma operação de trespasse, e que a doutrina e a jurisprudência têm convergido no entendimento de que, por força do disposto no n.º 2 do art.º 11.º da LGT, o conceito de «trespasse» utilizado no Código do Imposto de Selo é decorrente do direito civil, ou seja, é o negócio jurídico, em princípio oneroso, pelo qual se opera a transmissão definitiva, por ato entre vivos, da titularidade de um estabelecimento, sendo este constituído por uma universalidade de bens e direitos. Para a AT, daqui resulta que o preço da operação de «trespasse» deveria corresponder prima facie ao somatório dos valores atribuídos, à data da transferência, ao acervo patrimonial transmitido, i.e., ao conjunto constituído pelas instalações, equipamentos, existências e outros elementos tangíveis e intangíveis que integram o estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, incluindo as respetivas dívidas.

No entendimento da AT, a falta de prescrição legal de uma metodologia de determinação do valor de trespasse, implica a aceitação dos resultados da aplicação de outros métodos adotados na área financeira, desde que suportados em pressupostos razoáveis e idóneos e que reflitam adequadamente os contornos de cada concreta operação.

A AT alega que na demonstração do cálculo do valor do trespasse, constante do parecer do Revisor Oficial de Contas, é indicado que não existia passivo, a não ser o “endividamento aos sócios”, o que, desde logo, indicia a existência de uma confusão conceptual, uma vez que, tratando-se de uma sucursal, os fundos afetos à mesma pela sociedade de que é parte, não qualificam como empréstimos efetuados pelos sócios. De acordo com o entendimento da AT, entre uma sucursal e a sede, ou entre sucursais da mesma entidade, as relações financeiras estabelecidas são meras alocações internas, ainda que remuneradas, porque os fundos circulam entre partes da mesma entidade jurídica.

A AT também entende que a assimilação de resultados acumulados de períodos anteriores a resultados não distribuídos peca por falta de rigor, dado que tais resultados pertencem à sociedade de que a sucursal é parte, pelo que não faz sentido introduzir neste contexto a figura da “distribuição de lucros” ou qualificar tais importâncias como «passivo». Para fundamentar a sua posição, a AT faz alusão ao acórdão do TCA Sul, de 29.01.2008, proferido no processo nº 02161/07.

A AT faz ainda referência à Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 14, para afirmar que quando uma entidade adquire a totalidade dos ativos e passivos de outra entidade, com a finalidade de prossecução do negócio, o preço global acordado – designado no parágrafo 18 da NCRF 14 por custo da concentração - deve ser, nos termos do parágrafo 24 da mesma Norma, imputado aos elementos do ativo e do passivo adquiridos identificáveis, e qualquer excesso apurado é tratado como goodwill. Para a AT, na operação sob análise, o preço referido no Contrato foi reconhecido a débito de uma conta de reservas por contrapartida de uma conta de diferimentos e os elementos do ativo e do passivo adquiridos foram reconhecidos na contabilidade da adquirente pelos valores contabilísticos por que se encontravam registados na sucursal, o que demonstra que não representa a contraprestação global da operação, segundo a Requerida.

Quanto à alegada falta de fundamentação da demonstração de liquidação de juros compensatórios a Requerida refere que a mesma seguiu em anexo à nota de liquidação e de acerto de contas e como complemento daquelas, estando ainda devidamente fundamentada de acordo com a lei, esclarecendo a Requerente das razões de facto e de direito que determinaram a liquidação.

Quanto aos juros, a AT refere que a fundamentação consta no RIT que foi notificado à Requerente, e que não se antevê como é que a omissão da referência em concreto aos juros compensatórios neste mesmo documento pode conduzir à conclusão de que se verifica o referido vício.

 

3. Matéria de facto

3. 1. Factos provados:

Analisada a prova documental produzida e a posição das partes constante das peças processuais, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:

 

1.            Em 29-08-2014, foi celebrado entre a Requerente e a B..., sociedade domiciliada nos Países Baixos, o contrato de trespasse de estabelecimento comercial em atividade, que tinha por objeto o trespasse, para a Requerente, da atividade até então prosseguida pela C... – Sucursal em Portugal, conforme documento 1 junto ao pedido arbitral.

