Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 432/2020-T
Data da decisão: 2021-10-11  IVA  
Valor do pedido: € 1.181.428,42
Tema: IVA. Artigo 24º, n.º 5 CIVA. Elementos contabilísticos comprovativos do direito à dedução.
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SUMÁRIO

1-            O nº 5 do art.º 24º do CIVA, aplicável à   transmissão de bens do ativo imobilizado durante o período de regularização, pode abranger todos os sujeitos passivos do IVA, independentemente do regime de dedução, e compreende bens móveis e imóveis;

2-            Para efeitos de aplicação dessa norma legal, considera-se período de regularização ainda por decorrer o  período posterior à data da conclusão das obras de investimento em bens imóveis, como vem evidenciado na contabilidade do sujeito  passivo, nos termos da alínea a) do nº 2 e da alínea b) do nº 3  do art.º 51º do CIVA e respetivos documentos de suporte  que podem ser licença de utilização , inscrição na  matriz predial dos prédios urbanos ou mistos, conforme os casos ,ou outros de força probatória  idêntica, com a consequente integração do imobilizado em curso no ativo fixo tangível do sujeito passivo e o início das depreciações;

3-            A falta de entrega da declaração do IVA, a não organização e conservação da contabilidade, de que dependem a aplicação do IVA e a sua fiscalização pela Administração  Tributária, e a  recusa de apresentação das faturas emitidas, na medida em que impedem uma prova certa dos requisitos materiais do direito à dedução, são fundamento suficiente para a recusa desta, não podendo os  requisitos desse direito ser demonstrados  por meios alternativos   de certeza e segurança  não comparáveis à certeza e segurança da prova documental, incluindo a prova testemunhal que  legalmente a não possa    substituir;  

4-            Não impede a aplicação do nº 5 do art.º 24º do CIVA, com fundamento em alegado facto tributário anterior e decurso do prazo legal de caducidade, o abandono do projeto de construção de um empreendimento turístico não refletido na contabilidade do sujeito passivo, quando o  bem imóvel  ainda que por concluir a que respeitam as obras continuar a figurar no seu ativo imobilizado e manter valor económico que viria a ser realizado em venda posterior.  

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros (árbitro-presidente), designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, Professora Doutora Clotilde Celorico Palma e Dr. António de Barros Lima Guerreiro (árbitros vogais), designados pelas partes, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 07/12/2020, acordam no seguinte:

 

 

I - RELATÓRIO

1.            Requerente

A..., S.A., com sede na ..., ..., ..., com o NIF ... .

2.            Requerida

Autoridade Tributária (AT), representada pelos juristas B... e C... .

3.            Tramitação e constituição do Tribunal

3.1.        A Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral em 1 de Setembro de 2020;

3.2.        O Tribunal Arbitral foi constituído por despacho de 7 de Dezembro de 2020, do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, sendo presidido pelo Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros e tendo como árbitros auxiliares: a Prof.ª Doutora Clotilde Celorico Palma, indicada pela Requerente e o Dr. António de Barros Lima Guerreiro, indicado pela Requerida.

3.3.        Por requerimento de 11-12-2020, a Requerente juntou aos autos o Parecer dos Senhores Professores José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, que havia protestado juntar aquando da apresentação do pedido de pronúncia arbitral;

3.4.        A 26-1-2021 a AT apresentou a sua resposta e juntou aos autos o PA;

3.5.        As testemunhas foram ouvidas no dia 9-6-2021;

3.6.        A 25-6-2021 a AT juntou mais documentos aos autos;

3.7.        Em 2-7-2021 a Requerente apresentou alegações;

3.8.        A Autoridade Tributária não apresentou alegações, mas juntou aos autos os seguintes documentos: alvarás da Câmara Municipal de ..., todos de 2015, com os números 9, 10, 12, 13 e 14; pedido de reembolso de IVA relativo ao período de 94 03T, com o n.º ... e três RITs (1994 03T; 1998 06T e 2003 09T).

 

4.            O pedido

É o seguinte o pedido da Requerente:

i) a declaração de ilegalidade e consequente anulação integral da Liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 2020..., de 06/01/2020, e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2020..., referente à Compensação n.º 2020..., das quais resultou um valor a pagar adicionalmente pela Requerente de € 1.030.235,82;

(ii) a declaração de ilegalidade e consequente anulação integral da Liquidação de Juros nº  2020..., referente à Compensação n.º 2020..., no montante  de € 152.192,60;

 

(iii) o reembolso pela AT do valor global de € 1.181.428,42, que a Requerente a título de imposto (os referidos € 1.030.235, 82) e juros compensatórios (os referidos € 152.192,60) considera ter indevidamente pago;

(iv) a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios a que a Requerente considera  ter direito nos termos do  nº 1 do  art.º 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) .

 

5.            Posição das partes

5.1.        Da Requerente

Segundo a posição da Requerente, expressa no pedido de pronúncia arbitral  e nas alegações,   a liquidação impugnada sofreria  dos seguintes vícios:

a) a regularização em que a Administração Tributária se baseou para efetuar a liquidação foi extemporânea, pois em virtude da conclusão das obras ter ocorrido antes da entrada em vigor do DL nº 31/2007, o prazo em que a liquidação podia ter   sido efetuada era de 9 anos, já largamente ultrapassado aquando do ato tributário, e não de 19 anos, como defendido pela AT;

b) sendo verdade que a conclusão das obras não foi refletida na contabilidade da Requerente, nas licenças de utilização e na matriz predial, ela pode, no entanto, ser demonstrada por todos os meios de prova legalmente admissíveis, incluindo prova testemunhal, completada com consumos de energia elétrica eventualmente imputáveis às edificações concluídas e outros elementos ao dispor da Administração Tributária;

c) ao não considerar essas provas, a Administração Tributária violou os princípios da repartição do ónus de prova, do inquisitório, da proporcionalidade e da justiça.

 

5.2.        Da Requerida

a) Segundo a  posição da  Administração  Tributária expressa na Resposta, na data da alienação, a Requerente ainda não tinha iniciado a utilização dos imóveis já construídos e ainda estava por terminar a construção do hotel e do campo de golfe, pelo que  lhe seriam aplicáveis o  n.º 5 do  24º, a alínea a) do nº 1 do art.º 29º e a alínea b) do nº 1 do art.º 41º , todos do CIVA, com a consequente  obrigação de regularização da totalidade do imposto deduzido à data da transmissão dos  bens a inscrever  no Campo 41 da declaração periódica do IVA, incumprida pela Requerente;

b) ainda segundo a posição da Requerida, o incumprimento da maioria das obrigações contabilísticas da Requente é fundamento suficiente para a recusa da dedução, não podendo ser suprido por meios de prova sem a certeza e segurança da prova documental, motivo pelo  qual não foram violados pela AT os princípios da repartição do ónus de prova, do inquisitório, da proporcionalidade e da justiça.

 

 

II- Saneamento 

1.            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (art.ºs 4º e 10º, n.º 2 do RJAT e 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

2.            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer o pedido (art.º 2º, n.º 1, a) do RJAT).

3.            As partes não invocaram nem o processado exprime quaisquer nulidades.

4.            A Requerente suscitou uma questão prévia que deve ser   conhecida de início pelo Tribunal, relativa à alegada inaplicabilidade do n.º 5 do art.º 24º do CIVA aos sujeitos passivos integrais, que apenas realizam operações sujeitas a imposto, e à transmissão de bens móveis.

 

 

III – Questões a decidir

São as seguintes as questões a decidir:

1 - a questão prévia acerca da aplicação do n.º 5 do art.º 24º do Código do IVA a sujeitos passivos integrais, que apenas realizam operações sujeitas a imposto e à transmissão de bens móveis;

2 - a de determinar qual o prazo de caducidade da regularização prevista nos nºs 2 e 3 do art. 24º do CIVA;

3 - a de saber se a posse de elementos contabilísticos comprovativos dos pressupostos da dedução do IVA, suportado em despesas com bens de investimento, incluindo faturas passadas na forma legal, para efeitos do preenchimento dos pressupostos da regularização prevista nos nºs 2 e 3 do art.º 24º  do Código do IVA,  é um requisito desse direito ou pode ser suprida por quaisquer outros meios de prova admitidos geralmente em direito, em especial a prova testemunhal;

4 - a de apreciar se nas liquidações impugnadas a AT violou o regime do ónus da prova, do inquisitório e da proporcionalidade;

5 - a da caducidade do direito de liquidação do IVA, caso se considere ainda não ter terminado o prazo de regularização das anteriores deduções aquando da liquidação impugnada.

 

 

IV – FUNDAMENTAÇÃO

A.           Da Matéria de Facto

Com base nos documentos juntos pelas partes e nas declarações das testemunhas ouvidas, o Tribunal considera provados os seguintes factos:

1.            a constituição da Requerente data de 28 de Maio de 1990, sendo o seu objeto social a exploração de prédios rústicos, de caça e de atividades turísticas conexas;

2.            a Requerente iniciou a atividade a 1 de Junho de 1990, tendo como atividade principal, de acordo com a Classificação das Atividades Económicas (CAE) , 55116  Hotéis Apartamentos com Restaurante;

3.            a Requerente encontra-se, em termos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral e, em termos de IRC,  no regime geral, dispondo de contabilidade organizada;

4.            a Requerente pretendeu implantar, em terrenos seus e de outras sociedades com acionistas comuns, sitos nas freguesias de ... e ... do concelho de ..., um empreendimento turístico compreendendo campo de golfe, hotel de quatro estrelas, dois campos de futebol com clínica desportiva, pista de atletismo e reserva de caça, destinados ao exercício de atividades totalmente tributadas em IVA;

5.            a Requerente, entre 1990 e 2015,  realizou investimentos e efetuou  obras de construção nesses terrenos, tendo, durante esse período, deduzido integralmente  o IVA suportado nos termos da alínea a) do nº 1 do art.º 19º do CIVA, no montante total de € 1.483.045,13, dos quais €1.373.624, 22 respeitavam   a imobilizado, conforme o Campo 20 da declaração periódica;

6.            as construções concluídas nesse período foram utilizadas pela Requerente para alojamento de caçadores, dos trabalhadores envolvidos nas obras de construção do hotel e eventualmente de outros trabalhadores da herdade;

7.            o empreendimento turístico não foi concluído antes da venda dos terrenos, tendo, por esse motivo, os bens imóveis referidos a 4 continuado a figurar no seu ativo imobilizado da Requerente até à transmissão;

8.            no exercício de 2015 foi legalizada pelo menos uma parte das construções entretanto terminadas, destinadas a habitação e arrumos, as quais, pelos Alvarás nºs .../2015, .../2015, .../2015, .../2015, .../2015 e .../2015,  foram autorizadas a serem utilizadas;

9.            a utilização  anterior de tais construções gerou consumos de energia elétrica, telecomunicações e outros   demonstrados nos autos, não sendo possível confirmar, em virtude de o sujeito passivo não ter conservado a contabilidade que estava legalmente obrigado a manter, se a totalidade ou parte desses consumos se relacionaram direta e imediatamente com atividades sujeitas a imposto ou, pelo contrário, com atividades isentas ou fora do campo da incidência do IVA,  como o uso  a título gratuito ou precário  das construções por caçadores convidados ou por trabalhadores afetos à construção do hotel ;

10.          o hotel que a Requerente pretendia construir nunca foi concluído, não havendo provas de que a sua construção tenha prosseguido após o ano de 2003, exercício do último reembolso obtido pela Requerente, nem  que a intenção  da construção tivesse  sido  definitivamente  abandonada até à venda do respetivo terreno,  mantendo-se o bem sempre registado  na rubrica Imobilizado em Curso.

11.          a Requerente apresentou em 17 de Março de 2011 a declaração modelo 1 para inscrição na matriz das construções então existentes, onde informou que  estas   haviam sido concluídas  e ocupadas em 1936, tendo, nos anos 80, sido introduzidas benfeitorias nesses bens;

12.          no ano de 2015, por escrituras de 5 de Outubro, a Requerente alienou, pelo montante de €4.000.000,00, à D...,SA, a totalidade dos bens imóveis, prédios rústicos e urbanos que compunham a Herdade E...;

13.          àquela data, o adquirente da totalidade dos bens tinha como atividade a compra e venda de bens imobiliários (CAE 68100) e encontrava-se, para efeitos de IVA, enquadrado no regime de isenção previsto no art.º 9º do CIVA, praticando operações que não conferem direito à dedução;

14.          no momento da aquisição dos bens, designadamente na data da celebração das escrituras, o adquirente declarou que os prédios se destinavam a revenda, motivo pelo qual não foi liquidado IMT;

15.          o adquirente, em 8 de Fevereiro de 2016, procedeu à alteração da sua atividade, acrescentando à principal, a compra e venda de bens imóveis, as seguintes atividades secundárias: arrendamento de bens imobiliários (CAE 68200); caça e repovoamento cinegético (CAE 01701) e produção de eletricidade de origem eólica, geotérmica solar e de origem n.e. (CAE 35113);

16.          a 26 de Agosto de 2016, o adquirente submeteu, consequentemente, uma declaração de alteração da atividade, passando a estar enquadrado, em sede de IVA, no regime normal com periodicidade trimestral;

17.          pela Ordem de Serviço 012019..., de 15/7/2019, foi determinada pela Direção de Finanças do distrito de Faro a realização à Requerente de uma ação inspetiva externa de âmbito parcial concluída a 30/12/2019, , abrangendo os exercícios de 2015 e 2017;

18.          a causa da ação inspetiva radicou, segundo o Relatório, na circunstância de, continuadamente,  a Requerente ter vindo a  reportar o IVA,   subsistindo ainda , no termo do exercício de 2017,   a seu favor um crédito de IVA de € 345.673,29, já que, a partir do termo do exercício de 2003, não solicitou qualquer reembolso;

19.          da ação inspetiva, de acordo com o nº 3 do Relatório, sancionado por despacho do diretor de finanças do distrito de Faro de 3/1/2020, resultaram correções à matéria tributável do 4º trimestre do primeiro exercício, que originaram a liquidação impugnada de € 1.374.177, 36;

20.          o exercício de 2017 não foi objeto de quaisquer correções;

21.          as correções tiveram por base o facto de a Requerente, a 5/10/2015, ter alienado, com isenção, por escritura pública, por € 4.000.000,00, à  “D..., SA”, pessoa  coletiva..., com sede em Lisboa, coletada para compra e revenda de imóveis,  a totalidade dos bens imóveis, prédios rústicos e urbanos,  que compunham a Herdade E...,  sem  que a Requerente  tivesse exercido o direito de renúncia à  isenção de IVA, a que refere o nº 5 do art.º 12º do CIVA;

22.          a Requerente não conservou a contabilidade e respetivos documentos de suporte relativos aos exercícios anteriores a 2007, tendo o facto sido explicado à inspeção tributária em virtude de ter uma prática habitual de  não manter esses elementos para além do termo do que afirmou ser o prazo legal da sua conservação;

23.          não existem, consequentemente, quaisquer registos contabilísticos relativos à data da conclusão das obras, ao imposto suportado pelas faturas que originaram a dedução e ao cálculo da regularização do IVA que pudessem direta e imediatamente relacionar as deduções efetuadas com as construções em causa, tendo em conta, em especial, que a Requerente exercia também outras atividades eventualmente  sujeitas a IVA e dele não isentas, ,em especial  a realização  a disponibilização a título oneroso de caçadas e a venda de sementes, adubo e plantas de sobro e pinho;

24.          a Administração Tributária considerou, no entanto, que a totalidade de tais deduções, no já indicado valor de € 1.368.681,90, respeita a instalações que nunca foram ocupadas/entraram em funcionamento como tais, para os fins a que se destinaram;

25.          motivo pelo qual a venda dos imóveis implicaria a regularização integral do IVA deduzido;

26.          até à venda, de acordo com os Balancetes extraídos, os prédios em causa continuavam contabilizados como Imobilizado em Curso;

27.          até ao termo do exercício anterior à venda, a Requerente não obtivera ainda as licenças de utilização dos referidos prédios, nem efetuara qualquer regularização das deduções efetuadas , nem  contabilizara quaisquer depreciações;

28.          é o seguinte o teor das conclusões constantes do Relatório da Inspeção Tributária:

 

Da análise realizada aos valores relativos à atividade exercida, e evidentes nas declarações apresentadas pelo contribuinte no decorrer do cumprimento das suas obrigações declarativas, previstas nos códigos tributários nomeadamente CIVA e CIRC e constantes no sistema informático foi possível verificar o seguinte:

- Desde o início da sua atividade em 1990 o sujeito passivo apenas em dois anos (2007 e 2017) apresentou resultados positivos. Sendo que os rendimentos declarados no ano de 2007 (€ 351.391,25) respeitam a subsídios recebidos no montante de €69.139,84 e € 8,17 referentes a depósitos bancários registados contabilisticamente na conta SNC 7811 e €282.243,24 a correções relativas a anos anteriores suportadas contabilisticamente apenas por documentos internos. Situação que se repete no ano de 2017 em que dos rendimentos declarados,  €14.235, 54 dizem respeito a  correções relativas a anos anteriores e € 1.272,00 à venda de um terreno conforme escritura disponibilizada pelo sujeito passivo e arquivada em evidência de trabalho

- No ano de 2015 o sujeito passivo declarou um resultado ilíquido negativo no montante de € 4.369.478,90 concorrendo para este resultado de uma forma bastante significativa a conta SNC – 6853 – Alienações com um saldo de € 3.614.928,13 montante registado contabilisticamente num único documento com o n.º diário 120,010 com o descritivo “Operações Diversas – Av.L” cujo documento de suporte é o documento interno que se anexa ao presente Relatório em anexo n.º 2 e que se resume de seguida

Já em sede de IVA no período compreendido entre 1990 e 2017 o sujeito passivo efetuou deduções de IVA no valor de € 1.483.045,13, sendo que deste montante € 1.373.624,22 diz respeito a deduções relacionadas com o campo 20 (IVA dedutível imobilizado) da declaração periódica de IVA, enquanto que no mesmo período de 1990 a 2017 apenas liquidou IVA no valor de €56.110,05.

Acresce-se que nas declarações periódicas de IVA dos períodos de 1994/03T, 1998/06T e 2003/09T o sujeito passivo solicitou reembolso de IVA nos montantes de € 239.958,35, € 154.068,74 e €653.543,73.

Sendo que os montantes solicitados foram deferidos pela  totalidade à exceção do período de 1998/06T em que o montante deferido foi de € 135.894,63 após correções e recebidos pelo sujeito passivo, uma vez que à data dos factos o sujeito passivo se encontrava numa fase de investimento num empreendimento turístico.

Na última declaração periódica de IVA do ano de 2017  o sujeito passivo encontra-se em crédito de IVA no montante de €345.673,29.

…..

 Como o objetivo da empresa era utilizar os imóveis para a sua atividade de exploração do empreendimento turístico, ao longo do período compreendido entre 1990 a 2015 o sujeito passivo efetuou  investimentos e realizou diversas obras de construção civil  tendo deduzido o imposto IVA nas aquisições de bens e serviços, atendendo sempre ao facto de que os imóveis estavam alocados à atividade da entidade de exploração do empreendimento turístico atividade tributada com direito a dedução.

….

Desta forma, os bens adquiridos e construídos foram imputados a atividade tributada, tendo sido exercido o direito à dedução do IVA dessas aquisições, nos termos da alínea a) do n.º 1  do artigo  20º do Código desse imposto.

Em Outubro de 2015 e relativamente à venda dos imóveis, é de referir, em primeiro lugar, que a venda de imóvel é uma operação isenta de IVA por enquadramento no n.º 30 do artigo 9º do Código do IVA, não tendo o sujeito passivo renunciado à isenção nos termos do n.º 5 do artigo 12º.

…deveria o sujeito passivo ter e conforma previsto no n.º 5 do artigo 24º do CIVA, ter procedido à regularização a favor do Estado, de uma só vez, do montante do IVA proporcional ao número de anos que faltem para completar o período de 20 anos a partir do ano em que iniciou a ocupação do imóvel (após as obras concluídas, seguida de ocupação imediata).

….

No caso em análise em 2015 o sujeito passivo obteve a respetiva licença de habitabilidade para os imóveis urbanos em 2015, data que se pressupõe como data de ocupação sendo que as restantes obras se encontravam em curso assim deverá ser regularizada a totalidade do imposto deduzido, no momento da transmissão definitiva dos imóveis (neste caso no momento da escritura), conforme previsto no n.º 5 do artigo 24º do CIVA e regularizada no campo 41 da declaração periódica do período 201512T.

….

Disponibilizou ainda o sujeito passivo os mapas de depreciações e amortizações dos anos de 2014, 2015 e 2016 que apresentam valores muito inferiores aos constantes dos balancetes analíticos para os mesmos períodos, em que o valor de aquisição e valor líquidos dos bens dos mapas apresentados e idêntico em todos os anos. Não disponibilizando a relação dos bens do ativo em curso, anteriores à venda dos imóveis e por não dispor dos mesmos.

Face ao referido anteriormente nomeadamente a impossibilidade de verificar a origem das deduções efetuadas, a correção a efetuar no campo 41 da declaração periódica de 2015/12T respeitante ao período de 1990 a 2006 corresponderá ao montante global deduzido pelo sujeito passivo no campo 20 (Imposto Dedutível – Imobilizado) das declarações periódicas do mesmo período que totalizam o montante de €1.368.681,90

V. quadro 4 na pág. 14 do RIT

Já no que respeita aos anos de 2007 a 2015 e após análise dos documentos de suporte aos registos contabilísticos nomeadamente as deduções de IVA no campo 20 e 24 das declarações periódicas foi possível apurar que os seguintes registos dizem respeito a deduções relacionadas com os imóveis:

V. Quadro n.º 5 na pag 15 do RIT

Desta forma resulta do presente procedimento inspetivo uma correção no ano de 2015, meramente aritmética em sede de IVA no montante de €1.374.177,36 conforme quadro seguinte. Não se verificando situações passíveis de correção em sede de IVA para o ano de 2017.

V. quadro 6 na pag 15 do RIT

29.          A Requerente, durante o período em que decorreu a ação inspetiva, solicitou a redução de 75% da coima que lhe foi aplicada por violação do disposto no n.º 1 do art.º 52º do CIVA, relativo ao prazo de arquivo e conservação da contabilidade e respetivos documentos de suporte, admitindo, assim, que a sua eliminação se deveu a uma conduta culposa da sua parte.

 

B.            Factos dados como não provados

Não existem factos dados como não provados relevantes para a decisão a proferir.

 

A matéria de facto foi exclusivamente fixada com base nas peças e documentos apresentados pelas partes  perante a administração fiscal  e nos depoimentos das testemunhas apresentadas pela Requerente.  Não foram tidos em conta outros factos da vida interna da Herdade, não refletidos na prova apresentada, documental e testemunhal. 

De acordo com as regras gerais do ónus de prova dos artºs. 342º do Código Civil e 74º da Lei Geral Tributária, é ao o titular do direito à dedução que cabe demonstrar os seus pressupostos.

 Na fixação dos fatos provados foi tido em conta, na medida do possível, ou seja, sem prejuízo dos meios legais de prova, a  prova testemunhal apresentada pelo sujeito passivo aquando da audiência.

Com efeito, a prova testemunhal não pode legalmente substituir a contabilidade do sujeito passivo e a restante documentação comprovativa das deduções legalmente efetuadas, nos termos do nº 2 do art.º 19º do CIVA. Nenhum depoimento oral, incluindo a sua transcrição escrita,  pode fazer a vez da fatura em que assenta o direito à dedução.

 O princípio da liberdade de apreciação da prova cede, na verdade, nos casos de prova legal, admitindo-se, no entanto, que as normas de direito comunitário e nacional que condicionam o exercício do direito à dedução a requisitos formais devem ser objeto de uma interpretação estrita, de acordo com a jurisprudência do TJUE.

Sem prejuízo da prova legal, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607º do CPC.

Deve ser previamente referido que, aceitar a audição das testemunhas apresentadas pela Requerente, o Tribunal Arbitral não se auto vinculou ao reconhecimento de força probatória dos seus depoimentos substitutiva da prova documental apresentada.

Considerou que esses depoimentos poderiam revestir-se de utilidade, que aliás, viriam a ter, para o conhecimento da causa, permitindo em especial o conhecimento das causas da eliminação da contabilidade do sujeito passivo

Foi tido em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-6-2014, proferido no processo 07148/13l, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (…) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.  O nº 1 do art.º 76º da LGT, aliás, confere força probatória às informações prestadas pela inspeção tributária quando fundamentadas e se baseiem em critérios objetivos de acordo com a lei.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do art.º 596º e n.ºs 2 e  4 do artigo 607º, ambos do Código de Processo Civil (CPC) aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 2 do artº 29º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do art.º 123º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Na fundamentação da Decisão Arbitral, a seleção no PA apenas dos elementos relevantes, independentemente de respeitarem à Requerente ou à Requerida, não implica a discriminação de qualquer das partes, desde que estas possam compreender o sentido e alcance dessa fundamentação.

 

 

C.            Do direito

C.1. A questão prévia da inaplicabilidade do nº 5 do art.º 24º do CIVA aos sujeitos passivos que apenas realizam operações sujeitas a imposto bem como   à transmissão de bens móveis

Posteriormente à apresentação do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente veio requerer a junção aos autos de um parecer jurídico  assinado por dois ilustres professores universitários, já supra identificados. Com base neste parecer,   defende a Requerente,  nos pontos i),ii ) e iii) do requerimento de junção, que   o ajustamento que a AT  efetuou apenas poderia ter por fundamento o disposto no nº 2 do  art.º 26º do CIVA, já que o nº 5 do art.º 24º, em que a Autoridade Tributária se baseou,  apenas tem aplicação aos sujeitos passivos mistos, que, aquando do exercício do direito à  dedução, realizem simultaneamente operações isentas e operações tributadas (o que não era o caso da Requerente, que apenas  realizou, como bem resulta do Relatório de Inspeção Tributária, nos exercícios das deduções,  operações tributadas) e à regularização de bens móveis, uma vez que a regularização de bens imóveis está, segundo ela, abrangida pelo nº  6 dessa norma legal (introduzida pelo art.º 1º do DL nº 21/2007, de 29/1) .

Porém, de acordo com a posição da Requerente, ainda que o nº 2 do art.º 26º tivesse sido aplicado pela AT, só poderia justificar uma  regularização “pro rata temporis”, ano a ano, de 1/20 do imposto deduzido e não de uma só vez, como está em apreciação no caso presente.

Estes argumentos não constam do pedido de pronúncia, em especial do n.º 3.4, em que a Requerente se ocupa dos pressupostos de aplicação do n.º 5 do art.º 24º do CIVA. No entanto, considera o Tribunal que, nos termos do estatuído no n.º 2 do art.º 608º do Código de Processo Civil (“o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”), aplicável ex-vi art.º 29º, n.º 1, e) do RJAT deve resolver previamente esta questão de direito, que põe em causa a legalidade da interpretação do normativo em que assentou a liquidação impugnada.

Neste sentido, veja-se o Acórdão de 5-6-2013 do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do Proc. nº   433/13-30, segundo o qual, em matéria de direito, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, incluindo  à qualificação jurídica dos factos por elas efetuada, e goza de liberdade na indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas,  não podendo o vício de excesso de pronúncia  resultar, assim,  do conhecimento de uma questão suscitada pelas partes, ainda que decidida com argumentos diversos dos invocados. 

