Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 490/2019-T
Data da decisão: 2020-11-30  IRS  
Valor do pedido: € 14.801,97
Tema: IRS – Transparência fiscal – Usufruto de quotas
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Pedro Miguel Bastos Rosado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:  

 

I.             Relatório

 

1.    A..., contribuinte fiscal número ... e mulher B..., que também usa B..., contribuinte fiscal número ..., casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes na Rua ..., número ..., ..., ...-..., doravante designada por Requerentes, apresentaram, em 23 de julho de 2019, pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista a anulação da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelos Requerentes, em 28 de dezembro de 2018, bem como a anulação parcial dos seguintes actos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS):

(i) Acto de liquidação de IRS n.º 2015..., de 2015, relativa a IRS do ano de 2014, nos termos do qual resultou o valor a reembolsar de € 7.090,57;

(ii) Acto de liquidação de IRS n.º 2016..., de 2016, relativa a IRS do ano de 2015, nos termos do qual resultou o valor a reembolsar de € 3.804,64;

(iii) Acto de liquidação de IRS n.º 2017..., de 2016, relativa a IRS do ano de 2016, nos termos do qual resultou o valor a pagar de € 3.910,29;

(iv) Acto de liquidação de IRS n.º 2018..., de 2017, relativa a IRS do ano de 2017, nos termos do qual resultou o valor a pagar de € 6.173,54,

sendo Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada por Requerida ou AT.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 24 de julho de 2019, e posteriormente notificado à AT.

 

3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou, em 11 de setembro de 2019, o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo legal.

 

4. Em 11 de setembro de 2019, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 1 de outubro de 2019.

 

6. Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes alegaram, em síntese, o seguinte:

 

6.1. Que “Nas liquidações de IRS supra identificadas o rendimento imputado ao Requerente A..., a título de rendimento da categoria B, resulta da aplicação do regime da transparência fiscal previsto no art. 6 do CIRC relativo à sociedade comercial por quotas denominada C..., Lda.”;

 

6.2. Que “Não se verificam, no entanto, em nenhum dos anos/exercícios identificados (2014, 2015, 2016 e 2017), os pressupostos legais para aplicação do referido regime da transparência fiscal tal como definido no art. 6 do CIRC.”;

 

6.3. Que “os usufrutuários das quotas, E... e D..., são também sócios da sociedade”;

 

6.4. Que “o Requerente A... não é, nem era nos anos considerados, o único socio profissional da actividade nem titular do direito aos lucros sobre as duas quotas no valor nominal de € 67.000, atribuído em exclusivo aos respectivos usufrutuários, pelo que não podia ter sido, como foi, aplicado o regime decorrente da transparência fiscal previsto no art. 6 do CIRC nem, por via dessa aplicação, imputado a este Requerente a totalidade da matéria coletável apurada à identificada sociedade em sede de IRC.”;

  

7. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta e remeteu o “processo administrativo” (adiante designado apena por PA).

 

8. Na sua resposta, a AT suscitou a exceção de litispendência e uma questão prejudicial para obstar à apreciação do pedido e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

9. Ainda na sua Resposta, a AT invocou, em síntese, o seguinte em matéria de impugnação:

 

9.1. Que “O rendimento apurado, a título de rendimento da categoria B, resulta da aplicação do regime de transparência fiscal previsto no art. 6º do CIRC.”;

 

9.2. Que “No caso dos autos, estamos perante uma sociedade profissional, para efeitos do nº 4 do art. 6º do CIRC, porquanto se trata de uma sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que alude o art. 151º do CIRS, cujo capital social é detido totalmente por um único sócio profissional – o requerente.”;

   

9.3. Que “Efectivamente, e não obstante E... e D... serem usufrutuários de quotas e, consequentemente, terem direito à distribuição de lucros na proporção das quotas de que são usufrutuários, a C..., Lda., nos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, tem apenas um sócio – o ora requerente A...- titular da totalidade do capital social.

 

9.4. Que “face ao disposto no art. 6º do CIRC, estão reunidos os pressupostos para a aplicação do regime da transparência fiscal e para a tributação, ao sócio ora requerente, nos termos em que o foi, nas liquidações acima identificadas.”; 

   

10. Por despacho de 11 de novembro de 2019, foi determinada a notificação dos Requerentes para, no prazo de 10 dias, execerem, querendo, o contraditório em relação à exceção de litispendência e à questão prejudicial alegadas pela AT na Resposta.

 

11. Em 19 de novembro de 2019, os Requerentes exerceram o contraditório em relação à exceção de litispendência e à questão prejudicial alegadas pela AT na Resposta.

 

12. Por despacho de 1 de abril de 2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi determinado que, restringindo-se a controvérsia a questões de direito, se afigurava, em consonância com o preceituado artigo 113.º, n.º 1, do CPPT, serem desnecessárias alegações e, como tal, foi a sua produção dispensada.

 

13. Dada a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a suspensão de prazos desde 9 de março de 2020 até 2 de junho de 2020, bem como a complexidade de algumas das questões a decidir, o Tribunal decidiu a prorrogação do prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do artº 21º nº 2 RJAT (Despachos de 1 de junho de 2020, de 29 de julho de 2020 e de 1 de outubro de 2020).

 

II. Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. Da tempestividade da apresentação do pedido de pronúncia arbitral

 

No caso de impugnação administrativa directa de um acto de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do acto de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo sujeito passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito de meio de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objecto directo acto de liquidação se baseia em razões substantivas e não por razões formais.

De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto directo actos de liquidação, é de considerar que o acto ficcionado conhece da legalidade de acto de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e para) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o processo arbitral.

