Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 478/2020-T
Data da decisão: 2021-06-01   
Valor do pedido: € 71.847,92
Tema: Contribuição sobre o sector enérgico. Incompetência do tribunal arbitral.
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Sumário:

I - Por força do disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT e 2.º da Portaria de vinculação, a competência material dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD abrange apenas as pretensões relativas a impostos que sejam administrados pela Autoridade Tributária.

II - Tendo o pedido arbitral como objecto a contribuição sobre o sector energético e revestindo-se esta da natureza jurídica de contribuição financeira, o tribunal arbitral é incompetente ratione materiae para a apreciação do litígio.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

                1. A… – …, S.A., com o número de identificação fiscal …, com sede na …, …, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), referente ao exercício de 2019, e, bem assim, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra aquele acto tributário, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago e a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade que detém um centro electroprodutor, com recurso a fontes de energia renovável, que, nessa qualidade, em 2019, beneficiou de um regime de remuneração garantida, tecnicamente conhecido por feed-in tariff (FIT).

 

Até à data de 31 de Dezembro de 2018, a Requerente beneficiava de isenção da CESE aplicável aos sujeitos passivos que detivessem centros electroprodutores com recurso a fontes de energia renovável, isenção de deixou de beneficiar em virtude das alterações introduzidas ao regime da CESE pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (LOE 2019), o que determinou que tivesse de autoliquidar a CESE relativa ao ano de 2019, no montante de € 71.847,92.

 

Por não concordar com a liquidação, a Requerente apresentou, a 1 de Abril de 2020, a reclamação graciosa, que foi indeferida por decisão notificada por ofício datado de 18 de Junho de 2020.

 

A CESE foi criada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014), que, no regime inicial, se caracterizava como um tributo extraordinário com dois objetivos centrais de política fiscal: redução da dívida tarifária do SEN e a promoção da sustentabilidade sistémica do setor energético.

 

A CESE nasceu como um aparente tributo “de crise”, que, na sua primeira versão, abarcava diferentes operadores da cadeira de valor do setor energético (produção, transporte, armazenagem e distribuição) e que isentava a produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores que utilizem fontes de energia renováveis.

 

Em momento subsequente, por intermédio da Lei n.º 33/2015, de 27 de abril, o âmbito de incidência da CESE foi alargado aos contratos de aprovisionamento de longo prazo em regime take-or-pay, mantendo-se a isenção, e com a LOE de 2019 a isenção passou a abranger “[a] produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores que utilizem fontes de energia renováveis, nos termos definidos na alínea ff) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, com exceção daquela que se encontre abrangida por regimes de remuneração garantida e com exceção dos aproveitamentos hidroelétricos com capacidade instalada igual ou superior a 20 MW”.

 

A CESE foi designada genericamente como uma contribuição e na impossibilidade de ser qualificada como imposto, taxa ou contribuição financeira, assume atualmente a natureza de uma contribuição especial, em particular uma contribuição especial de terceira geração e, mesmo que por hipótese não se entendesse a CESE como uma contribuição deste tipo, a manifesta ausência de correspondência com o princípio da equivalência (mormente, enquanto equivalência de grupo), sempre levaria a aplicar à CESE, enquanto imposição patrimonial pública, o regime constitucional dos impostos.

 

 O regime da CESE viola o princípio da tributação real na medida, por um lado, em que incide indiscriminadamente sobre quem não contribui para o défice tarifário e, por outro, incide sobre ativos independentemente da sua rendibilidade, ou seja, sem relação com o output de quem tenha contribuído para esse défice.

 

Por outro lado, a CESE foi concebida como um tributo extraordinário que criou nos contribuintes a expectativa legítima de ter uma natureza meramente temporária, pelo que a sua sucessiva e reiterada prorrogação e a eliminação da isenção de que gozava a Requerente durante os cinco anteriores anos de vigência, implicam uma violação do princípio da segurança jurídica, na sua vertente de proteção da confiança.

