Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 463/2021-T
Data da decisão: 2022-02-19  IRS  
Valor do pedido: € 562.250,00
Tema: IRS – Divergência entre o valor declarado de cessão de participações sociais e o valor real da sua transmissão – Artigo 52.º do Código do IRS.
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SUMÁRIO:

I.             Resulta do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS que basta a fundada possibilidade de existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão de participações sociais para que a AT se possa valer das presunções previstas nos números subsequentes do mesmo artigo, não sendo exigível que a AT prove o valor real da transmissão.

II.            A lei não tipifica os factos com base nos quais a AT pode fundar a sua convicção de que pode existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

III.          Uma divergência substancial entre o valor declarado e o valor de mercado das participações sociais à data da transmissão constitui um indício factual apto a sustentar a convicção da AT de que pode existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

IV.          Verificados os pressupostos do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, impendia sobre os Requerentes o ónus de provar que o valor declarado (constante do contrato de cessão de quotas) correspondia ao valor real da transmissão, de modo a ilidirem a presunção estatuída no nº 3 do mesmo artigo.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (árbitro presidente), Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia e Professor Doutor Paulo Nogueira da Costa (árbitros adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 26 de outubro de 2021, acordam no seguinte:

I. RELATÓRIO

1.            A..., contribuinte n.º ... e B..., contribuinte n.º ..., com domicílio fiscal em Rua dos..., ..., ...-... ... (doravante “Requerentes”), vieram, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral (doravante “PPA”).

2.            Os Requerentes pretendem a declaração de ilegalidade parcial da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2021..., relativa ao ano de 2017, emitida a 4/05/2021, na parte respeitante à correção relativa à alienação de partes sociais por aplicação do artigo 52.º do Código do IRS (“CIRS”), no montante de €551.392,07, e, consequentemente, a sua anulação parcial com todos os efeitos legais.

3.            Os Requerentes pedem, ainda, a condenação da AT no pagamento de indemnização pelos encargos em que incorreram na sequência da prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal decorrente da liquidação adicional em crise.

4.            É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).

5.            O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 02/08/2021, tendo nesta data a Requerida sido notificada da apresentação do mesmo.

6.            Os signatários foram designados como árbitros pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos termos dos ns.º 2, al. a), e 3 do artigo 6.º do RJAT, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e nos termos legalmente previstos.

7.            Em 06/10/2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

8.            Em conformidade com o preceituado na al. c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 26/10/2021.

9.            Os Requerentes fundamentam o PPA, em síntese, nos seguintes termos:

a)            O ato de liquidação adicional controvertido, decorrente da fixação de rendimentos efetuada nos termos do artigo 52.º do CIRS, é ilegal por:

i)             Erro na forma de determinação do rendimento;

ii)            Errónea interpretação do artigo 52.º do CIRS;

iii)           Violação do dever de descoberta da verdade material;

iv)           Violação do dever de fundamentação do direito de audição e do princípio do inquisitório;

v)            Erro na determinação do valor de alienação das quotas, nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS.

Erro na forma de determinação do rendimento

b)           Nos termos do artigo 75.º da LGT, presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei;

c)            Esta presunção de veracidade tem como efeito, de acordo com as regras do ónus de prova previstas no artigo 74.º da LGT, obrigar a administração tributária a provar qualquer erro ou omissão praticada nas referidas declarações;

d)           No caso sub judice, os Requerentes não mencionaram, por lapso, na sua declaração de IRS do ano de 2017, a transmissão da sua quota na sociedade C..., LDA (NIF...), a 8/5/2017, em virtude de a mesma ter sido transmitida pelo valor de aquisição, não tendo gerado qualquer ganho;

e)           Não constando a mencionada operação da declaração de rendimentos dos Requerentes, importa analisar em que termos a AT poderia e deveria ter feito uma eventual correção;

f)            Como claramente resulta do artigo 65.º do CIRS, a modificação dos rendimentos líquidos que resultam da declaração de rendimentos só pode ter lugar por uma de duas formas: por fixação de rendimentos ou por alteração de rendimentos;

g)            Só haverá fixação de rendimentos nos casos expressamente previstos no n.º 2 do artigo 65.° do CIRS e, nos casos em que não possa haver fixação de rendimentos, só poderá haver alteração de rendimentos nos termos do n.º 4 do mesmo artigo;

h)           As regras relativas à fixação de rendimentos só são utilizadas quando verificados os pressupostos da sua aplicação e estão sujeitas a especiais deveres de fundamentação;

i)             A AT pode fixar um lucro tributável diferente do declarado pelo contribuinte, no âmbito da categoria B, se estiverem reunidos os pressupostos de aplicação dos métodos indiretos, caso em que se pode socorrer dos elementos identificados no artigo 90.º da LGT e, assim, reconstituir um lucro presumido;

j)             Mas, se não estiverem reunidos os pressupostos de utilização de métodos indiretos, qualquer correção tem de ser feita por alteração dos rendimentos declarados (método direto), não podendo, obviamente, a administração fiscal utilizar os indicadores previstos no citado artigo 90.º da LGT;

k)            Sendo o apuramento feito por alteração de rendimentos, competirá à AT fazer prova, por exemplo, da falta de reconhecimento de um qualquer rendimento, devendo demonstrar a sua existência e quantificar o correspondente valor;

l)             Em tais casos, a AT deixa de poder presumir a sua existência através dos indicadores constantes do artigo 90.º da LGT;

m)          O mesmo acontece com a divergência de valores, a que se refere o artigo 52.º do CIRS, cuja aplicação depende de 2 pressupostos: (i) existência de uma divergência fundamentada; (ii) que decorra entre o valor declarado e o valor real de transmissão;

n)           Só pode haver divergência de valores se o valor em causa constar da declaração de rendimentos, como expressamente resulta do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS; caso contrário, o que existe é uma omissão praticada na declaração de rendimentos, sujeita ao regime de alteração dos rendimentos declarados, provisto no n.º 4 do artigo 65.º do CIRS;

o)           Assim sendo, não pode a AT prevalecer-se, em relação ao IRS do ano de 2017 dos Requerentes, da faculdade prevista no artigo 52.º do CIRS, nomeadamente, da presunção de que o valor de transmissão da quota na sociedade C..., LDA corresponde ao apurado com base no último balanço;

p)           Competir-lhe-ia fazer prova da existência e quantificação do facto tributário, de acordo com as regras previstas no Código do IRS, excetuadas, obviamente, aquelas que são específicas do da fixação de rendimentos;

q)           Aliás, é isso que acontece quando o contribuinte não entrega a sua declaração de rendimentos, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS – a liquidação tem por base os elementos de que a AT disponha;

r)            E no leque de elementos de que a AT dispõe, não figura, nem pode figurar, uma presunção como aquela que se encontra prevista no n.º 3 do artigo 52.º do CIRS;

s)            Nestes termos, entendem os Requerentes que está ferida de ilegalidade a contestada liquidação adicional por erro na forma de apuramento do rendimento;

Errónea interpretação do artigo 52.º do CIRS

t)            Resulta claramente da letra e razão de ser do artigo 52.º do CIRS que a AT deve demonstrar, em primeiro lugar, uma dúvida fundada de que o preço de realização declarado não corresponde ao preço real da transmissão;

u)           Ora, no decorrer da inspeção, a AT não fez qualquer averiguação das condições em que decorreu a venda da quota, não promoveu qualquer identificação dos meios de pagamento utilizados, não fez qualquer diligência externa junto das sociedades envolvidas e, nem sequer fez qualquer pedido de esclarecimentos;

v)            Limitou-se a presumir, com base no último balanço, que o valor de transmissão seria de €1.756.928,26;

w)          A AT subverteu a interpretação do artigo 52.º do CIRS ao tomar como único critério aquele que serve de base à presunção do valor de realização, isto é, o “último balanço” da sociedade C..., LDA, já que mais não fez do que analisar o último balanço e fundamentar a alegada divergência exclusivamente na diferença que encontra entre o valor da empresa dado pelo referido balanço e o valor de transmissão da quota;

x)            Assim sendo, entendem os Requerentes que está ferida de ilegalidade a liquidação adicional contestada, por vício de violação de lei fundado na errónea interpretação e aplicação do artigo 52.º do Código do IRS;

Violação do dever de descoberta da verdade material: A deliberada manipulação dos factos

y)            Para além de circunscrever a fundamentação da divergência entre o valor declarado e o alegado valor real da transmissão, com base, exclusivamente no último balanço, a AT omitiu/manipulou diversos factos, retendo apenas os que sustentavam a sua tese de divergência;

z)            Em consequência, no mínimo, a AT violou o princípio da descoberta da verdade material a que está obrigada por força do artigo 6.° do Regime Complementar de Inspeção Tributária e Aduaneira;

Violação do dever de fundamentação do direito de audição e do princípio do inquisitório

aa)         De harmonia com o preceituado no n.º 7 do artigo 60.º da LGT, se o titular do direito de audição, no exercício deste direito, suscitar elementos novos, eles deverão ser considerados na fundamentação da decisão;

bb)         A apresentação destes elementos novos, se se tratar de elementos atinentes à matéria de facto, poderá justificar a realização de novas diligências que deverão ser realizadas, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, caso se devam considerar como convenientes para apuramento da matéria factual em que deve assentar a decisão (artigos 58.º da LGT e 104.º do CPA);

cc)          A AT não analisou os argumentos dos Requerentes, pelo contrário, limitou-se a procurar e a interpretar, de forma enviesada, factos que pudessem contrariar os argumentos aduzidos pelos Requerentes e, assim, violou o dever de fundamentação do direito de audição e o princípio do inquisitório;

Erro na determinação do valor de alienação das quotas, nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS

dd)         Mas ainda que a liquidação não esteja ferida das apontadas ilegalidades, o quantitativo apurado nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS está, segundo os Requerentes, manifestamente errado, por falta de uma necessária correção do balanço da sociedade C..., LDA;

ee)         É certo que o n.º 3 do artigo 52.º do CIRS estabelece uma presunção nos termos da qual o valor de alienação das quotas é o que aquelas corresponda, apurado com base no último balanço;

ff)           Todavia, sendo o balanço elaborado com base em princípios contabilísticos nem sempre aceites para efeitos fiscais, esse balanço deve ser corrigido para cumprir com a finalidade específica de cada imposto;

gg)         E, pese embora o Código do IRS não o refira, certo é que, face à finalidade do normativo, não pode deixar de entender-se que também para o efeito, o balanço deve ser corrigido se esse balanço não exprimir a situação económica e financeira da sociedade;

hh)         Ora, o “último balanço” da sociedade C..., LDA (i.e., o balanço do ano de 2016) carece de correções para que possa ser determinado o valor da quota alienada;

ii)            Essas correções permitiriam concluir que o valor de alienação determinado nos termos do n.º 3 do artigo 52.º seria 0 (zero);

jj)           No caso sub judice, o valor dos capitais próprios da sociedade C..., LDA, que, de acordo com a “avaliação” promovida pela AT no decurso da inspeção, resulta exclusivamente dos capitais próprios da sua participada D..., SA, não pode servir de base à avaliação da quota transmitida pelos Requerentes sem ter em consideração as necessárias correções, procedimento que a AT não promoveu;

kk)         E, assim, entendem os Requerentes que está ferida de ilegalidade a contestada liquidação por erro na determinação do valor de alienação das quotas, nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS.

