Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 434/2020-T
Data da decisão: 2021-06-30  IRC  
Valor do pedido: € 261.220,91
Tema: IRC - Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI). Remuneração convencional do capital social (artigo 41.º- A do EBF). Dedução por lucros detidos e reinvestidos (artigo 29.º do CFI)
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Sumário:

I - Na medida em que dizem respeito à matéria europeia dos auxílios de Estado, o Código Fiscal de Investimento, e a regulação que dele consta do RFAI, e a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, devem ser entendidos como instrumentos de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nos artigos 107.º a 109.º do TFUE, no RGIC e nas OAR, e nesse sentido a Portaria apenas pode ser tida como um diploma de execução de disposições de direito europeu;

II – E, nesse sentido, não há motivo para fazer prevalecer a regra que consta do artigo 1.º da Portaria sobre a disposição do artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, para efeito de afastar a atribuição do benefício fiscal RFAI;

III - Uma empresa que se encontre qualificada como micro, pequena ou média empresa para efeito de obter os benefícios fiscais denominados “remuneração convencional do capital social” (artigo 41.º-A, do EBF) e “dedução por lucros retidos e reinvestidos” (artigo 29.º do CFI), apenas perde essa condição quando, nos termos do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, superar o limiar de efetivos relevante para esse efeito durante dois exercícios consecutivos, sendo irrelevante que a empresa tenha sido objeto de uma operação de fusão.

 

Decisão Arbitral

 

Acordam em tribunal arbitral

 

Relatório

 

1. A..., S.A., com sede na Rua ... n.º..., ..., ..., NIF..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, relativas ao exercício de 2016, no valor total de € 145.185,18, e da liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, relativas a 2017, no valor total de € 116.035,10, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

A Requerente dedica-se à transformação e comércio de carne e não prossegue qualquer atividade de criação de animais.

 

Entre 2015 e 2016 efetuou elevado investimento produtivo numa nova unidade fabril com vista à centralização de toda a sua atividade, composta por um centro de processamento e embalamento de produtos de carne, armazéns de frescos e de congelados e ultracongelados, investimento efetuado com a criação de postos de trabalho.

 

Entendendo que preenche todos os requisitos para a utilização do benefício fiscal designado por RFAI, efetuou a correspondente dedução à coleta no seu IRC de 2015, no valor de € 84.099,91, em 2016, no valor de € 83.372,64, em 2017, no valor € 103.285,58, com créditos para os anos seguintes.

 

Na sequência de uma ação inspetiva, a Autoridade Tributária não aceitou que a Requerente pudesse obter o benefício fiscal por considerar que a atividade da empresa está excluída do âmbito do RFAI, por aplicação dos artigos 2.º e 22.º do Código Fiscal do Investimento (CFI), da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, do Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria) e das Orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020 (OAR).

 

Entende a Requerente que os seus investimentos estão inseridos no âmbito sectorial de aplicação do RGIC, na medida em que se centraram em ativos fixos e não em repercussões sobre os produtores primários ou com base no preço ou quantidades dos produtos adquiridos a produtores primários, e por outro lado, não se trata de uma atividade para um setor específico da atividade económica.

 

E está igualmente inserida no âmbito setorial de aplicação das OAR, tendo em consideração que o ponto 10 relativo ao âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional, ao excluir o setor agrícola, não se aplica à transformação de animais, além de que o investimento em causa, embora se encontre fora do âmbito do artigo 42.o do Tratado, está abrangida pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural e foi cofinanciado pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural.

 

Por outro lado, o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, ao integrar nas OAR e no RGIC todas as atividades de “produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado”, excluindo-as do acesso ao RFAI, é ilegal por estabelecer uma limitação não constante do artigo 22.º do CFI, e inconstitucional por interferir em matéria reservada à Assembleia da República.

 

Alega ainda que se verifica a exceção do caso julgado por a questão em análise ter sido decidida no Processo n.º 463/2019-T, havendo identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido.

 

O ato tributário enferma ainda de vício de falta de fundamentação no ponto em que é omissa quanto à aplicação ao caso dos autos das orientações decorrentes do RGIC e das OAR.

 

A Requerente aproveitou ainda o benefício fiscal previsto no artigo 41.º-A do EBF (remuneração convencional do capital social), com a dedução à coleta, nos anos de 2015, 2016 e 2017, do valor anual de € 17.199,60, por ter efetuado, em 2015, um aumento de capital de € 343.992,00.

 

A Autoridade Tributária entendeu que não era aplicável o referido benefício por não preencher o requisito de micro, pequena ou média empresa (PME) a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º-A do EBF, por efeito da fusão, em 8 de janeiro de 2015, com a sociedade B..., Lda.

 

Ora, a Requerente, em 2014, tinha 211 trabalhadores e a B..., Lda. 56 trabalhadores, não atingindo um número de trabalhadores superior a 250 num momento anterior à fusão por incorporação, sendo que a qualificação de empresas como PME é feita por remissão para o Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro, que estabelece o limiar de efectivos para essa categoria (artigo 2.º do Anexo a esse diploma), não sendo motivo determinante da exclusão do benefício fiscal que as entidades em causa tenham realizado uma operação de fusão.

 

Discute-se ainda se há lugar ao benefício fiscal a que se referem os artigos 27.º a 34.º do CFI (dedução de lucros retidos e reinvestidos em 2016), em resultado de uma parte significativa do resultado líquido da Requerente ter sido afeto a “dedução de lucros retidos e reinvestidos”.

 

Uma das condições de acesso a esse benefício fiscal, por efeito da remissão feita pelo artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do CFI, é que a sociedade requerente fosse uma “micro, pequena e média empresa, tal como definidas pela recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003”.

 

Essa recomendação foi incorporada no ordenamento nacional através do Decreto-Lei n.º 372/2007 e a Requerente, em 2016, era uma média empresa, nos termos dessa legislação, na medida em que não dispunha, em 2014 e 2015, de mais de 250 trabalhadores, sendo irrelevante que tenha ocorrido uma fusão por incorporação de empresas.

 

Os dados considerados para o cálculo dos efetivos são os do último exercício contabilístico encerrado e o número de trabalhadores não corresponde ao simples somatório dos trabalhadores e gerentes da empresa, mas aos trabalhadores por horas de trabalho (UTA, não sendo quantificados os aprendizes e estudantes em formação profissional e apenas o sendo, na proporção, os trabalhadores em tempo parcial, os que trabalhem menos de que um ano e as baixas por doença e licenças de maternidade e parentalidade.

 

Ora, em 2014, anteriormente à fusão, as empresas tinham 241,17 UTA (unidades de trabalho), correspondendo 193 à A... e 48,17 aos Talhos B..., e em 2015, após fusão, a Requerente passou a contar com 239 trabalhadores, encontrando-se verificados os requisitos da dedução de lucros retidos e reinvestidos, sendo irrelevante para o efeito o incumprimento da obrigação acessória da comunicação da efetivação de fusão.

 

Conclui no sentido da procedência do pedido.

 

A Autoridade Tributária, na resposta, começa por suscitar a incompetência do tribunal  para conhecer do pedido arbitral, na parte em que nele se pretende a redução do valor do benefício fiscal RFAI ainda não utilizado, a migrar para os exercícios seguintes, por considerar que não cabe ao tribunal proferir decisão que reconheça um direito ou implique a condenação da Administração em sede de execução de sentença.

 

Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária refere, em síntese, o seguinte.

 

O artigo 2.º, n.º 2, do CFI considera abrangidos pelo RFAI os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades aí mencionadas, entre as quais se inclui a “indústria extrativa e indústria transformadora”, mas no respeito pelo âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC).

 

Por sua vez, o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, determina que, em conformidade com as OAR e o RGIC, não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais, os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas, entre outras, dos setores da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado.

Interessando para o efeito ter em consideração as definições que constam do artigo 2.º do RGIC e especialmente as das suas alíneas 9), 10) e 11), que se encontram assim descritas: 9) «Produção agrícola primária», a produção de produtos da terra e da criação animal, enumerados no anexo I do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza de tais produtos; 10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda; 11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013;»

Entre os produtos elencados no referido anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia constam «Animais vivos» (Capítulo I) e Carnes e miudezas, comestíveis (Capítulo II), de onde resulta que a «transformação de produtos agrícolas» inclui a transformação de animais e carnes e miudezas, que se enquadram no conceito de «produto agrícola» a que se refere a alínea 11) do artigo 2.º do RGIC. 