 

Acresce que a manutenção em vigor do regime da CESE, para efeito de se continuar a obter a arrecadação da receita, apenas se compreenderia se persistisse o contexto de excecionalidade que justificou a criação da contribuição ou surgisse uma nova situação de excecionalidade susceptível de ser enquadrável dentro dos fundamentos iniciais da medida, pelo que, na ausência de qualquer desses pressupostos, a medida viola o princípio da proporcionalidade na vertente de necessidade e proibição do excesso.

 

Por último, a CESE é um tributo de receita consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), determinando a Lei de Equilíbrio Orçamental, no seu artigo 16.º, n.º 3, que as normas que consignem receitas a determinadas despesas têm caráter excecional e temporário, e, nesse sentido, sendo a LEO uma lei de valor reforçado a violação dessa disposição pelo regime jurídico da CESE envolve uma inconstitucionalidade indireta.

 

Conclui pela procedência do pedido arbitral.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a excepção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do pedido, porquanto a Requerente pretende pôr em causa a constitucionalidade da norma que prevê a CESE, sendo  que a CESE constitui uma contribuição financeira e não um imposto, encontrando-se excluída da arbitragem tributária por efeito do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pelo qual a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.

 

Em sede de impugnação, sustenta que a CESE foi criada pela Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) como uma contribuição extraordinária sobre o sector energético destinada arrecadar receita para o FSSSE, que visa garantir a criação dos mecanismos para a sustentabilidade sistémica do sector.

 

Estão sujeitas à CESE as pessoas singulares ou colectivas que integrem o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável, em território português, que, a 1 de Janeiro do ano de 2014, se encontrassem numa das  situações descritas no artigo 2.º.

 

No caso das actividades reguladas, a CESE incide sobre o valor dos activos regulados (i.e., o valor reconhecido pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos para efeitos de apuramento dos proveitos), não sendo repercutível, directa ou indirectamente, nas tarifas de uso das redes de transporte, de distribuição ou de outros ativos reguladores de energia eléctrica e de gás natural, previstas nos regulamentos tarifários dos respectivos sectores.

 

A vigência da CESE foi prorrogada pela Lei de Orçamento para 2015 (Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro) e o seu âmbito de incidência alargado aos comercializadores do sistema nacional de gás natural, por efeito da Lei n.º 33/2015, de 27 de abril, e às energias renováveis inicialmente isentas, mas não foi alterada a sua qualificação como contribuição financeira.

 

 Quando estas contribuições surgem associadas a uma função regulatória, tem sido entendido que se reconduzem categoria de contribuições financeiras em vista à consecução de objetivos extrafiscais.

 

Assim sendo, a CESE, ao ser exigida aos operadores do sector energético, com o intuito de financiar políticas do sector energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética e com a redução do stock da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional, inscreve-se claramente fattispecie tributária das contribuições financeiras.

 

Carece de sustentação a tese de que se trata de um tributo que serviu apenas como fonte de receita sobre um grupo particular de contribuintes para o esforço geral de consolidação orçamental pública, o que levaria a qualificá-la como um imposto em preterição da proibição de consignação das receitas fiscais.

 

A receita da CESE, ao ficar consignada, desde o início da sua vigência, e logo por força da Lei Orçamental para 2014, ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético”, visa alcançar os objectivos referidos no respectivo regime legal, sem prejuízo de, no mesmo passo, contribuir para o esforço nacional de consolidação orçamental.

 

Por outro lado, a CESE é uma contribuição extraordinária, porque se encontra justificada pelas circunstâncias excecionais em que foi criada e que se confirma anualmente através das sucessivas prorrogações legais, sendo certo que o contexto justificativo ainda não foi substancialmente alterado.

 

Ora, uma contribuição inicialmente válida por um ano, com data de extinção pré-determinada, embora sucessivamente renovada por idênticos períodos, não deixa de ser como uma contribuição extraordinária de natureza transitória.

 

Em suma, sendo a CESE qualificada como uma contribuição, cai toda a argumentação das Requerente no sentido de que se trata de uma contribuição especial que deveria seguir o regime do imposto, bem como os vícios de inconstitucionalidade que vêm invocados.

 

Conclui no sentido da procedência da excepção dilatória e, se assim se não entender, pela improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, foi determinada a audição da Requerente sobre a matéria de excepção, que veio a pronunciar-se, em síntese, nos seguintes termos.