2.            Nos termos da cláusula segunda do aludido contrato que o trespasse do estabelecimento em causa incluía a transferência para a esfera da Requerente, dos seguintes elementos patrimoniais:

a)            o ativo imobilizado mencionado no anexo I;

b)           o ativo corrente mencionado no anexo I;

c)            os contratos relacionados com o estabelecimento e os contratos com terceiros e encomendas de terceiros;

d)           as posições contratuais nos contratos de trabalho, bem como trabalhadores, sendo os referidos contratos e trabalhadores mencionados no anexo I;

e)           o passivo mencionado no anexo I;

f)            e todo o demais ativo e passivo, conforme referido no anexo I.

3.            A cláusula terceira do referido contrato dispunha que pela aquisição do estabelecimento comercial, a A..., LDA paga à B..., B. V., como preço fixo, o montante de € 500 000 (quinhentos mil Euros).

4.            O preço do trespasse acordado pelas partes resultou do arredondamento da avaliação do valor do trespasse à data de 31-08-2014 realizada por Revisor Oficial de Contas independente, conforme documento 2 junto ao pedido arbitral.

5.            De acordo com o referido parecer do Revisor Oficial de Contas Independente, a avaliação do valor do trespasse foi levada a cabo mediante aplicação do Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBITDA, acrescido do valor das disponibilidades e abatido da dívida ao sócio (Debt Cash pool) e dos Resultados Transitados não distribuídos à data de 31-08-2014 e de acordo com as Normas Técnicas e Diretrizes de Revisão/auditoria da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas.

6.            Após a celebração do contrato de trespasse, a Requerente promoveu a liquidação de Imposto do Selo devido nos termos da verba 27.1 da Tabela Geral, por aplicação da taxa de 5% sobre o preço acordado para o trespasse, no valor de 500.000 €, e procedeu ao pagamento do Imposto do Selo no valor de 25.000 €.

7.            A Requerente foi objeto de uma ação de inspeção tributária de âmbito parcial, abrangendo o Imposto do Selo de 2014.

8.            Na sequência da inspeção foi elaborado o relatório de inspeção, cujo teor se dá por reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

“Conforme já referido, em 29/08/2014 foi celebrado um “Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial em Atividade" entre a sociedade não residente B... B.V. e a A..., Lda, de acordo com o qual ocorreu a transferência do estabelecimento comercial concernente à atividade desenvolvida pela B..., B.V. em Portugal através da sucursal, para a A..., Lda, de modo a atingir o objetivo subjacente à operação, que teve em vista que esta nova sociedade começasse a desenvolver a atividade que antes era levada a cabo pelo EE. Apesar de constituída desde abril, a A..., Lda só começou a exercer efetivamente atividade em setembro de 2014, após a aquisição do negócio do EE.

O preço de € 500.000,00, estabelecido para a operação, resultou da avaliação da totalidade do estabelecimento comercial da C..., B.V. Sucursal Portugal, de acordo com o "Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBITDA3, acrescido do valor em disponibilidades e abatido da divida ao sócio (Debt Cash Pool) e dos Resultados Transitados não distribuídos à data de 31 de Agosto de 2014”.

Face ao exposto verifica-se que, tal como refere o próprio ROC, o valor do negócio foi determinado com base no método de cálculo dos fluxos de caixa descontados, o qual configura um método de avaliação de empresas que utiliza o conceito de valor presente para determinar o valor da soma de todos os fluxos que se estima que a empresa venha a gerar, acrescido do Valor Residual (considerando um crescimento perpétuo), descontados de uma taxa apropriada que representa, nomeadamente, o valor do dinheiro ao longo do tempo, donde decorreu que o valor atual do estabelecimento assume o montante de 9,496 milhares de euros.

Sem pôr em causa o valor do negócio antes referido, importa analisar os resultados apurados pelo EE em Portugal.

Tabela 3                               Unidade: €

Período Resultado

Líquido Volume de

Negócios             Custo das Mercadorias Vendidas             Margem

Bruta     Margem sobre as vendas

                (D           (2)                          m                           (4)=(2)-(1)          (5)=(4)/(2)

2007      -31.729,87           2.020.225,63      1.888.608,33      131.617,30          6 51%

2008      58.756,89             7.092.600,03      6.109.033,63      983.566,40          13,87%

2009      294.535,92          10.578.041,93    8.725.002,66      1.853.039,27       17,52%

2010      543.244,98          17.311.264,98    14.973.938,45    2.337.326,53       13,50%

2011      570.088,24          30.475.259,65    27.254.017,61    3.221.242,04       10,57%

2012      550.018,97          35.153.729,89    31.017.010,55    4.136.719,34       11,77%

2013      607.526,86          37.688.298,07    32.995.508,11    4.692.789,96       12,45%

2014

(8 meses)           250.642,56          26.360.514,08    23.118.305,64    3.242.208,44      12,30%