 

O pedido de revisão oficiosa que precede o presente pedido de pronúncia arbitral deu entrada num momento em que o prazo de decisão expressa da Administração Tributária é de quatro meses, findos os quais se presume o indeferimento tácito do pedido (artº. 57.º nºs 1 e 5 da LGT).

 

A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser despoletada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços (o qual compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, mas também o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afectada pelo erro), nos termos do disposto no artigo 78º nº 1 da LGT.

 

Atendendo aos anos da emissão das liquidações em crise (2015, 2016, 2017 e 2018) e à data do pedido de revisão oficiosa (28 de dezembro de 2018), o pedido de revisão oficiosa foi tempestivo.  

 

Por conseguinte, volvidos quatro meses após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, presume-se o indeferimento tácito do mesmo, momento esse, por sua vez, relevante para o cálculo e início da contagem do prazo de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial, segundo o disposto no art. 57.º, n.º 5, da LGT e 106.º do CPPT.

 

Nos termos do art. 57.º, n.º 3, da LGT, "no procedimento tributário, os prazos são contínuos e contam-se nos termos do Código Civil".

 

Ainda nos termos do art. 20.º, n.º 1, do CPPT, "os prazos do procedimento tributário e de impugnação judicial contam-se nos termos do art. 279.º do Código Civil", assim deixando clara a natureza procedimental destes prazos, para efeito da sua contagem.

 

Tendo o pedido de revisão oficiosa dado entrada no serviço competente no dia 28 de dezembro de 2018, o cômputo do termo – 4 meses – fixa-se a 28 de abril de 2019, de acordo com o art. 279.º, alínea d) do Código Civil.

 

No caso em apreço, formou-se indeferimento tácito em 28 de abril de 2019, sendo no dia seguinte que se inicia o prazo para deduzir pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Em caso de presunção de indeferimento tácito, o prazo para formular o pedido de constituição de tribunal arbitral é de 90 dias, de acordo com o art. 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT.

 

Por conseguinte, o pedido de constituição do tribunal arbitral é tempestivo, uma vez que este deu entrada no dia 23 de julho de 2019.

 

5. Da impugnação de indeferimentos tácitos e da competência do Tribunal 

 

Como ensina o Conselheiro Jorge Lopes Cardoso, “o indeferimento tácito não é um ato, mas uma ficção destinada a possibilitar o uso dos meios de impugnação administrativo e contenciosos, como decorre do preceituado no nº 5 do artigo 57º da LGT.

Apesar de o artigo 2º, nº 1, do RJTA fazer referência apenas a declaração de igualdade de atos, é inequívoco que nela se abrange a declaração de igualdade de indeferimentos tácitos, pois o nº 1 do seu artigo 10º do RJAT faz referência aos «factos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 102º do Código de procedimento e de Processo Tributário» e a «formação da presunção de indeferimento tácito» vem indicada na alínea d) do nº 1 deste artigo 102º.” (in Guia da Arbitragem Tributária, 3ª Edição, Almedina, pág. 132).

 

 “O indeferimento tácito presume-se que se baseia em razões de mérito e não em obstáculos processuais. Ao deixar de se pronunciar sobre a pretensão do contribuinte em que imputa ilegalidades ao ato impugnado, a administração tributaria indeferiu-a, presumindo-se que não reconheceu nesse ato as ilegalidades que lhe foram imputadas. Está em causa apreciar mediatamente, a legalidade do ato impugnado, saber se, fosse proferida decisão ela devia ou não ser deferida.” (idem, pág. 137)

 

Por conseguinte, o Tribunal é competente.

 

III. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Dão-se como provados os seguintes factos com potencial relevo para a decisão:

 

A) Até 10 de setembro de 2013, a sociedade C... Lda. tinha um capital social de 200.000,00€, distribuído da seguinte forma: (i) Quota no valor nominal de 67.000,00€ de que é titular E...; (ii) Quota no valor nominal de 67.000,00€ de que é titular D...; (iii) Quota no valor nominal de 67.000,00€ de que é titular A... (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

B) Em Setembro de 2013, foi alterada a estrutura social da C..., Lda., que passou a ter o capital social distribuído da seguinte forma: (i) Quota no valor nominal de 67.000,00€ de A..., titular da nua propriedade e de E... (NIF ...), titular do usufruto; (ii) Quota no valor nominal de 67.000,00€ de A..., titular da nua propriedade e de D... (NIF...), titular do usufruto; (iii) Quota no valor nominal de 66.000,00€ de A... (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

C) A sociedade comercial por quotas actualmente denominada C..., Lda. tem como objecto social o exercício de prestação de serviços de contabilidade, gestão e administração de empresas, consultadoria fiscal, auditorias a empresas e apoio a projectos económicos e de investimento, compra e venda de imóveis para revenda, sua gestão e administração, e como CAE principal o 69200-R3 (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

D) A... e E... são contabilistas certificados (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

E) D... não é contabilista, nem nunca esteve inscrita como contabilista certificada na Ordem dos Contabilistas Certificados (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

F) A sociedade C..., Lda, com referência aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, apresentou a declaração de rendimentos Modelo 22/IRC, com a inscrição do regime de transparência fiscal como regime de tributação os rendimentos) (documentos n.ºs 1.3, 2.3, 3.3 e 4.3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

G) Nos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, os Requerentes apresentaram as respectivas Modelo 3/IRS todas elas acompanhadas do Anexo D, onde está inscrita a imputação da totalidade da matéria colectável da sociedade ao Requerente A... (documentos n.ºs 1.2, 2.2, 3.2 e 4.2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

H) Relativamente ao ano de 2014, foi emitida e enviada aos Requerentes a liquidação de IRS sob o nº 2015..., nos termos da qual resultou o valor a reembolsar de € 7.090,57, que os Requerentes receberam (documento n.º 1.1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