No ponto 2.2 do parecer junto pela Requerente, sob o título “O  regime das regularizações no CIVA”, para fundamentar a questão prévia da inaplicabilidade do nº 5 do art.º 24º às liquidações impugnadas, desenvolve-se a seguinte argumentação:

a)            os    nºs 1 a 4 do art.º 24º  do CIVA, ao  regularem  os  ajustamentos  no  período de vida  do bem, sempre que haja variação na percentagem geral de dedução (método da percentagem de dedução ou “pro rata”) ou variações na intensidade do uso de bens em operações com direto à  dedução e operações sem direito a dedução (método da afetação real), remetem para os métodos de apuramento do imposto  relativos a bens de utilização mista, definidos  no art.º 23º anterior, como resulta da referência feita nessas normas à percentagem de dedução, apenas aplicável a sujeitos passivos mistos; 

 b) o nº 5 dessa mesma norma, aplicável à   transmissão de bens do ativo imobilizado até termo do período de regularização, é, como todos os anteriores números desse artigo, apenas direcionado para os sujeitos passivos cuja atividade comporta conjuntamente operações que concedem direito a dedução e operações não conferentes desse direito;

c) na verdade, a transmissão  de bens móveis do ativo imobilizado  por sujeitos passivos   que  apenas pratiquem operações tributadas com direito à dedução e,  portanto, não modulem o seu direito à dedução pelas regras do “pro rata” ou da afetação real, jamais originaria  qualquer obrigação de regularizar as deduções ao abrigo desse nº 5; o  bem do ativo imobilizado transmitido deve ser sujeito ao IVA, salvo no caso de ter sido adquirido com exclusão do direito à dedução, circunstância  em que está abrangido pela isenção do n.º 32 do art.º 9º;

d) a  transmissão  ora em apreciação não  conduziria, assim,  a regularização nos termos do nº  5 do art.º  24º, uma vez  que esta norma  está  moldada para as situações em que o direito à dedução se encontra limitado pela regra do “pro rata” ou da afetação real;

e) apenas  no nº  6 e não no nº 5 do art.º 24 do CIVA, o legislador regulou expressamente  os reflexos no  direito da dedução total ou, em virtude da aplicação dos regimes do  “pro-rata” ou afetação real, parcial do imposto, da posterior  alteração  da atividade do sujeito passivo ou da atividade afeta ao imóvel;

 f)  as alíneas a), b) e c) desse nº 6 abrangem, com efeito,  os casos  em que  o sujeito passivo que tiver deduzido total ou parcialmente o imposto relativo a bens do ativo imobilizado, móveis ou imóveis  conforme os casos, devido a alteração da atividade  exercida ou imposição  legal,   passou a realizar exclusivamente operações isentas sem direito à dedução, nos termos do nº 3 do art.º 12º e dos nºs 3 e 4 do art.º 54º do CIVA (regresso ao regime da isenção por opção do contribuinte, findo o prazo legal de permanência nesse regime,  ou afetou o imóvel a uma  operação isenta nos termos do n.º 29 do art.º 9º), considerando que, nesses casos, os bens estão afetos a uma atividade não tributada pelo período que faltar até se completar o prazo de 20 anos (1/20 por cada ano, efetuando-se, assim, o seu cálculo “pro rata temporis”;

g) ao  contrário do anterior nº 5, a norma do n.º 6 abrangeria, assim,  não apenas  os sujeitos passivos que só tivessem praticado operações que conferem direito a deduzir o imposto suportado a montante (não sendo, por isso, sujeitos ao regime de “pro-rata” ou alternativamente da afetação real),  como  também os sujeitos passivos que passassem a realizar exclusivamente operações isentas, sem direito à dedução.  Mas as alíneas a), b) e c) desse nº 6  não abrangem a transmissão de imóveis, já que é pressuposto desta norma que estes continuem a ser detidos pelo sujeito passivo;

 h) tanto o nº 5 como o nº 6 desse art.º 24º seriam, assim, inaplicáveis ao presente caso, pelo que as liquidações impugnadas careceriam de base legal;

 i) reconhece o Parecer que, para o “bom funcionamento do imposto”, a regularização das deduções com despesas de investimento em imóveis efetuadas por sujeitos passivos  que apenas realizassem operações tributadas,  deveria ocorrer também   quando os imóveis fossem alienados com isenção do IVA, o que, no entanto, o nº 5 do art.º 24º não prevê;

j) para isso, teria sido necessário o acréscimo ao nº 6 de uma nova alínea que obrigasse à regularização no caso de o imóvel ser objeto de uma transmissão isenta;

l) mas não foi esta a solução que consta do texto legal, menos rigoroso que o paralelo do direito espanhol, na medida em   que este, ao contrário do legislador nacional, regulou direta e claramente as situações  em que tivesse inicialmente havido direito a dedução integral do IVA que onerou todos os custos ou despesas imputáveis ao imóvel e, só  por circunstâncias posteriores,  o direito à dedução deixasse de ser total;

 m) assim, a previsão do nº 5 do art.º 24º não  comporta as regularizações relativas a despesas com imóveis afetos a operações efetuadas por sujeitos passivos cuja atividade confira integral direito a dedução do imposto suportado, incluindo as que resultem da sua transmissão no período de regularização;

 n) apesar de o  nº 6 conter, ao contrário do nº5,  disposições aplicáveis ao caso específico dos imóveis relativamente aos quais tenha havido direito a dedução total ou parcial, também é certo que a sua estatuição não comporta a alienação dos imóveis, que não vem referida em nenhuma das suas três alíneas, já que se limita a regular os reflexos no direito à dedução  da alteração da atividade do sujeito passivo ou da atividade afeta ao imóvel detido pelo sujeito passivo do imposto.

Expostos estes argumentos, apreciemo-los, então.

Esta interpretação restritiva do universo de aplicação do nº 5 do art.º 24º do CIVA, em ordem a excluir os bens ou serviços utilizados por sujeitos passivos  cujo “pro- rata”  no momento do exercício do direito de  dedução  seja de 0,00 %, (mas não de 1 %), por realizarem apenas operações isentas de  IVA, e os sujeitos passivos cujo  “pro- rata”, também nesse momento, seja de 100% (mas não de 99 %), por realizarem apenas operações sujeitas, não podendo, assim, ser qualificados de sujeitos passivos mistos, assim como os bens imóveis, não tem  qualquer apoio, ainda que mínimo, na letra da norma nem no pensamento legislativo. 

E nem a Requerente tem legitimidade de invocação daquela interpretação da lei, pois com a eliminação voluntária, da sua contabilidade, inviabilizou qualquer prova de que, quer no exercício da dedução, quer nos demais exercícios abrangidos pela regularização até 2006, foi sujeito passivo integral de IVA, por realizar apenas operações sujeitas a imposto.

Nos termos legais, compõem o ativo imobilizado ou não corrente das empresas os bens que, pela sua natureza e funções, se destinem a ser  prolongadamente utilizados   como instrumentos de trabalho ou meios de exploração e, por isso, devem ser considerados de investimento. Contabilisticamente, de acordo com o nº 6 da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 7  , são hoje chamados de imobilizados os ativos fixos tangíveis detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento e para fins administrativos,  que se espera sejam usados em mais do que um período.

 Num caso ou noutro, o IVA continua a ser determinado através de uma percentagem aplicada ao valor total das operações tributáveis. Apenas o resultado da aplicação dessa percentagem, no caso de o sujeito passivo realizar exclusivamente operações sujeitas ou isentas do imposto é, respetivamente, de 100% ou nulo.

Os  custos de aquisição desses bens  não são, em conformidade, normalmente contabilizados como despesas correntes, sendo, em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), amortizados ao longo de vários exercícios.

Em relação ao IVA, o imposto suportado na aquisição de bens ou quaisquer outras despesas com bens  do  ativo imobilizado é deduzido de acordo com as regras aplicáveis à dedução  do IVA, que recai sobre a aquisição dos  restantes bens.  É, assim, nos termos do nº 1 do art.º 22º do CIVA, imediatamente dedutível, por uma única vez, na declaração do período em que as despesas foram suportadas, e não  faseadamente, durante a vida útil do bem.

 Tal dedução tem, no termo de cada exercício, sempre caráter definitivo (Patrícia Noiret Cunha, “Imposto sobre o Valor Acrescentado- Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias” ISG, Lisboa, 2004, pg. 345).

 A dedução é, no entanto, antes da apresentação da última declaração periódica de cada ano,  calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior ou, em caso de início ou alteração de atividade,  com base numa percentagem provisória estimada, nos termos dos nºs 6   e 7 do art.º 23º. Esse regime- regra só não abrange os bens ou serviços utilizados pelos sujeitos passivos que, nos termos do nºs 2 e 3 do art.º 23º, tenham, relativamente a eles, adotado o método  supletivo de afetação real, que não permite qualquer dedução do imposto suportado para a realização de operações isentas sem direito à dedução, mas permite a totalidade do imposto suportado para a realização de operações tributadas ou isentas sem direito à dedução. 

Aquela percentagem provisória, apurada nas declarações periódicas apresentadas desde o início do ano nos termos dessas normas legais, é corrigida na declaração do último período do ano a que respeita, com a correspondente regularização das deduções anteriormente efetuadas, momento em que se torna definitiva.

É, assim, na última declaração periódica de cada ano que o sujeito passivo que não tenha optado pelo método de afetação real ou não tenha sido obrigado a adotar tal método, nos termos dos nºs 2 e 3 do referido art.º 23º do CIVA, apura a percentagem final de dedução,  que pode ser teoricamente entre 0 e 100 por cento, com a consequente obrigação de regularização das deduções  necessariamente provisórias efetuadas ao longo desse ano.

Relativamente a IVA incidente sobre os bens ou serviços utilizados deduzido segundo o método da afetação real, a dedução é sempre definitiva, não sendo precedida de qualquer apuramento provisório e é, relativamente a cada bem ou serviço utilizado, de 0,00 % ou 100 %, consoante a afetação real comprovada for a uma atividade isenta ou tributada.

A percentagem definitiva apurada por cada sujeito passivo, entre 0 ou 100 por cento, é, por sua vez, passível de regularização, quando, dentro de um determinado período de utilização/duração do bem, presumidamente correspondente ao da sua  vida útil, se alterarem as  condições   iniciais que determinaram a  percentagem definitiva,  com a consequência de a  dedução inicialmente efetuada  ser   superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo  efetivamente teria  direito.

 Essa regularização tem lugar atualmente, não em obediência ao art.º 23º, mas nos termos do art.º 24º.

 Estão, assim, sujeitas a essa correção as alterações do direito à dedução, verificadas durante os anos seguintes, em relação ao direito à dedução do ano em que os bens em questão foram adquiridos, produzidos ou, se for caso disso, utilizados pela primeira vez. 

O regime contido no art.º 24º é aplicável independentemente de o imposto deduzido ser apurado numa base proporcional, entre 0,00 % e 100%, ou, por opção do sujeito passivo ou por determinação da administração tributária, de acordo com o método de afetação real.

Nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 24º, o prazo de regularização, que não é coincidente com o prazo de amortização para efeitos de IRC, conta-se a partir do ano civil  em que o bem começa a ser utilizado ou o imóvel começa a ser ocupado, em que se pode dizer que o bem está plenamente afeto a uma atividade sujeita,  isenta ou mista de IVA,   e não no ano civil da aquisição  ou do final da construção bem. Esta opção da contagem do prazo de regularização a partir da conclusão das obras, na medida em que implica um adiamento do dever do sujeito passivo, é mais favorável para este do que se o prazo se contasse a partir da aquisição ou do início da construção. Foi uma opção tomada pelo legislador nacional de acordo com a permissão contida na 2ª parte do nº 2 do art.º 20º da Diretiva 77/388/CEE, de 17/5 (6ª Diretiva).

 No caso de bens móveis, tal prazo prolonga-se até ao termo dos 4 anos seguintes ao do início da utilização. Quando se trate da aquisição de bens imóveis com opção do IVA ou auto construção, o prazo de regularização termina no termo dos  19  anos posteriores ao da ocupação.

Caso  o imposto  seja deduzido de acordo com o método da afetação real, a regularização, pela diferença entre a afetação real no início da utilização e  nos 4 ou  19 anos posteriores,  prevista nos nºs 1 a 3 do art.º 24º, só tem lugar caso ultrapasse o montante previsto  no nº 4 dessa norma legal.

Ainda de acordo  com a alínea a) do nº 3 do art.º 24º, é  calculado, aquando do início da utilização ou ocupação, o montante da dedução que teria lugar na hipótese de a  conclusão das obras se ter verificado no ano em consideração, de acordo com a percentagem definitiva desse mesmo ano, a subtrair à dedução efetuada até ao ano da conclusão das obras em bens imóveis, repartindo-se a diferença positiva ou negativa por 19, sendo o resultado a quantia a pagar ou a dedução complementar a efetuar no mesmo ano. 

Segundo as alíneas b) e c) daquele mesmo número, o montante assim obtido é subtraído à dedução efetuada no ano em que teve lugar a aquisição ou ao somatório das deduções efetuadas, até ao ano da conclusão das obras em bens imóveis, sendo que a diferença positiva ou negativa se divide por 20, conforme o caso, sendo o resultado a quantia a pagar ou a dedução complementar a efetuar no respetivo ano.

 

De acordo com o dispositivo legal contido   no nº 5 do art.º 24º do Código do IVA, em    caso de transmissão de bens do ativo imobilizado durante o período de regularização, esta efetua-se de uma só vez, pelo período ainda não decorrido. Para esse efeito, considera-se que, no ano da transmissão e nos posteriores até ao fim do prazo de regularização, os bens transmitidos se encontram afetos a uma atividade totalmente tributada.

Caso não fosse abrangida pelo nº 5 do art.º 24º, a afetação do bem antes da conclusão das obras  a uma atividade isenta (quando relativamente a esses bens ou aos elementos que  os constituam tivesse havido dedução total ou parcial do imposto), seria sempre ficcionada como transmissão, nos termos da alínea g) do nº 3 do art.º 3º do CIVA, salvo quando enquadrada no nº 6 do art.º 24º.  Essa solução é igualmente aplicável nos mesmos termos,  à saída  do bem com carácter permanente do ativo imobilizado, nos termos da anterior alínea f) do mesmo número, sem prejuízo da aplicação do art.º 26º. Num caso e noutro a regularização é integral, como acontece quando às mesmas circunstâncias seja aplicado o nº 5. Já a não ocupação do imóvel durante 1 ou mais anos civis completos após o início do prazo de 10 anos referido no nº 2 do art.º 24º, dá lugar, nos termos do nº 1 do art.º 26º, à regularização anual de 1/20 da dedução efetuada, que deve também constar da declaração do último período do ano a que respeita.

Por outro lado, a afetação do bem posteriormente à  conclusão das obras  ou ocupação a uma atividade totalmente isenta implica  a regularização pelo período que falta decorrer, através de um sistema “pro-rata temporis”, já que está abrangida pelo nº 6 do art.º 24º ou, nos casos não previstos nessa norma legal, pela já mencionada alínea g) do nº 2 do art.º 3º do CIVA, em que é pura e simplesmente ficcionada de transmissão.

Caso a afetação do imóvel a atividade isenta seja apenas parcial, mantém-se a aplicação do regime-regra  do “pro rata” da dedução dos nºs 1 a 4 desse art.º 24º, aplicável a todos os sujeitos passivos do IVA que não tenham optado pelo método da afetação real.

Assim, nem da letra nem do espírito da lei resulta a limitação do âmbito de aplicação do nº 5 do art.º 24º aos sujeitos passivos que, aquando do exercício do direito à dedução,  desenvolvam atividades mistas, sujeitas ou isentas de IVA, com exclusão daqueles, como a Requerente, que exercem ou exerceram na totalidade atividades sujeitas a IVA, solução que, como a Requerente reconhece, comprometeria não apenas  o bom funcionamento do imposto, como, dadas as referidas alíneas f) e   g) do nº 3 do art.º 3º, a própria  coerência do sistema comum IVA.

As graves distorções que essa solução implicaria, foram, no entanto, devidamente prevenidas pelo legislador do DL nº 39-B/84, de 26 de Dezembro. A própria epígrafe dessa norma, “Regularização da Dedução dos Bens do Ativo Imobilizado”, introduzida aquando da republicação pelo art.º 7º do DL nº 102/2008, de 20 de Junho, não distingue ou permite a distinção entre sujeitos passivos que realizem apenas operações sujeitas ou operações isentas de IVA. Também não diferencia, no ativo imobilizado do sujeito passivo, entre bens móveis e imóveis.

Ainda que assim não fosse, a   parte final do nº 5 do art.º 24º é tipicamente aplicável apenas  a sujeitos passivos que, ainda que tivessem sido integrais no período entre o exercício do direito à dedução e a alienação, vieram com esta a transformar-se em  mistos, em virtude de realizarem uma transmissão isenta nos termos do art.º 9º, n.º 30 do CIVA, por esta estar sujeita a IMT.  

Não é possível sustentar a não aplicação daquela norma, sob pena da sua inutilidade, à transmissão de bens imóveis, quando ela define inequivocamente, como fundamento de regularização, não apenas a realização de transmissões de bens móveis exclusivamente afetos a uma atividade isenta que não tenham sido objeto do direito de dedução, como também à transmissão de bens imóveis isenta de IVA, não se verificando de todo a pretensa lacuna invocada no Parecer.

Assim, independentemente do regime de dedução aplicável, caso  a alienação do imóvel beneficie do direito à isenção do art.º 9º, n.º 30º do CIVA, o direito à dedução do IVA correspondente ao ano da alienação e seguintes até final do período de regularização, apurados por um critério “pro-rata temporis”, é nulo, devendo,  aquando da regularização,  o sujeito passivo creditar  a favor do Estado o IVA prévia e parcialmente deduzido, relativo às obras de construção e melhorias (Rui Manuel Pereira da Costa Bastos, “O direito à dedução do IVA- o caso particular dos Inputs de utilização mista” , Cadernos IDEF, Lisboa, 2014, pgs. 207 e sgs., não se conhecendo, antes da junção do citado Parecer ao presente Processo Arbitral, qualquer orientação doutrinária oposta). Apenas não estão abrangidos pelo dever de regularização as deduções efetuadas após a afetação do bem a uma atividade empresarial: regularização é, assim, total se a afetação do bem a uma atividade empresarial ainda não tiver começado aquando da transmissão do imóvel.

Outra interpretação violaria, aliás, o Direito Comunitário, como resulta dos números a seguir citados do art.º 19º da 6ª Diretiva, em vigor aquando da aprovação do CIVA pelo art.º 1º do DL nº 394-B/84, de  26 de Dezembro, que se reproduzem   :

N.º 3. “No caso de entrega durante o período de ajustamento, os bens de investimento são considerados afetos a uma atividade económica do sujeito passivo até ao termo do período de ajustamento. Presume-se que esta atividade económica é inteiramente tributada nos casos em que a entrega dos referidos bens é tributada e presume-se que está totalmente isenta nos casos em que a entrega se encontra isenta. O ajustamento efetua- se uma única vez relativamente a todo o restante período de ajustamento”.

Este nº 3, correspondente integralmente aos atuais artºs. 188º e 189º da Diretiva nº 2006/112/CE, do Conselho, de 28/11/2006, foi transporto para o nº 5 do art.º 24º do CIVA, aplicável às transmissões de bens do ativo imobilizado em geral, independentemente da percentagem do IVA deduzido em despesas de investimento, não havendo, pois,  necessidade alguma de importação de qualquer norma do ordenamento jurídico   espanhol, já que a questão está resolvida  correta e claramente pelo legislador  nacional.

De acordo com o Direito Comunitário, os Estados-membros podem não exigir, neste último caso, o ajustamento, na medida em que o adquirente seja um sujeito passivo que utilize os bens de investimento em questão exclusivamente para operações em relação às quais o IVA é dedutível.

Essa possibilidade não foi, porém, exercida pelo legislador nacional: o nº 5 do art.º 24º não dispensa o ajustamento nestes casos, mas este é efetuado por uma só vez, considerando-se o bem afeto a uma atividade totalmente tributada no ano em que se verifica a transmissão e, nos restantes, até ao termo do prazo de regularização.

Portugal estaria em manifesto incumprimento das normas comunitárias se dispensasse a regularização em caso de a transmissão estar sujeita a IMT, ainda que isenta, como é, nos termos do art.º 7º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), a compra de imóveis para revenda, e, por isso, abrangida pela isenção do art.º 9º, n.º 30 do CIVA. 

N.º 5 “Sempre que, num Estado-membro, os efeitos práticos da aplicação dos nºs 2 e 3 sejam insignificantes, esse Estado pode, sem prejuízo da consulta prevista no art.º 29º, renunciar à sua aplicação, tendo em conta a incidência global do imposto no Estado-membro em causa e a necessidade de simplificação de ordem administrativa, desde que daí não resultem distorções de concorrência”

Em caso de dúvida sobre o sentido e alcance do nº 5 do art.º 24º, deverá prevalecer a interpretação da norma compatível com o Direito Comunitário e não uma interpretação restritiva incompatível, que pode ser menos favorável aos contribuintes, quando lhes recusa uma dedução suplementar a que deveriam ter direito, ou prejudicar o Estado, quando lhe recusa um ajustamento essencial ao “bom funcionamento” do imposto.

Na verdade, os nºs 5 e 6 do art.º 24º têm um âmbito distinto, pelo que mantêm um com o outro uma relação de complementaridade.

A primeira norma, contida no n.º 5, tem aplicação à regularização das deduções efetuadas quanto às despesas com  bens do ativo imobilizado, incluindo imóveis,   aquando da  saída dos bens  da esfera do  sujeito passivo, em virtude da transmissão do bem,  ou com a cessação da sua atividade, nos termos do nº 3 do  art.º 26º, que expressamente remete para  este nº 5 do art.º 24º (sobre o assunto,  Isabel Vieira dos Reis, “  A Regularização do IVA nos Bens de Investimento Imobiliário”, Cadernos do IVA 2017, Lisboa, 2017,pág. 326). Tal regularização é, como se disse, efetuada imediatamente, por uma só vez, relativamente, tratando-se de bens imóveis, aos anos que faltarem  para a completar o prazo de 20 anos, em derrogação do  disposto nos números anteriores do referido artigo.

A  segundo norma, contida no n.º 6, aplica-se à regularização das deduções efetuadas quanto às despesas com  bens do ativo imobilizado,  incluindo bens imóveis; não à saída, mas durante a detenção dos bens, em virtude de,  por alteração da atividade do sujeito passivo ou da atividade afeta ao imóvel,  bem como pelo exercício da opção prevista no nº 3 do art.º 12º ou no nº 3 do art.º 55º, em virtude do fim da permanência obrigatória no regime de renúncia à isenção ou no regime especial dos pequenos retalhistas, este ter passado a realizar exclusivamente operações isentas sem direito à dedução, quando o imóvel passe a ser objeto de locação isenta, nos termos do n.º 30 do art.º 9 º do CIVA. Fora destes casos, aplicam-se, conforme os casos, as alíneas f) e g) do nº 3 do art.º 3º do CIVA, sendo a afetação ficcionada como transmissão.  

Por força da remissão do nº 6 para a disciplina do nº 5, também essa regularização é   feita imediatamente, por uma só vez, tratando-se de bens imóveis e  também pelos  anos que faltarem  para  completar o prazo de 20 anos.

A regularização das deduções efetuadas quanto às despesas com  bens do ativo imobilizado no período de detenção do bem  pode ainda  ocorrer, nos casos de bens  de utilização mista, em caso de alteração  da percentagem de dedução apurada no ano do início de utilização do imóvel, nos termos dos nºs 1 a 4 do art.º 24º,  quando o sujeito passivo  passe a realizar operações que confiram o direito à dedução, caso em que é aplicável o art.º 25º, efetuando-se então a regularização  “pro-rata temporis”, 1/20 por cada ano,  ou quando  os imóveis deixem de ser utilizados em fins empresariais, nos termos do art.º 26º, caso em que, salvo havendo cessação de atividade, como se referiu, é aplicável o nº 5 do art.º 24º, a regularização é também “pro rata temporis”. Em caso de inexistência dessa norma, a afetação a atividade isenta, quando houvesse dedução do imposto, seria, como se referiu, ficcionada de transmissão.

Assim, o eventual  estatuto da Requerente de sujeito passivo integral, por apenas realizar operações sujeitas a IVA aquando do exercício do direito à dedução, não prejudica a posterior  aplicação do nº 5 do art.º 24º do CIVA, se a transmissão estiver isenta de imposto, nos termos dos  referidos n.ºs 30 e 32 do art.º 9º, sendo que se procede a um ajustamento das regularizações efetuadas, considerando-se os bens de investimento afetos a uma atividade isenta por todo o período ainda não decorrido até ao esgotamento do prazo de regularização.

O facto de a Requerente estar apenas coletada por operações sujeitas a IVA, por não a impedir legalmente de, ainda que a título secundário, realizar operações isentas, não prejudica a consequente obrigação de regularização, se essas operações forem realizadas, como, aliás, o foi no presente caso (venda de imóvel sem renúncia à isenção de IVA). Nessa medida, o nº 5 do art.º 24º do CIVA é aplicável às despesas de investimento em bens imóveis que, durante o período de regularização, venham a ser transmitidos com isenção de IVA, por essa transmissão estar sujeita a IMT e o sujeito passivo transmitente não ter renunciado à isenção, não havendo fundamento para a interpretação restritiva da sua aplicação pela Requerente.

 

C.2. a questão da caducidade da regularização prevista nos nº s 2 e 3 do art.º 24º do CIVA e o prazo aplicável

O  segundo argumento desenvolvido pela Requerente para sustentar a ilegalidade da liquidação é o do esgotamento,  aquando da realização desta, do prazo legal para efetuar a regularização  disciplinada  nos nºs 2 e 3  do art.º 24º do CIVA,  que, como é sabido, para os imóveis construídos até 2001, era de 9 anos a partir da  data de aquisição, ou em caso de despesas com imóveis, da  conclusão das obras, como resulta  da disposição transitória do nº 1 do art.º 6º do DL nº 31/2001, de 8 de fevereiro, cujo art.º 1º ampliou  para 19 anos o período de regularização das deduções relativas a bens imóveis. Tal argumento, como é lógico, apenas poderia compreender a regularização do IVA relativo aos edifícios e outras construções já concluídas à data dos exercícios abrangidos pela ação inspetiva e não os edifícios cuja construção a Requerente já então tinha abandonado, como é o caso do hotel.

 Segundo as justificações deduzidas pela Requerente no ponto a 3.4. do pedido de pronúncia arbitral, todos os investimentos feitos  nesse período que originaram a dedução do IVA, salvo os relativos à construção do hotel, do campo de golfe e de um posto de transformação, respeitariam  a bens adquiridos e obras já  integralmente concluídas quando entrou em vigor o decreto-lei nº 31/2001, às quais ainda se aplicava o anterior prazo de regularização, que a Requerente consideraria esgotado na data da liquidação impugnada. Tais

 investimentos  compreenderiam:  a vedação de todo o perímetro da herdade; a  construção de três pavilhões;  a  construção de raiz de oito habitações para trabalhadores;  a construção de barragens e charcas; a instalação de postos de transformação; a abertura e melhoramento de caminhos florestais e a desmatação e limpeza de todo o terreno onde se desenvolveria a atividade cinegética. Segundo a Requerente, estas obras estariam materialmente acabadas antes da entrada em vigor do DL nº 31/2001, o que, segundo a Administração Tributária, a pg. 20 do Relatório da Inspeção Tributária, é contrariado pelo pedido de vistoria apresentado em 2013 na Câmara Municipal de ..., visando a legalização de arrumos, onde seria dito que essas obras datam dos anos 80, afirmação que,  dada a eliminação da contabilidade  da  Requerente, não é possível confirmar ou infirmar. É de recordar que, segundo o Facto Provado 11, a Requerente declarou, aquando da sua inscrição matricial, que as restantes construções foram concluídas em 1936. Segundo o Balancete de 2006, tais investimentos terão atingido a percentagem de 44,17% da totalidade das despesas com imóveis que originaram a dedução do IVA, apuradas no final do último desses exercícios. Os restantes 55, 83 % seriam relativos à construção do hotel e campo de golfe.

Aplicando essa proporção à totalidade do IVA deduzido no período de regularização, o IVA deduzido por causa dessas despesas, já não passível de regularização,  por  alegada caducidade do prazo em que esta se poderia efetuar,   seria de € 614.538,17.

A Administração Tributária, por seu turno, considerou como data de conclusão das obras, na incapacidade de a Requerente demonstrar documentalmente outra data, a data de emissão das licenças de autorização de utilização emitidas pela  Câmara Municipal de... .

É de relembrar previamente, que a contabilização da conclusão das obras antes da entrada em vigor do DL n 31/2001 não foi disponibilizada à Administração Tributária, já que, como se referiu, a Requerente não conservou a contabilidade anterior a 2007, apesar de estar legalmente obrigada a fazê-lo. Com efeito, a Requerente não apresentou à AT, apesar de notificada para isso, o livro de registo dessas despesas e operações ligadas a bens de investimento e respetivos documentos de suporte realizadas nos períodos de tributação de 1990 a 2006, como anteriormente se referiu, invocando, por carta de 27/8/2019, citada a pg. 11 do Relatório da Inspeção Tributária, cuja veracidade não foi posta em causa pela Requerente, não manter documentos para além do termo do prazo legal da sua conservação.

 

No entanto, de acordo com os elementos do Anexo 3 do Relatório da Inspeção Tributária, a Requerente deduziu, entre o início do exercício de 1990 e o termo do exercício de 2015, IVA no montante de € 1.423.045, 13, dos quais, de acordo com o Campo 20 das declarações  periódicas, € 1.368.6 81,690,  eram relativos a ativo imobilizado. Em todo esse espaço de tempo, de acordo com esse Anexo, a totalidade do IVA liquidado seria apenas de €56.110,05, tendo a Requerente obtido reembolsos nos montantes de € 239.958,35, €54.068,74 e €53.543,73, respeitantes, respetivamente, ao 1º trimestre de 1994, ao 2º trimestre de 1998 e ao 3º trimestre de 2003.

Com o mesmo fundamento de já não possuir os documentos contabilísticos, a Requerente não facultou à Administração Tributária a restante contabilidade organizada de forma a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto e a permitir o controlo das deduções efetuadas, que estava obrigada a possuir nos termos do nº 1 do art.º 44º do CIVA.  A Requerente não precisou a data e as circunstâncias concretas da eliminação dessa contabilidade, que continuaram a não ser conhecidas após a audição das testemunhas apresentadas por aquela. O facto de ter pago voluntariamente a respetiva coima evidencia, no entanto, que a destruição dessa contabilidade não se deveu a razões acidentais, que, aliás, deveria ser sempre a Requerente a demonstrar, mas a uma conduta negligente.

Por esse motivo, a Requerente, durante a ação inspetiva não facultou à AT os registos contabilísticos das operações efetuadas previstos no nº 2 do art.º 44º, com as menções contidas nos nºs 3 e 4. Tão pouco exibiu as faturas que deveriam suportar tais registos, nos termos do nº 2 do art.º 19º.