Por outro lado, a Portaria n.º 282/2014 e o artigo 2.º, n.º 2, do CFI constituem normas de execução e concretização dos princípios e regras das OAR e do RGIC, e do ponto 10 das OAR resulta que os princípios estabelecidos nas orientações relativas aos auxílios com finalidade regional aplicam-se “à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas”, o que implica a contrario que não são aplicáveis à transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, ou seja, um produto enumerado no Anexo I do Tratado, como sucede no caso da atividade desenvolvida pela Requerente.

No que se refere aos benefícios fiscais relativos à “remuneração convencional do capital social” (artigo 41.º-A EBF) e à “dedução por lucros retidos e reinvestidos” (artigo 27.º do CFI), a sua desconsideração pelos serviços inspetivos resultou de, por efeito da operação de fusão realizada em 2015, mediante a qual a Requerente incorporou a sociedade B..., Lda., ter sido ultrapassado o número de 250 pessoas empregadas, em unidades de trabalho-ano (UTA), que constitui o limiar que se encontra estabelecido no artigo 2.º, n.º 1, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007 para a qualificação de uma empresa como PME.

 

Havendo de ser tido em consideração o artigo 4.o, n.o 2, da Recomendação 2003/361/CE, segundo o qual o estatuto de PME só é perdido caso os limiares constantes do artigo 2.o da Recomendação sejam ultrapassados durante dois exercícios consecutivos, regra que não é aplicável caso se verifique a fusão ou aquisição de uma PME por um grupo de maior dimensão, perdendo então a PME o seu estatuto imediatamente a partir da data da operação.

 

Conclui pela procedência da exceção da incompetência do tribunal e, caso se assim não entender, pela improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 13 de janeiro de 2021, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção.

 

Em resposta, a Requerente refere que, tendo admitido, para efeito do benefício fiscal RFAI, a inelegibilidade de um dos investimentos declarados na autoliquidação em IRC, se limitou a requerer, no pedido arbitral, que a pretendida anulação do acto tributário impugnado não incluísse o valor em causa, o que corresponde a um mero pedido de anulação parcial, que poderá ser quantificado em sede de execução de sentença, e que se não encontra excluído pelo regime jurídico da arbitragem tributária.

 

E nesse sentido, propugna o prosseguimento do processo para conhecimento do pedido arbitral tal como se encontra formulado.

 

Seguidamente, por despacho arbitral de 20 de abril de 2021, foi admitido o aproveitamento da prova testemunhal produzida no Processo n.º 463/2019-T e designado o dia 13 de maio, para a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal arrolada no presente processo, determinando-se, na sequência, a notificação das partes para a apresentação de alegações escritas por prazo sucessivo.

 

Em alegações, as partes procuraram fixar os factos que consideram como assentes e mantiveram no mais as suas anteriores posições. A Autoridade Tributária solicitou o reenvio prejudicial quanto ao âmbito de aplicação do ponto 10 e nota de rodapé 11 das Orientações para os Auxílios Estatais com Finalidade Regional e suscitou a inconstitucionalidade das disposições  conjugadas do artigo 22.º, n.º 1, do CFI e do artigo 1.° da Portaria nº 282/2014, por violação dos princípios da legalidade e da igualdade, quando interpretadas no sentido de que não se encontram excluídas do  âmbito   de  aplicação  do  RFAI   as atividades relacionadas   com   a   "produção   agrícola   e   a   transformação e comercialização de  produtos  agrícolas  enumerados  no  anexo  I  do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia".

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 23 de Novembro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foram invocadas as exceções da incompetência do tribunal, pela Requerida, e do caso julgado, pela Requerente, que serão analisadas de seguida.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

 

Saneamento

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

4. A Autoridade Tributária suscita a questão da incompetência do tribunal, por considerar que é requerida, no pedido arbitral, a redução do valor do benefício fiscal RFAI ainda não utilizado, a considerar nos exercícios subsequentes, o que representaria um pedido de reconhecimento do exercício de direito ou interesse legalmente protegido ou a condenação à prática de ato devido, que não se encontram incluídos no âmbito da jurisdição arbitral, atento o disposto no artigo 2.º do RJAT, que se circunscreve às pretensões que se destinem à declaração de ilegalidade de atos tributários.

 

A invocada exceção prende-se com o exposto nos artigos 124.º a 132.º da petição inicial, em que a Requerente, manifestando concordância com o Relatório de Inspeção Tributária no que concerne à inelegibilidade, para efeitos do benefício fiscal RFAI, de um dos investimentos considerados na autoliquidação de IRC – respeitante à aquisição de um imóvel – vem solicitar a exclusão do benefício fiscal nessa parte, sem embargo  de considerar que a liquidação impugnada é em tudo o mais ilegal e deve ser contenciosamente anulada.

 

Analisando a questão, deve fazer-se notar, desde logo, que a Requerente deduz o presente pedido arbitral, na sequência das correções à matéria coletável determinadas no âmbito de uma ação de inspeção tributária, contra as liquidações adicionais de IRC referentes aos exercícios de 2016 e 2017, e, por conseguinte, o objeto do processo não deixa de se enquadrar no âmbito da competência dos tribunais definida no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que, precisamente, inclui a declaração de ilegalidade de atos de liquidação e de autoliquidação.

 

Seria, aliás, absurdo que o contribuinte, para efeito de impugnar um ato de liquidação perante o tribunal arbitral, tivesse de reagir contra a globalidade da liquidação, e não apenas quanto a uma parte dela, e não pudesse conformar-se com algum ou alguns dos segmentos da correção tributária que se lhe afigurasse corresponderem a uma adequada aplicação da lei.

 

                Também é certo que a possibilidade de anulação parcial do ato tributário de liquidação tem sido afirmada, sem divergência, na doutrina e na jurisprudência, com fundamento na natureza divisível do ato, invocando-se, a propósito,  o princípio da economia processual, permitindo-se que a sentença estabeleça de imediato uma definição da situação jurídica, sem necessidade de nova pronúncia pela administração tributária (cfr, por todos o acórdão do STA de 23 de outubro de 2019, Processo n.º 01532/10, e na doutrina, SALDANHA SANCHES, Fiscalidade, 7/8, Julho/Outubro 2001, págs. 63 e segs.).

 

Nesse sentido, como refere JORGE LOPES DE SOUSA, a anulação parcial é juridicamente admissível quando o fundamento da anulação valha apenas em relação a uma parte do ato, isto é, quando um ato de liquidação se baseia em determinada matéria coletável e se vem a apurar que parte dela foi calculada ilegalmente, por não dever ser considerada (Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado, vol. II, 6.ª edição, 2011, pág. 342.

 

E é essa a situação do caso.

 

Pretendendo a Requerente, relativamente ao pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação em IRC, que seja desconsiderado, para esse efeito, o valor do investimento que não pode ser tido por elegível e não se encontra abrangido pelo âmbito de aplicação do benefício fiscal, e sendo esse valor plenamente quantificável, no conjunto dos investimentos que foram objeto de correção tributária, o que está em causa é a mera anulação parcial dos atos tributários que constituem objeto do pedido arbitral.

 

A reconstituição da situação jurídica em sede de execução de sentença, por parte da Administração, em caso de procedência da decisão arbitral, não pressupõe a condenação da Autoridade Tributária na condenação de ato devido ou no reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, mas constitui  a mera decorrência legal  do julgado anulatório (artigos 24.º, n.º 1, do RJAT), o que é, de resto, igualmente aplicável quando se verifique a procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos (artigo 100.º do CPPT).

 

 A exceção de incompetência é, pois, inteiramente improcedente.

 

Exceção de caso julgado

 

5. A Requerente suscita a exceção do caso julgado material resultante da decisão arbitral proferida no Processo n.º 463/2019-T, que incidiu sobre a retenção na fonte de IRC relativa ao ano de 2015, envolvendo os mesmas partes e as mesmas questões de direito.