10.          A Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por impugnação, sustentando a improcedência do PPA com base nos seguintes argumentos:

a)            Em momento algum os Requerentes provam o que caucionam ao longo do seu PPA;

b)           O princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo (cfr. artigo 342.º do CC, e n.º 1 do artigo 74.º da LGT);

Do erro na forma de determinação do rendimento

c)            A AT discorda do argumento dos Requerentes segundo o qual o procedimento aplicável à correção do valor de realização da quota é o procedimento de alteração de rendimentos mencionado no n.º 4, ao invés do procedimento especial de fixação de rendimentos previsto no n.º 2 do artigo 65.º do CIRS, pelas seguintes razões:

i)             O n.º 2 do artigo 65.º do CIRS restringe os casos em que é atribuída à AT a faculdade de fixação dos rendimentos: n.º 4 do artigo 29.º - Imputação - mediante a correção do valor de mercado atribuído pelo sujeito passivo na afetação ou transferência dos bens; artigo 39.º - Aplicação de métodos indiretos; artigo 52.º - Divergência entre o valor declarado e o valor real de transmissão;

ii)            Dado o caráter restritivo e subsidiário do n.º 2 do artigo 65.º do CIRS, o alcance do preceituado no n.º 4 do mesmo artigo não pode ser outro senão a aplicação do procedimento de alteração de rendimentos a todos os casos em que, não tendo sido utilizado o procedimento de fixação de rendimentos e tendo-se verificado nas declarações “omissões/erros/divergência na qualificação dos factos (…)”, seja possível a determinação dos rendimentos de forma direta, ou seja, o valor real dos rendimentos seja identificável;

iii)           Razão pela qual o facto de os Requerentes não terem declarado na Modelo 3 de IRS a mais-valia decorrente da alienação da sua quota na sociedade C..., LDA não pode vedar à AT o mecanismo de fixação dos rendimentos nos casos de verificada impossibilidade de determinação do valor real pela forma direta pois, assim se entendendo, também os casos de “não execução de contabilidade ou exibição da escrita” que motivam a aplicação de métodos indiretos nos termos do n.º 2 do artigo 39.º do CIRS, constituiriam de igual forma omissões impeditivas da utilização do procedimento de fixação dos rendimentos, o que não sucede;

iv)           Em virtude de determinados casos apresentarem uma acrescida dificuldade na determinação do valor real e, dessa forma, serem potenciadores de fenómenos de evasão fiscal, o legislador estabeleceu presunções para a determinação de determinados valores/ou rendimentos, como sucede na situação, prevista no artigo 52.º do CIRS, de a AT apresentar indícios de que o valor declarado (na declaração, em contratos ou outros documentos) não corresponde ao valor real da transmissão (que a AT não conhece, donde a utilização do procedimento de fixação  de rendimentos ao invés do procedimento de alteração de rendimentos);

Da errónea interpretação do artigo 52.º do Código do IRS

d)           Resulta do n.º 1 do artigo 52.º do Código do IRS que o uso da faculdade nele prevista pressupõe que a AT disponha de indícios factuais que a levem a concluir pela possível existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão;

e)           Basta, assim, que a AT estabeleça a dúvida fundada de que o valor declarado possa não corresponder ao valor real de transmissão, não exigindo a norma que deve ser feita prova do valor real da transmissão;

f)            Os SIT apresentaram os factos indiciadores que permitiram criar fundadamente a convicção de que “pode existir” divergência entre o valor declarado/considerado e o valor real da transmissão, que foram apurados com base na:

(i) Avaliação pela Ótica Patrimonial da empresa;

(ii) Avaliação pela Ótica do Mercado – EBITDA;

(iii) Avaliação pelo art.º 15.º do Código do Imposto do Selo; e

(iv) Análise ao histórico de distribuição de lucros e ao Relatório de Gestão de 2016;

g)            Ou seja, tais razões assentaram em diversos factos evidenciadores de que o valor real da quota transmitida poderia ser muito superior ao seu valor nominal, pelo que se encontram reunidos os requisitos para aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 52.º do Código do IRS, sendo assim de rejeitar liminarmente, por falta de adesão à realidade, o que é afirmado nos artigos 42 e 49 do PPA que a Inspeção não fez qualquer averiguação das condições em que decorreu a venda da quota e que se limitou a presumir o valor de venda com base no último balanço da sociedade em questão;

Da violação do dever da descoberta da verdade material; a deliberada manipulação dos factos

h)           É descabida e infundada a alegação dos Requerentes sobre uma “deliberada manipulação dos factos” por parte dos SIT;

Da violação de fundamentação do direito de audição e do princípio do contraditório

i)             O alegado vício de insuficiência de fundamentação, necessariamente improcederá, porquanto os factos invocados pelos Requerentes no direito de audição referentes ao valor dos prédios da sociedade D..., SA e potencial responsabilidade desta sociedade pelo pagamento de uma indemnização mereceram cuidada e ponderada análise dos SIT;

j)             Não se descortina qualquer base de sustentação de um eventual incumprimento do disposto no n.º 7 do artigo 60.º da LGT;

k)            No caso vertente, a fundamentação é suficientemente clara e inequívoca, tanto mais que os Requerentes por via do presente pedido de pronúncia arbitral e em face dos argumentos por si explanados ao longo do seu articulado, demonstram ter cabalmente compreendido o quadro fáctico e legal em que assentou a decisão da Requerida, já que tenta rebater, ponto por ponto, toda a sua atuação;

l)             Ainda que o ato sub judice padecesse de deficiências ao nível do discurso fundamentador – o que só por mera hipótese académica se admite – tais deficiências degradar-se-iam em meras irregularidades não essenciais;

m)          Donde sempre se afiguraria justificada a aplicação ao caso vertente do princípio do aproveitamento dos atos administrativos;

n)           Quanto ao princípio do inquisitório, estabelece o artigo 58.º da LGT que “a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”;

o)           Porém, tal dever de diligência não é absoluto, sendo antes balizado pelo princípio do dispositivo (artigo 56.º da LGT), pelas regras do ónus da prova (artigos 73.º e 74.º da LGT e artigos 342.º, 344.º, 349.º e 350.º do CC), pelo dever de colaboração recíproco dos órgãos da AT e do contribuinte (artigo 59.º da LGT), pelo princípio da livre apreciação da prova (artigos 72.º da LGT e 50.º do CPPT) e, pelas regras da força provatória da prova documental (artigos 362.º e segs. do CC);

Do erro na determinação do valor de alienação das quotas nos termos do n.º3 do artigo 52.º - A necessária correção do Balanço

p)           Os Requerentes, embora reconheçam que o n.º 3 do artigo 52.º do Código do IRS estabelece uma presunção nos termos da qual o valor de transmissão das quotas é o que àquelas corresponda, apurado como base no último balanço, defendem a tese de que o balanço não deve ser o elaborado e aprovado nos termos dos normativos contabilísticos e do CSC mas, outro, corrigido para “cumprir com a finalidade específica de cada imposto”;

q)           Todavia, não foi demonstrado de forma consistente o valor real da quota à data de 31/12/2016, ilidindo a presunção legal, e assim poder ser apurado o valor correto, na perspetiva dos Requerentes;

r)            Diferentemente do n.º 2 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo e do n.º 8 do artigo 18.º do Código do IRC, o n.º 3 do artigo 52.º do Código do IRS nada refere sobre correções a introduzir ao balanço, que, para este efeito deve ser tão-só, o valor apurado com base no “último balanço”, para mais tratando-se do balanço certificado por revisor oficial de contas sem quaisquer reservas, o que significa que ratifica todas as rúbricas do balanço e todos os respetivos valores;

s)            Assim, não assiste razão aos Requerentes na defesa de que o “último balanço” da sociedade C..., LDA carece de correções para que possa servir de base à determinação do valor real da quota alienada;

t)            Os elementos trazidos no âmbito do exercício do direito de audição, e agora retomados no PPA, continuam a não ser considerados suficientes para abalar o valor do capital próprio da sociedade D..., SA e, consequentemente, o valor da quota presumido com base no balanço da sociedade C..., LDA de 31/12/2016, pelo se reitera a conclusão dos SIT;

u)           Por conseguinte, não enferma de vício de ilegalidade a liquidação de IRS ora contestada, por inexistência de erro na determinação do valor de alienação da quota, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 52.º do Código do IRS;

v)            Em conclusão, entende a Requerida que a liquidação impugnada não enferma de qualquer vício, pelo que deve ser mantida na ordem jurídica.