Segundo o nº 1 do art.º 52º, os sujeitos passivos são, no entanto, obrigados a arquivar e conservar em boa ordem, durante os 10 anos civis subsequentes, todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte, incluindo, quando a contabilidade é estabelecida por meios informáticos, os relativos à análise, programação e execução dos tratamentos.

De acordo com o nº 2 desse artigo, para os registos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 50.º (incluindo, assim, o livro de registo de despesas e operações ligadas a bens de investimento) e no art.º 51.º, incluindo documentos anexos, o prazo de 10 anos referido no nº anterior deve ser contado a partir da data em que for efetuada a última das regularizações previstas nos artºs. 24.º e 25.º. Assim, os registos dos bens de investimento devem ser conservados nos 10 anos posteriores ao momento em que a última regularização foi processada ou  devia ter sido processada.

 Nos termos do nº 3 do art.º 52º, na redação dada pelo art.º 36º do DL nº 28/2019, de  15 de fevereiro  (que procedeu   à regulamentação das obrigações relativas ao processamento de faturas e outros documentos fiscalmente relevantes e da conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte, que recaem sobre os sujeitos passivos do IVA), a  regulamentação do arquivo dos livros, registos e documentos de suporte consta de legislação especial, que foi aprovada peço mesmo diploma legal,  ainda não vigente à data dos factos a que a se refere o pedido de pronúncia arbitral.

O nº 1 do art.º 19º do decreto-lei n.º 28/2019 manteve o prazo geral de conservação desses elementos de 10 anos, mas    o seu  nº2 acrescentou que, sempre que os sujeitos passivos exerçam direito cujo prazo é superior ao referido no nº 1, a obrigação de arquivo e conservação de todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte mantém-se até ao termo do prazo de caducidade relativo à liquidação dos impostos correspondentes.

Na falta da contabilidade que não conservou, invocou a Requerente, no art.º 123º da PI, uma passagem do processo administrativo, relativa à autorização do reembolso do IVA 2003/09/T, onde é afirmado pela Administração Tributária “ter sido possível confirmar no local e de acordo com a informação fornecida pelo Sr. F..., “[que] E... é uma herdade com 1800 hectares, tendo 480 hectares sido reflorestados com pinheiros, existir  ainda na herdade um centro de nidificação para criação de 5000 perdizes que se destina à caça, diversos armazéns, bem como pequenas habitações que se destinam aos vigias e empregados, terem sido construídas pequenas barragens e 15 pequenos apartamentos que se destinam aos futuros clientes, estar a  ser construído um hotel com 145 quartos e estar prevista a construção de um campo de golfe”.

Essa passagem, reconhece a Requerente, não indicia que as edificações em causa tenham sido construídas antes ou depois da entrada em vigor do DL nº 31/2001, mas, quando muito, partindo do princípio de as edificações referidas serem as mesmas, que já existiam no final do exercício de 2004.  De igual modo, eventuais consumos de energia elétrica relativos a esse período de tempo, porque  não necessariamente   devidos a essas construções, mas  a outras necessidades energéticas  da Requerente, não indiciam também a ocupação anterior a essa data: a própria atividade da construção de edificações necessita frequentemente do consumo de energia elétrica, pelo que a utilização desse tipo de energia não demonstra necessariamente que as edificações tenham sido concluídas. No caso da energia elétrica consumida por construções já concluídas, como eventualmente os apartamentos para fins turísticos, tal consumo também não prova a sua utilização pela Requerente com fins empresariais, podendo igualmente resultar da sua ocupação por particulares, colaboradores ou caçadores ou outras pessoas convidadas da Requerente, como, aliás, aconteceu.  Tal ocupação, a título gratuito ou precário, não é em si mesma uma atividade empresarial, nem a Requerente demonstrou que tivesse originado qualquer liquidação do IVA, nos termos da alínea b) do nº 2 do art.º 4º do CIVA, apesar de ser devido imposto por a situação não estar abrangida no isenção do 36º do art.º 9º do referido Código. Também não mostra que o IVA deduzido se relaciona com essas construções, podendo abranger os bens consumidos pelo sujeito passivo na construção do hotel e campo de golfe ou no exercício da atividade cinegética que, apesar das obras, não teria totalmente abandonado, ou outras atividades dentro ou fora do campo da incidência do imposto. De qualquer modo, é evidente que o comportamento da Requerente inviabilizou o controlo adequado do imposto, que não pode ser substituído por meios probatórios de certeza e segurança muito inferiores ao da prova documental.

Ao contrário, a contabilidade dos exercícios posteriores a 2006 reflete inequivocamente que até à venda, de acordo com os critérios contabilísticos utilizados pela Requerente, o investimento efetuado ainda não tinha terminado. Caso o investimento tivesse sido efetivamente concluído, a Requerente não o revelou à Administração Tributária.

Nos termos do Parágrafo 55 da Norma Contabilística e de Relato Financeiro 7, as depreciações dos  bens do ativo fixo tangível apenas começam quando estiverem disponíveis para serem usados nas condições necessárias para serem capazes de operar  na forma pretendida, a avaliar pelo órgão de gestão da empresa. Tal decisão do órgão de gestão da empresa, admitindo ter existido, não foi disponibilizada pela Requerente, através de exibição da competente ata do seu órgão de administração.

Ora, no termo do exercício anterior ao da transmissão, os ativos em causa ainda figuravam na “Conta 451- Ativos Fixos Tangíveis em Curso”, Imobilizado em Curso, do Código de Contas, aprovado pela Portaria nº 1011/2019, de 9 de Setembro, aplicável em especial às obras em   bens do ativo fixo tangível com duração prolongada ainda não concluídas, presumindo-se, assim, a sua indisponibilidade anterior para utilização na forma pretendida.

Assim, no termo do exercício anterior ao da transmissão, não tinham sido começadas   quaisquer depreciações, já que apenas se  poderiam iniciar após a conclusão das obras, com  a transferência desses ativos para  a “Conta 432- Edifícios e Outras Construções”, o que  ainda não acontecera na referida data.

Do mesmo modo, de acordo com esse elemento, a Requerente não podia ainda legalmente ter procedido às regularizações anuais das deduções do IVA sobre despesas com imóveis, reguladas nos nºs 2 e 3 do art.º 24º do CIVA, a que estaria obrigada em caso de conclusão das obras, já que o prazo da regularização, que depende deste evento dilatório, ainda não se iniciara. A contabilidade não foi retrospetivamente corrigida, ainda que em abstrato essa correção retrospetiva pudesse ser admitida com as condicionantes da Norma Contabilística e de Relato Financeiro 4.

A Requerente não invocou, para justificar essa contabilização, qualquer alteração superveniente das suas políticas contabilísticas, que teria sempre de justificar de acordo com o princípio da consistência, sendo, assim, de pressupor que esta foi sempre a mesma desde 1990, o que obviamente é impossível de demonstrar dada a eliminação intencional dos seus registos contabilísticos. A contabilização das referidas construções como Imobilizado em curso só pode, assim, justificar-se pela não conclusão do empreendimento e consequente não utilização para as finalidades para que foi projetado.

Segundo foi explicado pelo TOC da Requerente na inquirição realizada no âmbito do presente processo no dia 9 de Junho do corrente ano, a contabilização desses bens como Imobilizado em Curso, da responsabilidade do TOC anterior, dever-se-ia à não conclusão do projeto turístico de que as construções seriam parte integrante, não estando, assim, tais ativos em condições de serem utilizados de acordo com o projetado. 

Tal procedimento seguiu os princípios contabilísticos geralmente aceites incorporados nas NCRFs.

Não se nega a utilização física de, pelo menos, uma parte dessas construções anterior à venda.

A Requerente não demonstrou, no entanto, a utilização dessas construções para fins de natureza empresarial, suscetível de afastar a aplicação dos mecanismos legais de regularização, quando os imóveis foram vendidos com isenção de IVA.  O entendimento da administração fiscal sobre a aplicação desses mecanismos não era desconhecido pela Requerente que juntou à PI, como Doc. º 5, ao Informação Vinculativa proferida no âmbito do processo n.º 14842, por despacho de  14-08-2019 da Diretora de Serviços do IVA, em cujas conclusões se afirma, para além do mais,  que : “se a transmissão do imóvel for efetuada nos termos do n.º 4, do artigo 3º e no n.º 5, do artigo 4º, ambos do CIVA, ou seja, se o que estiver em causa for apenas simples transmissão de um imóvel, compete ao Requerente fazer o seguinte enquadramento: i. Caso a transmissão seja efetuada com nova renúncia à isenção nos termos estabelecidos na alínea c), do n.º 2, do artigo 2º do Regime da Renúncia, não existem regularizações a efetuar nos termos do artigo 24º do CIVA; ii. Se pelo contrário, a transmissão for efetuada fora da renúncia, sendo uma operação isenta nos termos da alínea 30), do artigo 9º do CIVA, terá de proceder à regularização, de uma só vez, do período ainda não decorrido (período que falta para os 20 anos), em conformidade com o disposto no n.º 5, do artigo 24º do CIVA;

Do probatório resulta, com efeito, a afetação principal até 2015 dos edifícios construídos (moradias, pavilhões e outros) essencialmente: a serviços gratuitamente prestados aos convidados, o que teria explicado, dada a disposição da alínea b) do nº 1 do art.º 4º do CIVA,  a aplicação ocasional de métodos indiretos à Requerente, como é referido no art.º 105º do pedido de pronúncia arbitral,  na sequência do pedido de reembolso de 2003/06/T; ao alojamento dos trabalhadores contratados para a construção das obras. Não foram, portanto, afetadas ao empreendimento turístico e cinegético que a Requerente pretendeu instalar, mas que jamais funcionou.

Tal não teria impedido, porventura, o exercício, ainda que residual, a avaliar pelo relativamente exíguo volume das liquidações de IVA durante esse período, de atividades agrícolas e cinegéticas sujeitas a IVA na Herdade; mas este exercício, na falta de quaisquer outros elementos comprovativos, não prova em si próprio a conclusão e ocupação das construções para fins de natureza empresarial. O volume de negócios acumulado pela Requerente entre 1990 e 2015 e o IVA que lhe foi aplicado mostra que a atividade agrícola realizada nesse período foi pouco significativa, não tendo a Requerente, por não ter conservado a contabilidade e seus documentos de suporte, demonstrado qualquer relação relevante entre essa atividade e os investimentos realizados.

Por outro lado, a atividade cinegética desenvolvida desde muito antes pela Requerente, ainda que tivesse beneficiado do início do funcionamento do empreendimento turístico, poderia sempre ser realizada à margem desse empreendimento, ainda que eventualmente pudesse ter sido beneficiada pelas obras efetuadas. O volume de negócios entre 1990 e 2015 indicia, aliás, que, como seria testemunhado a quando da audiência, que a maioria dos caçadores era convidada pessoalmente pelos proprietários da sociedade, com os quais mantinham relações familiares ou de amizade, não tendo pago qualquer contraprestação pelas caçadas.

A presunção de não conclusão das obras até 2015 não tem, no entanto, suporte apenas na contabilidade da Requerente, é também apoiada pela data da emissão das licenças de utilização.

Nas datas em que a Requerente afirma ter concluído as obras, não tinha apresentado nem obtido qualquer pedido de licenciamento que, segundo o art.º 105º do pedido de pronúncia, apenas foi diligenciado em virtude de urgência na realização da venda.

Esta afirmação inculca a ideia de tal pedido de licenciamento ser apenas uma faculdade do proprietário, a exercer conforme as suas conveniências. Esta ideia, porém, não tem qualquer base legal.

Nos termos dos artºs. 62º a 66º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo art.º 1º do DL º 555/99, de 16 de dezembro, apenas após a  conclusão total ou parcial das obras sujeitas a  controlo prévio, que, no caso de despesas de investimento em imóveis,  assinala o início do prazo de regularização,  é emitida a autorização de utilização que, além de verificar esse facto, certifica a  conformidade com o projeto de arquitetura aprovado ou  as condições de licenciamento ou comunicação prévia, quando esta última  seja o regime aplicável ( “Direito do Urbanismo”, Fernanda Paula Oliveira, Coimbra, 2013, pg. 55).

É o título de autorização ou licenciamento, que é um documento autêntico, nos termos do nº 1 do art.º 371º do Código Civil, que certifica a conclusão das obras. Antes da emissão deste título, a utilização do prédio consequente da conclusão das obras é precária, já que a entidade competente pode, em geral após vistoria, não autorizar a utilização ou impor novas obras, nos termos do nº5º do art.º 65º do RJUE.

A  ocupação sem autorização, para os fins para os quais foi pedida a autorização ou licenciamento, no caso, da unidade que constituí o empreendimento turístico, é, aliás, ilícita, como resulta da alínea d) do nº 1 do art.º 98º do RJUE, sendo contra ordenacionalmente punível nos termos dessa norma,   podendo o presidente da câmara, nos termos do nº 2 do art.º 109º, ordenar e  fixar prazo para a desocupação de edifícios ocupados sem autorização de utilização, que não se reduz  a mera formalidade, apenas necessária aquando da venda do edifício.  No caso de não sujeição a controlo prévio, a conclusão das obras presume-se efetuada na data da obtenção do licenciamento, quando exigido por lei ou pelos regulamentos municipais aplicáveis. Caso assim não seja, é ao proprietário que cabe demonstrar a data da conclusão da construção.

É certo que a lei fiscal presume nalguns casos a conclusão das obras em data anterior à da emissão das licenças de utilização.

Segundo o nº 1 do art.º 11º do Código da Contribuição Autárquica, art.º 10º do atual Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), em vigor à data da publicação do DL nº 31/2001, os prédios urbanos presumem-se concluídos ou modificados na mais antiga das seguintes datas: a) em que for concedida licença camarária, quando exigível; b) em que for apresentada a declaração para inscrição na matriz, obrigação que foi omitida pela Requerente antes da entrada em vigor do DL nº 31/2001; c) em que se verificar uma qualquer utilização, desde que a título não precário, em que se não conta, naturalmente, a cedência dos ativos em causa a título gratuito ou fora de um contrato de prestação de serviços de alojamento; d) em que se tornar possível a sua normal utilização para os fins a que se destina, o que ocorreria, segundo a política contabilística adotada então pela Requerente, apenas com o licenciamento do funcionamento efetivo do empreendimento turístico.

Esta norma é abstratamente aplicável aos pavilhões e outras construções afetas à atividade cinegética dado o nº 2 do art.º 27º do CIMI, de acordo com o qual o valor patrimonial tributário das edificações localizadas em prédios rústicos, que não forem afetas à produção de rendimentos prevista no n.º 1, ou seja, agrícolas e silvícolas, é determinado de acordo com as regras aplicáveis na avaliação de prédios urbanos. Esta doutrina já resultava do parágrafo 2º do art.º 5º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (CCPIIA).

Segundo o referido nº 2 do art.º 27º do CIMI, o chefe da repartição de finanças da área da situação dos prédios fixará, em despacho fundamentado, a data da conclusão ou modificação dos mesmos, nos casos não previstos no número anterior e naqueles em que as presunções nele enunciadas não devam relevar, com base em elementos de que disponha, designadamente os fornecidos pelos serviços de fiscalização, pela câmara municipal ou resultantes da reclamação dos sujeitos passivos.

Por outro lado, segundo da alínea c) do nº 1 do art,º 10º do CCA, a contribuição autárquica era devida a partir do ano, inclusive, da conclusão das obras de edificação, de melhoramento ou de outras alterações que houvessem determinado a variação do valor tributável de um prédio, ou da respetiva classificação, quando qualquer destes factos tivesse ocorrido até 30 de Junho de cada ano.

A partir desta conclusão, sob pena de responsabilidade contraordenacional, caso os fundamentos da sua pretensão fossem válidos, a Requerente, nos termos do nº 1 do art.º 14º  do CCA, estaria obrigada a apresentar,  no prazo de 90 dias,  a declaração de alteração na matriz da conclusão das construções  efetuadas nos seus prédios rústicos, destinadas a outras atividades que não as agrícolas e silvícolas, o que não demonstrou ter  feito, pelo que deve considerar-se que a Requerente não logrou afastar a presunção da data de conclusão das obras que resulta das licenças de utilização.

Ora, como ficou provado, a declaração para inscrição na matriz dos prédios urbanos omissos apenas foi apresentada a 17 de março de 2011, com a menção de que as construções terminaram a 01 de janeiro de 1936, segundo vem afirmado a pag. 25 do Relatório da Inspeção Tributária, apesar de benfeitorias posteriores,  afirmação não contestada pela Requerente.

Discordando da eliminação desses registos contabilísticos, o despacho do Chefe da Divisão dos Serviços de Inspeção Tributária, de 29/12/2019, refere, a pg. 2 do Relatório de Inspeção Tributária, ter a Requerente  violado indiscutivelmente  as obrigações contabilísticas e de conservação de documentos reguladas, além de no art.º 44º,  nos arts. 51º e 52º todos do CIVA, o que a Requerente viria a reconhecer ao requerer e obter o benefício da redução da coima.

 Na verdade, como já se referiu, os 10 anos referidos no nº 1 do art.º 52º, como resulta do nº 2 do mesmo artigo, que remete para a alínea d) do nº 1 do art.º 50º,    contam -se, no caso do registo de despesas e operações ligadas a bens de investimento, apenas a partir da  data  da última regularização exigível e não a partir da data de cada concreto registo.

A inobservância daquele regime constitui infração, punível  nos termos do nº 1 do art.º 122º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT). Esta infração foi reconhecida pela Requerente no período de tempo em que decorreu a inspeção, pois solicitou, nos termos da alínea c) do nº 1 do art.º 29º desse Regime, a redução para 75 % da coima aplicada, sem invocar quaisquer razões acidentais para a omissão em que incorreu, que pudessem excluir a sua responsabilidade contraordenacional.

Os  deveres violados constituem caraterísticas essenciais do sistema comum do IVA.

O nº 2 do art.º 22º da 6ª Diretiva (reproduzido pelo art.º 242 º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28/11/2006, integrado no Capitulo IV do Título XI dessa Diretiva, sobre as obrigações contabilísticas dos sujeitos passivos) vincula os Estados membros a obrigar os sujeitos passivos do imposto à organização e posse de uma contabilidade suficientemente pormenorizada, de modo a permitir a aplicação do IVA e a sua fiscalização pela Administração Tributária.  Este dever de resultado está refletido, no que concerne ao IVA relativo a despesas de investimento em imóveis, em particular nos mencionados artºs. 44º, 50º e 51º do CIVA. 

Os nºs 3 a 4 daquele art.º 22º estabelecem outras obrigações para os Estados membros: determinarem os sujeitos passivos a emitir uma fatura ou um documento que a substitua, de acordo com os requisitos previstos no nº 3, em relação à entrega de bens, às prestações de serviços e pagamentos por conta efetuados, a conservarem um duplicado de todos os documentos emitidos, apresentarem uma declaração periódica contendo todos os dados necessários ao apuramento do montante do imposto exigível e das deduções a realizar e a pagarem o imposto aquando da apresentação da referida declaração periódica. Estas obrigações constam do já referido nº 2 do art.º 19º e das alíneas b) e c) do nº 1 do art.º 29º, todos do CIVA.

Relativamente ao regime de regularização do art.º 24º, o nº 1 do art.º 51º do CIVA obriga os sujeitos passivos que possuam contabilidade organizada para efeitos de IRS ou IRC, ou nos termos do nº 2 do art.º 50º, a efetuar registo dos seus bens de investimento de forma a permitir também o controlo das deduções efetuadas e regularizações processadas.

 Segundo o nº 2 dessa norma, o registo pormenorizado a que se refere o n.º 1 deve comportar, para cada um dos bens, os seguintes elementos:

a)            data da aquisição ou da conclusão das obras em bens imóveis e do início da utilização ou ocupação, cuja indicação é, como se referiu, absolutamente necessária  para efeitos da contagem do prazo de regularização a que se refere o nº 2 do art.º 24º do CIVA;

b)   valor do imposto suportado, constante da fatura de aquisição do bem que, no termos do nº 2 do art.º 19º  do CIVA, é o documento de suporte da dedução;

c) a percentagem de dedução em vigor no momento da aquisição, quando os sujeitos passivos realizem conjuntamente e sem contabilização separada operações sujeitas e isentas de IVA;

d) o somatório das deduções efetuadas até ao ano da conclusão das obras em bens imóveis, para efeitos do cumprimento do art.º 24º;

e) a percentagem definitiva de dedução do ano da aquisição ou da conclusão das obras em bens imóveis, em caso de não utilização do método de afetação real, nos termos do art.º 23º, a comparar com a percentagem definitiva dos períodos posteriores, até ao termo do prazo de regularização;

f) a percentagem definitiva de dedução de cada um dos anos do período de regularização.  

 Segundo o nº 3, o registo a que se referem os nºs anteriores deve ser efetuado no prazo constante dos art.ºs  45.º e 48.º, contado a partir da:

-   data da receção da fatura que certifique a aquisição;

-  data da conclusão das obras em bens imóveis;

-  data em que devam ser processadas as regularizações.

Como se referiu, nenhum desses elementos, que permitiriam um controlo eficaz da dedução até ao termo do período de regularização, foi disponibilizado à Administração Tributária, em virtude da opção do sujeito passivo eliminar sem fundamento legal a sua contabilidade até 2007.

A exigência da organização e posse dessa  contabilidade, bem como dos registos específicos aplicáveis à dedução das despesas em bens de investimento,  mantém-se, enquanto for necessária a   prova dos pressupostos  do direito à dedução que, como refere Patrícia Noiret Cunha (ob. cit.,pg. 331), pode ou não, ser livremente exercido  pelo sujeito passivo, sem outras consequências para além de a não dedução  o poder afetar financeiramente, pelo que a prova dos seus pressupostos constitui um verdadeiro ónus legal. Tais caraterísticas do direito à dedução resultam dos artºs. 168º e 169º  da Diretiva   2006/112/CE.

Neste sentido, decidiu o Tribunal de Justiça Europeu (TJUE)em 31 de Janeiro de 2018, no proc. n.º C-664/16 que:

A Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, nomeadamente os seus artigos 167.o, 168.o, 178.o, alínea a), e 179.o, bem como os princípios da neutralidade do imposto sobre o valor acrescentado e da proporcionalidade, devem ser interpretados no sentido de que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o sujeito passivo que não pode fazer prova do montante do IVA que pagou a montante, mediante a apresentação de faturas ou de qualquer outro documento, não pode beneficiar do direito à dedução do IVA apenas com base numa estimativa resultante de uma peritagem ordenada pelo órgão jurisdicional nacional.

Tal jurisprudência, é, assim, incompatível com a possibilidade de o direito  à dedução poder ser baseado em meros indícios, presunções ou outro tipo de prova  indireta, quando o sujeito passivo tiver inviabilizado a possibilidade de prova direta desses pressupostos.

Ainda no mesmo processo concluíra o Advogado Geral no mesmo sentido, no n.º 85 das suas Conclusões Gerais, nos seguintes termos:   Assim, nas circunstâncias do processo principal, o princípio da neutralidade fiscal não pode ser legitimamente invocado por um sujeito passivo que pretende pôr em perigo o funcionamento do sistema comum do IVA, por não manter os registos exigidos nos termos da Diretiva IVA durante um longo período.

 É óbvio que ao não guardar os documentos exigíveis relativos ao relativamente longo período de tempo em que foram efetuadas as deduções, a Requerente pôs em risco, ainda que negligentemente, o funcionamento do imposto, inviabilizando o conhecimento pela Administração Tributária dos requisitos dessas deduções, a serem mantidos durante todo o período de regularização.

Em contrapartida, o nº 1 do art.º 75º da Lei Geral Tributária garante a presunção de verdade das declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como dos dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita quando estiverem organizadas de acordo com as normas comerciais e fiscais, sem prejuízo dos demais requisitos exigidos para a dedutibilidade dos gastos. Este regime representa, pois, para o contribuinte evidentes vantagens de previsibilidade e segurança. No caso das faturas, o direito à dedução apenas pode não ser reconhecido em caso de indícios fundados de simulação da operação tributável ou de falta de veracidade do declarado que cabe à administração fiscal demonstrar.

Mas obviamente esse valor probatório da documentação do contribuinte depende da regularidade da sua escrita e respetiva documentação de suporte, cessando em caso de inexistência desses elementos.

Com efeito, caso esses dados e apuramentos sejam devidamente contabilizados, é, na verdade, à Administração Tributária que compete   demonstrar os indícios que ponham em causa a sua veracidade: os artºs. 349º e 350º do Código Civil dispensam de provar o facto presumido quem tem a seu favor uma presunção prevista na lei.

Aquela presunção cessa apenas quando, embora estando a escrita ou contabilidade organizada de acordo com a lei, enferme de erros ou inexatidões, ou haja indícios fundados de que, apesar da sua correta organização, não reflete a matéria tributável efetiva; ou seja, quando a Administração Tributária disponha de elementos suscetíveis de pôr em dúvida a existência e quantificação do facto presumido, nos termos do nº 1 do art.º 74º da LGT, que terá fundamentadamente de invocar e  demonstrar.

É essa presunção, obviamente, extensiva aos elementos contabilísticos refletidos no Livro do Razão e sintetizados no balancete, incluindo os relativos às imobilizações em curso aquando da sua organização.

Estes registos contabilísticos   não constituem   simples formalidade, livremente substituível, à vontade do sujeito passivo, por outros meios de prova como pretende a Requerente,  antes são absolutamente necessários,   não apenas para efeitos de IVA, já que de outro modo  não seria possível um  controlo eficaz do direito à dedução do imposto suportado na aquisição de bens de investimento ou em obras em imóveis, mas igualmente  para efeitos da verificação da  aplicação do Decreto Regulamentar  nº 25/2009, de 14/9  e seus antecessores, que contém o Regime de Depreciações e Amortizações para efeitos de IRC, incluindo o  Mapa modelo 32, aprovado pelo nº 1 do art.º 3º da Portaria nº 92-A/2011, de 28/2, a integrar no Dossier Fiscal (nesse sentido, ver o referido Código do IVA anotado”, pg. 179, não havendo notícia que a posição aí sustentada tenha sido alterada).

Assim, apenas o cumprimento dessas obrigações   permitiria o exato conhecimento da composição do ativo imobilizado das empresas, do qual depende um eficaz controlo desses custos, para efeitos de IVA, IRC e IRS, relativamente aos sujeitos passivos que obtiverem rendimentos de natureza empresarial.

Acerca da importância dos elementos contabilísticos exigidos pela lei – e por maioria de razão, uma vez que se trata de uma situação em que não foi aplicada qualquer contra-ordenação, ao contrário do que sucedeu no caso ora em apreciação – cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Novembro de 2018, proferido no âmbito do proc. n.º 359/16, segundo o sumário do qual Não obstante a falta de apresentação dos documentos de suporte das decisões efectuadas nos anos de 2001 a 2005, solicitados pela AT, não constituir violação de qualquer obrigação do sujeito passivo configurável como contraordenação tributária, dado ter já decorrido o prazo legal de 10 anos para o seu arquivo e conservação em boa ordem (n.º 1 do art.º 52º do CIVA e n.º 1 do art.º 113º do RGIT), essa insusceptibilidade de imputação ao sujeito passivo a título de responsabilidade contraordenacional não é impeditiva do indeferimento do pedido de reembolso, por falta de apresentação dos documentos de suporte das deduções de imposto nesses períodos em que se verificou o excesso determinante do crédito a favor do sujeito passivo (art.º 22º, n.ºs 4, 5, 10 e 11 do CIVA).

E antes, no penúltimo parágrafo deste acórdão, conclui-se o seguinte: E, como acima se deixou dito, cabendo à impugnante (sujeito passivo do imposto) o ónus da prova dos requisitos em que faz assentar o pedido de reembolso (ou seja, a prova da realização das operações tributárias reportadas aos anos de 2001 a 2005 que permitam o invocado direito à dedução do IVA e aos correspondentes crédito de imposto e reembolso) é também ela que deve suportar a consequência jurídica da não apresentação (por terem sido destruídos) dos elementos solicitados pela AT com vista à comprovação daquelas operações, já que, apesar do decurso do prazo legal para arquivo e conservação desses documentos de suporte, só na declaração do período em que cessou a actividade (4º trimestre de 2014) solicitou o reembolso de crédito de imposto referente a tais exercícios (de 2001 a 2004).

No mesmo sentido pronunciou-se recentemente o TCA Norte (em Ac. de 23-04-2020, proc. n.º 0081/14.7BEPRT), segundo o qual III- O artigo 36º do CIVA estabelece determinados requisitos na emissão de facturas ou documentos equivalentes que são condição para a dedução do imposto por parte do sujeito passivo adquirente nos termos do artigo 19º, n.º 2 do mesmo Código. IV- A exigência da observância desses requisitos nos referidos documentos facturas tem como escopo permitir à A.T. o controlo da situação tributária e não apenas obter prova dos factos a controlar, motivo por que as facturas , emitidas de acordo com os termos da lei, constituem formalidade “ad substantiam”, insusceptível de substituição por um qualquer outro meio de prova” .Em sentido totalmente idêntico, milita o mais recente Acórdão também do TCA Norte de 15/4/2021, proc. 01645/09.BEBRG.