 

A entrada do grupo D... em território nacional ocorreu em 2007, com o registo da representação permanente no nosso país pela C... - SUCURSAL PORTUGAL (NIPC...) da sociedade holandesa, a B... B.V. que tinha como objeto o comércio, nomeadamente a importação e exportação de pneus, acessórios e peças de automóveis e outros veículos. À exceção do ano de início de atividade, o EE apurou sempre resultados positivos, conforme se apresenta na tabela seguinte, elaborada a partir da demonstração de resultados que integra a declaração anual de informação contabilística e fiscal, prevista na al. c) do n.° 1 do art. 117.° e no art. 121.°, ambos do CIRC, submetida por esta entidade desde o início de atividade.

 

Face aos montantes declarados, constata-se que, no quadriénio de 2010 a 2013 (último ano em que a entidade exerceu a atividade o período completo) o volume de negócios mais do que duplicou, enquanto o resultado líquido registou um aumento de cerca de 22%, tendo sido apurada uma margem bruta sobre as vendas média na ordem dos 12%.

No que respeita ao EBITDA, atendendo aos valores apresentados na tabela seguinte, verifica-se que o valor apurado em 2013 é superior ao de 2010 em cerca de 40%, sendo que no quadriénio em causa determina-se um EBITDA médio de € 909.767,36, bastante superior ao EBITDA considerado para efeitos de cálculo do valor do negócio, que resultou do constante da demonstração de resultados a 31/08/204 transformado em valor anual.

 

Tabela 4

Período EBITDA (€)

2010      783.668,98

2011      852.153,64

2012      907.356,35

2013      1.095.890,48

2014      784.000,00

 

Ora, a determinação do valor atual da entidade foi efetuada em termos claros e inteligíveis e assentou num método perfeitamente válido, que se ajusta á situação em concreto, na medida em que, com base no EBITDA, atualizaram para o momento do trespasse o valor das receitas futuras e previsíveis, sendo certo que foi utilizado um fator de atualização (EBITDA de €784.000,00) inferior ao que seria expectável decorrente dos resultados históricos da entidade.

Importa ter presente que, numa operação como a supra descrita, que integra a transmissão da universalidade de uma entidade, que no caso em concreto estava em plena maturidade, revelando crescimento dos resultados, sem dificuldades financeiras e com capitais próprios positivos superiores a 2,5 milhares de euros, a análise das suas demonstrações financeiras é apenas um dos muitos indicadores a ter em conta. O seu valor está maioritariamente centrado no que não está reconhecido contabilisticamente, ou seja nos ativos intangíveis tais como: a quota e o conhecimento do mercado, a carteira de clientes e a fidelidade dos mesmos, a carteira de fornecedores, o know- how dos trabalhadores, os direitos contratuais adquiridos, etc. Em muitas situações os ativos intangíveis são os verdadeiros determinantes do valor das empresas e representam vantagens intelectuais e competitivas para o negócio, sendo que numa empresa lucrativa o valor dos ativos intangíveis pode ser superior ao do seu património líquido.

A avaliação de um negócio deve integrar todas as condicionantes referidas e outras tidas como relevantes para cada situação em concreto, considerando-se que o método aplicado ao estabelecimento da C... Sucursal Portugal e do qual resultou a determinação de um valor do negócio, â data do trespasse, de 9.496 mil euros, revela-se apropriado.

De facto, deve ter-se em conta que a A..., Lda, embora se tenha constituído apenas em 01/04/2014 não teve necessidade de incorrer em custos de arranque e de implementação no mercado na medida em que deu continuidade â atividade já desenvolvida, desde 2007, pela sucursal com os mesmos meios técnicos e humanos, sem qualquer interrupção ou alteração. A sua sede foi estabelecida no mesmo local onde a sucursal tinha a sede desde 16/07/2012, graças à transferência do contrato de arrendamento do imóvel da E..., SA (NIPC...), os principais clientes continuaram a ser os mesmos, sendo a base de clientes um dos principais ativos de uma empresa comercial, bem como ocorreu a transferência de todos os funcionários, o que neste contexto pode constituir, para a entidade adquirente, uma forma de poupança, quer de tempo quer de despesas de contratação e formação de novos empregados, para além da transferência de know-how que incorpora.