11.          Por despacho de 08/12/2021, este Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, determinando que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas.

12.          O referido despacho foi notificado às partes em 09/12/2021.

13.          Os Requerentes apresentaram alegações finais escritas reiterando o pedido e fundamentos constantes do PPA.

14.          A Requerida não apresentou alegações finais escritas.

 

II. SANEADOR

15.          Não foram suscitadas exceções.

16.          A apresentação do PPA foi tempestiva.

17.          As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao PPA e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

18.          Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.

 

III. MÉRITO

III.1. MATÉRIA DE FACTO

 

§1. Factos provados

19.          Consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A sociedade C..., LDA (NIF...) é uma sociedade por quotas constituída em 2011 com o capital social de €5.000,00 (cfr. certidão de registo comercial junta ao processo administrativo);

b)           O capital social da sociedade C..., LDA encontrava-se inicialmente dividido em duas quotas: uma quota com o valor nominal de €100,00 detida pelo Requente, e uma quota com o valor nominal de €4.900,00 detida pela sociedade E...– SGPS, SA (cfr. certidão de registo comercial junta ao processo administrativo);

c)            Em 22/2/2012, o Requerente adquiriu uma quota com o valor nominal de €3.900,00 na sociedade C..., LDA à sociedade E...– SGPS, SA, passando a deter uma quota unificada com o valor nominal de €4.000,00 (cfr. certidão de registo comercial junta ao processo administrativo);

d)           Os resultados líquidos da sociedade C..., LDA foram, no ano de 2012, de €1.462.547,97, e no ano de 2013, de €730.451,33 (cfr. respetivo Relatório de Gestão do ano de 2016, referido no Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo);

e)           Em 1/11/2016, a sociedade C..., LDA adquiriu a totalidade das ações da sociedade F..., SA (NIF...) (cfr. Declaração IES da sociedade F..., SA do ano 2016, junta ao PPA como documento n.º 2);

f)            A 31/12/2015, a sociedade F..., SA tinha um capital próprio negativo de -€2.093.847,19, para o qual contribuiu um resultado líquido do exercício negativo de -€101.592,11 e resultados transitados negativos (prejuízos acumulados de anos anteriores) de -€3.050.501,82 (cfr. consta do respetivo balanço do ano 2016 junto ao processo administrativo);

g)            Desde a sua constituição em 2011 até 2016, a sociedade C..., LDA não distribuiu lucros aos seus sócios (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016 junta ao processo administrativo);

h)           Desde a sua constituição em 2011 até 2016, a sociedade C..., LDA não exerceu atividade económica efetiva, “derivando os seus resultados apenas das participações sociais de detém noutras empresas” (cfr. alegado pela AT no Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo, facto não contestado pelos Requerentes);

i)             Em 31/12/2016, a sociedade C..., LDA tinha um capital próprio de €2.196.160,32, para o qual contribuíram “ativos financeiros” no valor de €2.213.636,06 (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016 junta ao processo administrativo);

j)             Nessa data, a sociedade C..., LDA detinha a totalidade das participações das sociedades (1) D..., SA (NIF...), com o arrendamento de bens imobiliários como atividade principal, com o capital próprio de €2.213.634,06, para o qual contribuíram “inventários” (imóveis) inscritos no balanço pelo valor de €2.252.210,00, e (2) F..., SA (NIF...), com atividades desportivas como atividade principal, com o capital próprio negativo de -€2.268.938,21, (cfr. respetivas Declarações IES do ano 2016 juntas ao PPA como documentos ns.º 1 e 2);

k)            As Declarações IES das sociedades C..., LDA, D..., SA e F..., SA, do ano 2016 indicam que (i) as contas do exercício foram aprovadas, por unanimidade, pelas respetivas assembleias de sócios, (ii) o relatório de gestão e as contas de exercício foram assinados por todos os membros da gerência, (iii) o órgão de fiscalização das sociedades pronunciou-se pela aprovação das referidas contas, e (iv) as contas foram legalmente certificadas por ROC/SROC nomeado (cfr. respetivas Declarações IES do ano 2016, juntas ao processo administrativo e ao PPA como documentos 1 e 2).

l)             A Declaração IES da sociedade F..., SA do ano 2016 indica que, a 31/12/2016, o capital próprio negativo da sociedade de -€2.268.938,21 resultava maioritariamente de um resultado líquido de exercício negativo (-€175.091,02) e de resultados transitados negativos (prejuízos acumulados de anos anteriores) de valor substancial (-€3.152.093,93) (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016 junta ao PPA como documento n.º 2);

m)          A 31/12/2016, a sociedade F..., SA tinha um passivo de €3.038.805,19, para o qual contribuiu de forma substancial um empréstimo concedido por “outros financiadores” (que não instituições de crédito e sociedades financeiras, mercado de valores mobiliários, participantes de capital) no montante de €2.974.504,07, que não gerou custos para a sociedade nesse ano (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016 junta ao PPA como documento n.º 2, e respetiva “Demonstração dos Fluxos de Caixa Individuais” - “Demonstração de resultados em 31 de Dezembro de 2016” junta ao processo administrativo);

n)           Nas observações em anexo à Declaração IES da sociedade C..., LDA do ano 2016, pode ler-se:

“Quando a proporção da Empresa nos prejuízos acumulados da empresa associada ou participadas excede o valor pelo qual o investimento se encontra registado, o investimento é reportado por valor nulo enquanto o capital próprio da empresa associada não for positivo, exceto quando a Empresa tenha assumido compromissos para com a empresa associada ou participada, registando nesses casos uma provisão na rubrica do passivo 'Provisões' para fazer face a essas obrigações.”

o)           No balanço da sociedade C..., LDA é reconhecida, por valor nulo, a sua participação na sociedade F..., SA, não tendo sido constituída qualquer provisão destinada à cobertura de compromissos assumidos para com esta sociedade (cfr. respetiva Declaração IES do ano de 2016, junta ao processo administrativo);

p)           Na Declaração IES da sociedade C..., LDA do ano 2016 não consta uma provisão ou uma observação relativa à existência de uma potencial responsabilidade por dívidas da sociedade F..., SA perante terceiros, designadamente, pelo reembolso do empréstimo desta sociedade junto de “outros financiadores” no valor de €2.974.504,07 (cfr. respetiva Declaração IES do ano de 2016, junta ao processo administrativo);

q)           A 31/12/2016, a sociedade D..., SA tinha inscrito na AT, na qualidade de proprietária, 23 imóveis, tendo a AT emitido uma liquidação de IMI relativamente aos ditos 23 imóveis (cfr. liquidação de IMI n.º 2016..., de 2 de Março de 2017, junta ao processo administrativo);

r)            A essa data, a sociedade D..., SA tinha 5 imóveis inscritos como “inventários” na sua contabilidade, com o valor contabilístico total de €2.252.210,00 (cfr. artigo 17 do Requerimento apresentado no exercício do direito de audição, junto ao processo administrativo);

s)            Na mesma data, o terreno rústico com 11,772 Hectares sito em .... (com o artigo matricial R-...-R), da propriedade da sociedade D..., SA, encontrava-se inscrito como “inventário” no respetivo balanço por €2.000.000,00 (cfr. artigo 17 do Requerimento apresentado pelos Requerentes no exercício do direito de audição, junto ao processo administrativo);

t)            Relativamente a “inventários”, pode ler-se nas “Demonstrações Financeiras Individuais” da sociedade D..., SA do ano de 2016:

“As mercadorias, matérias-primas subsidiárias e de consumo encontram-se valorizadas ao custo de aquisição, o qual é inferior ao custo de mercado, utilizando-se o custo médio ponderado como método de custeio. É registada uma imparidade para depreciação de inventários nos casos em que o valor destes bens é inferior ao menor do custo médio de aquisição ou de realização.”

(cfr. “Demonstrações Financeiras Individuais” da sociedade D..., SA do ano 2016, documento junto ao processo administrativo);

u)           No balanço da sociedade D..., SA do ano de 2016 não foi reconhecida qualquer imparidade para depreciação de “inventários” (imóveis) (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016, junta ao PPA como documento 1);

v)            O balanço da sociedade D..., SA do ano de 2016 não refletiu o impacto do PDM de .... (aprovado a 27/10/2016 e publicado no DR a 8/3/2017) no valor do terreno rústico supra referido (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016, junta ao PPA como documento 1);

w)          Nos comentários à Declaração IES da sociedade D..., SA do ano 2016, pode ler-se:

“Conforme mencionado no Relatório de Gestão foi conhecida a sentença da ação interposta pela "G...", que condenou a H..., SA, que pertencia anteriormente ao Grupo I..., e solidariamente a J..., SA, a pagar o valor de 8.750.000 euros, acrescido de juros. As sociedades recorreram da sentença para o Tribunal da Relação que julgou parcialmente precedente o recurso apresentado pelas Rés, aguardando a sociedade a realização do novo julgamento com a convicção que a decisão final lhes será favorável. Uma eventual decisão desfavorável deste processo terá, eventualmente, um impacto significativo na situação líquida da empresa.”