Também na decisão do CAAD n.º 469/20-T, se diz a pags 31 que É certo, porém, que como se refere no ponto 44. do acórdão transcrito (Acórdão de 15 de Setembro de 2016, Barlis 06 – Investimentos Imobiliários e Turísticos, C-516/14, EU:C: 2016:690), para a relevância de documentos diferentes de faturas para efeitos do exercício do direito à dedução, “o sujeito passivo é obrigado a apresentar provas objectivas de que os bens e os serviços lhe foram efetivamente entregues ou prestados a montante pelos sujeitos passivos, para fins das suas próprias operações sujeitas a IVA, e relativamente aos quais tenha efetivamente pago IVA”.  Na jurisprudência do CAAD o Tribunal Arbitral não encontrou qualquer entendimento no sentido da substituibilidade da fatura por qualquer outro meio de prova, sem prejuízo de o CAAD admitir um conceito flexível de fatura coincidente com a jurisprudência do TJUE, de acordo com o qual a inobservância dos requisitos formais do documento não conduz necessariamente à recusa da dedução, se os requisitos substanciais estiverem preenchidos.

Caso os registos,  documentalmente suportados de acordo com as leis comercial e fiscal, se tivessem sido apresentados pela Requerente, teriam a força probatória concedida pelo nº 1 do art.º 75º da LGT.

Porém, nenhum registo contabilístico subsiste relativo à data da conclusão das obras, nem os relativos a outros elementos essenciais para o cálculo da regularização, nem os relativos ao imposto suportado nas faturas que originaram a dedução, a natureza das operações que originaram as deduções, o “pro-rata” nos momentos da aquisição dos serviços e conclusão das obras, a percentagem definitiva da dedução em cada um dos anos da regularização ou o somatório das deduções efetuadas até à pretensa conclusão das obras. Por outro lado, dos documentos oficiais com força probatória, como são as autorizações de utilização, não consta que as obras não tenham sido concluídas nas datas pretendidas pela Requerente.  

Reiteraria, no entanto, a Requerente, que aquilo que os documentos eliminados provariam, caso tivessem sido conservados, pode ser substituído por quaisquer outros meios de prova admitidos em direito, a serem livremente apreciados pela Administração Tributária ou, em sede de impugnação judicial, pelo tribunal.

No n.º1 do Parecer que a Requerente juntou aos autos é dito que, na execução da contabilidade (eliminada) da Requerente não houve o cuidado de retirar da conta Imobilizado em Curso, à medida que o iam sendo, os  edifícios concluídos, que, a seu ver, continuaram a figurar indevidamente nessa conta até à alienação dos bens e a percentagem definitiva da dedução em cada um dos anos da regularização. Imputa, assim, ao seu contabilista da época a causa da regularização efetuada.

No entanto, conforme já se referiu, a contabilização das construções como Imobilizado em Curso está inteiramente de acordo com as datas de emissão das licenças obtidas pela Requerente apenas em 2015, não havendo qualquer indício de que os TOCs da empresa tenham agido incorretamente durante os exercícios abrangidos pela ação inspetiva e mesmo anteriores, ou da ocorrência da infração tipificada no art. 121º do Regime Geral das Infrações Tributárias, aplicável a toda e qualquer violação das obrigações contabilísticas a que os contribuintes estão obrigados

C.3. impossibilidade de dedução do IVA em virtude da não conservação dos documentos que a deveriam suportar

Está, assim, em causa exclusivamente uma questão que é essencialmente de direito: pode a falta total de elementos contabilísticos comprovativos dos pressupostos da dedução do IVA suportado em despesas com bens de investimento ser suprida por quaisquer outros meios de prova admitidos em direito, em especial a prova testemunhal, independentemente da certeza e segurança que ofereçam? A Requerente sustenta que sim, mas a Administração Tributária manteve a essencialidade do formalismo dos art.ºs 50º e 51º do CIVA, o que significa a impossibilidade de comprovação dos pressupostos do direito à dedução com uma prova alternativa que é essencialmente testemunhal.

A jurisprudência nacional das instâncias superiores já referida é no sentido da  essencialidade dos requisitos formais da dedução, que deve ser recusada  quando a  ausência desses elementos não permita um adequado controlo da aplicação  do IVA. Os requisitos formais do direito à dedução são também requisitos substanciais, sendo a falta dos primeiros, quando não suprida atempadamente, fundamento da recusa da dedução.

É o caso da falta de contabilidade e das faturas que a suportam (que de modo algum é confundível com erro contabilístico).

De acordo com esta jurisprudência,        quer haja ou não  responsabilidade contra-ordenacional, mantém-se  o ónus do contribuinte manter, no prazo do nº 2 do art.º 52º do CIVA, a contabilidade e os documentos de suporte das deduções efetuadas, até ao termo do prazo legal de caducidade do direito à liquidação, que, nos termos do nº 3 do art.º 45º da LGT,  coincide com o prazo do exercício do direito à dedução,  ou até ao termo dos 10 anos posteriores à última regularização.

Assim a prova testemunhal requerida pelo sujeito passivo durante o procedimento administrativo em que foi emitida a liquidação, bem como a aplicação de métodos indiretos de prova, não pode substituir a prova documental eliminada (ver o referido Acórdão do STA, proferido no âmbito do proc. n.º 359/16, que se aplica a uma situação praticamente idêntica à discutida na presente causa).

É o que resulta também das regras gerais do ónus de prova, expressas no art.º 342º do Código Civil e no art.º 74º da LGT, apenas inaplicáveis, nos termos do nº 2 deste último, quando os suportes dos documentos necessários à comprovação do direito à dedução já estiverem em poder da Administração Tributária e o contribuinte indique a sua localização durante o procedimento.

Este regime é devido ao carácter rígido e formalista do IVA, de o sujeito passivo destinatário da fatura ser titular do direito de dedução  correspondente, da natureza plurifásica deste imposto e da consequente necessidade de controlo eficaz, por parte da AT, relativamente às operações económicas tituladas por esses documentos, com vista a prevenir e reprimir a fraude e evasão fiscais. Tal carácter rígido e formalista do IVA seria atenuado mas não eliminado pela jurisprudência do TJUE.

Essa doutrina não é recente.

Na verdade,  conforme a jurisprudência continuadamente reiterada  desde o Acórdão do STA de  31/1/2008 proferido no proc. n.º 0902/07, e 15/4/2009, proc.  0951/08. a formalidade de emissão de fatura é “ad substanciam” e não “ad probationem”, o que implica a impossibilidade de substituição por outros meio de demonstração dos direitos do contribuinte de natureza não documental. De outro modo, a emissão da fatura seria mera formalidade descartável, uma mera faculdade do sujeito passivo, que, assim, poderia escolher livremente meios alternativos da comprovação dos pressupostos do direito à dedução. O prejuízo causado pela coima aplicável, quando a responsabilidade contra-ordenacional não tivesse expirado, seria quase sempre muito inferior ao benefício económico obtido pelo infrator através do acesso indevido à dedução.

A possibilidade da substituição da fatura por qualquer outro documento e até por depoimento oral, que é a base da argumentação da Requerente, poria abertamente em causa o funcionamento do sistema de “e- fatura”, assente na fatura eletrónica, introduzido em Portugal, à semelhança de outros países da União Europeia, pelo art.º 1º do Decreto-lei n 197/2012, que, alterando o nº 2 do art.º 19º do CIVA, eliminou a figura do documento equivalente a fatura como base do direito à dedução.

O título do direito à dedução é, assim, sempre a fatura, ou seja, o documento que preencha os requisitos substanciais e formais da fatura e não qualquer outro documento.

Essa possibilidade de controlo não se verifica, como é evidente, quando o sujeito passivo  não dispuser de quaisquer faturas, por não as ter  ou conservado, ou tiver    omitido   ou  ocultado  o registo contabilístico dos factos  constitutivos  do direito à dedução.

Resta saber, como a Requerente dissera no pedido de pronúncia e reitera nas alegações,  se essa orientação jurisprudencial está de acordo com a evolução do  Direito Comunitário, uma vez que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem sustentado a incompatibilidade   com as normas reguladoras  do  exercício   do direito à dedução, a sua recusa  com fundamento em  simples  violação das obrigações contabilísticas e declarativas do sujeito passivo, quando essa sanção  não seja necessária para atingir o objetivo de assegurar a correta aplicação das obrigações  dos Estados membros previstas nessa norma (princípio da adequação ou proporcionalidade).

Para o TJUE, tal sucederia por, nem a 6ª Diretiva, nem atualmente a Diretiva nº 2006/112/CEE, obstarem    a que tais Estados membros, para punir essa violação, apliquem eventualmente, em lugar da recusa da dedução, uma coima ou uma sanção pecuniária proporcionais à gravidade da infração.

Sempre que vierem a  cumpridos pelo sujeito passivo, ainda que tardiamente,  com o limite do termo do procedimento inspetivo,  os requisitos substanciais   do direito à dedução, através da prestação da informação complementar da fatura inicial exigida, caso o Estado membro continue, ainda assim,  a considerar a conduta do contribuinte dever ser sancionada, a sanção da recusa da dedução pode ser substituída por punição pecuniária menos gravosa; no direito fiscal tributário português, a coima, proporcional à gravidade da infração. 

 

Iniciou esta jurisprudência, entre muitos outros, o Acórdão do TJUE de  8/5/2008, Apensos C-95/07 e C-96/07, de acordo com a qual  o princípio da neutralidade fiscal exige  a dedução do IVA a montante e deve  ser concedida desde que  as exigências de fundo sejam  cumpridas, ainda quando os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais (v., por analogia, também acórdão do TJUE de 27/9/2007, proc. C-146/05).

Esse entendimento aplica-se apenas aos documentos que, não preenchendo os requisitos formais da fatura, vierem, uma vez legalmente completados, a preencher os requisitos substanciais da fatura, sendo abusiva a sua extensão a meros depoimentos orais, ainda que transcritos  por escrito,  que não têm qualquer aptidão de substituição da fatura.

É, assim, sempre ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA que incumbe provar o preenchimento de todos os requisitos para dela beneficiar, designadamente dos requisitos formais e substanciais relativos às faturas(v., neste sentido, Acórdão do TJUE de 18/7/2013, proc. C-78/12). As autoridades fiscais podem, assim, exigir ao próprio contribuinte as provas que considerem necessárias para apreciar se há ou não que conceder a dedução solicitada (v., neste sentido também, Acórdão do TJUE de 29/9/2007, proc. C-149/05), o que aconteceria na presente ação inspetiva: simplesmente, a Requerente, até ao termo da ação inspetiva no âmbito da qual foi realizada a liquidação impugnada , não apresentou a prova legal exigida.

 Mais recentemente, o Acórdão do TJUE de 15/9/2016, proc.  C-516/14 reafirmou  a posição tradicional do TJUE, de  que a administração fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelos nºs 6 e 7 do artigo 226º da Diretiva 2006/112, se dispuser de todos os  dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos pelo documento, ainda que seja necessário obter do sujeito passivo obter esclarecimentos adicionais.

Com efeito, segundo os nºs 43 e 44, desse   Acórdão, a Administração Tributária não deve, quando aprecia os pressupostos do direito à dedução, limitar se ao exame da própria fatura.   da fatura. A possibilidade, mais rigorosamente o poder- dever de solicitar informações adicionais   necessárias à decisão do procedimento, vem prevista no art.º 219º da Diretiva 2006/112/UE que equipara a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca.  A expressão em causa pressupõe, assim: uma fatura inicial, no presente caso inexistente, dado o dever de conservação dos documentos relevantes não ter sido cumprido pelo sujeito passivo, e um novo documento ou mensagem que altere a fatura inicial e que apenas tem relevância jurídico- tributária se se lhe referir expressa e inequivocamente. Ora, não há neste caso fatura inicial relativa aos serviços adquiridos pela Requerente e, por esse motivo, também não há documento ou mensagem que a tenha alterado.

É esse o mecanismo aplicável quando do exame da fatura inicial resultem dúvidas sobre a identificação do emitente, a natureza dos serviços prestados e o seu número ou período a que respeitam.

Não se retira, no entanto, dessa doutrina, sob pena de ruir toda a lógica do sistema comum IVA e o sistema de “e fatura” que exigiu dos Estados membros da União Europeia um pesado esforço financeiro e de afetação de meios humanos e materiais, que o direito à dedução possa ter por fundamento meros esclarecimentos verbais do sujeito passivo, ainda que vierem a ser transcritos por escrito, ou possa ser reconhecido por meio de procedimento informal.

É verdade que a alínea e) do art.º 16º do RJAT enuncia, entre os princípios do processo arbitral, a livre apreciação dos factos e a livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros, mas essa norma reporta-se apenas à instrução do processo arbitral, não derrogando as normas dos códigos e leis tributárias que estabeleçam a obrigatoriedade da prova documental ou outros tipos de prova legal, em especial as que estabelecem que os requisitos formais da fatura são também requisitos substanciais do direito à dedução. Tal interpretação é inconcebível, face às caraterísticas do sistema comum IVA.

Outros Acórdãos do TJUE são invocados pela Requerente, mas sem qualquer relação com os fundamentos do presente pedido de pronúncia arbitral, como facilmente se pode explicita, a não ser na medida em  que admitem, o que não está em causa no presente processo, a flexibilidade dos pressupostos do direito à dedução de uma fatura ter uma função documental importante, pelo facto de poder conter dados controláveis, no contexto de  autoliquidação, já que é  precisamente com base em dados controláveis que o sujeito passivo, destinatário de um fornecimento ou de serviços, deve ser considerado devedor, e qual o montante de IVA devido, a verdade é que ,uma vez que a administração fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário da prestação em causa, devedor do IVA, não pode impor, no que se refere ao direito do referido sujeito passivo à dedução do IVA, condições adicionais que podem ter como efeito a impossibilidade absoluta do exercício desse direito, como seria a menção do IVA na fatura, o que teria como consequência que um sujeito passivo fosse, por um lado, devedor do IVA em causa enquanto destinatário dos serviços, mas corresse o risco, por outro, de não poder deduzir esse imposto

Esse Acórdão é aplicável em situações de “reverse charge”, em que o sujeito passivo é simultaneamente devedor do imposto, e não a situações como a presente em que o sujeito passivo não é devedor do imposto, mas um terceiro, ao qual o imposto é liquidado, limitando-se a afirmar que, nos casos de “reverse charge”, o direito à dedução não depende de a fatura que serve de base à autoliquidação mencionar o IVA, do que resulta os Estados membros não poderem subordinar o direito à dedução ao cumprimento desse requisito formal adicional.

Assim, no caso de autoliquidação, a fatura com base na qual o sujeito passivo auto líquida o imposto não tem de referir o IVA. Tal não prejudica a obrigação de o devedor do imposto conservar a fatura para efeitos de um adequado controlo da administração fiscal. Tal Acórdão, assim, não nega, mas confirma a essencialidade da fatura.

Não é aplicável também ao  caso a doutrina do   Acórdão   do  TJUE de 8/5/2008, Apensos C 95/07 e C 96/07, que versou  sobre se a 6ª  Diretiva, atualmente Diretiva 94/99, se opõe a uma prática de retificação e de cobrança que pune uma irregularidade contabilística, que,   também em contexto de regime de inversão do ónus de liquidação (“reverse charge”), consiste apenas na incorreta inscrição das transações  apenas num registo de   aquisições e não num registo específico  de faturas, com a recusa do direito à dedução. 

Tal Acórdão, na linha da jurisprudência enunciada, entendeu que o direito nacional não pode recusar o direito à dedução com fundamento no incumprimento pelo devedor do imposto do dever de organização  de um registo específico das  faturas emitidas , que não seria necessário ao controlo do imposto. Não se vislumbra onde se possa amparar a tese de a fatura não ser um requisito essencial da dedução do IVA. O que não é necessário ao controlo do imposto é o registo específico de um dado grupo de faturas, não a emissão destas.

 

Na verdade, também na própria legislação nacional, no nº 1 do art.º 44º do CIVA, uma mera irregularidade contabilística não afeta  o direito à dedução, desde que a contabilidade continue a conter elementos que permitam um conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto.

Segundo o nº 50 do já referido  Acórdão C- 332/15, a luta contra a fraude, a evasão fiscal e eventuais abusos é um objetivo reconhecido e incentivado pelo sistema comum IVA  e o Tribunal de Justiça declarou repetidas vezes que os particulares não se podem prevalecer fraudulenta ou abusivamente das normas do direito da União. Em especial, como prossegue  o nº  56 do Acórdão, A falta de entrega da declaração do IVA, tal como não dispor de contabilidade, que permitiriam a aplicação do IVA e a sua fiscalização pela Administração Fiscal, e a falta de registo das faturas emitidas e pagas são suscetíveis de impedir a exata cobrança do imposto e, por conseguinte, de comprometer o bom funcionamento do sistema comum do IVA.

Deve, assim, considerar-se que, segundo esta jurisprudência, a ausência de contabilidade, tal como a falta de registo das faturas emitidas e pagas, prejudicam  necessariamente um controlo efetivo do direito à dedução. Consequentemente, o direito da União não impede os Estados-Membros de equipararem tal incumprimento, incluindo a ausência de contabilidade,  ao abuso ou fraude  e de, nesse caso, recusarem o direito a dedução, como foi o caso da Administração  Tributária portuguesa, ao liquidar o IVA objeto do presente processo de pronúncia arbitral (v., por analogia, acórdão  do TJUE de 7/10, pro. 285/09).

 

A impossibilidade  de a Administração Tributária avaliar  com segurança   que os requisitos substanciais  da dedução foram preenchidos resulta, assim,   como já amplamente referido,  do incumprimento pela Requerente da obrigação de manter a faturação e os registos contabilísticos previstos no nº 2 do art.º 51º, do CIVA, requisitos  que a Requerente pretende  provar testemunhalmente  (através de antigos colaboradores ou pessoas próximas) e  complementar com outros factos ou afirmações, sem  a certeza da prova documental.

No sentido de que a jurisprudência do TJUE anteriormente citada não é incompatível com o carácter formalista do direito à dedução do IVA, que, aliás, pressupõe,  ver Miguel Agrellos, Paulo Pichel e João Ascenso, “Ainda sobre as Formalidades das  Faturas: Análise da Jurisprudência dos Tribunais Portugueses” , Cadernos de IVA, 2016, pgs. 269 de sgs.).  A própria declaração pela qual o contribuinte completa a fatura é um documento com a mesma certeza e segurança da fatura.

Tão pouco a Administração Tributária dispõe de quaisquer elementos sobre a data que, para efeitos do regime de regularização do art.º 24º, deve ser precisa, da conclusão das obras, já que a mesma não foi provada documentalmente.

 

 Ainda que o acabamento de várias construções, salvo o posto de transformação, pudesse ser considerado conclusão de obras separadamente da conclusão do projecto, a Requerente, além de não refletir na contabilidade essa conclusão, não demonstrou o  cumprimento do dever de obtenção de autorização de utilização, bem como do dever de atualização das matrizes prediais,  imposto pelo nº 1 do art.º 14º do CCA e  pelo nº 1 do art.º 13º do CIMI. Tão pouco pôde a Administração  Tributária aceder aos restantes  dados que a Requerente devia possuir nos termos desse nº 1 do art 52º do CIVA,  que são essenciais ao cálculo da dedução, não se vendo como este possa ser efetuado sem esses elementos.

O comportamento da Requerente impossibilitou, assim,  o controlo das deduções e regularizações e  da aplicação do regime do art.º 24º, da qual abstratamente poderiam resultar , ou deduções suplementares favoráveis, ou, como, o que aconteceu neste caso, liquidações adicionais resultantes de ajustamentos a favor do Estado que a Requerente, com a sua conduta, inviabilizou ou  retardou.

Acresce ainda a circunstância de serem os mesmos os administradores da Requerente e da adquirente da Herdade, a  D..., SA. A interligação entre as duas empresas e a confusão entre elas é de tal monta, que a testemunha, Sr. F..., é identificada no n.º 73º do pedido de pronúncia arbitral como encarregado da Herdade E... entre 1989 e 2010, o que condiz com as declarações prestadas a quando do exercício do direito de audição ( pgs. 27 e 28 do RIT); porém, a Requerente, antes, no n.º 30º do mesmo documento, afirmara o seguinte: Aquando da aquisição da Herdade, G... contratou como encarregado geral F..., mantendo essa sua função até à venda da herdade em 2015… E, surpresa, no final, ao indicar as testemunhas, o mesmo é encarregado geral da Herdade entre 1988 e 2012. (realçado nosso).

E o mesmo sucede com a testemunha H...,  convocado  no n.º 73º do ppa como  encarregado geral do grupo D... desde 1979 a 2013, mas que na indicação das testemunhas é identificado como “encarregado responsável pela maquinaria e motorista de G... nas deslocações frequentes entre Lisboa e a Herdade, Rua ..., ..., ..., ...-... ..., … (realçado nosso).

 

Assim, o Tribunal ficou sem saber quem de facto foi o encarregado geral da Herdade, em que anos e com que funções, o que, à partida, põe em causa a exatidão do testemunho prestado. É um exemplo da incerteza e insegurança de que revestira um regime de dedução apoiado exclusiva ou essencialmente  na prova testemunhal e que avisadamente a Diretiva IVA e o TJUE entenderam rejeitar. Ainda que essa prova fosse abstratamente admissível, o que o tribunal não pode aceitar , é, pelos menos, altamente duvidoso  que tivesse sido feita.

Também a mera existência de contrato com o Estado português, celebrado em 18/08/1992, de que eram partes a Requerente e outras entidades (formando um agrupamento de produtores florestais), no contexto de um projeto de investimento florestal (PAF 015/20009), destinado a arborização e infraestruturas florestais, construção e beneficiação de caminhos florestais, execução de aceiros e construção de pequenas barragens (cf. p. 106 do Doc. 8 junto ao PPA) ao abrigo do qual foram emitidas faturas emitidas pelo  fornecedor D..., SA não substitui o cumprimento das obrigações contabilísticas  do sujeito passivo durante todo o período de regularização, durante o qual os pressupostos das deduções iniciais deveriam ter sido mantidos, o que  não aconteceu e  constituiu um dos fundamentos  da liquidação impugnada . 

É, com efeito, requisito do direito à dedução uma relação desta direta e imediata com as operações tributadas,  expressa no preço das operações(TJUE procs. C-4/94 [1995], C-98/98  e  C-408/98), não se verificando esse direito quando a relação seja com operações isentas ou fora do campo do imposto.

Segundo o nº 21 desse Acórdão, no que respeita a 2.° da Primeira Diretiva, só o montante do imposto que tenha diretamente onerado o custo dos diversos elementos constitutivos do preço de uma operação sujeita a imposto pode ser deduzido.

Tal relação a Requerente, ao não ser conservado a contabilidade, não provou.

 

Não é substitutiva da posse da documentação necessária a mera referência em um sítio da INTERNET através do qual teria divulgado a promoção de caçadas. Indispensável seria provar pela sua documentação o número de caçadas disponibilizadas,  a respetiva data   e o preço que cobrou, condição para poder deduzir o IVA que onerou o custo das operações, o que a Requerente não fez, comprometendo o direito à dedução.

Conclui-se, assim, por um abismo incontornável entre o concreto teor da jurisprudência do TJUE e as conclusões que dela pretende extraír a Requerente: os requisitos substanciais das faturas não são suscetíveis de “dispensa”, em nome de uma abstrata verdade material.

Ao contrário do que a Requerente  afirma , o carácter rígido e formalista do IVA, que   se reflete no direito à dedução, ainda que atenuado, continua de pé.

 

 C.4. Não violação do regime do ónus de prova, do inquisitório e da proporcionalidade

O Tribunal não vê como a interpretação em que se baseou a liquidação impugnada das normas do IVA sobre o direito à dedução possa ter violado o regime de repartição do ónus de prova contido no nº 1 do art.º 74º da LGT, como a Requerente afirma no ponto 3.2. do pedido de pronúncia.

O ónus de prova dos pressupostos da liquidação impugnada depende do pressuposto de  o contribuinte dispor de registos  contabilísticos que especifiquem, conforme a natureza dos bens,  as deduções efetuadas  e as regularizações feitas.

O ónus de prova de a administração tributária demonstrar a existência e quantificação do fato tributário inverte- se em caso de a dúvida sobre a ocorrência desses elementos resulte do incumprimento dos deveres de cooperação do contribuinte, quer deste resulte a aplicação de métodos indiretos, como prevê expressamente o nº 2 do art.º 110º do CPPT, quer quando a situação tributária do contribuinte possa ainda ser apurada com base em métodos diretos. 

 

Em caso de inexistência total desses registos contabilísticos e documentos de suporte, com a consequente impossibilidade de a Administração  Tributária proceder ao controlo adequado da aplicação do imposto, o direito à dedução pode legitimamente ser recusado.

Como afirmam Alexandra Martins e Lídia Santos (  pag. 238 do Código do IVA com notas e comentários, coord. Por Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos) em II, n.º 2 do Comentário ao art.º 19º, A exigência de fatura como condição para a dedução do IVA erige-a em formalidade “ad substantiam”, o que significa que, para a prova dos correspondentes factos, a mesma não pode ser dispensada nem substituída por outros meios de prova, atento o disposto no art. 607º/5 do CPC.

Note-se que, para essas autoras, esta exigência decorre igualmente do regime comunitário, ao arts. 220º e 178º/a) da DIVA não só impõem aos sujeitos passivos a obrigação de emitir uma fatura, como determinam, para efeitos do exercício do direito a dedução no regime interno, que estes possuam uma fatura emitida nos termos preceituados pela DIVA.

E como se afirma ainda  na ob. cit. Na pag. 340, em comentário ao art.º 36º de Cidália Lança, As faturas que contenham os elementos obrigatórios previstos no CIVA consideram-se passadas na forma legal para efeitos do exercício do direito à dedução, sendo entendimento do TJUE que os Estados membros só podem associar o exercício do direito à dedução à observação de condições relativas ao conteúdo das faturas expressamente previstas na DIVA. Não obstante, de acordo com a jurisprudência daquele Tribunal, o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA seja concedida se os requisitos substantivos tenham sido cumpridos, mesmo se os sujeitos passivos tiverem negligenciado certos requisitos formais.

 

Permitimo-nos salientar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu exige que os requisitos substanciais das faturas, em todos os casos, tenham sido cumpridos. Apenas não prejudicam o direito à dedução os requisitos formais adicionais aos requisitos substanciais, exigidos na legislação interna de cada Estado membro.

 

Entre esses requisitos substantivos, a incluir na fatura inicial  ou no documento ou mensagem   complementar que a devam substituir  ou completar ,  referido no art.º 219º da Diretiva IVA , figura a identificação-dos elementos constitutivos do direito à dedução, incluindo a  identificação do prestador, preço, natureza  e o número dos serviços prestados e, se for o caso,  o período a que respeitam.

Ao contrário da alínea a) das conclusões do Parecer junto pela Requerente, onde se afirma que a Administração  Tributária em vez do procedimento adotado deveria ter procedido a avaliação indireta, nos termos da LGT, com a colaboração do contribuinte, no sentido de apurar, recorrendo a meios gerais de prova, relativamente a que despesas com bens imóveis teria eventualmente podido, sem violar a lei, exigir regularização, a  recusa da dedução não depende  da   aplicação de métodos indiretos, como também não depende da prévia aplicação  desses métodos o não reconhecimento de qualquer custo fiscal não documentalmente provado. Tal custo é excluído, ainda que sejam aplicados métodos diretos.

O recurso aos métodos indiretos não é um meio de o contribuinte obter o reconhecimento  de deduções ou custos que não provou documentalmente ( Acórdão do STA de 27/10/99, recurso nº 23.768, comentado por Saldanha Sanches em “Um direito dos contribuintes à tributação indireta?”, Fiscalidade, Abril de 2000, pgs. 123 e sgs.), mas um direito da Administração Tributária proceder à tributação nas circunstâncias previstas no art.º 88º da LGT, ou seja, em caso de impossibilidade de apuramento da matéria tributável real do contribuinte.

A recusa do direito à dedução, ainda no âmbito da tributação direta, é a consequência lógica e necessária do incumprimento do ónus do sujeito passivo manter o registo contabilístico adequado das deduções e regularizações, que imprudentemente eliminou.

De acordo com o art.º 60º do pedido de pronúncia, perante a dúvida suscitada pela indisponibilidade de elementos contabilísticos reconhecida pela Requerente, teria a Administração Tributária aplicado indevidamente   o princípio “in dubio pro fisco”, o que quer dizer que continuaria obrigada a provar os factos que fundamentam a liquidação.

Sucede que essa dúvida não existe: está claramente resolvida na lei. Em caso de incumprimento do dever de prova legal dos seus pressupostos, o direito à dedução é recusado.

Também o ato impugnado foi suficientemente fundamentado. O dever de fundamentação regulado no nº 1 do art.º 77º da LGT não impõe uma explicação exaustiva dos motivos do ato, sendo suficiente uma exposição sucinta das razões de facto e de direito que o justificam, bastando, assim, para o efeito,  a ausência de registos contabilísticos legalmente obrigatórios  das deduções e regularizações efetuadas não imputável a razões acidentais. Porém, o Relatório da Inspeção Tributária vai muito para além dessa exposição sucinta.

Mas a falta de fundamentação apenas determina a nulidade do ato quando este seja de todo omisso relativamente à sua justificação de facto e de direito, ou quando a  fundamentação de facto ou de direito seja  insuficiente, em termos que não permitam ao destinatário  do ato a perceção das  razões de facto e de direito  da sua emissão, o que não resulta de todo do texto do pedido de pronúncia.