 

Deve começar por dizer-se que o efeito do caso julgado material que a Requerente pretende obter não se caracteriza como exceção. De facto, os efeitos do caso julgado material poderão projetar-se numa relação processual posterior por duas vias: ou através da invocação da força de caso julgado, que vincula o tribunal a aplicar a definição do direito já transitada em julgado relativamente a uma mesma questão  que volte a suscitar-se numa outra ação; ou através da invocação de uma exceção dilatória, que impede que o tribunal se pronuncie noutro processo sobre a questão de mérito já anteriormente decidida, e que conduzirá à absolvição da instância (artigo 577.º, alínea i), do CPC). No primeiro caso, o tribunal limita-se a adotar o conteúdo da decisão anterior relativamente ao aspeto jurídico que se encontra coberto pelo caso julgado; no segundo caso, havendo total identidade do objeto do processo relativamente a um outro já anteriormente decidido (por estar em causa uma mesma pretensão), o tribunal não tem de emitir qualquer pronúncia e declara extinta a instância.

 

No caso vertente, a Requerente não pretenderá obter o efeito processual negativo da inadmissibilidade da apreciação da causa numa segunda ação (a que corresponderia a exceção do caso julgado), mas antes o efeito positivo da autoridade do caso julgado, levando a garantir a imodificabilidade de decisão anterior já transitada. Não está em causa a proibição de repetição, que a lei previne através da exceção dilatória, mas a proibição de contradição, que é garantida não apenas através da autoridade do caso julgado, mas também através da prevalência da primeira decisão que transitou em julgado quando o tribunal, em processos distintos, venha a emitir sobre a mesma pretensão decisões contraditórias (artigo 625º, n.º 1, do CPC).

 

Entendido neste plano substantivo, o caso julgado obsta “a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados” (cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, pág. 317).

 

Como resulta do disposto no artigo 619.º do CPC, o efeito extraprocessual do caso julgado opera dentro dos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º que definem o conceito e os requisitos do caso julgado. Entende-se que a causa se repete “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (artigo 581º, n.º 1, do CPC). São estes elementos que permitem, por sua vez, definir a extensão do caso julgado. A identidade de sujeitos processuais recorta os limites subjetivos do caso julgado, enquanto os limites objetivos são definidos pela identidade do pedido e da causa de pedir, ou seja, pelo objeto do processo. O caso julgado cobre assim apenas a pretensão do autor (pedido) à luz do facto invocado como seu fundamento (causa de pedir).

 

Alega a Requerente que se verificam, no caso, os requisitos do artigo 581.º porquanto o processo decorre entre as mesmas partes, tem a mesma causa de pedir e visa o mesmo efeito jurídico - a atribuição do benefício fiscal RFAI -, apenas se constatando que a liquidação se refere a um diferente período temporal.

 

Este é, no entanto, um elemento decisivo para determinar a extensão do caso julgado. No processo n.º 463/2019-T, estava em causa a liquidação relativa ao ano de 2015, ao passo que o presente processo respeita à liquidação relativa aos anos de 2016 e 2017. Os processos não visam o mesmo efeito jurídico pela linear razão de que, em qualquer deles, se pretende obter a anulação de um diferente ato tributário e, por conseguinte, o efeito substantivo anulatório resultante da decisão transitada em julgado que incidiu sobre um desses atos não pode estender-se a um outro ato que não ainda não foi objeto de pronúncia judicial.

 

Não se desconhece que no acórdão do STA de 7 de dezembro de 2011 (Processo n.º 0419/11) se decidiu que há identidade de objeto se já existir sentença transitada em julgado que apreciou os mesmos fundamentos de facto e de direito em que se baseia a pretensão anulatória do ato impugnado. Estava-se aí, no entanto, perante uma realidade diferente, visto que na primeira ação estava em causa o ato expresso de liquidação do imposto enquanto que  a segunda ação se referia ao indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa do mesmo ato de liquidação já anteriormente impugnado. Entendeu o tribunal nessa circunstância, que “sendo o ato tácito desprovido de qualquer conteúdo substantivo, a pretensão anulatória tem por fim a eliminação do ato de liquidação objecto do pedido de revisão, precisamente o mesmo contra o qual a recorrida já havia reagido em processo anterior”.

 

Não é esta a situação do caso, dado que – como se viu – em ambos os processos estão em causa pretensões anulatórias referentes diferentes a atos tributários.

 

Importa ter presente, como sublinhou MANUEL ANDRADE, que o “caso julgado só se destina a evitar uma contradição prática, e não já a sua colisão teórica ou lógica”. Pouco interessa que possam ser resolvidas pelos tribunais questões cujos elementos de direito, ou mesmo de facto, sejam idênticos. São outros os institutos processuais que previnem o eventual conflito de jurisprudência sobre a mesma questão fundamental – como é o caso de recurso para uniformização de jurisprudência. O caso julgado, ao contrário, “só pode obstar a decisões concretamente incompatíveis”, ou seja, a decisões “que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas” (ob. cit., págs. 316-317).

 

Patentemente, não é esse o caso, pelo que não é invocável a autoridade do caso julgado.    

 

Fundamentação

 

Matéria de facto

 

                6. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

A)           A Requerente dedica-se à transformação e comércio de carne de todos os tipos: compra carcaças de animais, aos matadouros, e após transformação, vende-a na sua rede de retalho, composta por 41 talhos situados no norte do País.

B)           Em termos de Códigos de Atividade Económica (CAE), a Requerente exerce a atividade principal de “COM. RET. CARNE E PROD. À BASE CARNE, ESTAB. ESPEC.”, à qual corresponde o CAE 47220, e a atividade de COM. RET. PEIXE, CRUSTÁCEOS E MOLUSCOS, ESTAB. ESPEC., CAE Secundário 1 47230.

C)           A Requerente encontra-se enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de tributação.

D)           No exercício da sua atividade, a Requerente não faz criação de animais.

E)            A Requerente compra a terceiros (matadouros), em carcaça, toda a carne que depois vende.

F)            A maior parte da carne é vendida tal como adquirida – apenas se efetuando o trabalho de corte do animal em pedaços, pelos vários tipos de carne.

G)           Numa parte residual, a Requerente efetua preparados de carne, confecionando a carne como refeição pré-feita, como por exemplo, almôndegas de novilho, rolos de carne e hambúrgueres.

H)           Entre 2015 (início do investimento) e 2016 (conclusão do investimento), a Requerente efetuou um investimento de valor de € 4.559.277,23 (€ 2.027.457,14 em 2015 e € 2531,820,09 em 2016) numa nova unidade fabril (entreposto) com vista à centralização de toda a sua atividade, com mais de 5.000m2, localizado em Alfena, Valongo.

I)             Essa unidade fabril é composta por um centro de processamento e embalamento de produtos de carne, armazéns de frescos e de congelados e ultracongelados.

J)            O investimento descrito envolveu a criação de postos de trabalho.

K)           A Requerente enquadrou esse investimento no Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), deduzindo à coleta do exercício de 2015 o valor de € 84.099,91, e nos exercícios de 2016 e 2017 os valores de € 83.099,91 e € 103.285,58, tendo pendente para deduções futuras o valor de € 869.061,18.

L)            Para a realização do investimento em apreço a Requerente beneficiou do incentivo financeiro designado por Programa de Desenvolvimento Rural 2014-2020 (POR 2020), que contemplava um investimento em “Transformação e comercialização de produtos agrícolas”;

M)          Da memória descritiva da candidatura ao PDR2020 consta o seguinte:

 “A nova unidade industrial a implementar tem como objeto o corte e desmancha de carnes de suíno, ruminantes e aves complementado com transformação de carnes nomeadamente o fabrico de carnes picadas, preparados de carnes das espécies atrás referidas e a produção de produtos à base de carne incluindo fumados, cozidos, escaldados e alheiras.

Desenvolverá as seguintes atividades produtivas:

• Receção e armazenagem de carnes de ruminantes, suínos e aves

• Corte, preparação e desmancha de carnes das espécies referidas

• Congelação de carnes, carne picada, e preparados de carnes

• Fabrico de produtos à base de carne (fumados, cozidos, escaldados e alheiras)

 • Armazenamento de carnes refrigeradas e congeladas.”