x)            No balanço da sociedade D..., SA do ano de 2016 não foi reconhecida provisão (passivo) em virtude da existência da uma possível responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização no valor de €8.750.000,00 (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2016, junta ao PPA como documento 1);

y)            Em 8/5/2017, o Requerente celebrou um contrato de cessão de quotas com a sociedade K..., UNIPESSOAL, LDA (NIF...), nos termos do qual transmitiu a sua a quota na sociedade C..., LDA pelo seu valor nominal, i.e., pelo valor de € 4.000,00 (cfr. contrato de cessão de quotas de 8/5/2017 junto ao processo administrativo);

z)            Os Requerentes procederam à entrega da Declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2017, não tendo, contudo, declarado a transmissão da sua quota na sociedade C..., LDA (cfr. admitido pelos Requerentes nos artigos 8.º e 14.º do PPA);

aa)         Na Declaração IES da sociedade C..., SA do ano de 2018, o valor contabilístico dos “inventários” é de €2.252.210,00, não tendo sido inscrita qualquer imparidade para depreciação de “inventários” (imóveis) (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2018, junta ao PPA como documento 3);

bb)         O balanço da sociedade C..., SA do ano de 2018 não refletiu o impacto do PDM de .... no valor do terreno rústico supra referido (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2018, junta ao PPA como documento 3);

cc)          Nos comentários à Declaração IES da sociedade C..., SA do ano de 2018 não é feita qualquer referência ao processo judicial mencionado na Declaração IES do ano de 2016, do qual poderia ter resultado uma responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização de €8.750.000,00 (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2018, junta ao PPA como documento 3);

dd)         A Declaração IES da sociedade C..., SA do ano 2018 indica que (i) as contas do exercício foram aprovadas, por unanimidade, pela respetiva assembleia de sócios, (ii) o relatório de gestão e as contas de exercício foram assinados por todos os membros da gerência, (iii) o órgão de fiscalização da sociedade pronunciou-se pela aprovação das referidas contas, e (iv) as contas foram legalmente certificadas por ROC/SROC nomeado (cfr. respetiva Declaração IES do ano 2018, junta ao PPA como documento 3).

ee)         Os Requerentes foram objeto de uma ação de inspeção de âmbito parcial, com referência ao IRS do ano de 2017, ao abrigo da ordem de serviço OI2019... (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo);

ff)           A ação de inspeção, de âmbito parcial, teve “por objetivo o controlo em termos de IRS para o ano de 2017, e foi motivada por terem sido declaradas mais-valias de valores mobiliários, passiveis de análise” (cfr. ponto II.2 do Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo);

gg)         Na sequência da referida inspeção, os Requerentes foram notificados do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, através do ofício n.º DIT1-..., de 11/03/2021, tendo-lhes sido concedido o prazo de 15 dias para, querendo, exercerem o direito de audição (cfr. o referido Ofício e comprovativo dos CTT juntos ao processo administrativo);

hh)         O Projeto de Relatório de Inspeção Tributária concluía, sumariamente, o seguinte:

 

ii)            Segundo o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, as referidas correções ao rendimento líquido da categoria G do IRS dos Requerentes do ano de 2017 foram propostas pela AT após “análise dos elementos disponíveis nas bases de dados da AT, nomeadamente na Modelo 13 – Valores mobiliários, warrants autónomos e instrumentos financeiros derivados, enviadas pelos intermediários financeiros, e dos elementos enviados pelo SP” (cfr. ponto III.1.1.1 do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).

jj)           Quanto ao valor de realização da quota, o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária inclui as seguintes considerações:

 

kk)         No Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, a AT considerou que existiriam fundadas dúvidas de que o valor declarado tenha sido o valor real da transmissão, para efeitos de aplicação do artigo 52.º do CIRS, tendo em conta a realidade da sociedade C..., LDA à luz da Declaração IES do ano de 2016, da avaliação pela ótica patrimonial da empresa (sem ajustamentos), da avaliação pela ótica do mercado – EBITDA, e da análise ao histórico de distribuição de lucros e ao Relatório de Gestão de 2016;

ll)            Perante uma possível divergência detetada, o Projeto de Relatório de Inspeção propunha uma correção ao valor de realização da quota da sociedade C..., LDA nos termos previstos no n.º 3 do artigo 52.º do CIRS:

 

mm)      Uma vez que os Requerentes optaram pelo não englobamento dos valores respeitantes às alienações dos valores mobiliários, e que a taxa especial prevista no artigo 72.º, n.º1, do CIRS era de 28% para o ano de 2017, a AT determinou que o imposto em falta relativamente à mais-valia decorrente da transmissão da quota em causa seria de €511.742,27 (cfr. ponto III.1.1.8 do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).

nn)         Os Requerentes exerceram o seu direito de audição prévia dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito, nos seguintes termos:

 

oo)         Os Requerentes foram notificados do Relatório de Inspeção Tributária, através do ofício n.º OI2019..., com data de 16/04/2021 (cfr. o referido Ofício e comprovativo dos CTT juntos ao processo administrativo);

pp)         No Relatório de Inspeção Tributária são analisados os argumentos apresentados pelos Requerentes no exercício do direito de audição, nos seguintes termos:

i)             Relativamente aos argumentos constantes dos pontos 1 a 18, o Relatório de Inspeção Tributária refere o seguinte:

 

ii)            Relativamente aos argumentos constantes dos pontos 19 a 21, o Relatório de Inspeção Tributária refere o seguinte:

 

iii)           Relativamente aos argumentos constantes dos pontos 22 a 27, o Relatório de Inspeção Tributária refere o seguinte:

 

qq)         No Relatório de Inspeção Tributária, a AT considerou que existiriam fundadas dúvidas de que o valor declarado tenha sido o valor real da transmissão tendo em conta a realidade da sociedade C..., LDA à luz da Declaração IES do ano de 2016, da avaliação pela ótica patrimonial da empresa (sem ajustamentos), da avaliação pela ótica do mercado – EBITDA, da análise ao histórico de distribuição de lucros e ao Relatório de Gestão de 2016, da análise do valor de mercado de bens imóveis detidos pela sociedade. C..., SA (quer dos imóveis inscritos na contabilidade da sociedade, quer de outros imóveis não inscritos na contabilidade da sociedade), da análise de uma potencial responsabilidade futura da sociedade D..., SA (decorrente de processo judicial).

rr)           No Relatório de Inspeção Tributária, a AT conclui que os factos invocados pelos Requerentes no exercício do seu direito de audição “não foram passíveis de afastar” as dúvidas levantadas sobre o valor real da transmissão da quota da sociedade C..., LDA, pelo que manteve os fundamentos para as divergências apuradas, bem como as correções constantes do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (cfr. ponto IX do Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo);

ss)          Com base no Relatório de Inspeção Tributária, a AT emitiu a liquidação adicional de IRS n.º 2021..., de 04/05/2021, relativa ao ano de 2017, na qual consta o rendimento presumido nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS, do qual resultou a coleta de €551.392,07 (cfr. ato de liquidação junto pelos Requerentes);

tt)           Os Requerentes foram notificados desta liquidação, com o montante total de €562.250,10 (cfr. ato de liquidação junto pelos Requerentes);

uu)         Em 29/07/2021, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

§2. Factos não provados

20.          Consideram-se não provados os seguintes factos com relevância para a decisão arbitral a proferir:

a)            O valor de realização da cessão de quota da sociedade C..., LDA pelos Requerentes a 8/5/2017 corresponde ao valor de aquisição (i.e., €4.000,00), não tendo a mesma cessão gerado qualquer ganho (artigo 14º do PPA);

b)           A 8/5/2017, o valor de mercado da quota dos Requerentes na sociedade C..., LDA, SA era nulo, ou praticamente nulo (artigo 53º do PPA).

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

21.          Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

22.          Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

23.          Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, al. e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

24.          Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a prova documental junta aos autos, e considerando as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

25.          Relativamente aos factos acima elencados como não provados, o Tribunal baseia a sua decisão na convicção que formou em relação à prova documental produzida pelas partes e de acordo com a experiência de vida dos ora signatários.

26.          Quanto ao valor de realização da quota alienada pelos Requerentes a 8/5/2017, e não obstante o valor de €4.000,00 ser indicado no contrato de cessão de quotas dessa data, cumpre salientar que os Requerentes não juntaram ao processo administrativo ou ao processo arbitral comprovativo do recebimento de €4.000,00 por parte da sociedade K..., UNIPESSOAL, LDA (e.g. comprovativo de transferência bancária), ou prova equivalente, tendo tido oportunidade de o fazer aquando do exercício do seu direito de audição e aquando da apresentação do PPA.

27.          Assim, não lograram os Requerentes fazer prova direta, através de documentos que têm ou deveriam ter na sua disponibilidade, do valor real de transmissão da sua quota da sociedade C..., LDA, e, por consequência, de que não auferiram qualquer ganho com a alienação da dita quota;

28.          Os Requerentes não lograram também fazer prova de que, na data em que cederam a sua quota na sociedade C..., SA (8/5/2017), o valor de mercado da mesma era nulo, ou praticamente nulo.

29.          A este respeito, interessa analisar com mais detalhe as alegações dos Requerentes.

30.          Em primeiro lugar, os Requerentes alegam que, apesar do balanço da sociedade C..., LDA do ano de 2016 indicar que esta sociedade tem um capital próprio positivo (a 31/12/2016, o capital próprio da sociedade era de €2.196.160,32), a situação líquida da sociedade era negativa em virtude da sua participação na sociedade F..., SA, com capitais próprios negativos (a 31/12/2016, o capital próprio negativo desta sociedade ascendia a -€2.268.928,21) (cfr. artigos 53.º, 57.º a 59.º, 61.º a 65.º, e 104.º do PPA).

31.          O regime legal da responsabilidade das “sociedades diretoras/dominantes” pelos prejuízos das “sociedades subordinadas/dominadas” encontra-se estatuído no artigo 502.º do CSC (aplicável ex vi artigo 491.º do CSC), no qual se pode ler:

“Artigo 502.º - Responsabilidade por perdas da sociedade subordinada

1 - A sociedade subordinada tem o direito de exigir que a sociedade directora compense as perdas anuais que, por qualquer razão, se verifiquem durante a vigência do contrato de subordinação, sempre que estas não forem compensadas pelas reservas constituídas durante o mesmo período.

2 - A responsabilidade prevista no número anterior só é exigível após o termo do contrato de subordinação, mas torna-se exigível durante a vigência do contrato, se a sociedade subordinada for declarada falida.”

32.          Tal como referido supra, a 31/12/2016, o capital próprio negativo da sociedade F..., SA de -€2.268.938,21 resultava maioritariamente de um resultado líquido negativo (-€175.091,02) e de resultados transitados negativos (prejuízos acumulados de anos anteriores) de valor substancial (-€3.152.093,93).