Do mesmo modo, inexistiu na formação do ato impugnado    violação do princípio do inquisitório, alegada no ponto 3.3. do pedido de pronúncia, porque esse princípio não impõe uma investigação detalhada e completa dos pressupostos de facto da decisão a adotar. A prevalência desse entendimento, de que o incumprimento do ónus de prova continuaria a obrigar a Administração Tributária à prova dos factos, além de esvaziar esse mecanismo legal,  paralisaria a eficácia da atividade administrativa, obrigada que ficaria a uma demonstração exaustiva dos pressupostos da sua atuação  dentro do prazo de caducidade do direito de regularização  (Pedro Vidal Matos, “ O princípio do inquisitório no procedimento tributário”, Coimbra, 2010, pg. 89) e é incompatível com as desejáveis eficiência e praticabilidade do sistema fiscal. 

 

Não é aplicável a doutrina do Acórdão do STA de 21/10/2009, processo 03/09, que coloca a aplicação do princípio do inquisitório a montante do ónus de prova.

Na verdade, a aplicação das regras sobre o ónus de prova pressupõe uma fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, após a realização das diligências indispensáveis à descoberta da verdade material de acordo com o princípio do inquisitório.

Não é, assim, no entanto, em caso de incumprimento de dever de prova legal, em que o princípio do inquisitório tem essencialmente por objeto a confirmação desse incumprimento.

Tal Acórdão não se refere ao incumprimento de um ónus legal previsto no nº 2 do art.º 19º do CIVA, mas à prova do cumprimento de uma obrigação do pagamento do imposto, que é admissível de acordo com os meios gerais de direito.

 

A decisão sobre a prova assenta em um juízo racional e justificado sobre a falsidade ou veracidade dos factos, que pode ser concisamente formulado, como foi no presente caso, a partir do incumprimento pelo contribuinte do dever de conservação de elementos  essenciais à comprovação do exercício do direito de dedução, como são as faturas e registos contabilísticos devidos, não  sendo obrigatória a realização de diligências exaustivas não essenciais à formação desse juízo.

De acordo com o anteriormente referido, a Administração Tributária na escolha das diligências a adotar no procedimento inspetivo, atuou com a margem de liberdade prevista na lei, em especial no Regime Complementar de Inspeção Tributária.

Ao efetuar as liquidações atuou estritamente no âmbito de poderes legalmente vinculados, que lhe não concedem qualquer margem de liberdade ou discricionariedade.

Os poderes vinculados exercidos resultam, aliás, do próprio Direito da União e, por não consubstanciarem a violação de quaisquer direitos fundamentais, a sua constitucionalidade, ainda que por violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça, está subtraída ao controlo do Tribunal Arbitral, nos termos do nº 4  do art. 8º da Constituição.

 

C.5. A exceção da caducidade da liquidação do iva com fundamento no abate do imóvel ao ativo imobilizado

Segundo sustenta a Requerente no ponto 3.6. do pedido de pronúncia, o  imposto suportado nas despesas de construção do hotel, segundo ela  legalmente deduzido,  não estaria sujeito a  qualquer regularização,  uma vez  que, aquando da alienação, o prédio objeto das obras não pertencia    já ao seu ativo imobilizado,  com a consequente cessação da utilização com fins empresariais, apesar de essa inscrição contabilística  persistir em tal momento e ter sido mantida até à posterior venda desse bem.

O Ativo Imobilizado é formado pelo conjunto de bens necessários à manutenção das atividades da empresa, caracterizados por apresentarem-se na forma tangível (edifícios, máquinas, etc.) e  abrange também os custos das benfeitorias realizadas em bens locados ou arrendados.

São classificados, ainda, no imobilizado, os recursos aplicados ou já destinados à aquisição de bens de natureza tangível, mesmo que ainda não em operação, tais como construções em andamento, adiantamentos para aquisição de bens em consórcio, importações em andamento, entre outros.

O projeto da construção do hotel teria sido, segundo a Requerente,  abandonado em 2002/2003,  deixando subsequentemente  o  então  edificado   de ter qualquer  valor económico  para a empresa, passando a ser utilizado para fins alheios à mesma.

Os  nºs 1 e 3, alínea f), do art.º 3º  do CIVA   ficcionam a transmissão de bens,  a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade a afetação permanente de bens da empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto.

Tal norma só   não abrange os casos de não utilização dos bens abatidos ao ativo imobilizado ou a cessação de atividade,  caso em que a regularização é efetuada “pro-rata temporis”, segundo o nº 2 do art.º 26º, também do CIVA.

É de salientar, no entanto, ao contrário do que a Requerente sustenta, prevalecer o prazo de caducidade do nº 3 do art.º 45º da LGT, de acordo com o qual, em caso de ter sido efetuada qualquer dedução ou crédito do imposto, o prazo de caducidade é o do exercício desse direito. Uma vez o crédito do imposto persistir ainda aquando da liquidação impugnada, não procede, no nosso entendimento, a exceção da caducidade: o direito à liquidação do IVA, sob pena de essa norma da LGT não ter qualquer sentido útil, persistiu enquanto se manteve o crédito do imposto. 

Prosseguiu a Requerente dizendo que, mesmo que se entendesse que o bem   abatido ao ativo imobilizado se   manteve apenas  numa situação  de não utilização até à venda, sem que verdadeiramente   tivesse  sido abatido ao ativo imobilizado, aplicando-se então o disposto  o nº 2 do art.º 26º ,  a regularização das deduções, de acordo com essa norma,  apenas poderia ser  anualmente, “pro rata temporis”,  a partir do ano da cessação da utilização, com o limite de 19 anos, só podendo, assim, abranger o exercício de 2015.

Não se vislumbra, no entanto, como essa norma fosse suscetível de aplicação ao hotel cuja construção ainda não tinha sido terminada aquando da venda e era, assim, insuscetível de utilização para os fins a que se destinava.

Até à venda, o imóvel continuou, assim, formalmente no ativo imobilizado da Requerente, segundo a contabilidade desta.

Tal contabilidade faz fé, nos termos do citado nº 1 do art.º 75º da LGT.

Essa contabilização no ativo imobilizado foi um procedimento irrepreensível dado o chamado “esqueleto” do hotel manter valor económico ainda subsistente do bem.

Obviamente, ainda que a Requerente tivesse desistido, em 2002/2003, da conclusão do empreendimento turístico, não desistiu certamente de alcançar benefícios económicos com a venda, que efetivamente veio a obter em 2015, pelo que a subsistência desse bem no ativo imobilizado até esse ano presume-se justificada.

O abandono pela Requerente do propósito da construção e  eventual afetação do imóvel a fins alheios à atividade da empresa que ela reclama  não foi, aliás, jamais  refletido na contabilidade  da Requerente.

Também a Requerente não juntou qualquer decisão dos seus órgãos de gestão que declarasse tal intenção É de salientar ainda que a imparidade invocada pela Requerente não tem, ao contrário do que pretende, reflexo no direto à dedução, no sentido do afastamento das obrigações reguladas no art.º 24º do CIVA.

Não foi nem podia ser refletida na sua contabilidade.

Segundo o nº 63 da NCRF 7, para determinar se um item do ativo fixo tangível está ou não com imparidade, uma entidade aplica a NCRF 12. Esta Norma explica como uma entidade revê a quantia escriturada dos seus ativos, como determina a quantia recuperável de um ativo e quando reconhece ou reverte o reconhecimento de uma perda por imparidade.

De acordo com o nº 65 da NCRF 7, as imparidades de itens do ativo fixo tangível são reconhecidas de acordo com a NCRF 12, com a exceção do desreconhecimento de itens do ativo fixo tangível retirados de uso ou alienados, que são determinados de acordo com  a NCRF 7.

Nos termos do nº 66 da mesma Norma, a quantia escriturada de um item do ativo fixo tangível apenas deve ser desreconhecida:

a) no momento da alienação; ou

b) quando não se espere futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação.

Ora, o hotel em causa jamais deixou de ter valor económico, como prova o facto de ter sido vendido. Seria sempre infundada, e não foi refletida na contabilidade do sujeito passivo, a inexistência de qualquer expectativa de não obtenção pura e simples de futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação. A ter sido contabilisticamente registada, falsearia a realidade económica da empresa.

Também não tem qualquer aplicação, por inexistência de caso análogo, a doutrina do Acórdão do TJUE de 29/2/96, proc- C-110/94, que interpretou o art.º 4º da 6ª Diretiva no sentido de que, quando a Administração Tributária admitiu a qualidade de sujeito passivo do IVA de uma sociedade que declarou a sua intenção de iniciar uma atividade económica que daria origem a operações tributáveis, a encomenda de um estudo de rentabilidade para a atividade projetada pode ser considerada uma atividade económica na aceção desse artigo, para efeitos do exercício do direito à dedução, mesmo que esse estudo tenha por objetivo analisar em que medida a atividade projetada é rentável, e que essa atividade, consequentemente a tal estudo, não tiver sido iniciada.

A causa da regularização da 2ª parte do  nº 5 do art.º 24º do CIVA não foi, com efeito, a desistência posterior do investimento, irrelevante  em si mesma para a regularização do direito à dedução, mas o facto de o bem de investimento ter sido vendido com a isenção prevista no art.º 9º, n.º 30, do CIVA. A regularização não seria possível nos termos da 2ª parte dessa norma legal, caso o bem imóvel tivesse tido vendido com IVA, em virtude da renúncia à isenção pelo sujeito passivo nos termos da legislação aplicável, que, no entanto, optou por não utilizar, não obstante o nº 5 do art.º 12º do CIVA o permitir, desde que estivessem reunidos os necessários pressupostos legais, em especial na pessoa do adquirente do imóvel.

 

V. Decisão

Termos em que, o Tribunal decide:

1.            Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter na ordem jurídica as liquidações adicionais identificadas supra, no montante total de  € 1.374.177, 36 (um milhão, trezentos e setenta e quatro mil e cento e setenta e sete euros e trinta e seis cêntimos);

2.            Condenar a Requerente nas custas do processo, dada a improcedência total do pedido.

 

VI. Valor do processo

 Fixa-se o valor do processo em € 1.181.428,42 (um milhão, cento e oitenta e um mil, quatrocentos e vinte e oito euros e quarenta e dois cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT)

 

VII.  Custas

De harmonia com o disposto no art.º 5º do RCPAT e da Tabela II anexa ao referido diploma, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €60.000,00 (sessenta mil euros)

 

Notifique-se.

Lisboa, 11 de outubro de 2021

 

 

Árbitro presidente

 

Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros

 

Árbitro adjunto

 

Professora Doutora Clotilde Celorico Palma

(vencida conforme declaração junta)

 

Árbitro adjunto

 

Dr. António de Barros Lima Guerreiro

 

 

Voto de Vencida

 

 

     Não podemos rever-nos nos termos e conclusões da presente Decisão, cujo relator foi o Dr. António Lima Guerreiro, pelos motivos e fundamentos que passamos a expor.

 

 

I.             Observações gerais

 

Em termos globais não posso concordar com a presente Decisão dada a forma incorrecta com que são dados factos como provados, bem como as incorrectas interpretação e aplicação do enquadramento jurídico em causa e aplicação e chamada à colação da jurisprudência essencial para o efeito.

 

1.            Desde logo, os factos provados não estão correctos inquinando as conclusões, não se tendo sequer valorizado a extensa prova testemunhal produzida, pretendendo-se ancorar grande parte das conclusões no facto de a Requerente não ter conservado a contabilidade e documentação de suporte para além do período legal de 10 anos previsto no artigo 52.º, n.º1, do CIVA, dando-se como provada a sua “eliminação“ pelo sujeito passivo, fazendo-se inclusive nos factos provados apreciações de direito neste contexto.

 

2.            Por outro lado, não se procede a uma correcta interpretação e aplicação das normas legais em apreço.

 

3.            Acresce que tão pouco se trás adequadamente à colação a jurisprudência mais relevante para o efeito, mormente a do TJUE e, inclusive, deste Tribunal Arbitral, bem como a mais relevante doutrina, não se retirando sequer as devidas consequências da jurisprudência invocada. O enquadramento jurídico correcto, a jurisprudência e a doutrina em causa estão devidamente evidenciadas no Parecer do Professor José Guilherme Xavier de Basto e da Professora Doutora Maria Odete Oliveira.

 

Assim, em termos gerais, tenho a apontar o seguinte:

 

a) No caso concreto o contribuinte conservou a contabilidade e a respectiva documentação de suporte dentro do prazo legal de 10 anos previsto no artigo 52.º, n.º1, do CIVA. Porém, a AT passados anos e ultrapassado o referido prazo legal, vem entender que tinha obrigação de conservar a documentação para além deste prazo nos termos do estatuído no n.º2 deste normativo, entendendo que o sujeito passivo tinha que proceder a regularizações. Ora, sucede que o sujeito passivo entende e a nosso ver correctamente, que o referido prazo previsto no n. º2 do artigo 52.º não é aplicável.

 

b) Na presente Decisão, não obstante ao julgador estar claramente vedada possibilidade de inclusão no acervo factual tido por apurado de juízos sobre questões de direito (cfr. artigos. 05.º, 410.º, 412.º, 413.º, 590.º, 607.º, n.ºs 3 e 5, do CPC), conclui-se nos factos dados como provados que “29.A Requerente, durante o período em que decorreu a ação inspetiva, solicitou a redução de 75% da coima que lhe foi aplicada por violação do disposto no n.º 1 do art.º 52º do CIVA, relativo ao prazo de arquivo e conservação da contabilidade e respetivos documentos de suporte, admitindo, assim, que a sua eliminação se deveu a uma conduta culposa da sua parte.” (o negrito é nosso).

Ora, na verdade, o que resulta do relatório da inspecção efectuada em 2019 relativa ao IVA de 2015, é que a Requerente apresentava graves deficiências contabilísticas e até falta de documentação respeitante a períodos anteriores, designadamente daqueles em que tinha havido dedução de IVA, por não terem sido mantidos os registos durante o prazo de 10 anos legalmente exigível.

 

c) Sucede que, tal como `fundamentadamente demonstrado no Parecer junto aos autos da autoria dos Professores Xavier de Basto e Odete Oliveira e como iremos referir, o sujeito passivo não estava obrigado a fazer as regularizações conforme o pretendido, não sendo, consequentemente, aplicável o prazo de conservação de documentos nos termos invocados.

 

d) Desde logo, os factos provados não estão correctos inquinando as conclusões, tendo-se subestimado documentação relevante, a prova testemunhal bem como factos públicos e notórios.

 

e) Não se nos afigura tão pouco correcto que nos factos dados como provados se reproduza em três páginas o Relatório da AT (n. 28), não se reproduzindo os argumentos de defesa apresentados pela Requerente.

 

f) Por outro lado, não se procede a uma correcta interpretação e aplicação das normas legais em apreço.

 

g) Tão pouco se trás à colação a jurisprudência mais relevante para o efeito, mormente a do TJUE e, inclusive, deste Tribunal Arbitral, bem como a mais relevante doutrina, não retirando sequer as devidas consequências da jurisprudência que invoca. O enquadramento jurídico correcto, a jurisprudência e a doutrina em causa estão devidamente evidenciadas no Parecer do Professor José Guilherme Xavier de Basto e da Professora Doutora Maria Odete Oliveira.

 

h) No mínimo, existindo dúvidas sobre os factos em causa, de harmonia com o disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, quando não foram utilizados métodos indirectos, «sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado».

 

i) Pelo exposto, em nosso entendimento justifica-se a anulação da liquidação de IVA impugnada, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPA, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

Vejamos pois.

 

 

II.            Apreciação em especial

 

A.           Factos dados como provados

 

Quanto aos factos dados como provados, como é sabido, determina o n.º1 do artigo 412.º do CPC de epígrafe “Factos que não carecem de alegação ou de prova”, que “Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.”

Por sua vez, em conformidade com o disposto no respectivo artigo 413.º, “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.”

No tocante à sentença, determina o artigo 607.º do CPC as regras a seguir no tocante à elaboração da sentença, distinguindo claramente os factos dados como provados e a matéria de direito.

Tal como se conclui no Acórdão do STA de 30 de Novembro de 2017 relativo ao Processo 0857/17:

 

“XIX. Na verdade, envolvendo alguma complexidade a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, tanto mais que as mesmas estão e mostram-se sempre intimamente interligadas, já que se as normas definem certas consequências quando resultem verificados determinados factos, temos que é em função destes, do que se logrou provar, que importa proceder à aplicação das normas, levando a cabo a tarefa de subsunção jurídica.

XX. Constituirá, nomeadamente, realidade ou matéria de facto tudo o que se prenda ou envolva a averiguação das ocorrências concretas da vida real, o estado ou a situação real de pessoas e coisas, os acontecimentos do foro interno da vida das pessoas, as ocorrências hipotéticas, os juízos de facto e inferências que se arrimem em realidade fáctica que se mostre devidamente alegada.

XXI. Importa, por outro lado, ter presente que ao julgador está claramente vedada possibilidade de inclusão no acervo factual tido por apurado de juízos sobre questões de direito [cfr. arts. 05.º, 410.º, 412.º, 413.º, 590.º, 607.º, n.ºs 3 e 5, do CPC]….”.

 

Ora, sucede que no caso vertente a sentença não segue as regras supra referidas, chegando-se, inclusive, como vimos, a fazer juízos de direito.

Em conformidade com as provas apresentadas entendemos, nomeadamente, que os seguintes factos deveriam ter sido dados como provados:

 

30.          A Herdade de E..., localizada em ..., no concelho de ... (“Herdade”) foi adquirida em 1989 por G..., à data já dono do empreendimento de D..., em ..., no Algarve;

31.          A Herdade situa-se no interior do Sotavento algarvio, e, à data, era composta por diversos prédios urbanos e rústicos, ocupando mais de 1.300 hectares de terreno,  sendo à data da compra e nos anos que se seguiram, de muito difícil acesso, por estradas em muito mau estado e de interior;

32.          A compra da Herdade foi motivada por um projecto para aquela zona, que incluía o desenvolvimento da exploração agrícola e silvícola, bem como a exploração da actividade cinegética, tendo inclusivamente lá estabelecido uma reserva de caça, e ainda de um empreendimento turístico, com hotel e campo de golfe;

33.          Em 1990, a Herdade foi transferida pelo seu proprietário para a Requerente, que foi constituída e iniciou actividade nesse ano, tendo como objecto a respectiva exploração em todas as suas vertentes;

34.          A Requerente foi constituída sob a forma de sociedade comercial por quotas (tendo sido posteriormente convertida em sociedade anónima) em 28 de Maio de 1990, pelo seu sócio fundador G...;

35.          O objecto social da Requerente consiste na exploração de prédios rústicos,  de caça e de actividades turísticas conexas;

36.          A Requerente sempre desenvolveu em exclusivo actividades sujeitas a imposto;

37.          A actividade de exploração cinegética iniciou-se em 1991 e exigiu obras do mais variado tipo, desde a vedação da herdade, até à construção e instalação de posto de transformação de energia eléctrica, passando por abertura de charcas para bebedouro das peças de caça e a construção de habitações, algumas para alojamento do pessoal da quinta, e outras, depois de devidamente adaptadas, também para alojamento dos caçadores, clientes da coutada de caça;

38.          Todos os investimentos feitos (e IVA incorrido) até 2001 respeitam a imóveis ou instalações ocupados e utilizados imediatamente (como acontece com os investimento fundiários – investimento na vedação de todo o perímetro da herdade; construção de três pavilhões; construção de raiz de oito habitações para trabalhadores; construção de barragens e 3/100 charcas; instalação de um posto de transformação; investimento no projeto florestal, implicando a abertura e melhoramento de caminhos florestais, a desmatação e limpeza de todo o terreno, etc.);

39.          A limpeza e desmatação serviram como preparação do terreno da Herdade para o projeto florestal, que teve como objeto a plantação de pinheiros, azinheiros e sobreiros numa área correspondente a cerca de 800 hectares (dos 1.300 hectares que totalizam a área da Herdade);

40.          Toda esta actividade deu origem a despesas, fundamentalmente em bens de equipamento, qualificáveis de bens imóveis, despesas estas que incluíam IVA, que foi declarado como dedutível, originando, em 1994, 1998 e 2003 pedidos de reembolso que foram deferidos pela AT;  

41.          Apenas relativamente ao crédito de imposto apurado pela Requerente relativamente ao período de 1998 06T a AT não deferiu integralmente o pedido de reembolso apresentado, antes propondo uma correção que resultou num montante de imposto a reembolsar inferior ao requerido em € 18.174,11;

42.          Aquando dos pedidos de reembolso foram apresentadas facturas pela Requerente relativas a despesas incorridas, nomeadamente de electricidade, telecomunicações, água, limpeza de mato e beneficiação de caminhos e abertura de aceiros com a construção de barragens, bem como documentação oficial relativa às actividades em causa, nomeadamente, à actividade cinegética;

43.          No exercício de 2015, e tendo em vista a respectiva venda, foi  legalizada pelo menos uma parte das construções entretanto terminadas e utilizadas desde meados dos anos 90, destinadas a habitação e arrumos,  as quais,  pelos Alvarás nºs .../2015, .../2015, .../2015, .../2015 , .../2015 e .../2015,  foram autorizadas a serem utilizadas;

44.          O projecto de construção e exploração de um estabelecimento hoteleiro foi iniciado em 1 de Janeiro de 2001, o qual ficou, porém, inacabado, e a construção parada a partir de 2003;

45.          O projecto de construção de um campo de golfe nunca foi iniciado;

46.          A Requerente apresentava graves deficiências contabilísticas e até falta de documentação respeitante a períodos anteriores, designadamente daqueles em que tinha havido dedução de IVA, por não terem sido mantidos os registos durante o prazo legalmente exigível;

47.          Ao longo dos vários exercícios, as despesas com a adaptação da Herdade E... à actividade de reserva de caça – as que implicavam obras de construção, vedação e adaptação do terreno, etc. – foram registadas na conta de “imobilizado em curso” e assim se mantiveram, sem que houvesse o cuidado de ir separando os vários elementos do activo que iam sendo concluídos e utilizados no negócio e retirando-os da referida conta.

 

Tal como referimos, note-se ainda que não podemos concordar com a aposição apenas de um texto disperso do Relatório da AT tal como foi feito nos factos dados como provados (n.º28) não se reproduzindo com idêntica dimensão a posição da Requerente ao longo de todo este processo e omitindo-se outras passagens. Ou se reproduz objectivamente a posição das partes ou, se apenas se reproduz partes escolhidas do Relatório está-se a incorrer em discriminação.

 

B.            Matéria a decidir

 

1. Cerne da questão

 

O cerne da questão controvertida consiste na pretensão da AT em obrigar o sujeito passivo a proceder à regularização do imposto deduzido desde que começou a sua actividade, e que integra despesas registadas como imobilizado em curso, regularização que a AT entende devida na sequência da venda do imóvel onde essa actividade se desenvolvia.

Resulta dos factos provados que a sociedade, com efeito, tinha uma propriedade, com mais de 1300 hectares de terreno, onde explorava uma reserva de caça, a par da actividade agrícola e florestal. Igualmente fez parte do plano de negócio, embora nunca tenha sido concretizado, a construção e exploração de um campo de golfe e de um estabelecimento hoteleiro, projecto este que foi posteriormente abandonado, tendo-se apenas iniciado a construção de um edifício para o hotel, o qual ficou, porém, inacabado, e a construção parada a partir de 2003. Resulta dos factos provados que as obras de construção do hotel foram iniciadas em 2001.

Ao longo dos vários exercícios, as despesas com a adaptação da Herdade E... à actividade de reserva de caça – as que implicavam obras de construção, vedação e adaptação do terreno, etc. – foram registadas na conta de “imobilizado em curso” e assim se mantiveram, sem que houvesse o cuidado de ir separando os vários elementos do activo que iam sendo concluídos e utilizados no negócio e retirando-os da referida conta. Desta circunstância retira a AT a conclusão que os bens em que aquelas despesas de materializaram, todos eles, ainda não estavam, em 2015, a ser utilizados, por se tratar de imobilizado em curso, ou seja, ainda não acabado ou pronto. Daí decorreria, de acordo com o relatório da inspecção, que está em aberto o período de regularização, que é actualmente de 20 anos, para os bens imóveis, mas que até 2001 era de 10 anos (sempre relativamente a bens imóveis). Assim, a transmissão da Herdade, em 2015, efectuada com isenção de IVA, ocorreria durante o período de regularização, devendo abranger todo o IVA suportado pela Requerente desde o início da actividade, invocando a AT para o efeito a disciplina do n.º 5 do artigo 24.º do CIVA - que determina que a regularização seja efectuada por uma só vez - e a delimitação do período de regularização das deduções que consta da alínea a) do n.º 3 do mesmo artigo, de onde se retira que tal período, quando as deduções respeitem a bens do activo imobilizado, se abre no final do ano em que se inicia a utilização ou ocupação dos referidos bens. A AT admite que algumas daquelas despesas o foram em bens utilizados na actividade da empresa, mas argumenta que não dispõe de elementos de suporte contabilístico para distinguir o momento em que ficaram aptos a ser utilizados – e, estando todos qualificados como “imobilizado em curso”, sustenta que a regularização terá de abranger a totalidade do imposto suportado, não aceitando as provas que o sujeito passivo terá fornecido, em sede de direito de audição, sobre o momento em que os bens passaram efectivamente a ser utilizados.

 

2. Do direito à dedução das despesas em causa

 

2.1 Da relevância da prova testemunhal no caso em apreço

 

Afirmar-se que os requisitos das facturas não podem ser supridos por prova de certeza e segurança inferiores à da prova documental, incluindo a prova testemunhal, significa, em nosso entendimento, ignorar inadequadamente a jurisprudência clara do TJUE e as provas apresentadas.

Tal como refere António Lima Guerreiro em anotação ao artigo 72º da LGT: "O órgão instrutor tem a liberdade de escolha das diligências de prova apropriadas à descoberta da verdade material (...) É, no entanto, ao órgão instrutor que compete, em última instância, a opção pelos meios probatórios indispensáveis à descoberta da verdade material, não estando vinculada à iniciativa dos interessados. Pode, assim, rejeitar as diligências probatórias por estes solicitadas, no caso de, fundamentadamente, entender elas serem desprovidas de interesse para a resolução do procedimento, sem prejuízo da possibilidade de reclamação ou impugnação da decisão final do procedimento pelos lesados, por motivo de violação do princípio do inquisitório."

Tal entendimento é igualmente corroborado por Jorge Lopes de Sousa em anotação ao artigo 50.º do CPPT: "É ao órgão instrutor que cabe escolher quais os meios de prova a utilizar para prova dos factos cujo conhecimento releve para a decisão, podendo determinar aos Interessados a prestação de informações, a apresentação de documentos ou coisas, a sujeição a inspecções e a colaboração noutros meios de prova (art. 89.º, n.º 1 do CPA). Porém, os interessados podem juntar documentos e pareceres e requerer a realização de diligências de prova úteis para o esclarecimento dos factos com interesse para a decisão (art. 88.º, n.º 2 do CPA). No entanto, o órgão instrutor poderá não realizar as diligências requeridas se as considerar desnecessárias para apuramento dos factos que interessam para a decisão."

Ora, não podemos concordar com a afirmação de que no caso presente, a falta dos requisitos essenciais do direito à  dedução, no caso, a posse da fatura emitida na forma legal conservada pelo sujeito passivo que invoca esse direito perante a Administração Tributária, não pode ser suprida pela realização de diligências  suplementares, substitutivas da prova documental, como a  prova testemunhal, ainda que esta já tenha sido requerida pelo contribuinte passivo durante o procedimento administrativo em que foi emitida a liquidação, ou com a aplicação de métodos  indiretos de prova.

Com efeito, para além de constarem do Processo diversos documentos que atestam a realização das obras em apreço e a sua ligação com as despesas incorridas de que a AT teve conhecimento ao longo dos anos, a prova testemunhal neste caso é bastante relevante, afigurando-se-nos que as testemunhas prestaram o seu depoimento com o conhecimento pessoal, a isenção e o rigor necessários.

Tanto assim o é que nunca foi posta em causa a audição das testemunhas não se tendo optado pela respectiva audição apenas e tão-somente para aferir dos motivos de não conservação da contabilidade pelo sujeito passivo parar além do referido prazo de 10 anos, tal como se conclui na Decisão, não se tendo concluído ser esta uma diligência complementar dispensável à descoberta da verdade material, no estrito cumprimento dos princípios que regem a instrução, nomeadamente o princípio da liberdade de recolha de prova e de apreciação dos meios de prova (parte final do n.º 1 do artigo 87.º e n.º 2 do artigo 91.º, ambos do Código do Procedimento Administrativo - CPA, aplicável ex vi, alínea c) do artigo 2.º da LGT).

Não considerou então este Tribunal que a matéria factual a provar, tal como ficou agora expresso supra, não se compadece com o meio de prova pretendido: apenas a prova documental permite o esclarecimento da verdadeira situação tributária. Basta atendermos às questões que foram suscitadas às testemunhas para se concluir que a respectiva audição não se restringiu ao facto de se apurar quais os motivos de não conservação dos registos contabilísticos nos termos mencionados.