 

A CESE deve ser qualificada como uma contribuição especial que segue o regime constitucional dos impostos e cuja apreciação se integra no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais.

E mesmo que se entendesse que a CESE é uma contribuição financeira, ela enquadra-se  no conceito de “tributo” a que alude o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o que é suficiente para efeitos da sua arbitrabilidade.

Com efeito, da leitura conjugada do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que comete aos tribunais arbitrais a competência para a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, e do artigo 3.º, n.º 2, da LGT, que reporta como tributos os impostos e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas, resulta a conclusão de que a competência material dos tribunais arbitrais compreende a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, incluindo as contribuições financeiras.

 

Por outro lado, a disposição do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, ao declarar qua a Autoridade Tributária se vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais que tenham por objecto a apreciação das “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”, terá de ser interpretada como uma limitação da vinculação da Administração somente em relação aos tributos cuja administração seja da sua competência, não significando que as contribuições financeiras não sejam arbitráveis.

E uma vez que a CESE é um tributo administrado pela Autoridade Tributária, cujo procedimento de liquidação e cobrança é estruturalmente idêntico ao dos impostos, o tribunal arbitral é competente para dirimir o presente litígio, independentemente de este tributo vir a ser qualificado como contribuição ou como imposto.

Uma tal interpretação é ainda reforçada pelo aditamento da alínea e) ao artigo 2.º da Portaria de Vinculação, operado pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que veio revelar que, na perspetiva do legislador, a competência dos tribunais arbitrais se estende ao campo dos tributos, cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária.

Acresce que, tendo-se pretendido criar, por via de lei, um regime de arbitragem em matéria tributária suficientemente amplo de modo a que o recurso aos tribunais arbitrais constituísse uma real alternativa aos tribunais tributários, a restrição do âmbito da vinculação da Autoridade Tributária gera desconformidade com a Constituição e frustra os objetivos da consagração da arbitragem tributária.

Perante o exposto, o artigo 2.º da Portaria de Vinculação sempre terá de ser objecto de uma interpretação conforme com a lei, sob pena de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 112.º, n.º 6, da CRP, não sendo admissível considerar que, pela via da sua aprovação, tenha sido restringido o âmbito de competência material dos tribunais arbitrais aos impostos, com exclusão de outras categorias de tributos, entre os quais a CESE.

 

3. Pelo despacho arbitral de 5 de Maio de 2021, foi dispensada a reunião a que se refere  o artigo 18.º do RJAT, bem como  apresentação de alegações escritas, por não existirem quaisquer novos elementos sobre que as partes se devessem pronunciar.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 17 de Dezembro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção da incompetência do tribunal.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

Saneamento

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

5. A Autoridade Tributária suscitou a excepção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do presente pedido, tendo como objecto a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), baseando-se no sentido interpretativo a atribuir ao artigo 2.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março - que estabelece a vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição do CAAD -, fazendo notar que, nos termos desse preceito, o objecto da vinculação se cinge à apreciação de pretensões relativas a impostos, com a necessária exclusão das contribuições financeiras.

 

É esta pois a questão que primeiramente cabe analisar.

 

A competência contenciosa dos tribunais arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”.

 

O artigo 4.º, n.º 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

 

E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objecto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, dispõe o seguinte:

 

“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;

 d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa, por conseguinte, um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral. Tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, mas poderia estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.

Nesse sentido, a Portaria de vinculação tem uma finalidade semelhante à que decorre do n.º 2 do artigo 187.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, para a arbitragem administrativa. Nos termos dessa disposição, a partir do momento em que cada ministério assume, por portaria, a sua vinculação à jurisdição dos centros de arbitragem, ele fica vinculado a submeter-se a uma decisão arbitral, relativamente aos tipos de litígios compreendidos no âmbito da portaria. Trata-se de um instrumento colocado na livre disponibilidade dos ministérios, que são livres de assumirem, por portaria, a sua vontade de se submeterem à arbitragem dos centros institucionalizados relativamente a certos tipos de litígios e dentro de certos limites, sendo essa opção da Administração que confere aos interessados o direito potestativo de se dirigirem a um centro de arbitragem para dirimirem litígios que possam ser submetidos aos tribunais arbitrais.