III.2.3. Análise do valor de base à liquidação do IS

Para efeitos de liquidação de IS, ao valor do negócio apurado, de 9.496 milhares de euros, a A..., Lda fez ajustamentos, decorrentes da posição de tesouraria da sucursal face à sociedade representada (C..., NIPC ...), conforme traduz a tabela seguinte:

Descrição            Valor (€)

1.            Valor do negócio             9.496.000,00

2.            Ajustamentos  

2.1.        Financiamento na conta 25         -7.860.987,63

2.2.        Disponibilidades              1.319.959,72

2.3.        Resultados não distribuídos        -2.459.354,77

                Total dos ajustamentos (2.1+2.2+2,3)    -9.000.382,68

                Valor Final (1+2)              495.617,32

 

 

 

 

Para efeitos de liquidação de IS, a sociedade arredondou por excesso o valor final apurado, tendo

liquidado IS, à taxa de 5%, decorrente da aplicação da verba 27.1 da TGIS, sobre €500.000,00,

como se do valor do trespasse se tratasse.

Em suma:

-              À data de 31/08/2014 a C..., Sucursal Portugal tinha uma divida financeira líquida para com a sociedade não residente no montante de 9.000 milhares de euros, que era da sua responsabilidade;

-              À data de 31/08/2014 a A..., Lda ficou com uma dívida de 9.496 milhares de euros para com a C... Sucursal Portugal decorrente da aquisição do negócio daquela;

-              A dívida à sucursal, de acordo com a Estrutura Concetual (EC) do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) constitui um passivo, que “é uma obrigação presente da entidade proveniente de acontecimentos passados, da liquidação da qual se espera que resulte um exíluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos";

-              Ao adquirir o negócio da sucursal, a A..., Lda ficou com a dívida financeira líquida de 9.000 milhares de euros à sociedade não residente, que detém 99% do seu capital social, cujo pagamento era da responsabilidade da entidade adquirida;

-              De acordo com a EC do SNC, a dívida da sucursal constituiria um ativo para a A..., Lda, ou seja, “um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros”;

-              Os ativos e passivos são apresentados no balanço porque relacionam-se com a posição financeira das entidades, em nada influenciando a avaliação do seu desempenho, o qual decorre dos rendimentos e gastos que integram a demonstração de resultados, como se retira do § 68 da EC do SNC, que refere:

"O resultado é frequentemente usado como uma medida de desempenho ou como a base para outras mensurações, tais como o retorno do investimento ou os resultados por ação. Os elementos diretamente relacionados com a mensuração do resultado são rendimentos e gastos."

-              Assente numa operação de compensação de saldos, comummente utilizada nas relações comerciais, a A..., Lda, em vez de assumir um passivo de 9.496 milhares e um ativo de 9.000 milhares de euros, reconheceu um passivo de €500 milhares de euros que corresponde ao valor final a pagar á sucursal.

(…)

Face ao exposto, conclui-se que deveria ter sido liquidado IS à taxa de 5% sobre o valor do negócio, ou seja, sobre 9.496 milhares de euros, pelo que foi liquidado imposto inferior ao devido no montante de €449.800,00 [(€9.496.000 - €500.000) x 5%].

 

9.            A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo n.º 2018... e da liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor total de 518.169,60 €, conforme documento 4 em anexo.

10.          A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de Imposto do Selo e de juros compensatório em 27-09-2018, conforme documento 5 em anexo.

11.          A Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação de Imposto de Selo e de juros compensatórios acima identificadas, em 28-01-2019, conforme documento 7 em anexo.

12.          A reclamação graciosa foi indeferida pela Direção de Finanças de Coimbra, em 20-05-2019.

13.          A Requerente interpôs o presente pedido de pronúncia arbitral em 09-08-2019.

 

3.2. Factos não provados

Não há factos relevantes  para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

3.3. Fundamentação da matéria de facto provada:

A convicção dos árbitros fundou-se nos documentos juntos aos autos pelas partes e na posição das partes demonstrada nas peças processuais produzidas.

 

4. Matéria de direito:

4.1. Objeto e âmbito do presente processo

 

A questão essencial de direito que se coloca neste processo é a de saber qual o valor tributável em sede de Imposto do Selo, para efeitos do disposto na verba 27.1 da Tabela Geral, de um contrato de trespasse de estabelecimento comercial em atividade, com as caraterísticas do celebrado pela Requerente.