Na decisão arbitral de 2 de Setembro de 2019 relativa ao Processo n.º 59/2019T, em cujo colectivo participámos e foi Relator o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, esteve em causa uma situação de regularização de inventários em que a Requerente não registava contabilisticamente o abate dos móveis que efectuava, tendo-se concluído a seu favor essencialmente com recurso à prova testemunhal, atentas as particularidades da situação em apreço. Idênticas razões militam neste sentido no caso controvertido, acrescendo ainda que estamos em muitas situações perante factos públicos e notórios facilmente comprováveis e atestados in loco pela própria AT nas diversas inspecções que fez à Requerente.

Existindo dúvidas sobre a matéria de facto em causa, tal como se escreveu na decisão em apreço, “O procedimento tributário deve culminar com uma decisão da administração tributária, que tem de assentar em pressupostos de facto.

Porém, pode suceder que, após a produção de prova, a administração tributária fique com dúvidas sobre a situação factual que interessa conhecer para tomar a sua decisão.

Para possibilitar à administração tributária decidir nos casos em que, após a produção de prova possível, ficar com uma dúvida insanável sobre qualquer ponto da matéria de facto, estabeleceram-se as regras do ónus da prova.

O funcionamento destas regras, assim, ocorre apenas quando, após a actividade de fixação da matéria de facto, directamente a partir dos meios de prova e indirectamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida.

Por força das regras do ónus da prova devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova. (   )

É apenas nestas situações em que, após a produção das provas, subsistem dúvidas sobre factos que relevam para a decisão que funcionam as regras do ónus da prova.

Assim, ao contrário do que entendeu a Autoridade Tributária e Aduaneira, as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é imposto que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está  dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, realizar «todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.

O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

Assim, «o órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito» (artigo 72.º da LGT) e no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

Entre «todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos» inclui-se a prova testemunhal, que é um meio de prova admitido em direito, pois não existe qualquer norma que directa ou indirectamente afaste a sua utilização» (artigo 392.º do Código Civil).”

Não podemos assim concordar que, tal como afirmado, “A prova testemunhal não logrou pôr em crise a prova resultantes dos documentos.” Com efeito, toda a prova testemunhal produzida aponta no sentido defendido pela Requerente.

Acrescendo que, tal como começámos por salientar, se insiste várias vezes na Decisão num facto não provado e que inquina toda a decisão – o de que a contabilidade teria sido eliminada voluntariamente, criando-se assim suspeitas de crimes fiscais que nem sequer foram invocados pela AT.

Ora, tal como se conclui na decisão relativa ao Processo Arbitral n.º 611/2020 T, de 17 de Agosto de 2021, na qual participámos, tendo sido Relator igualmente o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, com voto de vencido do Dr. Lima Guerreiro, no nosso sistema de administração executiva, é à AT e não aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que é conferida competência para a prossecução do interesse público da cobrança de impostos, através da prática dos actos necessários, tendo os tribunais apenas competências de controlo da legalidade dos actos que a AT praticar no exercício dessa competência, nos termos limitados em que está prevista no RJAT (artigos 2.º do RJAT e 124.º do CPPT).

Ao inspector tributário cabe realizar a investigação dos factos relevantes e elaborar o relatório, carreando para o processo de inspecção os elementos de prova relevantes, actividade desenvolvida com o objectivo de prosseguir os interesses públicos de que a AT está incumbida de cobrança de tributos.

Os tribunais num contencioso de anulação como é o contencioso tributário (artigo 124.º do CPPT) têm de apurar se o acto que foi praticado, tal como foi, é legal ou ilegal e não apurar se haveria algum acto legal, alternativo ao que foi praticado, que possa assegurar a arrecadação de receitas fiscais. Assim, incumbe aos árbitros decidir o litígio com independência e imparcialidade inerente à função jurisdicional, com base no que consta do processo e não, assumindo tardiamente o papel da Administração Tributária, realizar diligências de investigação à margem deste e utilizar para a decisão elementos probatórios não obtidos no processo, visando encontrar no âmbito do processo arbitral uma hipotética fundamentação para o acto impugnado diferente da que lhe serviu de suporte.

A regra que vigora nos processos arbitrais, como nos judiciais, é, desde sempre, quod non est in actis non est in mundo.

 

 

2.2 Da matéria de facto dada como provada – despesas relacionadas com o exercício da actividade económica da Requerente

 

Fica provado que a actividade de exploração cinegética se iniciou em 1991 e exigiu obras do mais variado tipo, desde a vedação da Herdade, até à construção e instalação de posto de transformação de energia eléctrica, passando por abertura de charcas para bebedouro das peças de caça e a construção de habitações, algumas para alojamento do pessoal da quinta, e outras, depois de devidamente adaptadas, também para alojamento dos caçadores, clientes da coutada de caça.

Resulta dos factos provados que a actividade ora em causa levada a cabo pela Requerente originou despesas, essencialmente em bens de equipamento, qualificáveis de bens imóveis, despesas estas que incluíam IVA, que foi declarado como dedutível, originando, em 1994, 1998 e 2003 pedidos de reembolso que foram deferidos pela AT.

Ora é evidente que a AT, ao ter concedido os reembolsos, reconheceu expressamente que a ora Requerente tinha direito à dedução do IVA suportado, i.e., que os bens ou serviços a que respeitavam as referidas despesas estavam ou iam ser utilizados em operações tributáveis, no caso em serviços proporcionados a caçadores na reserva de caça que fora legalmente constituída. E isto mesmo quando se reconheceu, na resposta ao primeiro período de reembolso, que não existiam operações tributáveis a jusante, isto é, a sociedade ainda não estava em condições físicas de prestar os serviços que constituíam o seu escopo social, mas havia a clara intenção, suficientemente objectivada, de vir a praticar tais operações. Numa resposta a um pedido de reembolso posterior, do ano de 1998, a AT, admitindo a legalidade da dedução e deferindo o correspondente reembolso, entendeu que a E... recebia para sessões de caça amigos dos proprietários, realizando assim prestações de serviços gratuitas que deviam ser objecto de liquidação de imposto, ao abrigo das normas aplicáveis do CIVA e procedeu à determinação por métodos indirectos do IVA em falta, relativo aos anos de 1994, 1995, 1996 e 1997, sem qualquer contestação por parte da Requerente.

Vem agora entender a AT que a totalidade do IVA incorrido e deduzido ao longo de 25 anos respeita em exclusivo à construção do hotel, quando é evidente e resulta demonstrado dos próprios elementos na posse da AT, bem como da prova testemunhal, que toda a atividade desenvolvida na Herdade desde 1990 até 2015 foi a cinegética, a agrícola e a silvícola, que implicou avultados investimentos, encontrando-se associadas diversas despesas oneradas com IVA.

Relativamente às moradias construídas, a AT assenta a sua posição no facto de as respectivas licenças de habitação só terem sido obtidas em 2015 pressupondo assim que só nessa data as mesmas foram ocupadas, quando tal facto não corresponde à realidade. Com efeito, o pedido de licença teve em vista a sua venda, sendo que resulta dos factos que, independentemente de tal licenciamento, as habitações se encontravam ocupadas e em utilização desde meados dos anos 90.

Na mesma linha de raciocínio, a AT defende a legalidade da regularização de IVA por si exigida com base no facto de todas as imobilizações, para além das referentes ao hotel, estarem contabilizadas, quer nos termos do Plano Oficial de Contas (POC) como do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) como Imobilizações em Curso ou Investimentos em Curso, de onde retira a conclusão automática de que tal “evidencia que as obras não se encontrariam concluídas” (cf. p. 25 do RF junto ao PPA como Doc. 2).

Ora, a Requerente no processo administrativo, em sede de audiência prévia, juntou cópia de facturas de fornecedores de serviços de telecomunicações e de electricidade de 2006, que demonstram que, pelo menos em 2006, as habitações e outras infraestruturas da Herdade já eram utilizadas – cf. documentos anexos ao Doc. 4 junto ao PPA.

A Requerente juntou também um balancete de 2006 da conta 44 (imobilizações em curso), que apresentava nesse ano um saldo de € 7.338.554,06 (cf. Doc. 1 junto ao requerimento de audiência prévia, anexo a estes autos como Doc. 4), distribuído como resume a AT no quadro a pp. 20 do RF junto como Doc. 2.

Mas, como alega a Requerente, uma mera visita à Herdade (sendo um facto público e notório) permite concluir que as moradias, as barragens, as charcas, os trabalhos de desmatação, o criadeiro de perdizes, os parques de voo, e todas as construções que estão em causa, independentemente dos registos contabilísticos e dos processos de licenciamento camarários a que estiveram sujeitos, têm anos e estiveram em utilização anos antes da venda da Herdade.

Ou seja, não apenas não é impossível verificar a origem das deduções efectuadas como se conclui que o IVA incorrido, deduzido e reembolsado respeitante aos períodos até ao primeiro trimestre de 1994 (correspondente a € 239.958,34), não respeita a IVA incorrido com o empreendimento hoteleiro, mas sim antes de IVA incorrido em investimentos em imobilizado relativos à actividade silvícola e cinegética, que a essa data já estava activa - cf. também depoimento da testemunha J... .

De referir que do acervo documental junto ao relatório de inspecção, constam os resultados da exploração cinegética na Herdade das épocas venatórias de 1994/1995; 1995/1996; 1996/1997 e 1997/1998 (cf. Anexo II ao relatório final de inspecção a pp. 63 ss. do Doc. 8 junto ao PPA) e um recibo datado de 04/01/1994 emitido pela Direcção Geral das Florestas relativo à aposição de selo em 300 perdizes (cf. Anexo III ao relatório final de inspecção a p. 88 também do Doc. 8 junto ao PPA), que não deixam dúvidas de que a exploração cinegética existia na Herdade já desde 1990, mas segura e comprovadamente desde Janeiro de 1994.

Acresce que, e à semelhança do que havia acontecido no processo de reembolso de IVA anterior, a AT afirma que a Requerente está “Em fase de investimento em curso para exploração de caça turística e criação de perdizes” − cf. p. 133 do Doc. 8 junto ao PPA, afirmando assim, mais uma vez, a própria AT que em 1998 a actividade efectivamente exercida pela Requerente é a cinegética, não deixando, no entanto de se referir à actividade florestal/silvícola/agrícola, que consta da informação elaborada pela AT a pp. 108 a 111 do Doc. 8 junto ao PPA, não havendo uma vez mais qualquer referência à actividade turística hoteleira, demonstrando que todo o IVA incorrido com imobilizado até 1998 respeita às infraestruturas relativas às actividades agrícolas, silvícolas e cinegética, sendo certo que todo o imobilizado a que tal IVA respeita estava em utilização.

Inclusive há um contrato com o Estado português, celebrado em 18/08/1992, de que era parte a Requerente e outras entidades (formando um agrupamento de produtores florestais), no contexto de um projecto de investimento florestal (PAF 015/20009), destinado a arborização e infraestruturas florestais, construção e beneficiação de caminhos florestais, execução de aceiros e construção de pequenas barragens (cf. p. 106 do Doc. 8 junto ao PPA).

A limpeza de matos, a beneficiação de caminhos a abertura de aceiros ou a construção de barragens são expressamente descritos em facturas emitidas pelo fornecedor D..., SA e juntas ao procedimento de reembolso em causa (cf. pp. 98 e 100 do Doc. 8 junto ao PPA).

A quase totalidade do IVA incorrido foi contabilizado e deduzido como respeitando a bens do activo imobilizado, o que resulta das declarações de IVA juntas aos diferentes procedimentos de reembolso e do próprio RF (em que se esclarece que entre 1990 e 2017 foi deduzido IVA no valor total de € 1.483.045,13, do qual € 1.373.624,22 é IVA dedutível de imobilizado).

É evidente que os trabalhos de limpeza, desmatação, plantação, construção de aceiros, construção de barragens, construção da vedação no perímetro da Herdade, construção das moradias para os trabalhadores ou dos pavilhões para recolha de máquinas e produtos agrícolas e relacionados com a caça (criadeiro de perdizes e parques de voo), etc., se relacionam efectivamente com os imóveis.

Nesta sede deve atender-se, nomeadamente, à explicação dada pelo Contabilista Certificado da Herdade no seu depoimento perante este Tribunal, esclarecendo que o registo dos bens como activo imobilizado em curso se devia a uma opção contabilística da empresa, segundo a qual existia um projecto global que incluía tudo (o projecto turístico hoteleiro e a actividade cinegética e silvícola que o tornava um projecto de agroturismo), motivo pelo qual todos os investimentos foram contabilizados como imobilizado em curso. Segundo esclareceu, só com a conclusão do projecto turístico (que nunca ocorreu) seria alterada tal classificação contabilística (cf. depoimento da testemunha J...).

Consequentemente, aquele montantes apenas seriam reclassificados contabilisticamente (e transferidos para contas de imobilizado que não imobilizado em curso) quando todo o projecto estivesse concluído, facto este que nunca veio a ocorrer - cf. depoimento da testemunha J....

Os investimentos em imóveis (e o IVA incorrido) anteriores a 2001 respeitam a construções ou investimentos em plena utilização, sendo que os incorridos entre 2001 e 2015 respeitam também em parte a tais infraestrutura e em parte ao projecto hoteleiro, que veio a ser abandonado em 2003.

A própria AT, em verificação directa no local, afirma à data da apreciação do pedido (em 2004) de reembolso do IVA de 2003 09T que estavam já terminados e em pleno funcionamento (i) o projecto de reflorestação; (ii) a construção do criadeiro de perdizes; (iii) diversos armazéns; (iv) as moradias dos trabalhadores; (v) as barragens; e (vi) os apartamentos em que foi dividido um dos pavilhões, independentemente de todos estes investimentos se encontrarem registados como activo imobilizado.

Acresce que do referido procedimento constam documentos que evidenciam que a obra do hotel apenas foi iniciada em 2001 (cf. declaração da Requerente, que indica como data efectiva do início da obra 01/01/2001 – a pp. 61 do Doc. 9 junto com o PPA - ; e alvará de licença para iniciar as obra emitido pela Câmara Municipal de ... em 2001 a pp. 55 do Doc. 9 junto com o PPA).

Resulta assim provado que só em 2001 foi iniciada a obra construção do hotel, pelo que nenhum do IVA incorrido anteriormente a 2001 se poderá referir à respectiva construção.

Resulta provado que, à excepção do Hotel, todas as demais instalações e/ou construções existentes na Herdade estavam concluídas e em pleno funcionamento desde meados da década de 90 e antes de 2001.

Imediatamente após a compra da Herdade, foram levados a cabo uma série de procedimentos, designadamente a criação de acessos e a construção de caminhos florestais na Herdade, assim como a limpeza e desmatação de toda a área a arborizar, a criação de socalcos no terreno que permitissem a plantação, dado que o mesmo era bastante acidentado, a criação de aceiros (zonas de desbaste do terreno que impedem a propagação 29/100 de incêndios) e a construção de charcas e barragens para permitir a rega dos terrenos - cf. depoimento da testemunha F... .

Todos estes trabalhos foram iniciados logo em 1990 e a abertura dos caminhos florestais, a desmatação e preparação do terreno e a plantação das árvores, assim como a construção de boa parte das charcas espalhadas pela Herdade estavam concluídas por volta dos anos 1993/1994, mas sempre pelo menos desde antes do final da década, tal como resulta do depoimento de todas as testemunhas, e em especial, da testemunha F...,

Desde logo, são referidos expressamente dois projectos de investimento florestal de que a Requerente era parte (no âmbito dos agrupamentos florestais de ... e da ...), ambos concluídos em 1999, à data da referida informação (como se pode ler a p. 109 do Doc. 99 junto ao PPA), e que, na verdade, se encontravam concluídos vários anos antes.

Do mesmo procedimento de reembolso constam igualmente diversas facturas (datadas de 1994) que incluem os trabalhos de limpeza de matos, de construção e beneficiação de caminhos, abertura de aceiros ou construção de barragens, e bem assim a venda de sementes, adubo e plantas de sobro e pinho (cf. as facturas a pp. 98 e 100 do Doc. 9 junto ao PPA).

Após a compra da Herdade, por volta dos anos 1993/1994 (conforme resulta do depoimento da testemunha F...), o Senhor G... deu indicações para a construção de 2 outros novos pavilhões (“Novos Pavilhões”), também com 600 m2 cada, geminados com os Antigos Pavilhões.

Tal como resulta do depoimento do Senhor F..., encarregado da Herdade, todas estas construções foram um processo dinâmico e evolutivo, tendo sido construídas paulatinamente e na medida dos recursos disponíveis, mas todas se encontravam concluídas e em funcionamento (afectas à actividade cinegética e à actividade florestal/silvícola/agrícola) pelo menos em 1997.

No início dos anos 90 foi iniciada a construção de 8 moradias geminadas, e encontravam-se terminadas e em utilização em 1998 - cf. depoimento das testemunhas F... e I... .

O facto de o licenciamento camarário ter ocorrido apenas em 2015 não altera a verdade factual: as moradias estavam construídas e foram utilizadas e ocupadas por trabalhadores da Herdade pelo menos desde 1994 - cf. depoimento da testemunha F... . O que, de resto, é confirmado pela própria documentação junta aos autos pela AT em 25/06/2021 a pedido deste Tribunal.

Atentando aos alvarás de autorização de utilização, datados efectivamente de 2015, verifica-se que respeitam a processos de obras datados alguns de finais da década de 80/ início da década de 90 e sobre as quais incidiram alvarás de licenças de construção datados de inícios da década de 90.

Da prova junta e do depoimento das testemunhas inquiridas resultou igualmente provado que antes de 2001 toda a Herdade estava vedada por um muro com vedação e 17 entradas com portões eléctricos, uma empreitada de grandes proporções e enorme custo. Este processo demorou 3 anos, tendo sido iniciado por volta do ano de 1994. Em 1997 todo o perímetro da Herdade estava vedado - cf. depoimento da testemunha F... .

Não obstante os registos contabilísticos, resulta dos depoimentos das testemunhas que a vedação se encontrava concluída e a ser utilizada para a função para que foi criada (contenção da caça e barreira para caçadores furtivos) em data muito anterior a 2001.

Na Herdade foi ainda construída uma barragem de grande envergadura tendo sido acabada de construir em 1995/1996, assim como um sistema de elevação, transporte de água e rega que utilizaria a água da barragem para as actividades agrícolas e que se encontrava em pleno funcionamento desde 1996 - cf. depoimento da testemunha F... .

Foi ainda efectuada uma empreitada de construção e instalação de um posto de transformação - instalação que transforma energia eléctrica de média tensão em baixa tensão - que permitisse fornecer a energia necessária ao funcionamento das actividades ali desenvolvidas.

Em 1995 (cf. depoimento da testemunha F...), foi construído um criadeiro de perdizes, que continha 250 casais reprodutores e produzia milhares de perdizes anualmente, que eram introduzidas na Herdade (vedada para permitir a sua contenção) para repovoamento e para potenciar e manter a actividade cinegética na Herdade - cf. depoimento da testemunha F... .

Desta construção há evidência documental através do processo de criação de perdizes n.º .../95, tramitado junto da Câmara Municipal de ...(cf. Doc. 8, p. 58 junto ao PPA, em que a AT refere expressamente este processo).

Também por imposição legal, a Requerente apresentou junto da Direcção Geral das Florestas (entidade competente para o efeito), por referência a cada época venatória (período durante o qual é permitida a prática da caça, e que nos termos do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 247-A/88, de 3 de Agosto de 1988 e do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 251/92 de 12 de Novembro de /1992 que substituiu aquela, decorria entre 1 de Junho de cada ano e 31 de Maio do ano seguinte), os resultados da exploração cinegética, que dão nota do número de jornadas de caça em cada época, bem como das espécies e quantidade de animais 50/100 abatidos em cada época, e que logram provar de forma evidente a existência de actividade cinegética na Herdade pelo menos desde 1994, apesar das testemunhas afirmarem que a caça lá se iniciou ainda antes dessa data. De tais relatórios resulta que foram realizadas 120, 60, 250 e 100 jornadas de caça respetivamente nas épocas venatórias de 1994/1995, 1995/1996, 1996/1997 e 1997/1998, em que se abateram coelhos, lebres, raposas, saca-rabos, perdizes, pombos e rolas (cf. Doc. 8, pp. 63 a 87 junto ao PPA)

Ou seja, desde 1991, e indiscutivelmente a partir de 1994, era desenvolvida na Herdade a actividade cinegética.

A Requerente promoveu activamente a venda de caçadas na Herdade, de que ainda é possível encontrar anúncio no link: https://lifecooler.com/artigo..., de um site dedicado que permite a aquisição e o acesso a diferentes eventos de turismo e lazer.

As obras de construção do Hotel foram iniciadas apenas em 2001, como o comprova o licenciamento e a emissão do alvará já referidos (a p. 55 do Doc. 9 junto ao PPA), bem como os depoimentos das testemunhas - cf. depoimento das testemunhas F... e H... .

Este projecto hoteleiro foi abandonado ainda o Hotel se encontrava ainda em “tosco”, sem reboco, e sem canalizações, como ainda se encontra actualmente - cf. depoimento da testemunha I... .

No que respeita ao campo de golfe, este não iniciou sequer a sua construção.

Para o exercício das actividades florestal/silvícola e agrícola e da actividade cinegética a Requerente levou, assim, a cabo um conjunto de investimentos muito avultados na construção de raiz e/ou no melhoramento de vários bens do seu activo imobilizado, investimento que ascendia em 2006 (e igualmente em 2014, como expressamente refere a AT no RF – cf. Doc. 2 junto ao PPA, p. 19), a € 7.338.554,06, relativamente ao qual foi incorrido IVA no montante de € 1.373.624,22 (cf. declarações de imposto apresentadas e cujo resumo consta do RF – cf. Doc. 2, p. 19 e Anexo n.º 3 do mesmo documento, de que consta a relação de IVA dedutível e liquidado nos anos de 1990 a 2017). Todas as referidas actividades são sujeitas a IVA e dele não isentas.

Em suma, e tal como referido pela Requerente: (i) o IVA deduzido diz respeito na sua quase totalidade aos investimentos realizados entre 1990 e 2004; (ii) tais investimentos, ao contrário do que afirma a AT, não dizem exclusivamente respeito ao projecto hoteleiro ou às moradias licenciadas em 2015; (iii) tais investimentos dizem respeito a todas as obras de construção e melhoramento realizadas nas várias infraestruturas existentes na Herdade, nomeadamente as afectas às actividades florestal, silvícola, agrícola e sobretudo à cinegética; (iv) à excepção das construções referentes ao projecto hoteleiro (que foi abandonado em 2003), todas as construções, quer de raiz quer as de reabilitação e de melhoramentos, foram terminadas há muito e começaram a ser ocupadas e utilizadas nas actividades florestal, agrícola, silvícola e cinegética logo após a conclusão das respectivas obras, que é muito anterior a 2015.

Assim, a posição da AT de que o IVA deduzido pela Requerente com bens do seu imobilizado  respeita a bens que nunca foram ocupados ou entraram em utilização até 2015 assenta exclusivamente numa mera formalidade, em prejuízo da verdade material subjacente, suportada em documentação e prova testemunhal e em factos públicos e notórios.

 

Vejamos agora a matéria de Direito aplicável

 

2.3          Das regras aplicáveis

 

2.3.1 Da natureza ampla e imediata do exercício do direito à dedução do IVA suportado e do princípio da neutralidade

 

A presente Decisão, nos termos em que se encontra redigida, viola manifestamente a natureza ampla do direito à dedução do imposto suportado tal como foi desenvolvida pelo TJUE, fazendo-se inclusive tábua rasa da jurisprudência clara do TJUE sobre o direito que os sujeitos passivos têm em deduzir o IVA nas chamadas actividades preparatórias ainda que não prossigam efectivamente as actividades projectadas, tal como sucedeu no caso presente com a construção inacabada do Hotel.

Sobre o exercício do direito à dedução do IVA e a sua natureza ampla, passamos a transcrever o Acórdão exarado no Processo n.º 148/2012-T, do Tribunal Arbitral, de 5 de Julho de 2013, do qual fomos relatora, salientando em particular com enfase as partes que por ora mais relevam atentos os factos em causa: “3.1 No que concerne ao exercício do direito à dedução em IVA, justifica-se tecer algumas considerações prévias, quer sobre a respectiva natureza, quer no que tange ao respectivo exercício por sujeitos passivos mistos.

3.1.1 Da natureza e amplitude do exercício do direito à dedução

Como é sabido, o IVA é um imposto indirecto de matriz comunitária, plurifásico, que atinge tendencialmente todo o acto de consumo (imposto geral sobre o consumo) 1.

O direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, devendo garantir a sua principal característica – a neutralidade.

Na realidade, o direito à dedução consubstancia-se como o elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado”2, assentando no designado método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtractivo indirecto ou ainda método das facturas. De acordo com este método, e em conformidade com o disposto no artigo 19.º do CIVA, através de uma operação aritmética de subtracção, ao imposto apurado nas vendas e prestações de serviços (outputs) e identificável nas respectivas facturas, deduz-se o imposto suportado nas compras e outros gastos (inputs). Como determina o 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 1.º, da Directiva IVA (de ora em diante DIVA)3, “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço”. O mecanismo do exercício do direito à dedução permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante, não o reflectindo assim como custo operacional da sua actividade, retirando, desta forma, o efeito cumulativo ou de cascata, propiciando a neutralidade económica do imposto.

De acordo com o previsto na DIVA, o Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos.

As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excepcionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa4.

As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objectivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjectivos, relativos ao sujeito passivo e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução5.

Como requisitos objectivos do exercício do direito à dedução do imposto temos, nomeadamente, o facto de o imposto suportado dever constar de factura passada na forma legal (ou seja, deverá obedecer, nos seus requisitos, aos termos gerais previstos no artigo 36.º, n.º5, do CIVA), de se tratar de IVA português, e de a despesa, por si, conferir o direito à dedução do IVA (isto é, não se deve tratar de uma despesa excluída do direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 21.º do CIVA).

Em concreto, no que concerne aos elementos que devem constar das facturas, determina o n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, que devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter, nomeadamente, os seguintes elementos : “a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente, bem como os correspondentes números de identificação fiscal dos sujeitos passivos de imposto;

b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efectivamente transaccionadas devem ser objecto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução;”

Como requisitos subjectivos do exercício do direito à dedução do imposto determina-se, nomeadamente, que os bens e serviços deverão estar directamente relacionados com o exercício da actividade em causa. Em conformidade com o disposto no artigo 168.º da DIVA, transposto, em parte, pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, o sujeito passivo pode deduzir o IVA suportado no Estado-membro em que se encontra estabelecido, nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como operações assimiladas nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações ali localizadas, “Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…)”.

Este normativo, em conformidade com as regras do Direito da União Europeia, vem assim exigir que exista um nexo de causalidade entre o bem ou serviço adquirido (input) e o output tributado, para que o IVA seja susceptível de ser dedutível. Isto é, o IVA suportado a montante numa determinada operação só é dedutível na medida em que possa estar relacionada a jusante com uma operação efectivamente tributada, devendo a relação ser aferida em função do reporte e inclusão do custo suportado, no preço da operação tributada.

Neste contexto, o TJUE, no Caso BLP6, concluiu que os bens ou serviços a montante devem apresentar uma relação directa e imediata com uma ou diversas operações sujeita(s) a imposto a jusante, sendo que o direito à dedução do IVA pressupõe que as despesas em causa devam constituir parte integrante dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas.

Inevitavelmente, a análise do alcance daquela expressão “ (…) relação directa e imediata (…)”, deverá ser efectuada casuisticamente, competindo aos órgãos jurisdicionais nacionais aplicar o critério aos factos de cada processo que lhes seja presente e tomar em consideração todas as circunstâncias em que se desenrolam as operações em causa7.

Não obstante, como concluiu o Advogado-geral no Caso Midland Bank, o emprego dos dois adjectivos «directo» e «imediato» não pode deixar de significar uma relação especialmente próxima entre as operações tributáveis efectuadas por um sujeito passivo e os bens ou serviços fornecidos por outro sujeito passivo8.

Contudo, a densidade dessa relação pode ser diferente consoante a qualidade do sujeito passivo e a natureza das operações efectuadas e estas variáveis podem também ter repercussões sobre o ónus da prova da existência da relação, o qual cabe ao operador interessado na dedução.

Assim, de acordo com a jurisprudência do TJUE, sempre que um sujeito passivo exercer actividades económicas destinadas a realizar exclusivamente operações tributáveis, não é necessário, para que se possa deduzir na totalidade o imposto, estabelecer, quanto a cada operação a montante, a existência de uma relação directa e imediata com a operação específica sujeita a imposto9.

O que o legislador apenas exige é que os bens e serviços sejam utilizados ou susceptíveis de o ser “para os fins das próprias operações tributáveis”. Não é necessária a existência de uma relação com uma operação específica tributável, sendo suficiente que exista uma relação com a actividade da empresa.

Ora, a questão de se aferir da existência ou não de uma relação directa e imediata assume particular relevância quando se pretende aplicar o princípio geral da dedução da totalidade do IVA a situações nas quais o sujeito passivo efectua operações tributáveis e/ou isentas e beneficia de bens ou de serviços que podem ser utilizados quer para operações sujeitas a imposto quer para operações isentas10.