Ainda a este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte:

 

“A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.

 

No caso, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais, e a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária. Haverá de concluir-se, nestes termos, que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos - com a exclusão de outros tributos - e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.

 

6. Como não pode deixar de reconhecer-se - revertendo agora à análise do caso -, a letra da lei é o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe uma função negativa destinada a eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou correspondência com o enunciado verbal, e uma função positiva que se traduz em escolher de entre os sentidos possíveis da norma aquele que corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico jurídico.

 

No entanto, na determinação do sentido e alcance nos textos legais não pode excluir-se outros factores interpretativos. O elemento racional ou teleológico de interpretação consiste em determinar o fim visado pelo legislador, havendo de atender-se às circunstâncias em que a norma foi elaborada e ao peso relativo dos interesses que a norma tem em vista regular. O elemento sistemático compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda e que regulam a mesma matéria, assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos ou institutos paralelos. E tem sobretudo em vista determinar o lugar sistemático que a norma tem no ordenamento global e a sua correspondência com a unidade do sistema jurídico. O elemento histórico envolve todos os materiais relacionados com a história do preceito, incluindo a história evolutiva do instituto, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios (sobre todos estes aspectos, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, págs. 181-185).

 

Baseando-se em todos estes elementos interpretativos, o intérprete pode chegar a uma interpretação extensiva do texto da lei quando a fórmula verbal adoptada diz menos do que se pretendia dizer e se torne necessário dar-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo.

 

No caso, a introdução no ordenamento jurídico português da arbitragem em matéria tributária, como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, foi implementada pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no uso de autorização legislativa concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo “a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária” (n.º 1) e  admitiu o processo arbitral tributário como um “meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (n.º 2).

 

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT) concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o inicialmente previsto, não tendo contemplado a competência para a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, e limitou a arbitragem tributária às matérias elencadas no seu artigo 2.º, excluindo diversas das competências dos tribunais tributários referidas no artigo 97.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) que são exercidas através do processo de impugnação judicial.

 

Acresce que – como se viu - a vinculação da Administração Tributária aos tribunais arbitrais ficou condicionada à portaria de vinculação que se destinava a determinar, designadamente o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

 

Em primeiro lugar, importa ter presente que a remissão para diploma regulamentar da definição do âmbito da vinculação da Administração à arbitragem tributária teve justamente em vista permitir que fossem os departamentos governamentais com competências administrativas na gestão do sistema fiscal que pudessem aferir da viabilidade do regime legal, tendo em consideração o carácter inovador do recurso à arbitragem em matéria tributária e ausência de quaisquer dados experimentais sobre a eficácia do sistema.

 

Por outro lado, um segundo nível de limitação do âmbito da arbitragem tributária por via regulamentar encontra-se justificado por razões de política legislativa e nada obstava que a Portaria de vinculação viesse a estabelecer critérios mais restritivos do que os legalmente previstos, quer quanto ao elenco de pretensões que poderiam ser sujeitas aos tribunais arbitrais, quer quanto ao valor processual dos litígios que pudessem ser submetidos à arbitragem ou à composição do tribunal arbitral.

Neste contexto, não oferece especial dúvida que a entidade com competência regulamentar pudesse optar por restringir a vinculação às pretensões referidas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que apenas fossem incidentes sobre impostos, e deixasse de fora as questões relacionadas com taxas e contribuições que, além do mais, poderiam gerar uma maior grau de conflitualidade e de incerteza quanto à qualificação jurídica e exigir uma maior especialização por via da especificidade das questões que pudessem suscitar-se.

 

7. A Requerente insiste que não há motivo para interpretar restritivamente a referência a impostos que consta do proémio do artigo 2.º da Portaria de vinculação e nada impede que se inclua nesse conceito as contribuições financeiras como espécie que são de tributos.

Uma tal interpretação não tem, no entanto, a mínima correspondência na letra da lei, e, por outro lado, é a própria Lei Geral Tributária que, ao classificar os tributos, distingue claramente entre os impostos e outras espécies tributárias criadas por lei, aí se incluindo as taxas e as contribuições financeiras (artigo 3.º).