 

4.2. A determinação do valor do trespasse para efeitos do disposto na verba 27.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo

 

Importa sublinhar que a Requerente, nas alegações, invocou, entre o mais, que, na Resposta, a Requerida veio apontar diversas circunstâncias que, na sua opinião, são suscetíveis de prejudicar a validade da avaliação realizada pelo Revisor Oficial de Contas Independente, de forma inovadora, que são irrelevantes por consubstanciarem uma fundamentação a posteriori, ao argumentar, em especial: - “Na demonstração do cálculo do valor do trespasse, constante do Parecer do Revisor Oficial de Contas, é indicado que não existia passivo, a não ser o “endividamento aos sócios”, o que, desde logo, indicia a existência de uma confusão conceptual, uma vez que, tratando-se de uma sucursal, os fundos afetos à mesma pela sociedade de que é parte, não qualificam como empréstimos efetuados pelos sócios” (ponto 31.º);

- “Ora, na operação de “trespasse”, a trespassante – B..., B.V. -, naturalmente que procurou ser ressarcida, pela adquirente, dos fundos alocados internamente à atividade da sucursal o que não implica, de modo algum, que se possa entender tal ressarcimento como uma redução do valor intrínseco do negócio transmitido, mas, antes, como parte da contraprestação a obter” (ponto 38.º);”

- Assim, quando o Parecer do Revisor Oficial de Contas refere que “(…) se considerou no cálculo real do valor do trespasse, o valor atual do estabelecimento sem endividamento financeiro líquido, ou seja o seu valor económico deduzido da divida líquida (divida financeira abatida das disponibilidades financeiras) e deduzido dos resultados transitados resultante de atividades de anos anteriores e que ainda não tinham sido distribuídos ao sócio", não leva em conta que não se está perante uma dívida financeira perante terceiros mas, sim, fundos próprios da entidade não residente alocados à atividade da sucursal (ponto 40.º).”

Como ficou consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 628/2014-T, e reiterada na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 577/2016-T, “Num contencioso de mera anulação, como é o que vigora no processo de impugnação judicial e nos processos arbitrais, que são a sua alternativa (artigo 124.º, n.º2, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), tem de aferir-se da legalidade do acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado”.

Termos em que, sendo irrelevante a fundamentação a posteriori, o Tribunal ajuizará tendo por base a fundamentação constante do Relatório de inspeção e do indeferimento da reclamação.

Isto posto, atentemos na questão de mérito.

No caso em apreço não existem discordâncias entre a Requerente e a Requerida sobre o facto de a transmissão do estabelecimento comercial de que aquela foi transmissária reunir todos os pressupostos de que depende a sua sujeição a imposto do selo, ao abrigo da Verba 27.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo. Pelo que, neste domínio, tornam-se desnecessárias quaisquer outras considerações, mais concretamente, este Tribunal não tem de se pronunciar sobre a questão da incidência objetiva.

A divergência que suscitou o presente pedido de pronúncia arbitral radica na determinação do valor tributável do trespasse sujeito a imposto. Dito por outras palavras, a questão a decidir é, pois, a de saber se deve manter-se o valor de Trespasse declarado para liquidação de Imposto do Selo, pela Requerente ou se, pelo contrário, deve prevalecer a alteração feita pela Requerida, através da Inspeção tributária, a esse mesmo valor.

A decisão tem, assim, de pronunciar-se, não sobre se existe o Trespasse de um estabelecimento comercial, mas sobre qual o valor tributável desse Trespasse para efeitos de incidência do imposto do Selo.

Vejamos.

Adiante-se que a particular especificidade de o negócio se ter traduzido na transmissão de um estabelecimento comercial na titularidade de uma sucursal em Portugal de uma entidade não residente para uma sociedade residente de que a entidade que exercia a sua atividade em território português através da mesma sucursal é sócia em 99%, não comporta quaisquer especialidades.

Nomeadamente pelo facto de a casa-mãe da sucursal e que agora detém 99% do capital da sociedade de direito português, a Requerente, ser credora de um passivo relevante transmitido, qualificado como “financiamento”, o que não está em causa. Não existe nenhuma distinção entre o financiamento feito pela casa-mãe e o que poderia ter sido feito por uma instituição de crédito: ambos constituem passivo da entidade financiada.

Por contrato de trespasse transmitiu-se um estabelecimento comercial, isto é “um conjunto unificado de elementos corpóreos e incorpóreos, mas que no conjunto forma uma universalidade de direito, já que a ordem jurídica o trata como uma coisa unitária, objecto de direitos e relações jurídicas distintos dos que incidem sobre os respectivos componentes individualmente considerados”, noção colhida em CORREIA, Miguel j. A. Pupo, Direito Comercial, 5.ª edição, SPB Editores, pp. 267.