I) Relativamente ao ano de 2015, foi emitida e enviada aos Requerentes a liquidação de IRS sob o nº 2016..., nos termos da qual resultou o valor a reembolsar de € 3.804,64, que os Requerentes receberam (documento n.º 2.1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

J) Relativamente ao ano de 2016, foi emitida e enviada aos Requerentes a liquidação de IRS sob o nº 2017..., nos termos da qual resultou o valor a pagar de € 3.910,29, que os Requerentes pagaram (documento n.º 3.1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

L) Relativamente ao ano de 2017, foi emitida e enviada aos Requerentes a liquidação de IRS sob o nº 2018..., nos termos da qual resultou o valor a pagar de € 6.173,54, que os Requerentes pagaram (documento n.º 4.1. junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

                M) Em 28 de Dezembro de 2018, os Requerentes apresentaram no Serviço de Finanças de Lisboa –..., um pedido de revisão oficiosa das liquidações identificadas nos documentos 1.1, 2.1, 3.1 e 4.1 (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

N) Até à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes não foram notificados de qualquer decisão proferida no identificado procedimento de revisão oficiosa.

 

O) A sociedade C..., Lda apresentou uma impugnação judicial no Tribunal Tributário de Lisboa, a qual está a correr os seus termos como Procº .../19... BELRS desde Abril de 2019 (documento n.º 1 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido).

 

P) Em 23 de julho de 2019, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2. Fundamentação da matéria de facto dada como provada

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, juntos pela Requerida na Resposta e no processo administrativo, cuja autenticidade não foi colocada em causa. 

 

3. Factos não provados

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

III.          Matéria de Direito

 

III.1  Questão da litispendência e suspensão da instência por questão prejudicial

 

Na sua Resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a questão da litispendência, por estar pendente num Tribunal Administrativo e Fiscal, designdamente por a sociedade C..., Lda ter apresentado uma impugnação judicial no Tribunal Tributário de Lisboa, a qual está a correr os seus termos como Procº.../19... BELRS desde Abril de 2019.

 

Subsidiariamente, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que deve ser suspensa a instância até decisão do referido processo de impugnação judicial.

 

A Requerida defende, em suma:

 

a) Que “A sociedade C... Lda. instaurou contra a AT uma impugnação judicial em relação aos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 em que, entre outros aspectos, suscita uma alegada ilegalidade no enquadramento da sociedade no regime especial da transparência fiscal, a qual está a correr os seus termos no Tribunal Tributário de Lisboa, Procº .../19... BELRS. (cfr. Doc. em anexo, artºs 22º a 34º do mesmo)”;

 

b) Que “No caso presente, o requerente, na qualidade de sócio da dita sociedade, vem também impugnar o enquadramento da sociedade no regime da transparência fiscal, pelas consequências do mesmo na tributação dos seus rendimentos, em sede de IRS”;

 

c) Que “Estamos, portanto, perante uma situação em que o pedido e a causa de pedir que constituem o pedido de pronúncia arbitral estão a ser apreciados (ainda que, num âmbito mais amplo) no TT de Lisboa.”;

 

d) Que “É o mesmo facto jurídico que está a ser escrutinado para efeitos de invalidade, pretendendo-se, em ambas as impugnações, e no que toca ao regime da transparência fiscal, o mesmo efeito jurídico.”;

 

e) Que “Existe uma prejudicialidade entre a impugnação judicial instaurada pela sociedade C... Lda. e o presente pedido de pronuncia arbitral, pelo que, desde já, se requer: (i) A absolvição da AT da instância, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do art. 577º e nº 2 do art. 576º do CPC, ou, se assim, se não entender, e atenta a prejudicialidade invocada, (ii) A suspensão da instância, por pendência de causa prejudicial, nos termos do nº 1 do art. 272º do CPC.”.

 

                Notificados para responderem, querendo, à matéria de excepção, os Requerentes vieram dizer, em suma:

                                              

a) Que “constitui objecto e pedido da presente acção a apreciação do indeferimento tácito sobre o pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRS emitidas aos Requerentes e relativas aos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, com fundamento na ilegalidade das referidas liquidações, na parte em que foi imputado ao Requerente A..., a totalidade da matéria colectável da sociedade comercial por quotas identificada nos autos,  por errada aplicação, nessas liquidações, do regime da transparência fiscal.”;

 

b) Que “Na acção identificada pela AT em que é parte a sociedade comercial por quotas denominada C..., Lda, o seu objecto e pedido é a anulação das liquidações adicionais de IRC, emitidas em 2019, e relativas aos exercícios de 2015 e 2016, que resultaram das correções técnicas consequentes de acção de fiscalização efectuada pelos Serviços de Inspeção Tributária”;

 

c) Que os “fundamentos de impugnação são absolutamente diferentes do fundamento da presente acção, nem aliás podia ser de forma diferente pois aquelas liquidações reproduzem correcção ao apuramento da matéria colectavel da sociedade em sede de IRC, sem qualquer ligação à imputação futura aos sócios.”;

 

d) Que “em nada colide com as liquidações dos autos, muito anteriores àquelas correcções e liquidações de IRC.”;

                                                              

e) Que “a identificada acção não se dirige aos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 mas, conforme referido, às liquidações adicionais, elaboradas em 2019, do IRC dos anos de 2015 e 2016.”;

 

f) Que “não existe identidade nem de pedido nem de causa de pedir entre os presentes autos e aquela outra acção nem “ É o mesmo facto jurídico que está a ser escrutinado para efeitos de invalidade….”, conforme certamente  a AT não ignora.”;