Acresce que a interpretação da lei fiscal se rege pelos critérios hermenêuticos que resultam do artigo 9.º do Código Civil e “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei” (artigo 11.º, n.ºs 1 e 2, da LGT). Ora, dificilmente se poderia compreender que as leis fiscais devessem ser interpretadas, sem qualquer particularismo, segundo os citérios de interpretação consagrados no direito civil, mormente quando estivessem em causa “termos próprios de outros ramos de direito”, e já não houvesse que aplicar esse princípio quando estejam em causa termos próprios do Direito Fiscal.

 

É a todos os títulos evidente que se o legislador recorre ao conceito amplo de tributos na norma legal que define a competência dos tribunais arbitrais (artigo 2.º, n.º 1, do RJAT) e utiliza o conceito mais restrito de impostos na Portaria de vinculação (proémio do artigo 2.º), isso só pode significar que a expressão verbal tem, em qualquer dos casos, o sentido técnico jurídico que lhe corresponde e, por conseguinte, não pode extrair-se a conclusão de que a lei e o diploma regulamentar pretendem referir-se à mesma realidade jurídica quando se referem a tributos ou a impostos.

 

A Requerente argumenta, por outro lado, que a disposição do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, ao declarar qua a Autoridade Tributária se vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais que tenham por objecto a apreciação das “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”, terá de ser interpretada como uma limitação da vinculação da Administração somente em relação aos tributos cuja administração seja da sua competência. E que uma tal interpretação é ainda reforçada pelo aditamento da alínea e) ao artigo 2.º da Portaria de Vinculação, operado pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que veio revelar que, na perspetiva do legislador, a competência dos tribunais arbitrais se estende ao campo dos tributos, cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária.

 

Ora, como se deixou dito, o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 operou uma restrição da vinculação da Administração à jurisdição arbitral por referência às pretensões relativas a impostos (o que não pode entender-se como respeitando à categoria mais ampla de tributos) e, por outro lado, a especificação de que deverá tratar-se de impostos cuja administração lhe esteja cometida tem apenas o sentido útil de excluir os impostos que sejam administrados pelas Regiões Autónomas ou consignados a outras entidades públicas, não podendo daí concluir-se que também se encontram abrangidos pela arbitragem outros tipos de tributos que sejam igualmente administrados pela Autoridade Tributária (cfr. SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE,  Contencioso tributário, vol. II, Coimbra, 2017, pág. 441).

 

Acresce que a alteração introduzida pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, mediante o aditamento da alínea e), como resulta da nota preambular, foi determinada pela circunstância de a Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, ter passado a prever,  através da alteração do artigo 63.º do CPPT, com  a inclusão de um n.º 11, que “a impugnação da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa”. A nova disposição da alínea e) não tem, por conseguinte, outro objectivo que não seja o de assinalar que a impugnação judicial da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso carece também de ser precedida de impugnação administrativa, tratando-se, nesse sentido, de uma norma paralela à da alínea a), em que se impõe idêntica exigência no tocante a pretensões relativas a actos autoliquidação, substituição tributária e pagamentos por conta.

 

Por outro lado, a referência na falada alínea e) à “liquidação de tributos” explica-se porque o artigo 63.º do CPPT e o seu novo n.º 11 se referem à “liquidação de tributos com base em disposição antiabuso”, limitando-se a norma regulamentar a reproduzir a expressão que constava do artigo 63.º. Tratando-se de uma excepção à regra de vinculação que consta do proémio do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 – que se traduz numa mera condição de procedibilidade da acção e não um critério de competência -, a norma aditada não poderia ter o efeito de alterar o próprio âmbito aplicativo que resulta desse preceito, permitindo que o inciso “pretensões relativa a impostos” passasse a ser lido como “pretensões relativas a tributos”.

 

Como se impõe concluir, na interpretação sistemática da lei, o intérprete deve dar prevalência ao sentido que permita garantir a concordância material com outras disposições do sistema, e, no contexto significativo da norma que está em causa, essa concordância terá de ser estabelecida em relação ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, que define o âmbito de competência dos tribunais por referência a tributos, e no artigo 3.º, n.º 2, da LGT, que inclui no conceito amplo de tributos os impostos, as taxas e as contribuições financeiras. Tendo usado o autor da portaria de vinculação um conceito com um significado jurídico preciso para delimitar o âmbito da vinculação (pretensões relativas a impostos), não faria sentido, mesmo numa interpretação baseada no elemento sistemático, que se atribuísse a esse enunciado linguístico um sentido não consentâneo com a unidade do sistema.