O trespasse é o contrato que transmite este conjunto unificado de elementos corpóreos e incorpóreos, mediante um valor, valor esse que, em princípio, é o preço que as partes acordaram.

No quadro fiscal, a sucursal em Portugal de uma entidade não residente (casa-mãe) é tratada como uma entidade independente.

É, pois, nesse quadro de autonomia que a operação de financiamento se situa, tanto mais que ela releva de alteridade jurídica entre as partes contratantes. É a própria NCRF 14, (Concentração de Atividades Empresariais), no seu n.º 6, que diz o seguinte: “Uma concentração de atividades empresariais pode resultar numa relação entre empresa-mãe e subsidiária, na qual a adquirente é a empresa-mãe e a adquirida a subsidiária da adquirente”.

Por outro lado, é consensual, na doutrina e na jurisprudência, a noção de que, por inexistência de regras específicas no Código do Imposto de Selo, que estabeleçam um regime de determinação do valor tributável do trespasse, devem, neste caso, seguir-se as regras previstas naquele código para a determinação do valor tributável dos “contratos de valor indeterminado”.

Nem se diga que a NCRF 14 é chamada para a determinação do valor tributável do trespasse.

Em primeiro lugar, porque o Código do Imposto do Selo não comporta nenhuma norma que, para efeitos da determinação do valor tributável do trespasse, remeta para as normas contabilísticas, ou seja, para o que poderia denominar-se “valor do balanço” do trespasse.

Acolhe-se aqui a posição de ROCHA, António dos Santos e BRÁS, Eduardo José Martins, in Tributação do Património, IMI-IMT e Imposto do Selo (Comentados e Anotados), Almedina, Coimbra, 2018, 2.ª edição, pp. 697, de harmonia com a qual: “O termo goodwil é, por vezes, na sua aceção económico-financeira, associado ao conceito de trespasse. No entanto, em nosso entender, trata de uma realidade diferente”

De facto, segundo a NCRF 14, § 10.º, uma operação como o trespasse, porque incluído nas operações de junção numa única entidade de atividades empresariais separadas, determina-se que seja contabilizada pela aplicação do método de compra.

E, em concreto, no trespasse, a NCRF 14, § 14, esclarece que “a adquirente reconhece os activos, passivos e passivos contingentes identificáveis da adquirida pelos seus justos valores à data da aquisição e reconhece também o goodwill”.

Ora, o Relatório da Inspeção Tributária evidencia que transmitente e transmissária realizaram o negócio de acordo com os valores contabilísticos dos ativos e dos passivos de estabelecimento transmitido. E, para efeitos de Imposto do Selo, não poderiam ser obrigadas a realizá-lo de outro modo. Nem parece apropriado que se possa alterar o valor declarado com uma fundamentação que apela, na sua totalidade, para as normas contabilísticas.

Em segundo lugar porque, sobre a determinação do valor tributável de contratos de valor indeterminado, a que tem de recorrer-se por não existirem normas, no Código do Imposto do Selo, que disponham sobre a determinação do valor tributável do trespasse, dispõe o n.º 3 do artigo 9.º que “Nos contratos de valor indeterminado a sua determinação é efetuada pelas partes, de acordo com os critérios neles estipulados ou, na sua falta segundo juízos de equidade”.

Seguidamente, o artigo 12.º do mesmo Código estabelece que “Sem prejuízo do disposto no artigo 9.º, o serviço de finanças da área do domicílio pode alterar o valor o valor tributável declarado sempre que, nos contratos de valor indeterminado ou na determinação da equivalência em unidades monetárias nacionais de valores representados em espécie, não tiverem sido seguidas, respectivamente, dos artigos 9.º e 11.º”.

No que respeita ao “valor representado em espécie”, a que se refere o artigo 11.º do Código do Imposto do Selo, a única regra que, neste caso, prevalece de entre as nele estabelecidas é a constante da alínea f): a equivalência em unidade monetária nacional dos valores em espécie faz-se “por declaração das partes”.

Tenha-se ainda presente que a norma do artigo 16.º do Código do imposto do selo, embora contenha uma regra de determinação do valor do trespasse na transmissão de um estabelecimento comercial, além da sua inaplicabilidade por via da natureza onerosa da transmissão, também apenas se aplica à transmissão gratuita de estabelecimentos comerciais que não estejam obrigados a possuir contabilidade organizada. Não é o caso.

A incidência objetiva a imposto do selo no trespasse está consagrada no desenvolvimento, na verba 27.1, da verba 27 da TGIS que tributa as “transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços”, especificando a seguir “27.1 – Trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola – sobre o seu valor – 5%”.