33.          Ora, nos termos do artigo 502.º do CSC, a 31/12/2016 e a 8/5/2017 (data do contrato de cessão de quotas), a sociedade C..., LDA não poderia ser chamada a compensar a sociedade F..., SA pelo resultado líquido negativo do exercício de 2016 (-€175.091,02) desde sociedade, ou pelos resultados transitados negativos (prejuízos acumulados de anos anteriores) desta sociedade (-€3.152.093,93).

34.          Ora, se a 31/12/2016, ou a 8/5/2017, a sociedade C..., LDA não podia ser chamada à responsabilidade pela sociedade F..., SA por perdas/prejuízos desta, é lógico que (i) o capital próprio da sociedade C..., LDA não fosse afetado pelos capitais próprios negativos da sociedade F..., SA, e que (ii) o valor de mercado das quotas da sociedade C..., LDA nessas datas não fosse afetado pelos capitais próprios negativos da sociedade F..., SA.

35.          É por este motivo que, tal como alegado pelos Requerentes, a participação da sociedade C..., LDA na sociedade F..., SA foi reconhecida no balanço daquela por valor nulo, em cumprimento da Norma Contabilística e de Relato Financeiro 13 (“NCRF 13”), na qual se pode ler:

“Método da equivalência patrimonial: é um método de contabilização pelo qual o investimento ou interesse é inicialmente reconhecido pelo custo (sendo o goodwill respetivo apresentado separadamente) e posteriormente ajustado em função das alterações verificadas, após a aquisição, na quota -parte do investidor ou do empreendedor nos ativos líquidos da investida ou da entidade conjuntamente controlada. Os resultados do investidor ou empreendedor incluem a parte que lhe corresponda nos resultados da investida ou da entidade conjuntamente controlada.”

“54 — Se a parte de um investidor nas perdas de uma associada igualar ou exceder o seu interesse na associada, o investidor descontinua o reconhecimento da sua parte de perdas adicionais (...).”

“55 — Depois de o interesse do investidor ser reduzido a zero, as perdas adicionais são tidas em conta mediante o reconhecimento de um passivo, só na medida em que o investidor tenha incorrido em obrigações legais ou construtivas ou tenha feito pagamentos a favor da associada.”

36.          Não tendo sido reconhecido qualquer passivo no balanço da C..., LDA do ano de 2016 por perdas adicionais devido a compromissos assumidos para com a sociedade F..., SA, será de concluir que a situação líquida daquela sociedade não era afetada pelos capitais próprios negativos desta, nem a 31/12/2016 nem a 8/5/2017.

37.          Em segundo lugar, os Requerentes alegam que o valor de mercado da sua quota na sociedade C..., LDA era zero (aquando da alienação da quota, a 8/5/2017), por esta sociedade poder ser chamada a pagar um empréstimo obtido pela sociedade F..., SA (no valor de €2.974.504,07) (cfr. artigo 66.º do PPA). 

38.          Quanto a esta alegação, cumpre atender ao disposto no artigo 501.º do CSC (aplicável ex vi artigo 491.º do CSC), no qual se pode ler:

“Artigo 501.º - Responsabilidade para com os credores da sociedade subordinada

1 - A sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao termo deste.

2 - A responsabilidade da sociedade directora não pode ser exigida antes de decorridos 30 dias sobre a constituição em mora da sociedade subordinada.

3 - Não pode mover-se execução contra a sociedade directora com base em título exequível contra a sociedade subordinada.”

39.          Cumpre sublinhar também que no balanço da sociedade C..., LDA, do ano de 2016, não é reconhecida uma potencial responsabilidade futura decorrente do referido empréstimo à sociedade F..., SA (no valor de €2.974.504,07), e não há qualquer menção nas observações em anexo ao mesmo.

40.          Assim sendo, não obstante, nos termos do artigo 501.º do CSC, a sociedade C..., LDA (sociedade diretora/dominante) ser responsável pelas obrigações da sociedade F..., SA (subordinada/dominada) perante os credores desta, nomeadamente pelo empréstimo contraído por esta junto de “outros financiadores” no valor de €2.974.504,07 (a 31/12/2016), o facto de no balanço da sociedade C..., LDA não ser reconhecida uma potencial responsabilidade futura decorrente deste empréstimo, e de não haver qualquer menção nas observações em anexo ao mesmo, leva o Tribunal a crer que os Requerentes (na qualidade de sócios maioritários da sociedade C..., LDA), bem como os gerentes, o órgão de fiscalização e o ROC/SROC nomeado pela sociedade C..., LDA (que aprovaram o respetivo balanço e as contas do exercício de 2016) não contemplavam (a 31/12/2016) a possibilidade da sociedade C..., LDA ser chamada a pagar o dito empréstimo.

41.          De facto, à luz do disposto na Norma Contabilística e de Relato Financeiro 21 – “NCRF 21” (relativa a provisões, passivos contingentes e ativos contingentes), se os sócios, gerentes, membros do órgão de fiscalização e o ROC/SROC que aprovaram o balanço e contas de exercício da sociedade C..., LDA do ano de 2016 contemplassem que:

(i)           a sociedade C..., LDA seria provavelmente chamada a pagar o empréstimo contraído pela sociedade F..., SA, teriam inscrito uma “provisão” (reconhecida como passivo) no balanço daquela sociedade;

(ii)          seria razoavelmente possível que a sociedade C..., LDA fosse chamada a pagar o dito empréstimo, teriam incluído uma observação em anexo ao balanço daquela sociedade tratando o valor do empréstimo por liquidar como “passivo contingente”;

(iii)         a possibilidade da sociedade C..., LDA ser responsabilizada pelo pagamento do empréstimo referido seria remota, não teriam mencionado o mesmo empréstimo no balanço ou nas observações em anexo ao mesmo.

42.          Com base nos documentos juntos ao processo, que apontam no sentido dos Requerentes (na qualidade de sócios maioritários), gerentes, órgão de fiscalização e do ROC/SROC nomeado terem contemplado (a 31/12/2016) a possibilidade da sociedade C..., LDA ser chamada a pagar o empréstimo contraído pela sociedade F..., SA como remota, o Tribunal conclui que a AT andou bem ao não considerar que este empréstimo afetou o valor de mercado da quota transmitida pelos Requerentes a 8/5/2017 de forma a torná-lo nulo, ou praticamente nulo.

43.          Tendo em vista todas estas considerações, o Tribunal formou a convicção de que nem os capitais próprios negativos da sociedade F..., SA (a 31/12/2016), nem o empréstimo obtido por esta sociedade (no montante de €2.974.504,07) determinaram que o valor de mercado da quota transmitida pelos Requerentes a 8/5/2017 fosse nulo, ou praticamente nulo.

44.          Em terceiro lugar, os Requerentes alegam que o valor de mercado da quota dos Requerentes na sociedade C..., LDA era nulo (aquando da alienação da quota, a 8/5/2017) por o capital próprio desta sociedade resultar maioritariamente do valor contabilístico da participação desta sociedade na sociedade D..., SA, cujo capital próprio não refletiria (segundo os Requerentes) a respetiva situação financeira ou patrimonial (cfr. artigos 60.º, 82.º, 107.º a 110.º do PPA).

45.          Mais especificamente quanto à situação financeira ou patrimonial da sociedade D..., SA, os Requerentes alegam que (a) o respetivo capital próprio de €2.213.634,06 resultava, a 31/12/2016, do valor contabilístico dos imóveis detidos por esta sociedade (reconhecidos no balanço como “inventários”) de €2.252.210,00, e (b) o valor de mercado destes imóveis era, a 31/12/2016, praticamente nulo.

46.          Concluem assim os Requerentes que tanto a participação da sociedade C..., LDA como a participação da sociedade D..., SA tinham, a 8/5/2017, um valor de mercado de nulo, ou praticamente nulo.

47.          A este respeito, o Tribunal tece duas considerações: (1) afigura-se-nos que é muito pouco provável que um prédio rústico com a área de 11,772 Hectares, adquirido pela sociedade D..., SA por €2.000.000,00, tivesse a 8/5/2017 um valor de mercado próximo de zero (independentemente de ser urbanizável ou não); (2) de acordo com a informação cadastral da AT, para além dos cinco imóveis reconhecidos na contabilidade da sociedade D..., SA como “inventários”, esta sociedade era proprietária, a 31/12/2016, de mais 18 imóveis, cujo valor de aquisição se desconhece.

48.          Assim sendo, na convicção do Tribunal, formada com base nos factos alegados pelas partes e na prova documental junta ao processo, nem as quotas da sociedade C..., LDA nem as ações da sociedade D..., SA tinham, a 8/5/2017, um valor de mercado nulo, ou praticamente nulo.

49.          Em quarto lugar, os Requerentes alegam que a sua quota na sociedade C..., LDA não tinha qualquer valor de mercado à data da respetiva alienação (8/5/2017), por a sociedade D..., SA poder vir a ser responsabilizada pelo pagamento de uma indemnização no montante de €8.750.000,00 na sequência do desfecho de processo judicial (cfr. artigos 83.º e 111.º do PPA).

50.          À luz da NCRF 21 referida supra, o facto de no balanço da sociedade D..., SA do ano de 2016 não ser reconhecida uma provisão (passivo) relativa a esta potencial responsabilidade, e desta constar de uma observação em anexo ao balanço, indiciam que, a 31/12/2016, os sócios, gerentes, membros do órgão de fiscalização, e o ROC/SROC nomeado pelo sociedade D..., SA contemplaram como razoavelmente possível que esta sociedade fosse chamada a pagar o montante referido, expressando no entanto a sua convicção de que o desfecho do processo lhes seria favorável.

51.          Acresce que, no balanço da sociedade C..., LDA e no anexo ao mesmo, não é reconhecida ou mencionada uma potencial responsabilidade pelo pagamento da indemnização em causa.