 

E não pode ignorar-se - como já se deixou dito – que o elemento literal constitui o limite da interpretação e condiciona a ulterior actividade do intérprete, pelo que só poderá partir-se para uma interpretação ampla se o preceito não contiver um sentido literal inequívoco que se enquadre com a finalidade que se pretendeu atingir  (sobre estes últimos aspectos, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 7.ª edição, págs. 457-458).

 

Resta considerar que no sentido da incompetência dos tribunais arbitrais para apreciar pretensões relativas a contribuições financeiras também se posiciona vária doutrina, e.g., SÉRGIO VASQUES/CARLA CASTELO TRINDADE, “O âmbito material da arbitragem tributária”, “Cadernos de Justiça Tributária”, n.º 00 (Abril/Junho 2013), págs. 24-25; CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Coimbra, 2016, pág. 78; SERENA CABRITA NETO/ CARLA CASTELO TRINDADE,  Contencioso tributário, vol. II, Coimbra, 2017, págs. 439 e seguintes.

 

Natureza jurídica da contribuição sobre o sector energético

 

8. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), é tida como uma contribuição extraordinária que tem “por objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2015, se encontrassem nalguma das situações elencadas do artigo 2.º do regime que cria a contribuição.

 

 A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).

 

As modificações ao regime da CESE entretanto operadas pelas Leis n.ºs 33/2015, de 27 de Abril, e 71/2018, de 31 de Dezembro, não alteram substancialmente a natureza jurídica da contribuição.

 

A Lei n.º 33/2015 ampliou o âmbito de incidência subjectiva, mediante o aditamento de uma nova alínea m), para passar a incluir entidade que “seja comercializador do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN)”, e procedeu a diversas outras especificações ou precisões no tocante ao âmbito de incidência objectiva, à proibição de repercussão da contribuição nas tarifas, assim como em relação às taxas, procedimento e forma de liquidação e consignação. Essas alterações não têm, no entanto, qualquer específico relevo do ponto de vista da qualificação jurídica do tributo, mantendo as características e o objectivo central que foi delineado no diploma constitutivo (cfr. Relatório do Orçamento do Estado para 2014, pág. 71). Basta notar que o artigo 11.º, que pretende definir os objectivos a atingir através da consignação da receita obtida com a contribuição, na nova redacção, limita-se a desdobrar o inciso “redução da dívida tarifária” em “redução da dívida e ou pressão tarifárias”.

 

A Lei n.º 71/2018, além de ter introduzido, de novo, alterações pontuais ao regime de “procedimento e forma de liquidação”, que consta do artigo 7.º, limitou-se a restringir e a ampliar o âmbito das isenções, ao excepcionar à isenção prevista na alínea a) (produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores que utilizem fontes de energia renováveis) aquela “que se encontre abrangida por regimes de remuneração garantida”, e ao eliminar da isenção prevista na alínea b) (produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores de cogeração com uma potência elétrica instalada inferior a 20 MW) a excepção anteriormente prevista da “cogeração de fonte renovada”.

 

E não se vê em que medida é que essas pontuais alterações ao regime de isenção da contribuição – ainda que tenha tido como consequência incluir a Requerente no seu âmbito de incidência subjectiva - permite transformar esse mesmo tributo em contribuição especial que passe a encontrar-se subordinada ao regime constitucional dos impostos.

 

  Face ao regime jurídico sucintamente descrito, a CESE tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional à entidade à qual são consignadas as receitas.

 

Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respectivos sujeitos passivos. Nem se caracteriza como um imposto, pois que não se verifica a respectiva unilateralidade: não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita (não se destina a que “as instituições participantes concorram para os gastos da comunidade, em cumprimento de um qualquer dever de solidariedade”), antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua actividade.