N)           A Requerente procedeu à dedução do benefício fiscal denominado “remuneração convencional do capital social” nos anos de 2016 e 2017, no valor anual de € 17.199,60, correspondente à aplicação de uma taxa de 5% sobre as entradas realizadas pelos sócios para aumento do capital social, no montante global de € 343.992,00.

O)           A Requerente procedeu à dedução do benefício fiscal denominado “dedução por lucros retidos e reinvestidos”, no ano de 2016, no valor anual de € 41.686,32, correspondente à aplicação de uma taxa de 10% sobre os lucros retidos, no montante global de € 416.683,21, com compromisso de reinvestimento no prazo de dois anos.

P)           A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva interna efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças de Braga, ao abrigo das ordens de serviço n.º OI2019... e n.º OI2019..., com incidência no Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), respeitante aos períodos de tributação de 2016 e 2017.

Q)           No âmbito da ação inspetiva, os serviços consideraram o investimento mencionado na antecedente alínea H) não elegível para efeito do RFAI, determinando correções à dedução à coleta, no ano de 2016, no montante de € 83.099,91, e no ano de 2017, no montante de € 103.285,58, bem como relativamente ao remanescente a reportar a períodos futuros, no montante de € 869.061,18.

Determinaram ainda correções à dedução à coleta, no que se refere ao benefício fiscal denominado “remuneração convencional do capital social”, nos anos de 2016 e 2017, no valor global de € 34.399,20, e ao benefício fiscal denominado “dedução por lucros retidos e reinvestidos”, no ano de 2016, no valor de € 41.686,32.

R)           No Relatório de Inspeção Tributária, que aqui se dá como reproduzido, os serviços inspetivos concluíram que o projeto de investimento não era elegível para a concessão de benefícios fiscais (RFAI) por ter tido por “objeto atividade económica enquadrada no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

Para tanto, basearam-se no disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, onde se refere: “Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos sectores […] da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia […].

E ainda na circunstância de a atividade se encontrar incluída na definição dos pontos 10) e 11) do artigo 2.º do RGIC:

                10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

                11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013 (cfr. RIT, fls. 14 e 16);

Consideraram também que “as OAR, no seu ponto 10, excluem do seu âmbito de aplicação o setor de actividade económica da agricultura, cuja remissão para a nota de rodapé (11) esclarece que os auxílios estatais à produção (agrícola) primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no sector agrícola”.

Concluindo nos seguintes termos:

Da leitura destes conceitos e da conjugação dos diversos diplomas suprareferidos, resulta que, quando está em causa a atividade de Transformação de Produtos Agrícolas, apenas pode beneficiar do RFAI a transformação destes produtos desde que o produto final dela resultante não seja um produto agrícola, de acordo com a definição prevista  no art.º 38° do TFUE e, como tal,  não integre a lista constante do Anexo I deste Tratado.

S) O mesmo Relatório de Inspeção Tributária justifica as correções referentes à dedução à coleta quanto à “remuneração convencional do capital social” e à “dedução por lucros retidos e reinvestidos”, na parte que mais releva, nos seguintes termos:

[…]

Sendo assim, atendendo ao facto de que a legislação fiscal, em matéria de benefícios fiscais dependentes da qualificação como PME, remete para o cumprimento das definições de PME, tal como definidas na recomendação n.º 2003/361/CE da Comissão de 6 de Maio, nomeadamente o limiar de efetivos aferido pelas UTA definidas no art.º 5.º  desse citado Anexo, e não, propriamente, para a Certificação IAPMEI que o SP possa,  eventualmente,  não ter (quer porque não a solicitou, quer porque,  tendo-a solicitado, esta lhe tenha sido revogada devido a outras questões periféricas, como é o caso em projeto pelo IAPMEI), haverá necessidade de aqui efetuar o apuramento dos valores relevantes, definidos no art.º 2.º do Anexo a esse Decreto-Lei, nomeadamente, os definidos no art.º 5.º desse mesmo diploma, relativos aos efetivos (UTA). Para tal, tomando os factos   relevantes conhecidos relativos à estrutura empresarial do SP, nomeadamente, a fusão que teve lugar em 2015-01-08 (sobre a qual o SP teria que ter comunicado, a título  estimativo e provisório, os valores de efetivos, volume de negócios anual e balanço  total anual de todas as empresas autónomas, associadas e parceiras), vamos aqui calcular apenas o valor de efetivos (UTA) definitivos (por ser este o único critério que estava em causa e que, por si só,  de acordo  com as definições, poderia  por em causa, no imediato,  o estatuto de PME sob crise) observados  no ano de 2016 (primeiro  exercício completo  após a fusão e sobre o qual  havia obrigação de o SP estimar e declarar valores  num prazo de 30 dias sobre o facto em causa, a fusão ocorrida em 2015-01-08).  Esses valores definitivos, que agora se calcularão, deveriam substituir, corroborando ou não, aqueles provisórios que antes se referiu, e, como tal, tornando definitiva, como reporte à data do facto que os originou, 2015-01-08, a categoria de empresa a que se chegou por  aferição,  nomeadamente, das UTA definitivamente calculadas.

Posto isto, por defeito, considerando apenas os valores de efetivos do SP aqui sob análise (e, portanto, ignorando  as outras  empresas que  se poderiam  qualificar  como  empresas  associadas  e parceiras,  nos termos  do citado  Decreto-Lei,  nomeadamente,  a partir de 2015-12-29,  a C... LDA,  NIPC...,  empresa associada, a D...,  NIF ..., empresa  parceira, e a E..., UNIPESSOAL, LDA, NIPC..., empresa  parceira), se chega ao valor definitivo  de 278 efetivos  (medidos  em UTA,  conforme  Anexo  n.º 1), por referência ao referido exercício de 2016, tendo por base os valores declarados, apenas pelo SP,  para efeitos  de RU (Anexo  A e B). Ora, tal valor de 278 UTA, agora calculado de forma  definitiva, com base nos dados definitivos do ano de 2016,  primeiro  ano complete após a fusão, considera-se de aplicação imediata e desde a data do facto que originou a alteração relevante na empresa, ou seja, a fusão ocorrida em 2015-01-08, tendo em conta o ponto 1.1.3.1,  ponto 6), alínea e), da Decisão 2012/838/UE da Comissão de 18 de dezembro  de 2012,  que de seguida se transcreve  (com  sublinhado e negrito nosso):

“1.1.3.1.  Definições

6) Entende-se por «PME», de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 14, das Regras de Participação do 7.º PQ CE e no artigo 2.º, n.º 13, das Regras de Participação do 7.º PQ Euratom, as micro, pequenas e médias empresas na aceção da Recomendação 2003/361/CE.

e) De acordo com o artigo 4.º, n.º 2, do Anexo da Recomendação 2003/361/CE,  o estatuto de PME só é perdido caso os limiares constantes  do artigo 2.º da Recomendação sejam  ultrapassados durante dois exercícios consecutivos. Esta regra não é aplicável caso se verifique a fusão ou aquisição de uma PME por um grupo de maior dimensão, perdendo então a PME o seu estatuto imediatamente a partir da data da operação.

Por conseguinte, os candidatos aos quais foi recusada a validação como  PME por terem excedido os limites máximos constantes do  artigo 2.º da  Recomendação 2003/361/CE  durante o último período contabilístico obterão a validação como PME caso provem que esses limites máximos não foram atingidos no penúltimo período contabilístico. Tal não é aplicável se uma PME tiver ultrapassado os limiares na sequência de uma fusão ou aquisição.

T) Na Informação Empresarial Simplificada relativa a 2014, a A... o inscreveu o número médio de pessoas empregadas de 202 e o número de horas trabalhadas de 355.049.

U) Na Informação Empresarial Simplificada relativa a 2014, a Talhos B... inscreveu o número médio de pessoas empregadas de 47 e o número de horas trabalhadas de 85.560.

V) Na Informação Empresarial Simplificada relativa a 2015, após a operação de fusão, a A... inscreveu o número médio de pessoas empregadas de 261 e o número de horas trabalhadas de 447.520.

X) No documento que consta do Anexo I ao Relatório de Inspeção Tributária, para cálculo do número de unidades trabalho/ano relativo ao ano de 2016, é indicado o número de 278 UTA.