52.          Dado o otimismo expresso nas observações em anexo ao balanço da sociedade D..., SA do ano de 2016, e a omissão da existência de uma eventual responsabilidade pelo pagamento da indemnização em causa no balanço e contas da sociedade C..., LDA, afigura-se--nos que a existência de uma eventual responsabilidade pelo pagamento da indemnização por parte da sociedade D..., SA não tornaria nulo o valor de mercado das ações da sociedade D..., SA, ou das quotas da sociedade C..., LDA a 31/12/2016 ou a 8/5/2017.

53.          Aliás, a 31/12/2018, as observações em anexo ao balanço da sociedade D..., SA já não faziam referência ao dito processo, o que indicia que uma eventual responsabilidade pelo pagamento da indemnização passou a ser contemplada como remota.

54.          Uma nota para sublinhar que, nos termos do artigo 75.º da LGT, presumem-se verdadeiros e de boa-fé “os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”.

55.          Das todas estas considerações resulta que, na convicção deste Tribunal, o valor de mercado da quota transmitida pelos Requerentes não seria nulo, ou praticamente nulo, aquando da celebração do contrato de cessão de quotas.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Questões decidendas

56.          Os Requerentes imputam à liquidação contestada os seguintes vícios:

a)            Erro na forma de determinação do rendimento;

b)           Errónea interpretação do artigo 52.º do CIRS;

c)            Violação do dever de descoberta da verdade material;

d)           Violação do dever de fundamentação do direito de audição e do princípio do inquisitório;

e)           Erro na determinação do valor de alienação das quotas, nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS.

57.          Tendo por base o disposto no artigo 124.º do CPPT, considerando que no caso sub judice não foi alegado qualquer vício que determine a nulidade do ato impugnado, nem se estabelece entre os vícios uma relação de subsidiariedade, a apreciação dos vícios alegados será feita pela ordem indicada pelos Requerentes.

58.          Caso este tribunal conclua pela procedência do pedido de declaração da ilegalidade, na parte contestada, do ato de liquidação controvertido, deverá, ainda, apreciar e decidir acerca do pedido de condenação da AT no pagamento de indemnização por encargos alegadamente suportados pelos Requerentes na sequência da prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal.

 

§2. Aplicação do direito ao caso sub judice

A)           Erro na forma de determinação do rendimento

59.          A mais-valia resultante da alienação da quota da sociedade C..., LDA a 8/5/2017 constitui rendimento da categoria G do IRS auferido pelos Requerentes no ano de 2017 (cfr. artigos 9.º, nº 1, al. a) e 10.º, nº 1, al. b) do CIRS).

60.          Tendo os Requerentes omitido este rendimento da sua declaração de IRS do ano de 2017, vieram alegar que a AT não poderia ter recorrido aos n.ºs 1 e 3 do artigo 52.º do CIRS para fixar o rendimento omisso, por um dos pressupostos de aplicação destes preceitos ser o sujeito passivo ter declarado o valor de alienação na sua declaração de IRS (cfr. artigos 30º e 31º do PPA).

61.          Os Requerentes invocam o disposto no artigo 65.º do CIRS, n.ºs 2 e 4, para sustentar que, quando o sujeito passivo omite uma mais-valia na sua declaração de IRS, a AT só poderá efetuar correções à declaração de IRS nos termos do n.º 4 deste artigo, cabendo-lhe provar a existência de um facto tributário gerador de mais-valia e quantificar o correspondente valor (cfr. artigos 32º a 31º do PPA).

62.          Posição contrária é expressa pela Recorrida, que entende que o facto de os Requerentes não terem declarado na Modelo 3 do IRS a mais-valia gerada pela alienação da sua quota na sociedade C..., LDA não pode vedar à AT o mecanismo de fixação dos rendimentos previsto no artigo 52.º do CRS, que terá sido introduzido pelo legislador em resposta a determinados casos de verificada impossibilidade ou acrescida dificuldade de determinação do valor real pela forma direta, e que, por este motivo, são potenciadores de fenómenos de evasão fiscal (cfr. artigo 19º da Resposta).

63.          Assume, pois, relevo para a apreciação do caso sub judice o artigo 65.º do CIRS, cujo texto é o seguinte:

“Artigo 65.º

Bases para o apuramento, fixação ou alteração dos rendimentos

1 - O rendimento coletável de IRS apura-se de harmonia com as regras estabelecidas nas secções precedentes e com as regras relativas a benefícios fiscais a que os sujeitos passivos tenham direito, com base na declaração anual de rendimentos apresentada em prazo legal e noutros elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha.

2 - A Autoridade Tributária e Aduaneira procede à fixação do conjunto dos rendimentos líquidos sujeitos a tributação quando ocorra alguma das situações ou factos previstos no n.º 4 do artigo 29.º, no artigo 39.º ou no artigo 52.º

3 - (Revogado.)

4 - A Autoridade Tributária e Aduaneira procede à alteração dos elementos declarados sempre que, não havendo lugar à fixação a que se refere o n.º 2, devam ser efetuadas correções decorrentes de erros evidenciados nas próprias declarações, de omissões nelas praticadas ou correções decorrentes de divergência na qualificação dos atos, factos ou documentos com relevância para a liquidação do imposto.

5 - A competência para a prática dos atos de apuramento, fixação ou alteração referidos no presente artigo é exercida pelo diretor de finanças em cuja área se situe o domicílio fiscal dos sujeitos passivos, podendo ser delegada noutros funcionários sempre que o elevado número daqueles o justifique.”

64.          A redação do artigo 52.º do CIRS é a seguinte:

“Artigo 52.º

Divergência de valores

1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.

2 - Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:

a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;

b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.”

65.          Entende o Tribunal que a interpretação restritiva do artigo 52.º do CIRS subscrita pelos Requerentes não será de acolher por contrária ao teor literal e à razão de ser deste preceito legal.

66.          Ao introduzir o método de fixação presuntiva de rendimentos contido nos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS (através da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro), o legislador introduziu uma exceção ao princípio da tributação do rendimento real com o objetivo de reduzir a margem de evasão fiscal: perante fundadas dúvidas quanto ao valor real de uma alienação de ações, quotas ou outros valores mobiliários, o legislador conferiu à AT a faculdade de presumir um valor de alienação com vista à sua tributação.

67.          Esta faculdade tem na sua génese comportamentos evasivos dos sujeitos passivos e visa responder a exigências de eficácia no combate à evasão fiscal em casos em que seria muito difícil ou mesmo impossível para a AT determinar o valor real de alienação de ações, quotas ou outros valores mobiliários.

68.          Quando se trate de quotas, a tributação pelo seu valor apurado com base no “último balanço” (valor de alienação presumindo) não se afigura ilógico ou desrazoável uma vez que a capacidade contributiva do sujeito passivo encontra expressão no valor contabilístico das quotas por si alienadas (i.e., num valor determinado em função da situação financeira e patrimonial das sociedades cujas quotas são alienadas).

69.          Tratando-se as presunções estatuídas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS de presunções iuris tantum (cfr. artigo 73.º da LGT), o sujeito passivo tem sempre a possibilidade de contrariar o valor de alienação presumido, através de prova do valor real da alienação em causa (cfr. Decisão Arbitral, de 19.1.2021, proferida no processo 812/2019-T; Decisão Arbitral, de 27.7.2021, proferida no processo 735/2010-T).

70.          A este propósito, importa sublinhar que o Tribunal Constitucional se pronunciou diversas vezes sobre a conformidade constitucional do recurso a presunções como forma de determinação da matéria coletável, face ao princípio da capacidade contributiva, concluindo pela solvabilidade constitucional de tal normação, desde que o sujeito passivo disponha de efetiva possibilidade de ilidir a presunção (cfr. Acórdãos 26/92, 348/97, 84/2003, 211/2003, 452/2003 e 43/2014).

71.          Considerando que o mecanismo estatuído no artigo 52.º do CIRS constitui um instrumento de combate à evasão fiscal, que apenas opera quando a AT tem dúvidas fundadas de que valor real de transmissão de uma quota não corresponde ao valor declarado, não se pode deixar de considerar que a interpretação restritiva do artigo 52.º do CIRS subscrita pelos Requerentes subverte o objetivo e razão de ser do mesmo.

72.          De facto, seguindo a interpretação avançada pelos Requerentes, chegaríamos à conclusão de que: (1) quando o sujeito passivo declarasse o valor de alienação da sua quota na sua declaração de IRS e a AT fundadamente considerasse existir a possibilidade de divergência entre esse valor e o valor real de transmissão, a AT poderia socorrer-se da presunção do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS e fixar o rendimento do sujeito passivo com referência ao valor da quota presumido de acordo com o “último balanço”; (2) quando o sujeito passivo omitisse o rendimento auferido em virtude de uma cessão de quotas na sua declaração de IRS, a AT teria o ónus de provar o valor real da transmissão da quota, sob pena de o sujeito passivo escapar à tributação do ganho realizado.

73.          Tal interpretação não só subverteria o objetivo e razão de ser do artigo 52.º do CIRS (que, repita-se, visa auxiliar a AT no combate à evasão fiscal) como constituiria um incentivo para os contribuintes omitirem ganhos decorrentes da alienação de participações sociais das respetivas declarações de IRS.

74.          Não nos parece que tal tenha sido a intenção do legislador.

75.          Acresce que a interpretação restritiva do artigo 52.º do CIRS subscrita pelos Requerentes também não decorre do teor literal do mesmo artigo.

76.          Aliás, da leitura atenta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 21/5/2020, no processo n.º 00357/18.7BEVIS, resulta que também neste processo o sujeito passivo omitiu uma transmissão de participações sociais na sua declaração de IRS e que a AT socorreu-se do mecanismo contido no artigo 52.º do CIRS para sujeitar o ganho decorrente da dita transmissão a tributação, com aprovação tanto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu como do Tribunal Central Administrativo Norte.