 

E a sua natureza não é afastada pela circunstância de as receitas provenientes da CESE serem consignadas ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, porquanto o Fundo tem por objecto contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional, designadamente através do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental e da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN).

Trata-se, nestes termos, de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa, que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efectiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.

 

E nesse mesmo sentido se pronunciou o acórdão do TC n.º 7/2019 e o parecer da PGR n.º 4/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 2 de Março de 2018.

 

9. A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

 

A LGT, aprovada em 1998, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

 

A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas colectivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos  e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095). Neste sentido, as contribuições são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 287).

 

                Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias, designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa, admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 365/2008, de 2 de Julho de 2008, Processo n.º 22/2008).

 

Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.

 

Questão de inconstitucionalidade

 

10. Na resposta à excepção da incompetência do tribunal arbitral, a Requerente alega ainda que a interpretação da norma do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, no sentido de que a vinculação da Administração Tributária à jurisdição arbitral se restringe às pretensões relativas a impostos, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 112.º, n.º 6, da CRP, por não ser possível limitar o âmbito da competência material dos tribunais arbitrais através de portaria.

 

Ainda que tenha mencionado o n.º 6 do artigo 112.º da CRP, considerando o fundamento de inconstitucionalidade que é mobilizado, a Requerente terá pretendido referir-se ao n.º 5 desse artigo, que proíbe que uma lei possa criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de interpretar, integrar modificar suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.

 

Cabe, a este propósito, esclarecer que o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição não proíbe os reenvios normativos, admitindo que a lei remeta para a administração a edição de normas regulamentares executivas ou complementares da disciplina por ele estabelecida. O que o preceito constitucional, veio a proibir, em geral, são as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham a “interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar” quaisquer preceitos da própria lei habilitante (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 398/2008).

 

A intervenção regulamentar visa regular aquilo que a lei se absteve de regular e não integrar a regulamentação legislativa, pelo que o poder exercido pela Administração não corresponde a uma delegação do poder legislativo feito pela norma habilitante mas constitui um poder regulamentar próprio, daí resultando que o reenvio tem natureza meramente formal: a lei reenviante não incorpora o conteúdo da norma regulamentar nem lhe pode atribuir força legal, mantendo as normas a sua diferente natureza e hierarquia, que obsta a que se possa falar em integração (cfr., sobre todos estes aspectos, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª edição, Coimbra, págs. 70-71).

 

Não ocorre, por conseguinte, um qualquer fenómeno de deslegalização, visto que a lei não habilita a administração a emitir uma regulação primária e inovatória, mas apenas uma regulação executiva ou complementar.

 

Ora, no caso em análise, o legislador remeteu a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais para diploma regulamentar, designadamente para efeito de estabelecer o tipo e o valor máximo dos litígios que ficariam abrangidos pela arbitragem E era, pois, neste diploma que as entidades governamentais competentes poderiam definir o objecto da vinculação, nada obstando que pudessem restringir o elenco de pretensões que poderiam ser sujeitas aos tribunais arbitrais ou estabelecer limites quanto ao valor processual dos litígios que lhes pudessem ser submetidos.

 

Essa era justamente a finalidade da remissão do regime de vinculação para portaria, permitindo que as entidades com competências administrativas na gestão do sistema fiscal pudessem aferir da viabilidade de um sistema de arbitragem tributária, que apresentava um carácter inovador e sobre o qual não existia uma qualquer experiência anterior.

 

Intervindo o Governo no mero domínio da regulamentação da lei, não se verifica a alegada inconstitucionalidade.

Em conclusão:

11. Por força do disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT e 2.º da Portaria de vinculação, a competência material dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD abrange apenas as pretensões relativas a impostos que sejam administrados pela Autoridade Tributária.

Tendo o presente pedido arbitral como objecto a contribuição sobre o sector energético e revestindo-se esta da natureza jurídica de contribuição financeira, o tribunal arbitral é incompetente ratione materiae para a apreciação do litígio.

 

III – Decisão

Termos em que se decide declarar a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e, em consequência, em absolver a Requerida da instância.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 71.847,92, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 1 de Junho de 2021,

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro Vogal

Armando Oliveira

 

A Árbitro Vogal

Rui Marrana