 Z) Por declarações de 19 de setembro de 2015 e de 25 de agosto de 2016, o IAPMEI certificou, com base nos dados fornecidos pela Requerente, que esta entidade preenchia os requisitos de média empresa, constando das declarações que a certificação caduca quando, findo o prazo de entrega da declaração anual da informação contabilística e fiscal das contas, não tenha sido renovada.

AA)        A Autoridade Tributária emitiu as liquidações adicionais de IRC e juros referente a 2016, no valor total a pagar de € 145.185,81, consubstanciada na demonstração de acerto de contas (ID 2020..., compensação 2020...); demonstração de liquidação de juros (compensação 2020...) e demonstração de liquidação de IRC (liquidação 2020...), e referente a 2017, no valor total a pagar de 116.035,10€: demonstração de acerto de contas (ID 2020..., compensação 2020...); demonstração de liquidação de juros (compensação 2020...) e demonstração de liquidação de IRC (liquidação 2020...).

BB)         Em 21 de Julho de 2020, a Requerente pagou as liquidações impugnadas.

CC)         A Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral, em 21 de Setembro de 2020.

 

 

Factos não provados

 

Com relevância para a causa não existem factos que se tenham considerado não provados.

 

Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos dados como provados baseiam-se nos documentos juntos com o pedido arbitral e o requerimento da Requerente de 11 de maio de 2021, no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e na produção de prova testemunhal e no aproveitamento da prova produzida no Processo n.º 463/2019-T.

 

  O número médio de pessoas empregadas e o número de horas trabalhadas que constam das alíneas T), U) e V) da matéria de facto resultam dos documentos n.ºs 7, 8 e 9 juntos ao pedido arbitral. A testemunha F..., contabilista certificado da Requerente, no seu depoimento, esclareceu que o número médio de pessoas empregadas corresponde à divisão por 12 meses do número de trabalhadores que estiveram afetos à empresa durante um ano e que o número de unidades de trabalho/ano (UTA) é calculado mediante a divisão entre o número de horas trabalhadas e o número de horas correspondente ao trabalho completo durante um ano (1920).

 

A testemunha G..., inspetor tributário que elaborou o Relatório de Inspeção Tributária, reiterou que a Requerente estava obrigada a comunicar ao IAPMEI a operação de fusão com a Talhos B... ocorrida em 2015, e que, nesse ano, já não era uma PME por ter ultrapassado o número de 250 pessoas empregadas, tomando por base o total de 261 trabalhadores a que se refere o documento n.º 9 anexo à petição inicial.

 

Nos documentos n.ºs 10, 11 e 12 juntos pela Requerente ao pedido arbitral, indicam-se valores de UTA de 48,17, 193 e 239 para totais parcelares de trabalhadores da ordem de 79, 574 e 657, mas, na aparência, trata-se de documentos internos, que não identificam a empresa a que respeita nem o ano a que se referem, não oferecendo suficiente fidedignidade para poderem ser tidos em consideração pelo tribunal. 

 

Matéria de direito

 

Regime Fiscal de Apoio ao Financiamento (RFAI)

 

                7. A Autoridade Tributária considerou não elegível para efeito do Regime Fiscal de Apoio ao Financiamento (RFAI) o investimento realizado pela Requerente no período de tributação de 2015 por considerar que ele teve por objeto uma atividade económica enquadrada no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia” e que se encontra, por isso, coberta pela previsão dos pontos 10) e 11) do artigo 2.º  do Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria) e pelo artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro.

 

                A Requerente contrapõe que a sua atividade se encontra inserida no âmbito sectorial do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC), como também no âmbito sectorial das Orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020 (OAR). Isso porque o artigo 1.º, n.º 3, alínea c), daquele Regulamento apenas exclui do âmbito da sua aplicação “os auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos: i) sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade de produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa ou ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”. E, por sua vez, o ponto 10 das OAR, referindo-se ao âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional, admite a aplicação dessas orientações à “transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas”.

 

                Conclui, nesses termos,  que a Portaria n.º 282/2914, de 30 de Dezembro, ao considerar não elegíveis os projetos de investimento que tenham por objeto a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, é ilegal por violação do artigo 22.º do CFI, que não exclui do benefício fiscal toda a atividade de transforma¬ção agrícola, mas apenas aquelas que se encontram excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e RGIC.

 

A questão em debate é, pois, a de saber se o projeto de investimento realizado pela Requerente no âmbito da transformação de produtos agrícolas se encontra abrangido pelo regime fiscal de apoio ao investimento.

 

Interessa começar por efetuar o necessário enquadramento jurídico da questão.

 

O Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, que aprovou o novo Código Fiscal do Investimento (CFI) e procedeu à revisão global dos regimes de benefícios ao investimento e à capitalização, teve em vista, como ressalta da nota preambular, adaptar o regime legal ao novo quadro legislativo europeu aplicável aos auxílios estatais para o período 2014-2020 e, por outro lado, reforçar os diversos regimes de benefícios fiscais ao investimento, em particular no que se refere a investimentos que proporcionem a criação ou manutenção de postos de trabalho e se localizem em regiões menos favorecidas.

 

Referindo-se ao âmbito objetivo dos benefícios fiscais contratuais ao investimento público, o artigo 2.º, nos seus n.ºs 2 e 3, dispõe o seguinte:

 

2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito setorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC:

a) Indústria extrativa e indústria transformadora;

b) Turismo, incluindo as atividades com interesse para o turismo;

c) Atividades e serviços informáticos e conexos;

d) Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais;

e) Atividades de investigação e desenvolvimento e de alta intensidade tecnológica;

f) Tecnologias da informação e produção de audiovisual e multimédia;

g) Defesa, ambiente, energia e telecomunicações;

h) Atividades de centros de serviços partilhados.

3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.

 

O CFI estabelece igualmente o Regime Fiscal do Investimento (RFAI), regulado nos artigos 22.º e seguintes, sendo que esse artigo 22.º, sob a epígrafe “Âmbito de aplicação e definições”, dispõe, no seu n.º 1, nos seguintes termos:

 

1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos sectores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

 

Por seu lado, a Portaria n.º 282/2014, em execução do disposto no n.º 3 do referido artigo 2.º do CFI, ostenta a seguinte redação:

 

Artigo 1.º

Enquadramento comunitário

Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos sectores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas.

Artigo 2.º

Âmbito setorial

Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior, as atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, correspondem aos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro:

a) Indústrias extrativas - divisões 05 a 09;

b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33;

c) Alojamento - divisão 55;

d) Restauração e similares - divisão 56;

e) Atividades de edição - divisão 58;

f) Atividades cinematográficas, de vídeo e de produção de programas de televisão - grupo 591;

g) Consultoria e programação informática e atividades relacionadas - divisão 62;

h) Atividades de processamento de dados, domiciliação de informação e atividades relacionadas e portais Web - grupo 631;

i) Atividades de investigação científica e de desenvolvimento - divisão 72;

j) Atividades com interesse para o turismo - subclasses 77210, 90040, 91041, 91042, 93110, 93210, 93292, 93293 e 96040;

k) Atividades de serviços administrativos e de apoio prestados às empresas - classes 82110 e 82910.

 

O regime definido através do diploma regulamentar encontra-se justificado, no respetivo preâmbulo, pela “necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013 e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de junho de 2014”, sendo em atenção ao direito europeu que “são também definidos na portaria os sectores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais”.

 

O normativo básico para a concessão do benefício fiscal é o artigo 2.º do CFI, que faz referência, como atividade económica elegível, à indústria transformadora. Como se observou no acórdão proferido no Processo n.º 545/2018-T, que abordou esta matéria, importa ter presente que o elenco de atividades constante daquele preceito legal não é exaustivo, visto que se limita a enunciar o conjunto de atividades económicas abrangidas pelos projetos de investimento a título meramente exemplificativo. Em todo o caso, como resulta do proémio desse artigo 2.º, a atividade económica elegível haverá de respeitar o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020 (OAR) e do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC).

 

Por outro lado, a elegibilidade dos projetos fica ainda dependente, em concreto, da especificação dos códigos de atividade económica (CAE), que o legislador remeteu para diploma regulamentar, especificação essa que igualmente haverá de ter em conta as restrições enunciadas no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, entre as quais se conta a não elegibilidade dos projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas da produção agrícola primária e da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Em todo este contexto, interessa começar por chamar à colação o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, que declara as categorias de auxílio que podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno, e em especial o seu artigo 1.º, que define o âmbito de aplicação do Regulamento.