 

                g) Que “não existe pois nenhuma relação de prejudicialidade entre os presentes autos e aqueles outros pendentes no TT de Lisboa, sendo totalmente injustificada a pretensão de absolvição da instância ou até de suspensão da instância.”;

 

                h) Que “no caso concreto a decisão a tomar na acção pendente no TT de Lisboa – anular ou não as liquidações adicionais de IRC, emitidas em 2019 sobre os exercícios de 2015 e 2016- nenhuma relevância ou influência tem ou poderá ter sobre o conhecimento e a decisão dos presentes autos.”;

 

i) Que “não pode proceder a pretensão da AT pois não existe qualquer dependência ou prejudicialidade entre as duas acções em que as partes não são as mesmas, as liquidações são diferentes e as questões em discussão também.”;

 

Como resulta dos artigos 580.º e 581.º do CPC, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a excepção da litispendência pressupõe a repetição de uma causa, considerando-se que há repetição quando há entre os dois processos identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

 

A litispendência ocorre quando se repete uma causa, ocorrendo repetição «quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir» [artigos 580.º e 581.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT].

 

Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 581.º do CPC «há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico».

Na verdade, a excepção da litispendência pressupõe a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência [artigo 580.º, n.º 1, do CPC, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT].

A excepção da litispendência tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (n.º 2 do artigo).

                No caso em apreço é manifesto que os sujeitos são distintos e que os Requerentes pretendem obter um efeito jurídico com vista à anulação de quatro actos de liquidação, que pela natureza do imposto em questão e anos fiscais em causa, não estão a ser discutidos no processo de impugnação judicial.

 

Não há, assim, identidade de sujeitos e de pedidos o que basta para concluir que não se verifica uma situação de litispendência entre o presente processo e o referido processo de impugnação judicial.

 

                É verdade que a sociedade autora do processo de impugnação judicial também questiona no âmbito de tal processo a verificação dos pressupostos relativos ao enquadramento no regime da transparência fiscal. Todavia, circunstância não é suficiente, no entender do Tribunal, para se verificar a excepção de litispendência e/ou de uma questão prejudicial.

Não se verificando os requisitos exigidos pelo artigo 581.º do CPC (os requisitos do caso julgado são os mesmos da litispendência, como se vê por este artigo), os Requerentes não são abrangidos pela força obrigatória da decisão que nele for proferida (artigo 619.º, n.º 1, do CPC), pelo que, mesmo qualquer naquele processo se afirme o erróneo enquadramento da sociedade no regime da transparência fiscal, os Requerentes não estão impedidos de o discutir no presente processo.

 

Assim, também não há relação de dependência do presente processo em relação ao referido processo de impugnação judicial, pelo que não se justifica a suspensão da instância.

 

Por isso, não havendo identidade de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir, nem causa prejudicial, improcede a excepção da litispendência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira e indefere-se igualmente o pedido de suspensão da instância.

 

III 2. Da legalidade das liquidações de IRS

 

2.1 Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes alegaram, em síntese, o seguinte:

 

a) Que “Nas liquidações de IRS supra identificadas o rendimento imputado ao Requerente A..., a título de rendimento da categoria B, resulta da aplicação do regime da transparência fiscal previsto no art. 6 do CIRC relativo à sociedade comercial por quotas denominada C..., Lda.”;

 

b) Que “Não se verificam, no entanto, em nenhum dos anos/exercícios identificados (2014, 2015, 2016 e 2017), os pressupostos legais para aplicação do referido regime da transparência fiscal tal como definido no art. 6 do CIRC.”;

 

c) Que “os usufrutuários das quotas, E... e D..., são também sócios da sociedade”;

 

d) Que “o Requerente A... não é, nem era nos anos considerados, o único socio profissional da actividade nem titular do direito aos lucros sobre as duas quotas no valor nominal de € 67.000, atribuído em exclusivo aos respectivos usufrutuários, pelo que não podia ter sido, como foi, aplicado o regime decorrente da transparência fiscal previsto no art. 6 do CIRC nem, por via dessa aplicação, imputado a este Requerente a totalidade da matéria coletável apurada à identificada sociedade em sede de IRC.”;

  

Na sua resposta, a AT defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e invocou, em síntese, o seguinte em matéria de impugnação:

 

a) Que “O rendimento apurado, a título de rendimento da categoria B, resulta da aplicação do regime de transparência fiscal previsto no art. 6º do CIRC.”;

 

b) Que “No caso dos autos, estamos perante uma sociedade profissional, para efeitos do nº 4 do art. 6º do CIRC, porquanto se trata de uma sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que alude o art. 151º do CIRS, cujo capital social é detido totalmente por um único sócio profissional – o requerente.”;

   

c) Que “Efectivamente, e não obstante E... e D... serem usufrutuários de quotas e, consequentemente, terem direito à distribuição de lucros na proporção das quotas de que são usufrutuários, a C..., Lda., nos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, tem apenas um sócio – o ora requerente A...- titular da totalidade do capital social.

 

d) Que “face ao disposto no art. 6º do CIRC, estão reunidos os pressupostos para a aplicação do regime da transparência fiscal e para a tributação, ao sócio ora requerente, nos termos em que o foi, nas liquidações acima identificadas.”; 

 

2.2 Apreciação das questões suscitadas pelos Requerentes

 

As questões suscitadas pelos Requerentes prendem-se, em suma, com a alegada não verificação, nos anos/exercícios identificados (2014, 2015, 2016 e 2017) dos pressupostos legais para aplicação do referido regime da transparência fiscal tal como definido no art. 6 do CIRC e com ilegal imputação ao Requerente A... da totalidade da matéria coletável da sociedade identificada, e não apenas em parte, dado que no entender dos Requerentes os usufrutuários das quotas também são sócios da sociedade e têm direito aos lucros.