Assim, numa primeira fase, deverá aferir-se se a operação a montante sujeita a IVA apresenta uma relação directa e imediata com uma ou várias operações que confiram direito a dedução, pressupondo o reporte do custo daquele no preço das operações.

Caso tal não se verifique, importa, então, analisar se as despesas realizadas para a aquisição dos bens ou serviços a montante fazem parte das despesas gerais ligadas ao conjunto da actividade económica do sujeito passivo, pressupondo a incorporação do seu custo nos preços dos bens ou serviços fornecidos pelo sujeito passivo no âmbito das suas actividades económicas.

Nesse caso, na ausência de uma relação imediata e directa entre os bens ou os serviços e a operação tributável, o direito à dedução está limitado pela aplicação de um pro rata ou é recusado quando a operação a jusante é uma operação isenta.

Como o TJUE concluiu no Caso Midland Bank, quando um sujeito passivo misto não consiga estabelecer, com base em critérios objectivos, a relação directa e imediata com as actividades tributadas, então a operação encontra-se abrangida pelas respectivas actividades (profissionais) gerais, ou seja, pelas operações com finalidade mista11.

Por último, como requisito do exercício do direito à dedução temos ainda o requisito temporal, nos termos do qual “O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível”, permanecendo, no entanto, o requisito cumulativo da posse da factura, ou do recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação.

Por sua vez, de acordo com as regras do n.º 1 do artigo 19.º do CIVA, estipula-se que confere direito à dedução, designadamente, o imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos e o imposto pago pela aquisição dos serviços referidos nas alíneas e), h), i), j) e l) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.

Em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 20.º do CIVA, conferem, nomeadamente, direito à dedução do IVA as transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas e as transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em operações efectuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efectuadas em Portugal.

É reconhecido de forma unânime pela jurisprudência do TJUE que o mecanismo do direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do IVA tal como foi desenhado nas Directivas IVA, assumindo um papel fundamental de garantia da neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal12. Assim, é jurisprudência constante do TJUE que, sendo o direito à dedução um elemento fundamental do regime de IVA, só é possível limitar este direito nos casos expressamente previstos pela DIVA e, ainda assim, com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade, não se podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.

Tal como se salienta no Acórdão BP Soupergaz, o chamado método subtractivo indirecto, das facturas, do crédito de imposto ou sistema dos pagamentos fraccionados, é o mecanismo essencial de funcionamento deste tipo de imposto. Como se refere nas conclusões deste Acórdão, “A este respeito, o direito à dedução previsto nos artigos 17. e seguintes da Sexta Directiva, que faz parte integrante do mecanismo do imposto sobre o valor acrescentado, não pode, em princípio, ser limitado e exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante, tem incidência no nível do encargo fiscal e deve aplicar-se similarmente em todos os Estados-Membros, de modo que só são permitidas derrogações nos casos expressamente previstos pela directiva.” 13

E no Acórdão Comissão/França, o TJUE acrescenta que “As características do imposto sobre o valor acrescentado (…) permitem inferir que o regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito de todas as suas actividades económicas. O sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado garante, por conseguinte, a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas actividades, na condição de as referidas actividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA”. 14

Note-se ainda que, conforme se salienta no Acórdão Metropol, “59. As disposições que prevêem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA, que garante a neutralidade deste imposto, são de interpretação restrita.” 15

A amplitude do direito à dedução em IVA é tão grande, que constitui acto claro na jurisprudência do TJUE que este deve inclusive ser concedido no tocante às chamadas actividades preparatórias, não se exigindo que a actividade tenha já começado para se poder deduzir o IVA, podendo ser deduzido relativamente a este tipo de acti¬vidades16.

Note-se, a este propósito que, de acordo com o entendimento do TJUE, posição que já foi, aliás, subscrita pela Administração Tributária17, o direito à dedução, uma vez adquirido, subsiste mesmo que a actividade económica projectada não dê origem a operações tributáveis ou o sujeito passivo, por motivos alheios à sua vontade, não tenha podido utilizar os bens ou serviços que deram origem à dedução no âmbito de operações tribu¬tá¬veis18.

Como o TJUE salienta, é a aquisição do bem pelo sujeito passivo, agindo nessa qualidade, que determina a aplicação do sistema do IVA e, portanto, do mecanismo de dedução19. O sujeito passivo actua nessa qualidade quando age para os fins da sua actividade económica, na acepção do artigo 9.°, n.° 1, segundo parágrafo, da DIVA20. Acresce que, como se conclui no Caso Intiem, o mecanismo da dedução do IVA regulado pela Sexta Directiva “deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das actividades profissionais do sujeito passivo”. 21

Isto é, como nota o TJUE, o princípio da neutralidade do IVA, no que se refere à carga fiscal da empresa, exige que as despesas de investimento efectuadas para as necessidades e para os objectivos de uma empresa sejam consideradas actividades económicas conferindo um direito à dedução do IVA imediato22.

Importa ainda notar que, em conformidade com a jurisprudência do TJUE, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Neste contexto, de acordo com o TJUE, desde que a Administração Fiscal disponha dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das operações, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito23.

Em resumo, da jurisprudência do TJUE resulta claro que o exercício do direito à dedução do IVA é um direito fundamental, que não pode ser limitado senão nos casos expressamente permitidos pelas normas do Direito da União Europeia ou pelos princípios gerais de direito aceites neste domínio, como o princípio do abuso de direito.”

 

2.3.2 Do princípio da prevalência da substância sobre a forma e dos requisitos do exercício do direito à dedução

 

O TJUE, em muitos arestos, afirmou um princípio de primado da substância económica sobre a forma. Veja-se nomeadamente neste contexto o Caso EMS, Processo C-284/11, n.º 71 e a jurisprudência aí referida. Pelo que toca ao incumprimento de obrigações contabilísticas, veja-se o Caso Radu Florin Salomie e Nicolae Vasile Oltean, no Processo C-183/14 com Acórdão de 9 de Julho de 2015.

Neste caso o TJUE veio salientar que o Tribunal declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos de forma (n.º 58), salientando que o Tribunal considera (n.º 63) que “sancionar o não cumprimento das obrigações contabilísticas e declarativas do sujeito passivo com a negação do direito de dedução vai claramente além do que é necessário para atingir o objetivo de assegurar a correta aplicação destas obrigações, tanto mais que o direito da União não impede os Estados-Membros de aplicarem, sendo caso disso, multas ou sanções pecuniárias proporcionadas à gravidade da infracção.”

O direito à dedução, como todo o sistema do IVA, não está dependente de formalidades administrativas, mas sim da real utilização dos bens em operações tributáveis e do exercício de uma actividade económica que origine operações sujeitas a IVA e dele não isentas.

A jurisprudência do TJUE,  ao  contrário  do  que  entendeu  a

Autoridade  Tributária  e  Aduaneira,  admite  o  direito  à  dedução  mesmo  que  o  documento  na posse do sujeito passivo não seja uma factura, fazendo prevalecer os princípios da neutralidade e da proporcionalidade sobre as exigências formais previstas nos artigos 178.º e 226.º da Directiva IVA.

Com efeito, o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA a montante seja concedida se as exigências de fundo foram cumpridas, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais» (Caso Ecotrade, Acórdão de 8 de Maio de 2008, Processos  C-95/07 e C-96/07, e Caso EMS, já referido).

Como se salientou no Acórdão de 21 de Dezembro de 2018 proferido no Caso Vădan relativo ao Processo C-664/16, onde se discutia uma situação relativa à inexistência de facturas, o sujeito passivo é obrigado a apresentar provas objectivas de que os bens e os serviços lhe foram efectivamente entregues ou prestados a montante pelos sujeitos passivos, para os fins das suas próprias operações sujeitas ao IVA, e relativamente aos quais tenha efectivamente pago IVA. Estes elementos de prova podem incluir, por exemplo, documentos na posse dos fornecedores ou prestadores de serviços a quem o sujeito passivo tenha adquirido bens ou serviços relativamente aos quais tenha pago IVA.

Assim, a aplicação estrita do requisito formal de apresentar facturas colide com os princípios da neutralidade e da proporcionalidade, pois teria por efeito impedir de forma desproporcionada o sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal correspondente às suas operações.

No denominado Caso Barlis, com Acórdão do TJUE de 15 de Setembro de 2016, proferido no Processo C- 516/14, o TJUE foi chamado a pronunciar-se através da submissão de um pedido de reenvio prejudicial formulado pelo Tribunal Arbitral no contexto do Processo n.º 3/2014-T, com decisão de 6 de Dezembro de 2016.

O Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Em consequência, a Administração Fiscal não pode recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de a factura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.ºs 6 e 7, da Directiva IVA, se dispuser dos os dados para verificar se

 os  requisitos  substantivos  relativos  a  este  direito  estão  preenchidos ( n.ºs 42 e 43).

Ou seja, o TJUE, mais uma vez, concluiu que, de acordo com o Direito da União, a substância prevalece sobre a forma, apenas podendo obstar-se à dedução do imposto quando os defeitos formais dos documentos de suporte sejam de tal ordem que impeçam a verificação dos requisitos substanciais. Mais, as deficiências formais dos documentos de suporte podem ser supridas por outra informação, neles omissa, mas ao alcance da AT, que permita aperceber a substância subjacente a esses documentos.

De notar que já antes nos Processos Arbitrais n.ºs 148/2012-T, 61/2013-T, 411/2014-T e 759/2014-T, se tinha feito notar que, conforme sufragado no âmbito do Processo C-368/09, de 15 de Julho de 2010, do TJUE, “não é legítimo aos Estados Membros associar o exercício do direito à dedução do IVA ao preenchimento de pressupostos relativos ao conteúdo das facturas que não estão expressamente previstos nas disposições da Directiva 2006/112. Esta interpretação é igualmente corroborada pelo artigo 273º desta directiva, que prevê que os Estados Membros podem impor obrigações que considerem necessárias para assegurar a exacta percepção da IVA e para evitar a fraude, mas que esta faculdade não pode ser utilizada para impor obrigações de facturação suplementares às fixadas, designadamente, no artigo 226º da referida directiva”. Isto significa que, conforme jurisprudência do TJUE, embora esta disposição permita aos Estados membros a adopção de determinadas medidas, estas não deverão, todavia, ir para além do que é necessário para atingir esse fim e não poderão, por isso, ser utilizadas de tal forma que ponham sistematicamente em causa o direito à dedução do IVA, que é um princípio fundamental do sistema comum do IVA (v. Acórdãos de 18 de Dezembro de 1997, Caso Molenheide, Procs. C-286/94, C-340/95, C-401/95 e C-47/96, nº 47).”

O mesmo raciocínio foi aplicado posteriormente, nomeadamente nos Processos Arbitrais n.ºs 925/2019-T, de 21 de Setembro de 2020 e n.º 266/2020-T, de 24 de Dezembro de 2020.

Na decisão arbitral de 17 de Junho de 2020, proferida no Processo n.º 577/2019-T, concluiu-se que, “a «Administração Fiscal não deve limitar se ao exame da própria factura», mas deve igualmente ter em conta «informações complementares prestadas pelo sujeito passivo», constatação essa que é confirmada pelo artigo 219.º da Diretiva 2006/112 «que equipara a factura qualquer documento ou mensagem que altere a factura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca» (§ 44). Esses mesmos critérios têm sido seguidos em diversos outros arestos, nomeadamente nos acórdãos tirados nos Processos n.ºs C-95/07 e C-96/07 (§§ 64, 66 e 67), no Processo n.º C-368/09 (§§ 39, 40 e 41) e no Processo n.º C-271/12 (§28). Em resumo, conforme conclui SÉRGIO VASQUES, podemos dizer que o TJUE tem vindo a relativizar de algum modo os requisitos de forma para o exercício do direito à dedução e a função que nisso cabe às facturas. O tribunal admite que a substância das operações prevaleça sobre os vícios da factura, quando estejam em causa elementos previstos exclusivamente na lei interna dos Estados-membros, e na limitada medida em que a Directiva IVA permite a sua introdução. E o tribunal admite mesmo que a substância das operações prevaleça sobre os vícios das facturas relativos a elementos tipificados na Directiva IVA, posto que não se crie com isso risco de fraude. [risco que, como se disse, se encontra afastado neste caso e não foi demonstrado ou sequer invocado pela AT]. O objectivo desta abordagem flexível é o de garantir o direito à dedução a qualquer sujeito passivo que efectivamente tenha suportado o pagamento do imposto.”

Veja-se igualmente no mesmo sentido, designadamente, o Acórdão do TCA Sul de 21 de Maio de 2020 proferido no Proc. 439/09.6BESNT, de acordo com o qual: “As facturas devem «conter um conjunto de elementos obrigatórios, que permitam identificar os sujeitos passivos envolvidos, a natureza da operação realizada, o momento da sua realização, o valor tributável e o IVA devido (…)». «As facturas que contenham os elementos obrigatórios previstos no CIVA consideram-se passadas na forma legal para efeitos do exercício do direito à dedução, sendo entendimento do [Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE] que os Estados membros só podem associar o exercício do direito à dedução à observância das condições relativas ao conteúdo das faturas expressamente previstas na [Directiva IVA]». O TJUE tem sublinhado que «[o] princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se as exigências materiais forem observadas, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais … [O TJUE] declarou que sancionar o não cumprimento das obrigações contabilísticas e declarativas do sujeito passivo com a negação do direito à dedução vai claramente além do que é necessário para atingir o objetivo de assegurar a correta aplicação destas obrigações (...). Poderia assim não suceder se a violação dessas exigências formais tivesse por efeito impedir a prova certa de que as exigências materiais foram observadas (...). Com efeito, a recusa do direito à dedução é mais dependente da falta dos dados necessários para apurar se essas exigências materiais estavam cumpridas do que do não cumprimento de uma exigência formal (...). Do mesmo modo, o direito à dedução pode ser recusado quando se provar, com base em elementos objetivos, que esse direito é invocado de maneira fraudulenta ou abusiva…».”

O direito à dedução, como todo o sistema do IVA, não está dependente de formalidades administrativas, mas sim da real utilização dos bens em operações tributáveis e do exercício de uma actividade económica que origine operações sujeitas a IVA e dele não isentas. Significativo a este propósito é o Acórdão PPUH Stehcemp, de 22 de Outubro de 2015 (Processo C-277/14), onde se pode ler que a qualidade de sujeito passivo não depende de uma qualquer autorização ou licença concedida pela Administração para o exercício de uma actividade económica. No caso concreto, tratava-se de um vendedor de combustíveis que não possuía licença administrativa para se dedicar a essa venda.

Ou seja, o TJUE encara com grande amplitude o preenchimento de requisitos substantivos do direito à dedução.

O incumprimento ou o deficiente cumprimento das exigências formais relativas às facturas não tem como consequência fatal a sua desconsideração para efeitos do direito ao reembolso do IVA, como se pretende na situação controvertida, onde, como vimos, o entendimento da AT assenta exclusivamente numa mera formalidade, em prejuízo da verdade material subjacente, suportada em documentação e prova testemunhal e em factos púbicos e notórios.

Desde que as facturas ou documentos equivalentes permitam à AT aperceber a realidade material que lhes subjaz, de modo a poder exercer os seus poderes de fiscalização, determinar a taxa e proceder à cobrança, o direito à dedução do imposto não deve ser obstaculizado só porque os aludidos documentos não respeitam todas as exigências formais.

É assim acto claro que, em decorrência da jurisprudência comunitária, as condições formais do direito à dedução cedem perante o preenchimento das condições substanciais.

Registe-se ainda que é irrelevante para o efeito que, como se alega no projecto de decisão na p. 34, a Requerente demonstre o cumprimento do dever de obtenção de autorização de utilização, bem como do dever de atualização das matrizes prediais,  imposto pelo n.º 1 do artigo 14.º do CCA e  pelo n.º 1 do artigo 13.º do CIMI.

 

2.3.3 Dos pressupostos da obrigação de regularização

 

Como elucidam os Professores Xavier de Basto e Odete Oliveira no seu Parecer, para exercer o direito à dedução o sujeito passivo tomará uma decisão ao tempo da aquisição dos bens e serviços sobre se e em que extensão a dedução do IVA deve ser operada. De acordo com o previsto nos artigos 167.º e 168.º da Directiva IVA, o direito à dedução pode ser exercido integral e imediatamente, mesmo que o bem em causa não seja imediatamente utilizado para efeitos da actividade económica da empresa, como se decidiu no Acórdão de 22 de Março de 2012 proferido no Caso Klub, Processo C-153/11, e realçou a advogada geral J. Kokott, nas Conclusões do Acórdão Sveda, Processo C-126/14, de 22 Outubro 2015), “[d]e acordo com o disposto no artigo 167.°, em conjugação com o artigo 63.° da Diretiva IVA, a dedução do imposto pago a montante é conferida regularmente desde logo no momento da aquisição de um bem, com base na sua utilização prevista. ….” .

Como elucidam, “Pode, todavia, acontecer que se apure posteriormente que essa primeira e inicial dedução se mostre incorrecta, no sentido de que ela deve ser superior ou inferior ao montante que foi imediatamente deduzido. Segundo o artigo 184º da Directiva, a dedução inicial deve ser ajustada (recalculada na terminologia preferida de Ben Terra e Julie Kajus1 ), quando tiver sido maior ou menor do que aquela a que o sujeito passivo tinha direito ou, quando depois da entrega da declaração do período a que respeite, ocorram alterações nos factores utilizados para determinar o valor a ser deduzido. Se, após a dedução, a compra for cancelada ou anulada no todo ou em parte, se for obtida uma redução de preço, deve recalcular-se a dedução no seu correcto valor, de forma que continue a manter-se a ligação directa e estreita entre IVA suportado e valor da dedução. Trata-se de um primeiro “afinamento”, previsto no artigo 185º número 1, que integra o sistema de dedução do IVA estabelecido pela Directiva, e cujo objectivo é o de assegurar ou garantir a precisão das deduções que emprestam ao imposto a sua neutralidade, fazendo com que desde o primeiro momento as aquisições continuam a dar direito a dedução desde que o hajam sido para a realização de operações tributáveis a jusante.

(…)

Previsto está também um outro tipo de ajustamentos (também chamados regularizações), que resultam de circunstâncias diferentes e já não visam a quantificação exacta da dedução originária. De facto, os habitualmente designados por bens de capital ou bens de investimento têm utilização que se estende por um horizonte temporal mais largo do que os bens e serviços consumíveis. Compreende-se, pois, que a legislação comunitária do IVA defina para tais bens um “período de vida IVA”, da mesma forma que, no seu tratamento para efeitos da tributação do rendimento, tais bens vêem definido um período de vida física, de vida útil ou de vida económica. Os artigos 187º a 191º da Directiva (que seguiam na linha do artigo 20º da anterior Sexta Directiva) estabelecem um regime específico de ajustamento para os referidos bens de capital ou de investimento, comportando um procedimento para calcular ajustamentos à dedução inicial, durante os anos que o período de vida IVA comporta, quando ao longo dos intervalos anuais que integram esse período ocorram alterações no exercício da actividade que conduzam a quantificar diferentemente o respectivo direito a dedução relativamente à sua medida no momento da dedução inicial. Assim se assegurará que durante o período de ajustamento o IVA deduzido espelhe sempre o uso real do bem na actividade desenvolvida. Este regime de ajustamentos para os bens de capital aplica-se quando se adquirem bens de capital na qualidade de sujeito passivo, haja intenção inicial de os usar numa actividade económica com o conceito que a esta é dado pela Directiva (Acórdão Lennartz, C-97/90, de 11 de Julho de 1991, parágrafos 14 a 16), comportando tal actividade operações que conferem direito a dedução a par de outras que não concedem tal direito, e sendo os referidos bens de uso indistinto num e noutro tipo dessas operações. Importa realçar, como ficou dito em reiterada jurisprudência do Tribunal Europeu de Justiça que este ajustamento apresenta uma natureza especial, nada tendo a ver com a inicial dedução. O seu objectivo é o de assegurar ao longo do seu decurso a correcção e adequação das deduções e, consequentemente, a neutralidade da carga fiscal à actividade económica exercida pelo sujeito passivo seu detentor, como expressamente se diz no Acórdão Uudenkaupungin Kaupunki, Processo C184/04, de 30 de Março de 2006. Assim, o ajustamento será espalhado ao longo de um período de cinco anos para os bens móveis corpóreos e entre 10 e 20 para os bens imóveis, de acordo com a opção de cada Estado Membro. Trata-se ao cabo e ao resto de monitorizar a utilização do bem durante esse dito período de vida dos bens para efeitos do IVA. Para a aplicação deste regime especial de ajustamento dos bens de capital, podem os Estados Membros definir o conceito de “bens de capital” (artigo 189º a) da Directiva). Não existe uma interpretação autónoma e uniforme de bens de capital para este efeito (Acórdão Nordania Finans and BG Factoring, C-98/07, de 6 de Março de 2008), de onde resulta que o tipo de bens que estão sujeitos ao regime de ajustamento pode variar nos diferentes Estados Membros. Num caso típico, com um período de ajustamento de cinco anos, o 15 ajustamento anual será um quinto (artigo 187º, número 2, da Directiva), e deverá ser feito com base nas variações do direito a dedução ao longo dos anos (artigo 187º número 2, segundo parágrafo, da Directiva), se for caso disso. Desde que se trate de sujeitos passivos que pratiquem apenas operações sujeitas a tributação e dela não isentas por isenção simples ou incompleta, não ocorrerá qualquer ajustamento ou regularização, podendo dizer-se que o campo de aplicação por excelência deste regime especial de ajustamento, será o dos sujeitos passivos que, desenvolvendo uma actividade que comporta operações que concedem direito a dedução e outras que não concedem tal direito, afectem tais bens conjuntamente a transmissões de bens ou prestações de serviços de um e de outro tipo. São os bens que a doutrina italiana designa como “beni di produzione promiscui”. Conexa com esta situação, mas com expressa previsão normativa, está a ocorrência de transmissão dos bens de capital ou de investimento durante o período de regularização. É o artigo 188º da Directiva que regula esta matéria, determinando a obrigatoriedade de processar um ajustamento da dedução inicial praticada visando o horizonte temporal que resta para o esgotamento do período de vida IVA do bem, considerando que os bens de capital devem ser tratados como se estivessem afectos a uma actividade económica do sujeito passivo até ao fim do período de ajustamento (artigo 188º número 2 da Directiva), actividade essa presumida como: - integralmente tributada se a transmissão dos bens de capital for tributada (artigo 188º número 1 da Directiva); 16 - totalmente isenta (artigo 188º número 1 da Directiva), na situação contrária, i.e. quando a transmissão dos bens não for tributada, admitindo-se porém, neste caso, que os Estados Membros possam renunciar à exigência de ajustamento quando o adquirente seja um sujeito passivo que vá usar os bens adquiridos apenas para operações relativamente às quais o IVA seja dedutível (ainda artigo 188º, número 1 da Directiva). As regularizações durante o período de vida dos bens de capital ou de investimento implicam como pressupostos: - que se trate desse tipo de bens, sendo certo que a Directiva remete o conceito para os Estados Membros; - que a ajustamento ocorra durante desse período, estabelecido em cinco anos para os bens móveis e podendo ser prorrogado até vinte anos para os imóveis, segundo a opção de cada Estado Membro (artigo 187º número 1); - que haja conhecimento exacto e concreto do quantum da dedução inicial praticada relativamente a esse bem, entendendo-se como tal a global e definitiva ao tempo da aquisição, fabrico, utilização ou ocupação, segundo opção dos Estados Membros. Isto significa que a dedução definitiva será a calculada inicialmente ou recalculada nos termos do artigo 184º, se for caso disso e terá em conta, quando os bens não sejam adquiridos mas sim fabricados ou construídos, o valor dos gastos ou custos que, de acordo com critérios adequados lhes devam ser imputados. A Directiva define como início do período de ajustamento ou regularização o ano em que os bens tenham sido adquiridos ou produzidos, com a 17 faculdade de os Estados-Membros poderem tomar como base o início da utilização dos bens em questão (artigo 187º número 2). 2.2 O regime das regularizações no CIVA Posto isto, vejamos como transpôs o legislador nacional esta disciplina das deduções relativas a bens de capital ou bens de investimento para o articulado do Código do IVA. Os ajustamentos à dedução inicial a que possa haver lugar, aqueles que vimos estabelecidos nos artigos 184º e 185º da Directiva, foram incluídos como Regularizações no artigo 78º do CIVA. Não tem interesse para a problemática envolvida na Consulta descrever aqui as regras aplicáveis a estas regularizações. São os ajustamentos ou regularizações relativos a bens de capital ou de investimento, regulados na Directiva nos artigos 187º a 192º, que importa aqui analisar. As disposições citadas da Directiva deram lugar aos artigos 24º, 25º e 26º do Código do IVA, sem que o legislador doméstico tenha feito uso da faculdade de definir para o efeito o conceito de bens de investimento, nem a de considerar bens de investimento os serviços que tenham características idênticas às que são habitualmente atribuídas aos bens de investimento. Esta é a problemática relevante no caso que nos ocupa, pelo que justifica uma análise mais detalhada da disciplina dos artigos 24º a 26º do CIVA, por contraposição à da Directiva IVA. Quanto ao artigo 24º, a disciplina, nos seus quatro primeiros números, abrange apenas os sujeitos passivos com direito a dedução parcial, dada a 18 referência expressa no texto legal às regras de “percentagem de dedução” e da “afectação real”, numa remissão incontestável para o regime do artigo 23º - Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista. É o que, com efeito, se retira dos números 1, 2, 3 e 4 do artigo em análise. Englobaram-se pois nesses primeiros números do artigo 24º os ajustamentos ao longo do período de vida IVA do bem, sempre que haja variação na percentagem geral de dedução (método da percentagem de dedução ou prorata) ou variações na intensidade do uso de bens em operações com direito a dedução e operações sem direito a dedução (método da afectação real). O número 5 tem como hipótese a transmissão de bens do activo imobilizado durante o período de regularização. Em nossa opinião, todavia, a norma, tal como nos números anteriores, é ainda direccionada para os sujeitos passivos cuja actividade comporta conjuntamente operações que concedem direito a dedução e operações não conferentes de tal direito, sendo os bens transmitidos bens de uso “promíscuo” nesses dois tipos de operações a jusante. Na verdade, a transmissão de bens do activo imobilizado (não imóveis) por sujeitos passivos “integrais”, isto é, que só praticam operações tributadas com direito à dedução – e portanto não modulam o seu direito à dedução pelas regras do pro rata ou da afectação real – nunca origina, segundo a lei, qualquer obrigação de regularizar as deduções. O que acontece então é que o bem do activo imobilizado transmitido deve ser sujeito ao IVA, salvo no caso de ter sido adquirido com exclusão do direito à dedução, nos termos do nº 1 do artigo 21º. É que, neste último caso, 19 essa transmissão beneficia da isenção de IVA constante da segunda parte do número 32 do artigo 9º2 . Só podem ser essas as consequências da transmissão de bens (não imóveis) do activo imobilizado; nunca porém essa transmissão conduz a regularização nos termos do número 5 do artigo 24º, que está moldado para as situações em que o direito à dedução se encontra limitado pela regra do pro rata ou da afectação real. Este nosso entendimento, por outro lado, tem plena confirmação no texto legal. Basta contrastar a redacção deste número 5 com o número seguinte, que regula a transmissão de bens imóveis. Com efeito, no número 6, o legislador entendeu dever prevenir expressamente as situações em que houve direito a dedução total ou parcial do imposto que onerou a construção, aquisição ou outras despesas de investimento relacionadas com imóveis. Dedução total ou parcial, sublinhe-se, o que implica que não estamos agora exclusivamente perante sujeitos passivos com inputs promíscuos, também designados por vezes “sujeitos passivos mistos”, com operações tributadas e operações isentas, sem direito à dedução. Englobam-se aqui também os sujeitos passivos que só praticam operações que conferem direito a deduzir o imposto suportado a montante os sujeitos passivos “integrais”, como é o caso da sociedade consulente. A norma porém, limita-se a mandar proceder a regularização nas situações contempladas nas alíneas a), b) e c), e não contempla a transmissão dos imóveis. 2 A venda de um bem do activo imobilizado a um sujeito passivo de um outro Estado membro da União Europeia constituirá uma transmissão intracomunitária, igualmente isenta de IVA, agora ao abrigo das disposições aplicáveis do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias (RITI). 20 Não há dúvida que, para o bom funcionamento do imposto a regularização deveria ocorrer também em caso de alienação dos imóveis com isenção de imposto. Bastaria que se acrescentasse ao referido número 6 uma nova alínea que obrigasse à regularização no caso de o imóvel ser objecto de uma transmissão isenta. Mas não é isso que consta do texto legal.