 

Esse artigo, no seu n.º 1, enuncia um conjunto de categorias de auxílio a que o Regulamento é aplicável, aí se incluindo os auxílios com finalidade regional (alínea a)), e os subsequentes n.ºs 2, 3 e 4 enumeram os auxílios que se encontram excluídos do seu âmbito de aplicação. Pela sua direta conexão com o caso em análise, releva sobretudo o que dispõe o artigo 1º, n.º 3, alínea c), em que se consigna o seguinte:

 

O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios:

[…]

c) Auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas nos seguintes casos:

(i) sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa;

(ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.

 

Para densificar o que se entende por «transformação e comercialização de produtos agrícolas» cabe considerar as definições que constam do artigo 2.º do RGIC especialmente as das suas alíneas 9), 10) e 11):

9) «Produção agrícola primária», a produção de produtos da terra e da criação animal, enumerados no anexo I do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza de tais produtos;

10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013;

               

Entre os produtos elencados no referido anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia constam «Animais vivos» (Capítulo I) e Carnes e miudezas, comestíveis (Capítulo II).

 

                Resulta de todas estas disposições de direito europeu, interpretadas articuladamente, que a «transformação de produtos agrícolas» inclui a transformação de animais e carnes e miudezas, que – como se viu - se enquadram no conceito de «produto agrícola» a que se refere a alínea 11) do artigo 2.º do RGIC.

Por outro lado, por força do disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea c), do RGIC, há pouco transcrito, só se encontra vedada a aplicação do RGIC a auxílios à atividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações mencionadas nas suas subalíneas i) ou ii).

 

8.  Acresce que a atividade exercida pela Requerente não se encontra também excluída pelas OAR.

 

O ponto 10 relativo ao âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional estabelece o seguinte:

 

“A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10), da agricultura (11) e dos transportes (12), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.o do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais.”

 

Ao referir-se que a Comissão aplicará as orientações à «transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas», tal não significa que a norma por argumento a contrario pretenda excluir a transformação e comercialização de animais, que se entende, à luz do disposto no artigo 2.º, alínea 10) do RGIC, como uma atividade de transformação de produtos agrícolas.

 

A nota (11), aposta ao inciso “da agricultura”, esclarece que “[O]s auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola. E, por conseguinte, reconhece-se aí que a transformação de animais não se inclui no sector da agricultura, enquanto setor de atividade económica que se encontra excluída dos auxílios com finalidade regional.

 

O sentido útil do ponto 10 das OAR, no segmento em que se refere à «transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas», é o de estender a essa atividade os princípios estabelecidos nas orientações aos auxílios com finalidade regional, sem afastar a sua aplicação à transformação de animais, que se encontra salvaguardada pela referida nota (11).

 

E assim sendo, não é possível deduzir da norma do ponto 10 da OAR, naquele específico segmento, um princípio-regra de sentido oposto para os casos por ela não abrangidos, pela linear razão de que as orientações são igualmente aplicáveis à transformação de animais, sendo possível articular essa disposição das OAR com a do artigo 2.º, alínea 10), do RIGIC.

 

9. Revertendo à situação do caso, e como decorre do relatório de inspeção tributária, o que se constata é que a Autoridade Tributária baseou a exclusão do benefício fiscal no disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, no ponto em que aí se refere que não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as “atividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”. E também por considerar que a referida atividade se encontra incluída nas definições que constam das alíneas 10) e 11) do artigo 2.º do RGIC.

 

Ora, sendo embora certo que a referida Portaria exclui da concessão de benefícios fiscais as atividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas segundo a nomenclatura que consta do RGIC, a verdade é que este diploma, ao definir o respetivo âmbito de aplicação, apenas exclui os auxílios concedidos a esse sector de atividade nos casos especificamente descritos nas sobreditas subalíneas i) ou ii) da alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º, ou seja,  “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa” ou “sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”.

 

Tendo sido objetivo do legislador que aprovou o CFI assegurar a conformidade com as disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, nomeadamente, com as disposições constantes do Regulamento Geral de Isenção por Categoria, como ressalta do artigo 2.º, n.º 2, desse diploma, e tendo sido essa também a finalidade da Portaria n.º 282/2014, como se depreende da respetiva nota preambular, as suas disposições não podem deixar de ser interpretadas em conformidade com o direito europeu.

 

Com efeito, na medida em que dizem respeito à matéria europeia dos auxílios de Estado, o CFI (e a regulação que dele consta do RFAI) e a Portaria n.º 282/2014 devem ser entendidos como instrumentos de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nos artigos 107.º a 109.º do TFUE, no RGIC e nas OAR, e nesse sentido a Portaria não pode ser tida como um mero regulamento de complementação do n.º 2 do artigo 2.º do CFI, mas como um diploma de execução de disposições de direito europeu.

 

Não há motivo, por conseguinte, para fazer prevalecer a regra que consta do artigo 1.º da Portaria sobre a falada disposição do artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC.

 

Ora, de acordo com as regras do direito probatório material, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque (artigo 74.º, n.º 1, da LGT).

 

Tendo a Administração desconsiderado o benefício fiscal com um fundamento que não é aplicável ao caso, visto que subsiste uma disposição de direito europeu que exclui do âmbito de aplicação do RGIC o setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas mas apenas nas situações aí especialmente previstas, cabia aos serviços inspetivos demonstrar que se verificava, no caso, algum dos requisitos que, nos termos dessa disposição, permitia afastar a atribuição do benefício fiscal.

 

Não o tendo o feito, a liquidação adicional de imposto com base na não dedutibilidade do benefício fiscal é ilegal.

 

Resta acrescentar que no mesmo sentido, em situação similar, se pronunciou o acórdão proferido no Processo n.º 463/2019-T.

 

Remuneração convencional do capital social (artigo 41.º-A, do EBF)

 

10.  Na sequência do procedimento inspetivo, a Autoridade Tributária determinou ainda  correções à dedução à coleta no que se refere ao benefício fiscal denominado “remuneração convencional do capital social”, nos anos de 2016 e 2017, e ao benefício fiscal denominado “dedução por lucros retidos e reinvestidos”, no ano de 2016, baseando-se no entendimento de que a Requerente não poderia ser qualificada como micro, pequena ou média empresa, de acordo com a Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de Maio, por ter atingido, por efeito da fusão com uma outra empresa, ocorrida em 2015, o limiar de 250 pessoas empregadas, na aceção do artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 2 de novembro.

 

A Requerente sustenta que não tinha ultrapassado os 250 trabalhadores em número de unidades trabalho/ano (UTA) em 2014 e 2015 e que, por efeito do disposto no artigo 4.º, n.º 2, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, a superação desse limiar apenas releva quando se tenha repetido durante dois exercícios consecutivos, pelo que mesmo que tivesse atingido mais de 250 trabalhadores em 2016 e 2017 mantinha, nesses períodos de tributação, o direito ao benefício fiscal. Acrescenta que não resulta da Recomendação n.º 2003/361/CE que o benefício fiscal deva cessar em virtude da fusão de empresas.

 

Como se depreende da própria posição das partes, a questão está em saber qual é o âmbito de aplicação subjetivo dos referidos benefícios fiscais, interessando começar por ter presente, no que concerne à “remuneração convencional do capital social”, o disposto no artigo 41.º-A do EBF, na redação vigente à data dos factos.

 

Essa disposição, na parte que interessa considerar, previa o seguinte:

 

1 - Na determinação do lucro tributável das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, cooperativas, empresas públicas, e demais pessoas coletivas de direito público ou privado com sede ou direção efetiva em território português, pode ser deduzida uma importância correspondente à remuneração convencional do capital social, calculada mediante a aplicação da taxa de 5 % ao montante das entradas realizadas, por entregas em dinheiro, pelos sócios, no âmbito da constituição de sociedade ou do aumento do capital social, desde que:

a)            A sociedade beneficiária seja qualificada como micro, pequena ou média empresa, de acordo com os critérios previstos no anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 143/2009, de 16 de junho;

[…].