77.          Atendendo à ratio legis e ao teor literal do artigo 52.º, n.ºs 1 e 3, do CIRS, bem como à prática dos tribunais portugueses, afigura-se-nos ser de interpretar o termo “valor declarado” contido no n.º 1 do artigo 52.º do CIRS no sentido de incluir tanto o valor de alienação declarado na declaração de IRS como o valor de alienação declarado no contrato de cessão de quotas.

78.          Conclui-se, assim, que a AT andou bem quando se socorreu do artigo 52.º do CIRS no caso sub judice, e quando assumiu que a transmissão da quota em causa foi declarada, para efeitos do artigo 52.º, nº 1, do CIRS, pelo valor indicado no contrato de cessão de quotas de 8/5/2017 (€4.000).

79.          Improcede, assim, o primeiro vício invocado pelos Requerentes.

 

B)           Da errónea interpretação do artigo 52.º do CIRS

80.          De acordo com o teor literal do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, basta a fundada possibilidade de existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para que a AT se possa valer das presunções previstas nos números subsequentes do mesmo artigo.

81.          Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 21.5.2020, no processo 357/18.7BEVIS:

“(...) a norma do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, se basta com a demonstração de que “pode existir” divergência entre os valores declarado e real, o que não se confunde com a efetiva existência dessa divergência. Assim, a AT apenas tem o ónus de demonstrar factos que evidenciem a possibilidade de existir divergência e, já não, factos demonstrativos de que a divergência efetivamente existe.

Como é fácil de perceber, a “possibilidade de existir” e a “efetiva existência” são coisas bem distintas, tal como também é o peso do encargo probatório necessário à demonstração de uma e de outra.”

82.          Cumpre sublinhar que o artigo 52.º, n.º 1, do CIRS não impõe à AT o ónus de provar que existe uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, o que implicaria exigir à AT que fizesse prova do valor real da transmissão.

83.          Na verdade, se a AT detivesse informação relativa ao valor real da transmissão, seria esse o valor de realização para efeitos de apuramento da mais-valia (i.e., o valor de contraprestação referido no artigo 44.º, nº 1, al. f), do CIRS) e o sujeito passivo não seria tributado pelo valor de transmissão presumido nos termos dos n.ºs 2 e 3 artigo 52.º do CIRS.

84.          Como referido supra, o artigo 52.º do CIRS foi introduzido precisamente para dar resposta a situações em que a AT não detém elementos que lhe permitam determinar o valor real da transmissão, em que exigir que a AT provasse o valor real da transmissão seria impor-lhe o ónus de fazer uma prova impossível ou excessivamente difícil de ser produzida (uma verdadeira “prova diabólica”).

85.          Assim, o entendimento segundo o qual a AT teria de fazer prova do valor real da transmissão e de que este não corresponde ao valor declarado pelo sujeito passivo subverteria não só o teor literal do artigo 52.º, n.º 1, do CIRS como a sua ratio legis.

86.          Todavia, cumpre salientar que o facto de não ser exigível à AT que prove o valor real da transmissão não significa que a AT esteja dispensada de apresentar factos indiciadores de que o valor declarado não corresponde ao valor real de transmissão.

87.          Na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 812/2019-T, de 19 de janeiro de 2021, no qual ficou provado que a AT fundamentou a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão exclusivamente na diferença entre o valor nominal das participações sociais (valor declarado) e o valor das participações sociais tendo em vista os capitais próprios da sociedade inscritos no “último balanço”, veio o Tribunal Arbitral dizer:

“No entendimento deste Tribunal, considera-se que a AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão ao ter tomado como critério, além do mais único, aquele que, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do Código do IRS, serve de base à presunção do valor de realização, ou seja, ao adotar como critério “o último balanço”.”

88.          Esta Decisão Arbitral é reproduzida, quase na totalidade, pela Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 735/2020-T, de 27 de julho de 2021.

89.          Quanto aos factos e indícios objetivos aptos a sustentar a convicção da AT de que “pode existir” uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para efeitos do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, interessa sublinhar que a lei não tipifica os mesmos, tal como referido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte supra mencionado:

“Importa referir que nada na lei obsta a que a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da operação seja indiciada pela existência de relações especiais e / ou de uma operação por valor inferior ao real ou de mercado. Na verdade, a lei não define nem limita os factos em que a AT se pode basear para considerar “fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da operação”; nesta medida, não existia qualquer impedimento legal à correção da matéria tributável à luz do artigo 52.º do CIRS.”

90.          Assim, tal como é reconhecido neste Acórdão, a AT poderia no caso sub judice (como fez) fundar a sua convicção de que poderia existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão da quota da sociedade C..., LDA pelos Requerentes, para efeitos de aplicação do artigo 52.º do CIRS, no facto de o valor declarado (€4.000,00) ser substancialmente inferior ao valor de mercado da dita quota a 8/5/2017, conforme resulta indiciado por vários elementos apurados pela AT no decorrer na inspeção que realizou.

91.          A este respeito, afigura-se-nos que a AT recorreu corretamente, num primeiro momento (aquando da elaboração do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária), à aplicação do método de Avaliação pela Ótica Patrimonial da empresa, e à análise ao histórico de distribuição de lucros e ao Relatório de Gestão de 2016.

92.          A aplicação do método de Avaliação pela Ótica Patrimonial da empresa evidenciou uma manifesta discrepância entre o valor declarado de cessão da quota (€4.000,00) e o valor do capital próprio da sociedade C..., LDA em 31/12/2016 (€2.196.160,32).

93.          Através da análise ao histórico de distribuição de lucros, com base na Declaração IES da sociedade C..., LDA do ano de 2016, e no respetivo Relatório de Gestão, é possível constatar que nunca foram distribuídos lucros, mesmo nos anos de 2012 e 2013, nos quais os resultados de exercício líquidos foram, respetivamente, de €1.462.547,97 e de €730.451,33.

94.          A AT recorreu também à Avaliação pela Ótica do Mercado – EBITDA.

95.          Contudo, atendendo às circunstâncias do caso concreto, não se vê em que medida possa o EBITDA acrescentar algum elemento à indiciação que já resulta dos métodos anteriormente considerados.

96.          Isto porque, tal como é referido no Relatório de Inspeção Tributária, o EBITDA “baseia a sua metodologia na utilização de múltiplos sobre indicadores económico-financeiros ou contabilísticos históricos, com base na comparação entre empresas semelhantes ou operações de transação de empresas semelhantes”, e, no caso vertente, a sociedade C..., LDA nunca exerceu efetivamente uma atividade económica, “derivando os seus resultados apenas das participações sociais que detém noutras empresas”.

97.          Também não se compreende a invocação, “a título meramente exemplificativo”, no Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, da “avaliação pelo art.º 15.º do Código do Imposto do Selo”, uma vez que este preceito não é aplicável aos factos em apreciação nem poderá ser aplicado por analogia.

98.          Após o exercício do direito de audição pelos Requerentes, e em resposta a este, a AT considerou, no Relatório de Inspeção Tributária, vários factos alegados por estes atinentes a comprovar que o valor de mercado da sua quota na sociedade C..., LDA era, a 8/5/2017, nulo, ou praticamente nulo.

99.          Mais especificamente, a AT analisou (i) o considerável património imobiliário da sociedade D..., SA (quer os imóveis reconhecidos no balanço da sociedade, quer outros imóveis não reconhecidos nas contas da sociedade), incluindo o valor de mercado do prédio rústico com 11,772 Hectares detido por esta (contabilizado por €2.000.000,00) e o impacto do PDM aprovado no seu valor, e (ii) o impacto nos capitais próprios da sociedade C..., LDA de uma potencial responsabilidade futura da sociedade D..., SA decorrente de processo judicial.

100.       À luz dos vários elementos apurados pela AT, que apontam no sentido de que o valor de mercado da quota alienada pelos Requerentes era superior ao valor declarado no contrato de cessão de quotas de 8/5/2017 (i.e., €4.000,00), entende este Tribunal que a AT apresentou, como lhe competia, factos indiciadores plausíveis aptos a fundamentar a sua convicção de que poderia existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para efeitos de aplicação do artigo 52.º do CIRS.

101.       Consequentemente, considera o Tribunal que não procede a alegação dos Requerentes de que a AT concluiu que poderia haver uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão da quota pelos Requerentes a 8/5/2017 tendo em consideração somente o balanço da sociedade C..., LDA a 31/12/2016 (cfr. artigos 9.º, 49.º e 52.º do PPA).

102.       Improcede também a alegação dos Requerentes de que os factos e indícios objetivos em que a AT se baseou para concluir que poderia existir divergência entre o valor declarado e o valor real de transmissão não têm aderência à realidade (cfr. artigo 53º do PPA), até porque, tal como referido supra, os Requerentes não lograram provar que, a 8/5/2017, o valor de mercado da quota na sociedade C..., LDA era nulo, ou praticamente nulo.

103.       Note-se que este Tribunal já se pronunciou sobre os motivos pelos quais considerou por não provada a alegação dos Requerentes (contida no artigo 53.º do PPA) de que, a 8/5/2017, o valor de mercado da sua quota na sociedade C..., LDA, era nulo, ou praticamente nulo (cfr. pontos 28 a 55 da presente Decisão Arbitral).

104.       Verificados os pressupostos de aplicação do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS no caso sub judice, a AT presumiu, corretamente a ver do Tribunal, que o valor de alienação corresponde ao valor da quota apurado com base no “último balanço”, conforme determina o n.º 3 do mesmo artigo.

105.       Por último, cumpre referir que impendia sobre os Requerentes o ónus da prova relativamente ao valor real de transmissão da sua quota na sociedade C..., LDA, de modo a ilidirem a presunção que operou por força do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS.

106.       Sucede que, não obstante terem tido oportunidade de o fazer, os Requerentes não ilidiram a dita presunção.

107.       Do exposto supra, conclui-se pela improcedência do segundo vício invocado pelos Requerentes.

 

C)           Da violação do dever de descoberta da verdade material

108.       Os Requerentes argumentam que a AT não procedeu a diligências e não atendeu a factos relevantes no sentido de apurar a real situação financeira e patrimonial da sociedade C..., LDA e das sociedades por ela detidas, violando o princípio da descoberta da verdade material (cfr. artigos 51º a 54º do PPA).