Como se referiu, o Código do Imposto do Selo não estabelece regras de determinação do valor tributável dos trespasses – na terminologia da norma de incidência “o seu valor” - quando estes se realizam a título oneroso. E como também já se adiantou, parece, aliás, dar relevância aos “valores declarados pelas partes”, sem prejuízo de atribuir à administração fiscal competência para, fundamentadamente, os alterar (artigo 12.º do Código do Imposto do Selo).

Recorde-se que a Requerente fundamenta o valor de 500.000,00 € atribuído ao trespasse e pelo qual, como sujeito passivo, pagou o correspondente imposto de selo, invocando que o mesmo foi o valor acordado pelas partes nos termos da cláusula terceira do contrato de trespasse de estabelecimento comercial em atividade. E, mais acrescenta, que o valor convencionado pelo trespasse corresponde ao valor real do estabelecimento comercial trespassado, tal como resulta claramente da avaliação realizada pelo Revisor Oficial de Contas independente, de acordo com o Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBIDTA, acrescido do valor em disponibilidades e abatido da dívida ao sócio (Debt Cash Pool) e dos resultados Transitados não distribuídos à data de 31 de agosto de 2014.

Por seu turno, a Requerida contestou o apuramento do valor tributável efetuado pela Requerente com a asserção de que, assente numa operação de compensação de saldos, comummente utilizada nas relações comerciais, a A..., Lda., em vez de assumir um passivo de 9.496 milhares e um ativo de 9.000, reconheceu um passivo de € 500 milhares que corresponde ao valor final a pagar à sucursal (a transmitente).No seu entender, o valor do trespasse, para efeitos de sujeição a imposto de selo, deveria ascender a € 9.496 milhares de euros. E nesta base foi feita a liquidação adicional de imposto de selo, acrescida de juros compensatórios, tudo no montante de € 518.169,60, que a Requerida impugna.

SALDANHA SANCHES e BORGES, Manuel Anselmo, em A incidência de Selo sobre o trespasse de Estabelecimento, Fiscalidade n.º 32, outubro-dezembro de 2007, referiam-se ao “conceito de trespasse no direito do balanço” nos termos seguintes:

O Plano Oficial de Contabilidade e as directrizes contabilísticas da Comissão de Normalização Contabilística que o complementam, adoptam um conceito próprio de trespasse, definindo-o como a diferença entre o custo de aquisição e o justo valor dos respectivos activos e passivos identificáveis. O trespasse constitui, assim, por definição, a parte do custo de aquisição uma empresa atribuível aos activos e passivos não identificáveis, tais como a clientela, o bom nome e outros que também se usa designar por “aviamento”, “fonds de commerce” ou “goodwill”.

O conceito contabilístico de trespasse tem a sua relevância limitada ao tratamento contabilístico de certas operações de concentração de empresas e destina-se apenas a analisar o custo de aquisição em diferentes componentes para efeitos do seu reconhecimento contabilístico no balanço e na demonstração de resultados.

O conceito contabilístico de trespasse refere-se, portanto, a um valor integrante do custo de uma aquisição, mas não se refere à transmissão em si.

Conclui-se, assim, que não é nas regras contabilísticas que se deve encontrar a solução para o problema colocado pela Verba 27.1 do Código do Imposto dos Selo: determinar o valor tributável do trespasse.

Constata-se, por outro lado, que, de harmonia com o Relatório da IT (p. 10/11), o “Balancete acumulado em Final de 08-2014 em euros” da C... – Sucursal de Portugal, composto por 38 páginas, apresentava um saldo total de ativos reconhecidos no valor de € 14.863.622,19.

No entanto a própria IT reconheceu que, “de acordo com o balancete, o valor contabilístico dos ativos reconhecidos na C..., Sucursal de Portugal, ascendia a € 14.863.622,19, dos quais € 6.726.080,99 respeitavam a mercadorias, assumindo os passivos o valor de € 12.153.624,86, para o qual contribui significativamente o financiamento contraído junto da empresa detentora da sucursal, a B... BV, com um saldo no montante de € 7.860.987,63. Consequentemente os capitais próprios apresentavam um valor positivo de € 2.709.997,33”.

Resulta, ainda do relatório da IT (p.11) que o Diário dos movimentos que reflitam o reconhecimento contabilístico reflete o reconhecimento na A..., Lda. de todos os ativos, passivos e capital próprio que integravam o balancete referido no número anterior. Ou seja, decorrente do trespasse, a B... reconheceu na sua contabilidade todos os itens que faziam parte da contabilidade da sucursal exatamente pelos mesmos montantes que naquela se encontravam reconhecidos.