 

2.2.1. Questões da verificação, nos anos/exercícios identificados (2014, 2015, 2016 e 2017) dos pressupostos legais para aplicação do referido regime da transparência fiscal tal como definido no art. 6 do CIRC e da eventual qualificação dos titulares do direito do usufruto como sócios da sociedade

 

Como refere a AT na sua Resposta, a matéria controvertida nos presentes autos prende-se com o regime de transparência fiscal, previsto no art. 6º do CIRS, segundo o qual:

 

“1 – É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros: a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial; b) Sociedades de profissionais; c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público.”

 

E, de acordo com a alínea a) do nº 4 do art. 6º do CIRC, é considerada “sociedade profissional”:

“1) A sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa atividade; ou, 2) A sociedade cujos rendimentos provenham, em mais de 75 %, do exercício conjunto ou isolado de atividades profissionais especificamente previstas na lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, desde que, cumulativamente, durante mais de 183 dias do período de tributação, o número de sócios não seja superior a cinco, nenhum deles seja pessoa coletiva de direito público e, pelo menos, 75 % do capital social seja detido por profissionais que exercem as referidas atividades, total ou parcialmente, através da sociedade” (redação introduzida pela Lei n.º 82-C/2014, de 31 de dezembro, aplicável aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2015).

 

Por seu turno, o art. 20º do CIRS estipula que: “1 – Constitui rendimento dos sócios ou membros das entidades referidas no artigo 6.º do Código do IRC, que sejam pessoas singulares, o resultante da imputação efetuada nos termos e condições dele constante ou, quando superior, as importâncias que, a título de adiantamento por conta de lucros, tenham sido pagas ou colocadas à disposição durante o ano em causa. 2 – Para efeitos do disposto no número anterior, as respetivas importâncias integram-se como rendimento líquido na categoria B.”

 

Entende a AT que, no caso dos autos, estamos perante uma sociedade profissional, para efeitos do nº 4 do art. 6º do CIRC, porquanto se trata de uma sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que alude o art. 151º do CIRS, cujo capital social é detido totalmente por um único sócio profissional – o Requerente marido.

 

Mais alega a AT que “as qualidades de sócio e usufrutuário de participações sociais são realidades jurídicas distintas, inconfundíveis entre si, porquanto o sócio mantém as obrigações e os direitos correspondentes à titularidade da quota, enquanto o usufrutuário tem direito a receber os lucros distribuídos correspondentes à duração do usufruto.”.

 

Diversamente, os Requerentes entendem que D... é “sócia” e “não é nem nunca foi, em particular nos anos e exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, contabilista certificada nem exerceu funções inerentes a tal qualidade” e que “os sócios profissionais e que exercem as actividades inerentes à categoria de contabilistas certificados, E... e A..., não detém 75% do capital social que ali se exige.”.

 

Ou seja, entendem os Requerentes que o Requerente A... não é, em consequência dos usufrutos de duas quotas, o único sócio da sociedade C..., Lda., pois que os usufrutuários são sócios da sociedade e, em consequência, não se verificam, em nenhum dos anos/exercícios identificados (2014, 2015, 2016 e 2017), os pressupostos legais para aplicação do referido regime da transparência fiscal tal como definido no art. 6 do CIRC.

 

É assim manifesto que a questão essencial consiste na qualificação ou não como sócios da sociedade C..., Lda. dos titulares do direito do usufruto e, contrariamente, a não qualificação como sócio do Requerente A..., relativamente às seguintes quotas: (i) Quota no valor nominal de 67.000,00€ em que A... é titular da nua propriedade e em que E... (NIF...) é titular do usufruto; e (ii) Quota no valor nominal de 67.000,00€ em que A... é titular da nua propriedade e em que D... (NIF...) é titular do usufruto.

 

Se os usufrutuários das referidas quotas forem sócios da sociedade, ao invés do titular da nuas propriedades (ou quiça que ambos sejam sócios como parece defenderem os Requerentes), poderíamos então considerar que não se verificam em nenhum dos anos/exercícios identificados (2014, 2015, 2016 e 2017), os pressupostos legais para aplicação do referido regime da transparência fiscal tal como definido no art. 6 do CIRC.

 

Sobre a matéria das sociedades sujeitas ao regime da transparência fiscal, escreve o Dr. Rui Morais, in «Apontamentos ao IRC», 2007, pag. 36, que: “7...] A incidência do IRC sobre os lucros (incluindo os distribuído aos sócios, no caso, pessoas físicas) faz com que aconteça uma dupla tributa ção económica, pois que os dividendos são considerados rendimento de capital, tributáveis em IRS na pessoa dos sócios.

Esta questão avulta estando em causa saciedades em que o elemento pessoal é dominante. A diferenciação económica entre a sociedade e os respectivos sócios esbate-se, sendo, portanto, menos clara a existência de diferentes capacidades contributivas. O “valor” da sociedade não resulta tanto do capital investido mas das pessoas dos sócios, os quais, em muitos casos, nela exercem a sua actividade profissional. O lucro dos sócios é, em larga medida, a remuneração do êxito do seu trabalho.

Inversamente, poderão ocorrer situação em que a interposição de uma sociedade pode resultar num economia de Imposto. A sociedade aparecerá, então, como uma estrutura forma que titula determinadas fontes geradoras de rendimento, “abrigando-os da tributação que aconteceria se auferidos directamente pelos s6cios, pelo menos durante o intervalo temporal até à sua distribuição a estes.