 

O diploma para que remete o transcrito artigo 41.º-A do EBF, visou criar, em concretização de uma medida constante do Programa SIMPLEX 2007, a certificação de micro, pequenas e médias empresas (PME), definindo a competência para a certificação (artigo 4.º), o respetivo procedimento (artigo 6.º), as consequências da revogação ou caducidade da certificação (artigo 9.º), e estabelecendo ainda a obrigação, por parte das empresas certificadas, de comunicarem  à entidade certificadora (IAPMEI, IP), no prazo de 30 dias úteis, as alterações à sua situação relativamente a aspetos relevantes, incluindo no tocante à cisão, fusão ou dissolução (artigo 13.º).

O diploma teve também como objeto a definição de PME, bem como os conceitos e critérios a utilizar para esse efeito, que, segundo estipula o seu artigo 2.º, passam a constar do  seu anexo, que dele faz parte integrante, e correspondem aos previstos na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão Europeia, de 6 de Maio.

O artigo 2.º do Anexo, para que é feita a remissão, estabelece que “a categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros”.

O que se entende por pessoas empregadas, para o efeito da definição de PME, é explicitado no artigo 6.º do Anexo, que, sob a epígrafe “Efetivos e limiares financeiros que definem as categorias de empresas”, tem a seguinte redação:

Os efetivos correspondem ao número de unidades trabalho-ano (UTA), isto é, ao número de pessoas que tenham trabalhado na empresa em questão ou por conta dela a tempo inteiro durante todo o ano considerado. O trabalho das pessoas que não tenham trabalhado todo o ano, ou que tenham trabalhado a tempo parcial, independentemente da sua duração, ou o trabalho sazonal, é contabilizado em frações de UTA. Os efetivos são compostos:

a)            Pelos assalariados;

b)           Pelas pessoas que trabalham para essa empresa, com

um nexo de subordinação com ela e equiparados a assalariados à luz do direito nacional;

c)            Pelos proprietários -gestores;

d)           Pelos sócios que exerçam uma atividade regular na empresa e beneficiem das vantagens financeiras da mesma.

Os aprendizes ou estudantes em formação profissional titulares de um contrato de aprendizagem ou de formação profissional não são contabilizados nos efetivos. A duração das licenças de maternidade ou parentais não é contabilizada.

 

Por fim, quanto aos dados a considerar para o cálculo dos efetivos e dos montantes financeiros e período de referência, importa considerar o artigo 4.º do mesmo Anexo, que, no que releva, é do seguinte teor:

 

1- Os dados considerados para o cálculo dos efetivos e dos montantes financeiros são os do último exercício contabilístico encerrado, calculados numa base anual. Os dados são tidos em conta a partir da data de encerramento das contas. O montante do volume de negócios considerado é calculado com exclusão do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e de outros impostos indiretos.

2 - Se uma empresa verificar, na data de encerramento das contas, que superou ou ficou aquém, numa base anual, do limiar de efetivos ou dos limiares financeiros indicados no artigo 2.º, esta circunstância não a faz adquirir ou perder a qualidade de média, pequena ou micro empresa, salvo se tal se repetir durante dois exercícios consecutivos.

[…].

 

Cabe ainda assinalar que as referidas disposições do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007 limitam-se a reproduzir o que consta dos artigos 2.º, 4.º e 5.º da Recomendação n.º 2003/361/CE, pelo que em relação a todos os aspetos aí regulados encontram-se em plena sintonia com o direito europeu.

 

11. Como resulta do Relatório de Inspeção Tributária, o argumento determinante para a desconsideração do benefício fiscal assenta na circunstância de a Requerente ter declarado, com base nos dados referentes a 2016, um total de 278 efetivos em UTA, tendo-se dado relevo a que esse período de tributação corresponde ao primeiro ano completo após a operação de fusão.

 

A esse propósito, o Relatório transcreve o ponto 1.1.3.1, ponto 6), alínea e), da Decisão 2012/838/UE da Comissão, de 18 de dezembro de 2012, que se encontra transcrito na alínea S) da matéria de facto, em que se refere, em resumo, que a regra do artigo 4.º, n.º 2, da Recomendação 2003/361/CE, pela qual uma entidade apenas perde a qualidade de PME se tiver ultrapassado durante dois exercícios consecutivos o limiar de efetivos, não é aplicável caso se verifique  a fusão ou aquisição de uma PME por um grupo de maior dimensão, caso em a que a PME perde seu estatuto imediatamente a partir da data da operação.

 

Ora, a referida Decisão da Comissão, como se depreende do seu próprio sumário, não tem direta relação com a qualificação de PME para os efeitos previstos no Decreto-Lei n.º 372/2007.

 

E, por outro lado, a Decisão da Comissão é um ato jurídico individual, tornando-se obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que designar (artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia). E, nesse sentido, os efeitos diretos da decisão apenas serão suscetíveis de ser invocados pelos destinatários, perante os órgãos jurisdicionais nacionais, nas suas relações com terceiros, além de que o efeito direto, encontrando-se limitado nesses termos, está ainda pendente da natureza, economia e termos da disposição de direito europeu que estiver em causa e do caráter incondicional e suficientemente preciso das obrigações que emergem da decisão (cfr. MIGUEL GORJÃO HENRIQUES, Direito Comunitário, 4.ª edição, Coimbra, págs. 287-288, e acórdão do TJUE de 6 de outubro de 1970, Proc. 9/70, acórdão Franz Grad).

 

É assim claro que não são os dispositivos de uma Decisão da Comissão que podem condicionar o direito do contribuinte a um benefício fiscal que se encontre dependente da qualificação como PME.

 

E o que resulta da legislação relevante, ou seja, do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, da Recomendação 2003/361/CE e do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, é que os dados considerados para o cálculo dos efetivos, para efeito da qualificação como PME, são os do último exercício contabilístico e se a empresa superar o limiar de efetivos num dado período de tributação, essa circunstância só faz perder a qualidade de média, pequena ou micro empresa se se repetir durante dois exercícios consecutivos.

 

O que é possível concluir da matéria de facto dada como assente é que a Requerente, em 2015, já após a fusão, apresentava um UTA de 233,08, considerando o número de horas trabalhadas que consta do documento n.º 9 junto ao pedido, e mesmo admitindo, com base no Anexo I ao Relatório de Inspeção Tributária, que a Requerente ultrapassou o limiar de efetivos em face dos dados definitivos de 2016 (278 UTA), é patente, face às referidas disposições, que  manteve a condição de PME nesse ano e no ano seguinte, ainda que nesses dois períodos de tributação o número de unidades trabalho-ano tivesse sido superior ao legalmente previsto. E mesmo nessa circunstância, a perda de qualidade de PME só se repercutiria no ano de 2018.

 

Ao considerar inaplicável a regra do artigo 4.º, n.º 2, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007 por ter ocorrido entretanto uma operação de fusão, o ato tributário enferma de erro nos pressupostos de direito.

 

12. Os serviços inspetivos aludem ainda à obrigação que impendia sobre o contribuinte de comunicar ao IAPMEI, no prazo de 30 dias úteis, a alteração da sua situação em resultado da fusão com uma outra empresa.

 

Aparentemente, a Administração não retira da omissão declarativa qualquer consequência quanto ao direito ao benefício fiscal, visto que o elemento determinante para a desconsideração do benefício foi a apontada inaplicabilidade do regime do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007 quando a ultrapassagem do limiar de efetivos se verifique após uma operação de fusão.

 

Em todo o caso, nada permite concluir que essa omissão declarativa fosse, por si, decisiva para fazer precludir a qualidade de PME.

Em primeiro lugar, o procedimento de certificação regulado no Decreto-Lei n.º 372/2007 constitui uma medida de simplificação administrativa destinada a facilitar e acelerar o tratamento dos processos nos quais se requer o estatuto de micro, pequena ou média empresa, não estando especificamente prevista qualquer consequência, no plano do direito substantivo, para os interessados que não tenham formulado o pedido de certificação, mormente no que concerne ao exercício dos direitos associados ao estatuto de PME. Certo é que relativamente às empresas certificadas, o incumprimento do dever de comunicação de alterações da situação da empresa, a que se refere o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 372/2007, determina a revogação da certificação, conforme prevê o artigo 9.º, n.º 2, alínea e).