109.       Quanto à alegação de que a AT não atendeu a factos relevantes, nomeadamente aos invocados pelos Requerentes no exercício do seu direito de audição, conclui-se que não assiste razão aos Requerentes.

110.       Mais especificamente quanto à alegação de que a sociedade C..., LDA tem uma situação líquida negativa por deter a totalidade das participações sociais de uma sociedade com capitais próprios negativos (F..., SA), o Tribunal já expressou a sua convição no sentido de que, à luz do artigo 502.º do CSC, a 31/12/2016 e a 8/5/2017, a sociedade C..., LDA não podia ser chamada à responsabilidade pela sociedade F..., SA por perdas/prejuízos desta, sendo lógico que, nessas datas, (i) o capital próprio da sociedade C..., LDA não fosse afetado pelos capitais próprios negativos da sociedade F..., SA, e que (ii) o valor de mercado das quotas da sociedade C..., LDA nessas datas não fosse também afetado pelos capitais próprios negativos da sociedade F..., SA (cfr. pontos 30 a 36 da presente Decisão Arbitral).

111.       Assim, ao contrário do alegado pelos Requerentes (cfr. artigos 57.º a 59.º do PPA), entende o Tribunal que andou bem a AT ao não considerar os capitais negativos da sociedade F..., SA quando considerou o valor de mercado da quota da sociedade C..., LDA.

112.       Também andou bem a AT quando não considerou que o valor de mercado do prédio rústico com 11,772 Hectares detido pela sociedade D..., SA era “tendencialmente nulo” a 8/5/2017 (tal como alegado pelos Requerentes).

113.       Quanto ao referido pelos Requerentes relativamente a um imóvel, cujo direito de propriedade a sociedade D... alegadamente transmitiu por escritura pública de 2018 (cfr. artigos 69.º a 80.º do PPA), e que a AT não considerou de forma especifica para efeitos do valor de mercado da quota da sociedade C..., LDA a 8/5/2017 (por não estar contabilizado no balanço desta sociedade a 31/12/2016), o Tribunal entende não ser de relevar para a decisão do caso sub judice.

114.       O Tribunal também já se pronunciou sobre a indemnização de €8.750.000,00 (referida no artigo 83º do PPA), acompanhando a AT na conclusão de que os factos em torno da mesma não revelam que o valor de mercado da quota da C..., LDA fosse nulo, ou praticamente nulo, a 8/5/2017 (cfr. pontos 49.º a 53.º supra).

115.       Quanto à alegação de que a AT não procedeu às diligências a que estava obrigada em cumprimento do seu dever de descoberta da verdade material, o Tribunal entende que também não assiste razão aos Requerentes.

116.       O artigo 58.º da LGT dispõe que “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”

117.       No caso sub judice, a AT promoveu as diligências que considerou adequadas para apurar uma possível divergência entre o valor declarado e o valor real de transmissão da quota da sociedade C..., LDA pelos Requerentes, ponderou as alegações dos Requerentes no exercício do seu direito de audição e incorporou novos elementos no Relatório de Inspeção Tributária.

118.       Assim, no entender do Tribunal, a AT cumpriu a sua responsabilidade à luz do princípio de descoberta da verdade material, ficando dispensada de voltar a investigar aquilo de que já tinha prova ou fortes evidências: designadamente, de que o valor de mercado da quota em causa, a 8/5/2017, era substancialmente superior ao valor declarado no contrato de cessão de quotas dessa data (i.e., €4.000,00).

119.       Exigir que a AT se socorresse do procedimento de abertura do sigilo bancário em relação aos Requerentes, aos seus familiares, amigos e conhecidos, bem como à sociedade K..., UNIPESSOAL, LDA e às entidades com esta relacionadas, em relação às respetivas contas bancárias junto de instituições financeiras sediadas em Portugal e no estrangeiro (e.g. Suíça, Ilhas Caimão, Dubai, Singapura), de forma a determinar os fluxos financeiros entre os Requerentes e a sociedade K..., UNIPESSOAL, LDA, ou o valor real da transmissão de quota em casa, ou pelo menos comprovar que cumpriu o seu dever decorrente do princípio da descoberta da verdade material, seria impor à AT um ónus excessivo, que o legislador pretendeu precisamente evitar ao introduzir o artigo 52.º do CIRS.

120.       Em suma: a convicção formada pelo Tribunal, de acordo com os elementos trazidos ao processo pelas partes, é de que a factualidade provada evidencia à saciedade a possibilidade de o valor real de transmissão da quota pelos Requerentes não corresponder ao valor declarado no contrato de cessão de quotas de 8/5/2017, porquanto nesta data a quota tinha um valor de mercado evidentemente superior ao valor declarado, mostrando-se, pois, também fundada a convicção da AT de que pode ter ocorrido uma divergência passível de ser corrigida através do artigo 52.º do CIRS.

121.       Conclui-se, assim, que as diligências efetuadas pela AT não merecem qualquer censura, improcedendo, por isso, o terceiro vício invocado pelos Requerentes.

 

D)           Da violação do dever de fundamentação do direito de audição e do princípio do inquisitório

122.       Os Requerentes alegam que a AT não apreciou os elementos factuais e jurídicos invocados pelos Requerentes em sede de audição prévia, violando o princípio do contraditório (cfr. artigo 52.º do PPA).

123.       A Requerida veio responder dizendo que fundamentou a decisão contida no Relatório de Inspeção Tributária.

124.       Conforme consta da matéria de facto dada por provada por este Tribunal, a AT analisou os factos alegados pelos Requerentes em sede de audição prévia, ponderando os mesmos no Relatório de Inspeção Tributária e possibilitando aos Requerentes a formulação de um juízo sobre a conveniência da impugnação da liquidação em crise.

125.       De acordo com a jurisprudência do STA, “um acto está fundamentado sempre que o administrado, como destinatário normal, ficar devidamente esclarecido acerca das razões que o determinaram estando, consequentemente, habilitado a impugná-lo convenientemente, não tendo, todavia, a fundamentação de ser exaustiva mas acessível” (cfr. Acórdão do STA, de 02/02/2006, proferido no processo n.º 1114/05).

126.       No caso sub judice, os Requerentes revelam ter compreendido o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão da AT.

127.       Consequentemente, entende-se não haver violação do dever de fundamentação do direito de audição.

128.       Atendendo ao exposto supra, que não importa repetir, resulta que o Tribunal julga também improcedente a alegação dos Requerentes de que a AT não realizou as diligências necessárias para dar cumprimento ao seu dever de descoberta da verdade material, ou ao princípio do inquisitório.

129.       Improcede, assim, o quarto vício invocado pelos Requerentes.

 

E)            Do erro na determinação do valor de alienação das quotas

130.       Os Requerentes invocam que o balanço da sociedade C..., LDA deverá ser corrigido para efeitos do artigo 52.º do CIRS por não exprimir a situação económica e financeira da sociedade, e por o valor de alienação das quotas determinado nos termos do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS ser de zero (cfr. artigos 95.º a 115.º do PPA).

131.       A Requerida alega que o artigo 52.º do CIRS não faz referência a quaisquer correções e que, em todo o caso, tais correções não seriam necessárias no caso sub judice (cfr. artigos 83.º a 104.º da Resposta).

132.       Tem razão a Requerida, uma vez que o artigo 52.º, n.º 3, do CIRS não prevê qualquer correção ao balanço.

133.       No entender do Tribunal, este preceito legal não admite que a AT se afaste do valor de alienação presumido de acordo com a lei (i.e., do valor da quota apurado com base no “último balanço”) e fixe um valor de alienação “por estimativa”, na sequência de um juízo de equidade ou tendo em conta outras considerações extra legem (e.g., o valor da quota apurado com base no “último balanço” corrigido à luz da “verdadeira” situação financeira e patrimonial da sociedade), na medida em tal correção conduziria a uma tributação de rendimentos com base num valor de transmissão “estimado”, para a qual não existe base legal, e sem referência ao valor real de transmissão ou ao valor de transmissão presumido nos termos da lei.

134.       Ainda que assim não se entenda, o Tribunal considera que a AT demonstrou de forma coerente os motivos pelos quais não seriam necessárias correções ao ativo, passivo ou capitais próprios da sociedade C..., LDA.

135.       Não se identifica, pois, qualquer erro na determinação do valor de alienação da quota em causa nos termos e para os efeitos do artigo 52.º, n.º 3, do CIRS.

136.       Por último, cumpre voltar a sublinhar que os Requerentes não provaram o valor real de transmissão da dita quota (de forma a ilidirem a presunção estatuída no artigo 52.º, n.º 3, do CIRS).

137.       Conclui-se, assim, pela correta interpretação e aplicação pela Requerida dos n.ºs 1 e 3 do artigo 52.º do CIRS, o que determina a improcedência total do pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRS controvertida.

 

F)            Do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida

138.       Os Requerentes pedem, ainda, a condenação da AT no pagamento de indemnização por prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal.

139.       O n.º 1 do artigo 53.º da LGT estabelece que “[o] devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida”.

140.       No caso sub judice não ficou provada a ilegalidade do ato contestado, pelo que improcede o pedido de anulação do mesmo.

141.       Improcede, assim, o pedido de condenação da AT ao pagamento de indemnização por prestação de garantia, em virtude de o mesmo estar dependente do vencimento que os Requerentes pudessem obter na impugnação do ato de liquidação, o que não se verifica.

 

IV. DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida;

c)            Absolver a Requerida dos pedidos.

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €551.392,07.

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €8.568,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2022

 

Os árbitros,

 

(Rita Correia da Cunha)

(Jorge Bacelar Gouveia)

(Paulo Nogueira da Costa)