Ou seja, duas diferentes motivações - justiça fiscal ou prevenção de certas formas de elisão fiscal - podem ditar que se ignorem as consequências normais que, em termos de imposto, decorrem da personalidade jurídica das sociedades, que se consagre aquilo que, vulgarmente, é designado por transparência fiscal [...]”

Também, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 442-6/88, que aprova o CIRC, define como objetivo da consagração do regime de transparência fiscal no sentido de criar neutralidade, combate à evasão fiscal e eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos aos sócios.

 

Por conseguinte, é entendimento do Tribunal que o referido regime assenta, essencialmente, na atividade prosseguida pelos sócios da sociedade, atividade esta que constando da lista a que se alude no art.° 151.° do CIRS determina a aplicação do aludido regime de transparência fiscal.

 

Assim, quando se alude no art.° 6.° do CIRC à pessoa dos sócios, tal referência deve ser entendida como uma estatuindo uma abrangência geral daqueles que detêm a referida qualidade numa sociedade.

 

Ora, dispõe o artigo 1439.º do Código Civil, com a epígrafe “Noção”, que:

 

Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância.

(sublinhado nosso)

 

Como referem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2º Ed revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág 459 e segs. “Ao lado do usufrutuário, há o proprietário da coisa, o titular do crédito, das acções ou das partes sociais. No caso mais vulgar do usufruto de coisas, dá-se a esse outro titular o nome de nu proprietário ou proprietário da raiz.

E essa é, de facto, a construção doutrinária que melhor retrata o desmembramento da propriedade plena, operado com a constituição do usufruto, e que melhor sintetiza, no plano dos conceitos jurídicos, as soluções legais respeitantes às causas e consequências da extinção do usufruto (cfr., especialmente, o disposto no art. 1476.º, 1, alíns. c) e e)), à fixação do momento em que os direits do proprietário ingressam no seu património (cfr., especialmente os arts. 1471.º e segs., 1461.º, etc.), à aforma como se distribuem entre os interessados os poderes correspondentes à titularidade das acções de sociedades anónimas ou das partes sociais nas sociedades de outro tipo, etc.

Apesar de conferir ao titular o direito de gozar plenamente (utifrui) a coisa ou o direito, o usufruto não lhe atribui o poder de dispor plenamente desta coisa ou direito.

Os poderes do usufrutuário estão sujeitos a um limite, que é o respeito da forma e da substância da coisa ou do direito. Enquanto o proprietário, como titular de uma plena potestas in re própria, pode, em princípio, alterar livremente a forma e a substância da coisa (salvas as limitações decorrentes de algum direito real limitado), ao usufrutuário, como sujeito de um ius in re aliena, não é lícito fazê-lo sem consentimento do proprietário da raiz.”

 

Dispõe também o 1467.º do Código Civil, sob a epígrafe “Usufruto de títulos de participação”, que:

1.            O usufrutuário de acções ou de partes sociais tem direito:

a)            Aos lucros distribuídos correspondentes ao tempo de duração do usufruto;

b)           A votar nas assembleias gerais, salvo quando se trate de deliberações que importem alteração dos estatutos ou dissolução da sociedade;

c)            A usufruir os valores que, no acto de liquidação da sociedade ou da quota, caibam à parte social sobre que incide o usufruto.

2.            Nas deliberações que importem alteração dos estatutos ou dissolução da sociedade, o voto pertence conjuntamente ao usufrutuário e ao titular da raiz.

 

E continuam o referidos autores na obra citada, pág 514 :

“Tanto o proprietário, como o usufrutuário, têm os seus direitos estreitamente ligados à gestão da empresa e, por isso, ambos eles têm o compreensível desejo de participar na vida da sociedade. Os interesses que comandam esse desejo nem sempre coincidem. Ao nu-proprietário interessa fundamentalmente a solidez da empresa, a constituição de reservas capazes, a amortização rápida e completa do activo, enquanto o usufrutuário olha de preferência aos lucros apurados e distribuídos em cada exercício.

 

Também ensina o Professor Luis A. Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 5.ª edição (revista e remodelada), Quid Juris, págs 402 e 403, que:

“O usufruto, nos termos da lei, recai sempre num bem alheio – seja uma coisa, seja um direito.”

 

E que “Ponto comum, como ficou exposto, qualquer que seja a natureza do bem que o usufruto tenha por objecto, é o de ele ser sempre alheio. Assim, ao lado do usufruto subsiste um direito de propriedade – nua propriedade ou propriedade de raiz -, desprovido de alguns dos seus mais significativos poderes, pois o gozo da coisa cabe ao usufrutuário.“.

 

Também como foi decidido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 9 de dezembro de 2008, Proc. 02751/08, CT 2º Juízo, a propósito de contratos de suprimento entre a sociedade e o sócio: 

“É incontroverso que as qualidades de sócio e usufrutuário de participações sociais são realidades jurídicas, absolutamente diversas, regidas por finalidades axiológicas diferenciadas, em suma, inconfundíveis, entre si, porquanto o sócio mantém as obrigações e os direitos correspondentes à titularidade da quota, enquanto o usufrutuário tem direito a receber os lucros distribuídos correspondentes à duração do usufruto.”

(http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/7bf81eb9d665df278025753600555f7b?OpenDocument)

 

Face à lei em vigor, à doutrina referida e à jurisprudência citada, é também entendimento deste Tribunal que, sem prejuízo dos direitos que lhes assistem, os usufruários das quotas não são sócios da sociedade, mas sim o titular da raiz ou nu proprietário das quotas.

 

Termos em que se conclui que, apesar de serem titulares do direito do usufruto, D... e E... não eram sócios da sociedade C..., Lda., nos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, sendo o único sócio a considerar, para efeitos de aplicação do regime da transparência fiscal, o ora Requerente A..., que é titular em plena propriedade de uma quota e titular da nua propriedade de duas quotas.