Perante este quadro, não se afigura que a posição defendida pela Requerida possa acolher provimento.

Com efeito, o património líquido recebido pela Requerente foi de € 14.863.622,19 – (64.886,70 saldo de caixa – 1.255.073,02 depósitos à ordem – 2.459.354,77 resultados transitados - € 250.642,56 resultado líquido do período) = € 10.833.665,14. Trata-se, pois, da diferença entre os ativos recebidos e o passivo assumido pelo trespasse.

O preço devido à transmitente poderia considerar-se a soma do valor do Trespasse acordado pelas partes com a dívida assumida para com o sócio, no montante de € 500.000,00 + 7.860.987,63 = € 8.360.987,63, mas nunca acrescido do “valor dos capitais próprios”, um valor que aqui releva de neutralidade. Ou seja, é claramente negativa a diferença entre valor do património líquido recebido pela requerente e o preço que por ele pagou.

Termos em que procede a tese da Requerente, de acordo com a qual, no estrito quadro legal decorrente do Código do Imposto do Selo, o valor do trespasse a ele sujeito é o “preço” que as partes acordaram no contraste, não existindo qualquer suporte legal para a alteração feita pela Requerida.

Finalmente, importa salientar que, mesmo que assim se não entendesse, o Tribunal teria sempre de concluir pela ilegalidade.

Com efeito, como vimos, a Requerida para chegar ao valor que chegou quanto ao montante do trespasse limitou-se a procedeu à alteração do valor declarado na Cláusula Terceira do Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial em Atividade celebrado em 29 de agosto de 2014 entre a B... e a Requerente, substituindo o valor acordado pelas Partes, no montante de €500.000, 00 pelo de €9.496.000,00.

Ora, argumenta a Requerente que caso a Requerida entendesse ser impossível a determinação do valor tributável em sede de IS por métodos diretos (ou seja, por referência aos elementos declarados pela Requerente e constantes dos contratos celebrados e analisados em sede inspetiva), competir-lhe-ia, por um lado, demonstrar essa impossibilidade de comprovação e de verificação direta e exata dos elementos indispensáveis ao apuramento do valor tributável do imposto e, por outro, fundamentar os critérios alternativos utilizados para a determinação da matéria tributável por métodos indiretos, nos termos da Lei Geral Tributária.

Na verdade, ao recorrer a métodos diretos, através de correção meramente aritmética, mediante a qual a inspeção tributária efetuou a alteração ao valor declarado do trespasse, está em causa uma violação do n.º 2 do artigo 9.º do IS, quanto à não utilização do método indireto para a prática do ato de determinação do valor tributável.

Assim sendo, procede a argumentação da Requerente, devendo ser anulada a liquidação de Imposto do Selo e a liquidação e juros compensatórios sindicadas nos presentes autos.

Nestes termos, é ilegal o ato de liquidação de Imposto do Selo n.º 2018 ... e da liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor total de 518.169,60 €, devendo ser anuladas nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c) da LGT. 

 

5. Juros indemnizatórios

A Requerente pede que seja condenada a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º n.º 1 da LGT.

O artigo 43º n.º 1 da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

Nos presentes autos, verifica-se que a ilegalidade da liquidação controvertida é imputável à AT.

Assim, a Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago e aos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos arts. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde a data do pagamento do imposto, à taxa resultante do n.º 4 do art. 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que serão incluídos.

 

6. Decisão

Em face do exposto, determina-se:

a)            Julgar procedente o pedido formulado pela Requerente no presente processo arbitral, quanto à liquidação de Imposto do Selo n.º 2018 ... e da liquidação de juros compensatórios n.º 2018 ..., no valor total de 518.169,60 €;

b)           Julgar procedente o pedido de condenação da AT a reembolsar à Requerente o valor do imposto indevidamente pago, e ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tal pagamento foi efetuado até à data do integral reembolso do mesmo;

c)            Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

6. Valor do processo:

De acordo com o disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor da ação em 518.169,60€.

 

7. Custas:

Nos termos do artigo 22º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 7.956,00 €, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22º n.º 4 do RJAT.

 

Notifique.

Lisboa, 12 de junho de 2020.

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, por mim revisto.

 

A Presidente do Tribunal Arbitral

Fernanda Maçãs

 

A Árbitro vogal

Suzana Fernandes da Costa

 

O Árbitro vogal

Eduardo Paz Ferreira