 

No entanto, não resulta do texto legal que a circunstância de se não ter formulado o pedido de certificação ou a recusa, revogação ou caducidade da certificação produza quaisquer efeitos jurídicos quanto à qualificação de uma empresa como PME, quando esta preencha os respetivos requisitos materiais, mormente no tocante aos limiares de efetivos e de volume de negócios que se encontram legalmente definidos.

 

Acresce que o artigo 41.º-A do EBF, ao permitir a dedução de uma importância correspondente à remuneração convencional do capital social a título de benefício fiscal, apenas faz depender a atribuição do benefício da qualificação da empresa como micro, pequena ou média empresa, de acordo com os critérios previstos no anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007. A remissão é, pois, efetuada para o Anexo, onde se encontram definidas as condições de atribuição da categoria de PME, e não para o próprio Decreto-Lei n.º 372/2007, que se limita a regular o procedimento de certificação.

 

Seria irrelevante, por conseguinte, para efeitos da qualificação como PME, que a Requerente não tivesse cumprido o dever de comunicação da alteração da situação da empresa por efeito da fusão, e, como se deixou exposto, a operação da fusão não interfere no regime legal decorrente dos artigos 2.º, n.º 1, e 4.º, n.ºs 1 e 2, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, daí resultando que uma empresa que tenha ultrapassado 250 efetivos na aceção de unidades trabalho-ano apenas perde a qualidade de PME se tiver superado esse limiar em dois exercícios consecutivos.

 

Se a Requerente excedeu esse limite no ano de 2016, conforme o próprio Relatório de Inspeção Tributária admite, era lícita a dedução à coleta a título de remuneração convencional do capital social, nos termos do artigo 41.º-A, do EBF.

 

 

Dedução por lucros retidos e reinvestidos (artigo 29.º do CFI)

 

13. A correção tributária efetuada relativamente ao benefício fiscal previsto no artigo 29.º do CFI foi efetuada por remissão para a fundamentação adotada no Relatório de Inspeção Tributária quanto à “remuneração convencional do capital social”, baseando-se no entendimento de que a Requerente, por identidade de razão, não preenchia os requisitos que permitam a sua qualificação como PME, condição essa que igualmente era determinante para a atribuição do benefício.

 

Torna-se, pois, aplicável mutatis mutandis todo o anteriormente exposto quanto à ilegalidade de um tal entendimento (cfr. supra 10., 11. e 12.), pelo que também neste caso o pedido arbitral se mostra ser procedente.

 

Questão de inconstitucionalidade

14. Nas alegações, a Autoridade Tributária suscita a inconstitucionalidade das normas  conjugadas do artigo 22.º, n.º 1, do CFI e do artigo 1.° da Portaria nº 282/2014, por violação dos princípios da legalidade e da igualdade, quando interpretadas no sentido de que não se encontram excluídas do âmbito de aplicação do RFAI as actividades relacionada com “a produção agrícola e a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia".

Para assim concluir, alega que uma tal interpretação, ao contemplar a aplicação do benefício fiscal a situações que não estão tipificadas na norma, viola do princípio da legalidade e ainda o princípio da igualdade ao permitir a atribuição injustificada ao contribuinte de um privilégio fiscal.

 

Analisando a questão, começa por se não compreender bem a referência feita ao princípio da legalidade.

 

O princípio da legalidade tributária, que decorre essencialmente do disposto no artigo 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, pressupõe a exigência formal da reserva de lei parlamentar em matéria fiscal e a exigência de tipicidade e determinabilidade da lei do imposto. Entende-se que a reserva de lei abrange os elementos essenciais dos impostos, e não apenas o âmbito de incidência e a taxa, mas também os elementos favoráveis como os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

 

Não se põe em causa, na arguição da Requerida, que o benefício fiscal RFAI se encontra coberto pela reserva de lei, e o certo é que o Código Fiscal de Investimento, que o contempla, foi aprovado por decreto-lei no uso de autorização legislativa, satisfazendo os requisitos de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

 

Ao invocar a violação do princípio da legalidade por, alegadamente, se estender o benefício fiscal a situações não tipificadas na norma, a Requerida parece entender o princípio da legalidade como um princípio de precedência da lei e de prevalência da lei. Mas esse é um princípio da actividade administrativa, tal como se encontra contemplado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição e que se traduz na subordinação da administração à lei.

 

O que o tribunal concluiu relativamente ao benefício fiscal RFAI é que o artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC exclui os auxílios às actividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas nos casos especificamente descritos nas subalíneas i) ou ii), ou seja, “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa” ou “sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”. E não se encontrando demonstrado que se verificava, no caso, algum desses requisitos, não era possível afastar a atribuição do benefício fiscal.

 

 Ora, o tribunal arbitral, como qualquer tribunal estadual, ao interpretar as disposições legais ou de direito europeu aplicáveis ao caso, não está a criar um novo benefício fiscal ou a estabelecer um privilégio fiscal não legalmente previsto, mas a efectuar uma interpretação meramente declarativa dos textos legais, no exercício da sua própria competência jurisdicional, pelo que uma tal interpretação normativa não viola, nem poderia violar, o princípio de reserva de lei (a que se reconduz o princípio da legalidade fiscal) nem o princípio da igualdade, concretizado na generalidade e na uniformidade da lei de imposto.

 

A questão de constitucionalidade suscitada é, pois, manifestamente improcedente.

 

Vícios de conhecimento prejudicado

 

15. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento de outros vícios que tenham sido invocados pela Requerente.

 

Anulação parcial

 

16. A Requerente manifestou concordância com o Relatório de Inspeção Tributária  relativamente ao investimento realizado com a aquisição de um imóvel, que se entende não se encontrar abrangido pelo benefício fiscal RFAI e propugna a redução do valor total do benefício fiscal do RFAI, por diminuição dos investimentos tidos por relevantes, considerando que o investimento total é de € 4.559.277,23 e o investimento na aquisição do imóvel foi de € 258.861,25.

 

Assim, a liquidação impugnada na parte referente ao RFAI é apenas anulada parcialmente não abrangendo a anulação o investimento que não é elegível para a atribuição do benefício fiscal.

 

Juros compensatórios

 

17.  A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação ao ato tributário de liquidação de IRC.

 

Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa atuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.

 

A procedência do pedido arbitral torna necessariamente exigível o pagamento de juros compensatórios, pelo que também nesse ponto o pedido é procedente.

 

 Juros indemnizatórios

 

18. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRC, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

Reenvio prejudicial

 

19. A Autoridade Tributária solicitou o reenvio prejudicial para o TJUE por considerar que a questão de direito europeu não é clara, pretendendo que seja submetida ao Tribunal de Justiça a questão relativa ao âmbito de aplicação do ponto 10 e nota de rodapé 11 das Orientações para os Auxílios Estatais com finalidade regional, em conjugação com os artigos 1.º, n.ºs 1 e 3, e 13.º, alínea b), do RGIC e do artigo 42º do TFUE.

 

No entanto, não subiste dúvida razoável quanto à interpretação que está em causa.

 

O artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, ao especificar que o Regulamento não é aplicável aos auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas nos casos aí previstos, não suscita especial dificuldade interpretativa quanto às situações de exclusão. E, por outro lado, essa actividade não se encontra também excepcionada pelas OAR, e, como se explica na decisão arbitral (supra ponto 8.), não é possível interpretar o ponto 10 dessas Orientações num sentido excludente com base num argumento a contrario justamente por a tal se opor a nota de rodapé (11).

 

Entende-se, nestes termos, em aplicação da doutrina do Acórdão de 6.10.1982, Cilfit, proc.º 283/81 (parágrafo16) não se justificar o requerido reenvio prejudicial.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido arbitral e anular as liquidações adicionais impugnadas de IRC e de juros compensatórios referentes ao benefício fiscal RFAI, salvo quanto ao investimento não elegível a que se refere o antessente ponto 14.

b)           Julgar procedente o pedido arbitral e anular as liquidações adicionais impugnadas de IRC e de juros compensatórios referentes aos benefícios fiscais “remuneração convencional do capital social” e “dedução por lucros retidos e reinvestidos”;

c)            Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 261.220,19, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00 que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de junho de 2021,                                                                  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O árbitro vogal

Rui Marrana

 

A árbitro vogal

Sofia Ricardo Borges