 

E assim, mais conclui o Tribunal que a sociedade C..., Lda. é uma sociedade profissional, para os efeitos do nº 4 do art. 6º do CIRC, porquanto se trata de uma sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que alude o art. 151º do CIRS, sendo o Requerente A... o o único sócio da sociedade para os efeitos aqui em causa.

 

2.2.2. Questão da ilegalidade da imputação da totalidade da matéria colectável da sociedade C..., Lda. ao Requerente A..., a titulo de rendimento da categoria B, tendo os usufrutários das quotas o direito aos lucros distribuídos correspondentes ao tempo de duração do usufruto.

 

Como vimos, dispõe a alínea a) do número 1 do 1467.º do Código Civil, sob a epígrafe “Usufruto de títulos de participação”, que: O usufrutuário de acções ou de partes sociais tem direito: Aos lucros distribuídos correspondentes ao tempo de duração do usufruto.

 

Dispõe ainda o número 2 do artigo 23.º do Código das Sociedades Comerciais, sob a epigrafe “Usufruto e penhor de participações”, que:

 

“Os direitos do usufrutuário são os indicados nos artigos 1466.º e 1467.º do Código Civil, com as modificações previstas na presente lei, e os mais direitos que nesta lhe são atribuídos.”

 

                Finalmente, estabelece o artigo 1474.º do Código Civil, sob a epígrafe “Impostos e outros encargos anuais”, que:

               “O pagamento dos impostos e quaisquer outros encargos anuais que incidam sobre o rendimento dos bens usufruídos incumbe a quem for titular do usufruto no momento do vencimento.”.

 

Como referem os Ilustre Professores Pires de Lima e Antunes Varela, na obra citada, pág. 513:

“Em princípio, estes lucros, como frutos que são das acções ou partes sociais, devem ser divididos pro rata temporis entre proprietário da raiz (ou sócio) e usufrutuário (art. 213.º, 2), de harmonia com a duração do direito deste.

Simplesmente, não basta esta directiva, muito simples e rectilínea fixada nas disposições gerais para remover todas as dúvidas que cria a realidade específica da vida das sociedades.

Há, como todos sabem, lucros que se acumulam ao longo de certos períodos e que só mais tarde são distribuídos. E há lucros que não são distribuídos, por seram aplicados à constituição de fundos de reserva, à amortização do activo ou a outros fins de valorização do capital. Daí a disposição especial contida na alínea a) do n.º 1, na qual se destacam duas notas fundamentais.

A primeira, reportando o direito do usufrutuário aos lucros correspondentes ao tempo de duração do usufruto, mostra que a lei atende, para o efeito, ao momento em que os lucros se auferem ou não à data em que eles são distribuídos. Os dividendos correspondentes ao exercício de 1971 não deixarão de caber ao usufrutuário cujo direito finda em 31 de Dezembro deste ano pelo simples facto de só serem distribuídos no decurso do ano seguinte.

A segunda observação a registar é que a lei se refere, de caso pensado, a lucros distribuídos. Com este aditamento pretende-se excluir, em obediência ao ensinamento da doutrina dominante, a atribuição ao usufrutuário de lucros que a administração da sociedade tenha destinado a fundos de reserva, a amortização ou a quaisquer outras formas de capitalização e que, por virtude disso, não tenham sido efectivamente distribuídos.”

 

Como já foi atrás referido, o art. 6º do CIRS, dispõe que:

“1 – É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros: a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial; b) Sociedades de profissionais; c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público.”

 

Por seu turno, tal como também atrás referido, o art. 20º do CIRS, sob a epígrafe “Imputação especial”, estipula que: “1 – Constitui rendimento dos sócios ou membros das entidades referidas no artigo 6.º do Código do IRC, que sejam pessoas singulares, o resultante da imputação efetuada nos termos e condições dele constante ou, quando superior, as importâncias que, a título de adiantamento por conta de lucros, tenham sido pagas ou colocadas à disposição durante o ano em causa. 2 – Para efeitos do disposto no número anterior, as respetivas importâncias integram-se como rendimento líquido na categoria B.”

 

Ora, o regime da transparência fiscal aplicado às sociedades de profissionais assenta na bipartição do sujeito passivo, à qual vai corresponder uma desconsideração da personalidade jurídico tributária das pessoas coletivas a que se aplica e na aplicação de técnicas especiais de tributação que, de forma abreviada, se podem enunciar da seguinte forma:

- Atribui-se a qualidade de sujeito passivo do imposto à pessoa coletiva transparente (sujeito passivo instrumental);

- As pessoas coletivas transparentes devem apurar a matéria coletável e cumprir as obrigações contabilísticas e declarativas que o CIRC impõe a todas as sociedades do regime geral associadas a esse apuramento, mas não são sujeitos passivos relativamente ao pagamento do IRC (Cf. artigo 12º do CIRC);

- Estabelece-se como sujeito passivo da obrigação de pagamento do imposto, resultante da matéria coletável apurada pela pessoa coletiva transparente, os sócios ou membros desta (sujeitos passivos efetivos);

- Imputa-se a matéria coletável apurada pela pessoa coletiva transparente, de acordo com as disposições do regime regra de IRC, aos sócios e membros, respeitando o estabelecido no pacto social ou, se este nada estabelecer presumindo-se que a participação se faz em partes iguais (cf. artigo 6.º, n.º 3 do CIRC);

- A matéria coletável imputada é rendimento líquido (ou lucro/prejuízo) do sócio ou membro (cf. artigo 20.º do CIRS e 20.º do CIRC);

- Os sócios ou membros da pessoa coletiva transparente são sujeitos passivos da obrigação de pagamento do imposto (IRS ou IRC) que corresponda à matéria coletável que lhes foi imputada pela pessoa coletiva transparente.

 

Em termos sintéticos, o regime tem por base o princípio da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, por razões pragmáticas que resultam da natureza das pessoas colectivas abrangidas, nas quais, como vimos acima, é o elemento pessoal e não o elemento capital que é determinante para a actividade económica desenvolvida, situação que é complementada com o mecanismo da imputação do rendimento gerado na pessoa colectiva aos seus sócios ou membros, para que apenas estes sejam tributados (cf. os artigos 6.º, n.º 3 e 12.º do CIRC e 20.º do CIRS).

 

Nas pessoas coletivas em causa, o principal objetivo é a facilitação do exercício da atividade dos sócios ou membros, pelo que faz sentido a desconsideração da forma jurídica e da personalidade tributária da pessoa coletiva, focando-se o legislador fiscal na substância organizacional ao tributar os sócios e membros como se exercessem diretamente a atividade.

 

Este regime da transparência fiscal impõe que a determinação da matéria coletável de pessoas coletivas, tipificadas no artigo 6.º do CIRC, se faça segundo as regras gerais constantes do CIRC e aplicáveis a quem exerce uma atividade económica lucrativa e é residente em Portugal, por as incluir nas pessoas colectivas sujeitas a IRC

 

Todavia, ao retirar as sociedades transparentes da sujeição ao pagamento de IRC, declarando-as isentas da obrigação de pagamento do imposto (cf. artigo 12.º do CIRC), o regime impõe que tais sociedades imputem a matéria colectável nelas gerada e apurada a cada um dos seus sócios e que essa imputação se faça obrigatoriamente no exercício do seu apuramento (quando desse apuramento resulta matéria colectável de valor positivo).

 

Para além da imputação ter uma exigência relativa ao momento em que deve ser efectuada, tem outras relativas ao montante a imputar a cada sócio ou membro.

               

A sociedade transparente é assim um centro de agregação de rendimentos dos profissionais que a compõem, e também de custos partilhados, necessários à obtenção dos rendimentos, pelo que a matéria colectável, que apura e imputa aos sócios como rendimento líquido (cf. artigo 6º, n.º 3 do CIRC e 20º do IRS), foi apurada deduzindo esses custos comuns partilhados pelos seus sócios.

 

Mas uma coisa é a imputação da matéria colectável aos sócios da sociedade transparente, e coisa diversa é a tributação de lucros distribuídos a quem deles for titular.

 

A imputação da matéria colectável aos sócios da sociedade transparente é distinta da atribuição ao usufrutuário de lucros distribuídos, sendo que nestes não se incluem parcelas do lucro da sociedade destinadas a fundos de reserva, à a amortização ou a quaisquer outras formas de capitalização e que, por virtude disso, não tenham sido efectivamente distribuídos.

 

Como vimos, os usufrutuários das quotas têm direito aos lucros distribuídos correspondentes ao tempo de duração do usufruto.

 

                Se se entendesse que, face à existência de usufrutuários de quotas, a matéria colectável da sociedade só se poderia imputar parcialmente ao sócio da sociedade transparente, o aqui Requerente, excluindo-se a parte percentual da mesma relativa às quotas em que existiam direitos de usufruto (usufrutuários), estar-se- ia a pôr em causa todo o regime da transferência fiscal, tratando-se a situação como se estivessemos perante uma sociedade não abrangida pela transparência fiscal, em que a sociedade é sujeito passivo e paga IRC e os sócios da mesma pagam IRS ou IRC mediante perante uma distribuição de lucros da sociedade.

 

                E não se olvide que, de acordo com o disposto no Artigo 5.º do CIRS, sob a epígrafe “Rendimentos da categoria E”: 

1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.

2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:

h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º.

 

Por conseguinte, a existir uma distribuição de lucros aos usufrutuários de quotas, tais rendimentos são considerados rendimentos de capitais (categoria D do IRS) e não rendimentos profissionais (categoria B do IRS).

 

Em jeito de conclusão, não é ilegal a imputação da totalidade da matéria colectável da sociedade C..., Lda. ao Requerente A..., a titulo de rendimento da categoria B, pois tal é imposto pelas regras do regime da transparência fiscal.

 

E se os usufrutários das quotas obtiverem lucros distribuídos, correspondentes ao tempo de duração do usufruto, são os mesmos sujeitos passivos de IRS por terem auferido rendimentos de capitais.

 

Só assim poderá o regime de transparência fiscal cumprir os seus propósitos de neutralidade, assegurando a igualdade de tratamento fiscal entre sócios de sociedades de profissionais e profissionais independentes titulares de rendimentos da categoria B de IRS, bem como o combate à evasão fiscal, em respeito pelos princípios da igualdade e da justiça e do interesse publico, que não surgem beliscados pelos actos de liquidação de IRS impugnados.

 

                Pelo exposto, temos que concluir que os actos impugnados não enfermam de vício de violação de lei, devendo ser mantidos.

 

E não sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, não se pode concluir pela existência de pagamentos indevidos.

 

IV. Decisão

 

Em face do exposto, o Tribunal Arbitral decide:

 

                a) Julgar improcedentes a excepção de litispendência e a questão prejudicial arguidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;

                b) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

                c) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos.

 

V. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 14.801,97 (catorze mil oitocentos e um euros e noventa e sete cêntimos).

 

VI. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros) a cargo dos Requerentes.

 

Lisboa, 30 de novembro de 2020

 

O Árbitro,                                                              

Pedro Miguel Bastos Rosado