Voltando ao artigo 24º do Código do IVA português, entendemos que, nos seus números 1 a 5, não se comportam as regularizações relativas a bens do activo imobilizado afectos a operações efectuadas por sujeitos passivos cuja actividade confere integral direito a dedução do imposto suportado, em geral, bem como a regularização nos casos de transmissão desses mesmos bens. Sendo certo que o normativo constante do número 6 do mesmo artigo 24º, contém disposições aplicáveis ao caso específico dos imóveis relativamente aos quais tenha havido direito a dedução total ou parcial, também é certo que a sua estatuição não comporta a alienação dos imóveis, já que a mesma não vem expressamente referida em qualquer das três alíneas da referida disposição. Como enquadrar então a saída dum imóvel do acervo empresarial onde esteve afecto a operações tributáveis e tributadas, ou seja com integral direito a dedução do imposto a montante suportado, quando é certo que, salvo no caso de renúncia, as transmissões de imóveis são entre nós isentas de imposto? A economia do imposto e a construção jurídica em que assenta, nomeadamente quanto à legitimação da dedução, não pode deixar de implicar que tal saída, se for isenta de IVA, como é o caso da transmissão de imóveis sem renúncia à isenção, desencadeie as devidas consequências em termos de um ajustamento do direito à dedução que foi exercido, e bem exercido, no pressuposto concretizado da sua utilização ao serviço de transmissões de bens sujeitas ao imposto e dele não isentas. Qual será então a solução? A resposta parece remeter para o artigo 26º. Vejamos. É o artigo 26º que trata dos imóveis cujo imposto foi objecto de dedução, total ou parcial, de IVA4 , e impõe a regularização das deduções sempre que os imóveis sejam desafectos das actividades empresarias que legitimaram a dedução, quer porque passem a ser utilizados para outros fins, quer porque, continuando no acervo empresarial, passem a ser afectos a utilizações determinantes da limitação ou exclusão do direito a dedução – é esse o caso da sua afectação a recepções ou acolhimento de pessoas estranhas à empresa (alínea d) do número 1 do artigo 21º). Ora, a sua transmissão – excepto no caso em que adquirente seja, ou se torne pelo facto da aquisição, sujeito passivo do imposto, de modo a preencher a figura do designado going concern5 – o mesmo é dizer a sua transmissão isenta, fruto da isenção objectiva consagrada no número 30 do artigo 9º, determina, ipso facto e como natural consequência que se verifique a “não utilização em fins da empresa” de bens imóveis relativamente aos quais houve dedução do imposto” e consequentemente haverá lugar à regularização da dedução, nos termos aí previstos, ou seja, não “de uma só vez” (como resultaria do nº 5 do artigo 24º), mas pro rata temporis. Parece-nos ser esta a melhor leitura da lei, que não pode deixar de prever a regularização das deduções praticadas em bens imóveis, alienados durante o período de regularização, sob pena de adulterar o funcionamento do imposto, já que o legislador português optou por isentar do imposto, salvo renúncia, a transmissão de imóveis. O número 1 desse artigo usa a expressão “dedução do imposto”, enquanto o º 2 já refere “dedução total ou parcial do imposto”. Trata-se, a nosso ver, apenas de um descuido na redacção das normas, de que não pode retirar-se nenhum efeito interpretativo. A dedução referida no número 1 é obviamente tanto a dedução total como a dedução parcial. Ubi lex non distinguit…. Uma transmissão nessas condições não seria considerada sequer transmissão de bens, de acordo com o número 4 do artigo 2º do CIVA. O lugar do normativo desta regularização não é, todavia, como julgamos que frequentemente se entende, o número 5 do artigo 24º, mas antes o artigo 26º6 . A duração do período de regularização vem estabelecida no nº 2 do artigo 24, disposição para a qual remete o artigo 26º, número 1, que entendemos ser aplicável ao caso em exame. O início do período de regularização para os bens imóveis está previsto no nº 2 do artigo 24º onde se pode ler: “2 - São também regularizadas anualmente as deduções efectuadas quanto às despesas de investimento em bens imóveis se entre a percentagem definitiva a que se refere o artigo anterior aplicável no ano de ocupação do bem e em cada um dos 19 anos civis posteriores e a que tiver sido apurada no ano da aquisição ou da conclusão das obras houver uma diferença, para mais ou para menos, igual ou superior a cinco pontos percentuais. Quer dizer: para os imóveis, o início do período de ajustamento será o ano da ocupação7 . 6 Sistematicamente, como vimos, a norma aplicável a esta situação jurídica estaria mais bem colocada no nº 6 do artigo 24º, mas a transmissão isenta de imóveis não se encontra em nenhuma das alíneas desse número, ao contrário do que sucede com a locação isenta, referida na alínea c). 7 A redação anterior do artigo 24º n.º 2 era a seguinte “2 - Serão também regularizadas anualmente as deduções efectuadas quanto às despesas de investimento em bens imóveis se entre a percentagem definitiva a que se refere o artigo anterior aplicável no ano da ocupação do bem e em cada um dos nove anos civis posteriores e a que tiver sido apurada no ano da aquisição ou da conclusão das obras houver uma diferença, para mais ou para menos, igual ou superior a cinco pontos percentuais.”

A redacção actual resulta do Decreto-Lei n.º 31/2001, de 8 de Fevereiro de 2001, com a seguinte disposição transitória “Artigo 6.º Disposições finais - 1 - A nova redacção dada aos artigos 24.º, 24.º-A e 25.º do Código do IVA e ao artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto, é aplicável aos bens imóveis cuja aquisição ou conclusão das obras tenha ocorrido a partir da data da entrada em vigor do presente diploma, mantendo-se a aplicação do regime anterior relativamente às situações ocorridas até àquela data.”

Prescreve o n.º 5 do artigo 24.º do CIVA ( único fundamento de direito das liquidações em apreço), que “Nos casos de transmissões de bens do activo imobilizado durante o período de regularização, esta é efetuada de uma só vez, pelo período ainda não decorrido, considerando-se que tais bens estão afetos a uma atividade totalmente tributada no ano em que se verifica a transmissão e nos restantes até ao esgotamento do prazo de regularização. Se, porém, a transmissão for isenta de imposto, nos termos dos n.os 30) ou 32) do artigo 9.º, considera-se que os bens estão afetos a uma atividade não tributada, devendo no primeiro caso efetuar-se a regularização respetiva.”

Por sua vez, determina o n.º 3 do artigo 24.º do CIVA, nas sua redacção actual, que a regularização relativa a bens do activo imobilizado obedecem ao seguinte procedimento: “a) No final do ano em que se iniciou a utilização ou ocupação e de cada um dos 4 ou 19 anos civis seguintes àquele, consoante o caso, calcula-se o montante da dedução que teria lugar na hipótese de a aquisição ou conclusão das obras em bens imóveis se ter verificado no ano em consideração, de acordo com a percentagem definitiva desse mesmo ano”.

No tocante à aplicação da regra constante do artigo 24.º do CIVA, entendemos, com os Professores Xavier de Basto e Odete Oliveira que esta norma apenas é aplicável a sujeitos passivos com direito a dedução parcial, ora, como vimos, a Requerente tem direito à dedução integral, pelo que não será desde logo aplicável na situação concreta o disposto no n.º5 da aludida norma.

Assim, distintamente do que se conclui na Decisão, há uma lacuna que deve ser preenchida da forma indicada no Parecer dos Professores.

Afirma-se ainda que, “Ainda que assim não fosse, a   parte final do nº 5 do art.º 24º é tipicamente aplicável apenas  a sujeitos passivos que, ainda que tivessem sido integrais no período   entre o exercício do direito à dedução e a alienação, vieram com esta a transformar-se em  mistos, em virtude de realizarem uma transmissão isenta nos termos do art.º 9º, n.º 30 do CIVA, por esta estar sujeita a IMT.” Ora, só aquando da venda com isenção, ou seja, em 5 de Outubro de 2015, é que se poderia falar na existência de um sujeito passivo misto.

 

2.3.4 Da contabilização das operações

 

Como se conclui no Parecer, não colhe argumentar que estão registados em “imobilizado em curso” – conta em que se inscrevem os gastos suportados com activos que não se encontram ainda disponíveis para o uso pretendido. Não é a contabilidade que determina o regime do direito à dedução, mas sim a realidade material que o rege, tendo os bens sido utilizados ou ocupados durante esses anos.

Tal como se salienta no Parecer, nos termos do normativo contabilístico aplicável, o investimento feito no Hotel já deveria ter sido sujeito a imparidade pela sua totalidade e/ou desreconhecido do balanço da Requerente, pelo que, para efeitos de IVA, não houve lugar a qualquer transferência de activo imobilizado susceptível de despoletar uma regularização do IVA deduzido (cf. pp. 37 a 42 do Parecer).

Como se salienta, houve naturalmente dedução do IVA nessas despesas de construção do que se projectava vir a ser um hotel, dedução que não pode ser posta em causa, nesse primeiro momento de apreciação da legalidade do seu exercício. Havia intenção de vir aí a exercer uma actividade sujeita a IVA e dele não isenta, pelo que foram preenchidas as condições substanciais que o Direito da UE, a nossa lei e a jurisprudência comunitária exigem para aferir da regularidade desse exercício. A circunstância de, posteriormente, se ter concluído, pela inviabilidade do projecto é irrelevante para estes efeitos, salvo no caso de se provar que houve abuso por parte da Requerente, o que nem sequer foi suscitado e está fora de causa. O bem deixou de ser utilizado em fins da empresa. O edificado tornou-se assim um custo irrecuperável, ou um custo “afundado” como por vezes é também designado, traduzindo à letra a expressão inglesa sunk cost. A sua qualificação como imobilizado em curso é claramente errónea. Eventualmente, do ponto de vista estritamente contabilístico, o “esqueleto do hotel”, de que a empresa já não espera vir a obter quaisquer rendimentos, nem deveria ser reconhecido como um activo. (cf. Parecer, p. 39/40). Como os Professores esclarecem no Parecer, deixando de ter viabilidade económica o bem em causa deixa de cumprir os critérios para que contabilisticamente seja reconhecido como um activo, pelo que há muito que o “esqueleto” do Hotel deveria ter sido sujeito a imparidade pela totalidade do seu e/ou desreconhecido do balanço da Requerente. Assim, e não se tratando de um activo, não há naturalmente lugar a qualquer regularização, mantendo-se o direito à dedução do IVA incorrido. Mais, ainda que assim não se entendesse, sempre se teria de reconhecer que o período de regularização que pudesse ser aplicado ao “esqueleto” do Hotel nos termos do art.º 26.º n.º 1 do CIVA começou a contar desde a data em que tal projecto foi abandonado.

Face às regras do Direito da UE transpostas no CIVA, não é legítimo proceder à regularização das deduções, efectuadas algumas delas há mais de vinte anos, só porque erradamente as respectivas despesas estavam contabilizadas em “imobilizado em curso”, caso, como sucedeu na situação controvertida, através de meios gerais de prova, se demonstre que muitas das obras que originaram aquelas despesas estavam a ser utilizadas em períodos bem anteriores, e já fora do período legal de regularização das deduções.

As deficiências contabilísticas imputáveis a um sujeito passivo não podem implicar, sem mais considerações, que se retirem consequências drásticas de forma a se retirar direito à dedução que foi legalmente exercido, quando se prove que as respectivas condições substanciais estão preenchidas.

Como é sabido, sobre a questão da presunção da contabilidade versus a verdade material, havendo erros contabilísticos, devem prevalecer os factos e provas apresentadas. A presunção de verdade da contabilidade, enquanto sistema de informação para os seus utentes - nomeadamente as entidades públicas como a administração fiscal, pode ser posta em causa pela AT ou pelo próprio contribuinte, caso se conclua que os registos e lançamentos contabilísticos estão errados ou imprecisos.

Tal como se esclarece no Acórdão de 7 de Maio de 2031 do TCA Sul relativo ao Processo 06418713, “Daí que a administração tributária tenha o ónus de demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar uma determinada operação que se encontre relevada na contabilidade do contribuinte, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte (atento o princípio da declaração e da veracidade da escrita vigente no nosso ordenamento jurídico), só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova de que as operações se realizaram efectivamente.

Todavia, não é necessário que a Administração tributária prove os pressupostos da simulação previstos no art° 240° do Código Civil (a exigência de divergência entre a declaração e a vontade negociai das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros), sendo prova suficiente a recolha de elementos indiciados que levem a concluir nesse sentido, isto é, de elementos sérios e objectivos, que traduzam uma probabilidade elevada de que os documentos não titulam operações reais.

E esses indícios podem colher-se não só junto da escrita e contabilidade de quem arquivou e relevou contabilisticamente os documentos em causa, como colher-se junto de elementos externos a essa contabilidade, sendo que só perante esses concretos indícios, essa elevada probabilidade, cessa a presunção de veracidade das operações constantes da escrita e dos respectivos documentos de suporte, passando então a competir ao contribuinte o ónus de provar que elas efectivamente se realizaram.

Quer dizer, a presunção cessa quando, estando, embora, a escrita ou contabilidade organizada de acordo com a lei haja "indícios fundados" de que, apesar da sua correcta organização, não reflecte a matéria tributável efectiva. Cabe nesta previsão, claramente, o caso de a contabilidade, impecavelmente organizada, se avaliada do ponto de visto técnico-contabilístico, no entanto incluir operações não efectuadas.”

O lançamento contabilístico feito pode e deve ser questionado se a realidade material for outra até porque, se assim não fosse, estaríamos a assumir que a informação contabilística é uma verdade infalível, o que constituiria um absurdo.

Por força da característica da fiabilidade, os factos são registados de acordo com a sua substância e realidade económica. As regras contabilísticas assumem que deve prevalecer o princípio da substância sobre a forma, pelo que as próprias normas podem ser derrogadas se tal for necessário para apresentar uma imagem verdadeira e apropriada da contabilidade.

Podem ou não ser aceites outros elementos de prova que não aqueles que estão registados na contabilidade? A jurisprudência relativa às operações simuladas ou “facturas falsas” é clara no sentido de aceitar que a AT pode apresentar outros elementos de prova como forma de ilidir a presunção de veracidade dos registos contabilísticos (a título de exemplo, veja-se o Acórdão do TCA Norte, Proc. 01981/08.1BEPRT). Mutatis mutandis, ao contribuinte devem ser assegurados os mesmos meios, tendo em vista a descoberta da verdade material.

Assim, entendemos que será acima de tudo relevante valorar a prova apresentada (ver artigo 268.ºda PI), nomeadamente todos os documentos que foram apresentados para o pedido de reembolso do IVA e que provam efectivamente a construção.

 

Vimos que se iniciou em 2001 a construção do hotel, conforme licença de construção, tendo sido abandonada em 2003, data em que caducou a licença de construção.

Do ponto de vista contabilístico, também este projecto foi reconhecido como “imobilizado em curso”, tendo assim permanecido, mesmo após o seu abandono.

Nos termos do parágrafo 49.º da Estrutura Conceptual, “um ativo é um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros.”

Os benefícios económicos futuros são, nos termos do parágrafo 52.º, o potencial de contribuir, directa ou indiretamente para o fluxo de caixa e equivalentes de caixa da entidade”.  Estes benefícios económicos podem fluir de diversas maneiras. Pode ser (i) usado isoladamente ou em combinação com outros activos na produção de bens ou serviços para serem vendidos pela entidade; (ii) trocados por outros activos; (iii) usado para liquidar um passivo; ou ser (iv) distribuído aos proprietários da entidade.

Perante o abandono da construção em 2003, o activo poderia ser desreconhecido no momento da alienação ou, como é o caso, quando não se espere futuros benefícios económicos do seu uso e alienação.

Ou seja, a partir do momento em que o projecto foi abandonado, numa fase ainda bem remota da sua conclusão, a conta do imobilizado em curso deveria ter sido movimentada para outra que traduzisse a realidade em causa.

Em termos de relevação contabilística, há-de registar-se uma imparidade na conta 65 do plano de contas do SNC, (que representaria um perda total de valor). Constata-se que o activo apresenta, para o negócio e para a criação de valor desse negócio, uma capacidade de geração de resultados que, se mensurada com pressupostos adequados, conduzirá a um valor diferente do que se encontra inscrito na contabilidade e, se esse valor apurado alternativamente se revelar inferior à quantia contabilizada, diremos que o activo que está reconhecido na contabilidade se encontra em imparidade. Sendo certo, aliás, que os activos em curso, como acontece com o imobilizado em curso de que tratamos, devem ser objecto de apreciação de imparidades (por não estarem sujeitos a depreciações). No caso vertente, a imparidade seria total e a quantia escriturada, após imparidade, seria nula. Ainda como opção possível, teríamos o registo do abate de activo, por contrapartida da conta 68, desreconhecendo-o do balanço. É a designação em linguagem contabilística actual de “activo imobilizado” que ainda consta do CIVA.

Só desta forma a contabilidade reflectirá o verdadeiro valor da empresa; reflectirá, em suma, a verdade do negócio. Por outro lado, para os efeitos do IVA, se não estamos sequer perante um activo, um activo fixo tangível, que seria um imóvel, não haverá lugar às regularizações das deduções específicas destes bens. De acordo com as regras contabilísticas adequadas, aquele “esqueleto de hotel”, que deveria ter sido abatido ao activo da empresa, não é um imóvel.

Só desta forma a contabilidade reflectirá o verdadeiro valor da empresa; reflectirá, em suma, a verdade do negócio. Por outro lado, para os efeitos do IVA, se não estamos sequer perante um activo, um activo fixo tangível, que seria um imóvel, não haverá lugar às regularizações das deduções específicas destes bens. De acordo com as regras contabilísticas adequadas, aquele “esqueleto de hotel”, que deveria ter sido abatido ao activo da empresa, não é um imóvel.

 

 

3.            Conclusões

 

Do exposto resultam, essencialmente as seguintes conclusões principais:

 

1. Como referimos, entendemos que no caso concreto há meios de prova suficientes, que, em conformidade com o entendimento sufragado pela jurisprudência e pela doutrina, comprovam a existência de operações tributadas em sede deste imposto e de diversas despesas que lhe foram afectas, devendo ser devidamente valorada a prova testemunhal.

Dos documentos juntos ao processo, bem como dos depoimentos das testemunhas, quer as ouvidas no procedimento de inspecção quer as inquiridas nos presentes autos, resulta que todo o IVA incorrido em data anterior a 2001 respeita em exclusivo aos imóveis afectos à actividade cinegética e à actividade florestal/agrícola/silvícola, sendo certo que os imóveis a estas afectos e as construções ou beneficiações levadas a cabo estava todas em plena utilização, caso contrário tais actividades não poderiam ter sido levadas a cabo.

A Requerente, nos anos 90, quando começou a preparação da Herdade E... para a actividade de coutada de caça, também suportou IVA por essas despesas antes de estar em condições de efectuar operações tributadas. Requereu e recebeu, nos termos da lei, reembolso do imposto a montante. A AT procedeu bem e não podia proceder de outra forma, pois é pacífico que, exceptuados os casos de fraude, o direito à dedução, tendo como pressuposto a realização de operações tributáveis, persiste mesmo que estas não estejam ainda a ser levadas a cabo e inicia-se com os chamados actos preparatórios. As deduções efectuadas nesses períodos foram pois inteiramente legais e não podem ser postas em causa.

No caso concreto a AT não invoca sequer a existência de fraude.

Não se pode igualmente invocar que no caso concreto não será aplicável a jurisprudência do TJUE sobre os actos preparatórios, pretendendo-se argumentar que o projecto do hotel não foi acabado,

Foi evidenciado através da prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos que não assiste razão à AT, sendo antes manifesto, no que respeita aos factos, que todo o IVA incorrido e deduzido até 2001 respeita a investimentos em imóveis e construções ocupados e em plena utilização, a essa data, na actividade desenvolvida na Herdade, a saber, a cinegética, silvícola e agrícola. Houve naturalmente dedução do IVA nessas despesas de construção do que se projectava vir a ser um hotel, dedução que não pode ser posta em causa, havendo intenção de vir aí a exercer uma actividade sujeita a IVA e dele não isenta, pelo que foram preenchidas as condições substanciais que a nossa lei, a Directiva IVA e a jurisprudência comunitária exigem para aferir da regularidade desse exercício. A circunstância de, posteriormente, se ter concluído pela inviabilidade do projecto é irrelevante para estes efeitos, salvo em caso de se provar que houve abuso.

Sendo certo que o IVA incorrido entre 2002 e 2015, na parte respeitante à construção do Hotel, não deve igualmente ser objecto de qualquer regularização, uma vez que este projecto parou e foi abandonado em 2003 por dificuldades económicas.

 

2. Com efeito, o facto de a construção do hotel não ter terminado não é igualmente fundamento para negar o direito à dedução, tendo a Requerente incorrido em diversas despesas que são afectas a tal actividade económica que se iniciou que devem ser objecto de dedução.

De facto, tais deduções foram efectuadas no pressuposto real e verificado da intenção de utilizar o hotel em operações tributáveis, ainda que tais operações acabassem por não se concretizar (jurisprudência do Caso Inzo, confirmada no Processo Ryanair, Processo C-249/17, Acórdão de 17 de Outubro de 2018). Mas, ainda que erradamente assim se não entendesse, entendendo-se que o esqueleto do hotel, nunca utilizado, impunha regularização da dedução do IVA contido nas despesas da sua construção, não pode ser a venda da Herdade em 2015 que desencadeia a operação de regularizar, mantendo em aberto integralmente o período de regularização. O período de regularização começa neste caso no momento do abandono do projecto, e não no momento da venda. Ora tal facto ocorreu em 2003.

 

3. Ou seja, aqui chegados pergunta-se se estão preenchidos no caso os pressupostos para desencadear a obrigação de regularização das deduções pretendida pela AT.

A regularização exigível deveria ser realizada ano a ano, a partir de 2003 e levada à última declaração do ano a que respeita, conforme determina o artigo 26.º, n.º 1, que é, a nosso ver, a norma aplicável a um sujeito passivo que teve direito à dedução integral do IVA suportado. Seria a partir daquele ano, se se provar que foi então que houve desafectação do bem imóvel a qualquer finalidade produtiva, que começou a contar o prazo de regularização, o que implicaria que vários vinte avos do imposto suportado estejam fora de qualquer regularização, devendo, relativamente a eles, já ter operado a caducidade da liquidação. Datando a inspecção de 2019, a bem dizer a AT poderia ter direito a exigir a regularização do ano de 2015, por ser o único ano não abrangido ainda pelo prazo de caducidade.

Estamos perante uma entidade com direito à dedução integral do IVA. Ora, o fundamento legal da obrigação de regularizar, no caso dos bens imóveis de um sujeito passivo com direito a dedução integral do IVA, neste caso, não se pode encontrar no n.º 5 do artigo 24.º, como se defende no projecto de decisão secundarizando o entendimento da AT, decorrendo daí uma regularização a efectuar “de uma só vez”.

Como salientam os Professores Xavier de Basto e Odete Oliveira, em entendimento que totalmente partilhamos, uma transmissão isenta de IVA, como é o caso da transmissão da Herdade e o ajustamento do imposto deduzido não tem enquadramento no artigo 24.º do CIVA, como sustenta a AT, e cujo regime é fundamento único das liquidações em causa, mas antes no artigo 26.º do CIVA (cf. pp. 23 e ss do Parecer).

Assim sendo, como vimos, apenas ao abrigo do disposto no artigo 26.º do CIVA é que poderíamos subsumir a situação em apreço, só podendo este normativo servir de fundamento às liquidações em causa.

Ou seja, entendemos que apenas no âmbito do artigo 26.º do CIVA se poderia fundamentar uma regularização do IVA deduzido pela Requerente, que seria sempre pro rata temporis, ano a ano de 1/20 do imposto inicialmente deduzido, e nunca pela totalidade do imposto deduzido de uma só vez. Isto é, mesmo que fosse este o fundamento legal das liquidações seriam ilegais por apenas ser exigível a regularização de uma parte do IVA deduzido, e nunca a sua totalidade.

O prazo de regularização do IVA deduzido relativamente a bens do activo imobilizado era de 10 anos até 13 de Fevereiro de 2001 e de 20 anos daí em diante.

Todos os bens do imobilizado da Requerente cujas obras realizadas na Herdade foram concluídas até 13 de Fevereiro de 2001 - isto é, todos os investimentos realizados na Herdade à excepção do Hotel - ficam sujeitos a um prazo de regularização do correspondente IVA deduzido de 10 anos.

Em suma, entendemos que não se encontram preenchidos os pressupostos legais previstos nas aludidas normas para que recaísse sobre a Requerente a obrigação de regularização relativamente a todos os investimentos realizados com excepção dos respeitantes ao Hotel.

Acresce que as liquidações em apreço sempre seriam ilegais, na parte respeitante ao IVA incorrido com os investimentos em todos os demais bens do activo imobilizado que não o Hotel, na medida em que demonstradamente todas as construções e instalações foram concluídas e estavam em plena utilização antes de 2001, data em que o período de regularização era de 10 anos e terminou muito antes de 2015.

 

4. Não podemos com base em argumentos meramente formais ou a errada inscrição contabilística dos investimentos realizados pela Requerente refutar factos que resultam provados, fazendo prevalecer a forma sobre a substância.

Dado que as obras do hotel apenas iniciaram em 2001, o IVA incorrido pelo menos até 2000, no montante de € 512.655,42 é exclusivamente respeitante aos bens do activo imobilizado afectos à actividade cinegética e florestal/silvícola/agrícola e estavam em utilização, pelo que o período de regularização de tal imposto terminou em 2010.

É o caso das obras com a vedação da Herdade, com a construção das charcas ou bebedouros e dos caminhos florestais, com as habitações para o pessoal da Herdade, que serviram depois para alojamento dos próprios caçadores, com o posto de transformação de energia eléctrica. Vimos que a própria AT o reconheceu implicitamente aquando das inspecções que levou a cabo para controlar os pedidos de reembolso de IVA requeridos pelo sujeito passivo. Não só admitiu a regularidade das deduções iniciais do IVA, como acabou por atestar que os bens em causa estavam a ser utilizados (constando, como sempre constaram de “imobilizado em curso”).

A AT não pode presumir que todo o IVA deduzido tem de ser objecto de regularização, por ausência de utilização dos bens do activo imobilizado, quando, nos anos de 1994, 1995, 1996 e 1997, através de métodos indirectos, apurou IVA em falta e procedeu a liquidações adicionais de imposto. Não pode agora a AT vir entender que os bens, cujo IVA foi deduzido nesses períodos, não estavam, nessa época, a ser utilizados ou ocupados se apurou que houve utilização deles para a realização de prestações de serviços gratuitas e como tal tributáveis, liquidando o imposto devido.

Ao fazê-lo incorre em venire contra factum proprium.

Como se conclui no Parecer, não colhe argumentar que estão registados em “imobilizado em curso” – conta em que se inscrevem os gastos suportados com activos que não se encontram ainda disponíveis para o uso pretendido. Não é a contabilidade que determina o regime do direito à dedução, mas sim a realidade material que o rege, tendo os bens sido utilizados ou ocupados durante esses anos.

Em concreto, a prova produzida foi essencialmente a seguinte:

(i) Relatórios da inspecção da AT ao longo dos anos que demonstram a existência do imobilizado, como por exemplo:

             “−  “Foi possível confirmar no local e de acordo com a informação fornecida pelo Sr. F..., [que] E... é uma herdade com 1800 hectares, tendo 480 hectares sido reflorestados com pinheiros.

               Existe ainda na herdade um centro de nidificação para criação de 5000 perdizes que se destina à caça, diversos armazéns, bem como pequenas habitações que se destinam aos vigias e empregados,

               também foi construído pequenas barragens e 15 pequenos apartamentos que se destinam aos futuros clientes.

               Está a ser construído um hotel com 145 quartos e está previsto a construção de um campo de golfe”. “

− cf. p. 79 do Doc. 9.

(ii) Estudo de Impacto ambiental identifica as construções

“O estudo de impacte ambiental realizado em 2005 (disponível em https://siaia.apambiente.pt/AIADOC/AIA1390/RNT1390.pdf), verificamos que este estudo, feito a propósito dos futuros campos de golfe (que nunca iniciaram sequer a sua construção), já identifica, na parcela da Herdade a que o estudo se refere, as construções existentes em tal parcela (os pavilhões geminados, 5 charcas e o hotel, cuja construção havia sido abandonada em 2003.”

 (iii) Prova testemunhal e documentos comprovativos de consumos de gás, electricidade e comunicações datados de 2006 que precisamente demonstram (não fosse já o depoimento das testemunhas também nessa sede) a ocupação destes imóveis (muito) anterior a 2015 – cf. Doc. 4.

(iv) Comprovativos em sites de instituições públicas da construção e características da “Barragem”

Barragem tinha capacidade para 317.000 m3 de água (como resulta da informação constante do site https://cnpgb.apambiente.pt/...

(v) Resultados apresentados junto da Direcção Geral das Florestas (entidade competente para o efeito), por referência a cada época venatória (período durante o qual é permitida a prática da caça, e que nos termos do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 247-A/88, de 03/08/1988 e do artigo 3.º do Decreto-Lei 251/92 de 12/11/1992 que substituiu aquela, decorria entre 1 de Junho de cada ano e 31 de Maio do ano seguinte), os resultados da exploração cinegética, que dão nota do número de jornadas de caça em cada época, bem como das espécies e quantidade de animais abatidos em cada época.

Da prova apresentada, afigura-se-nos assim ter ficado provado o referido pela Requerente nas alegações:

“(ii) Ao contrário do que afirma a AT, não dizem exclusivamente respeito ao projeto hoteleiro ou às moradias licenciadas em 2015;

(iii) mas antes (e diferentemente), tais investimentos dizem respeito a todas as obras de construção e melhoramento realizadas nas várias infraestruturas existentes na Herdade, nomeadamente as afetas às atividades florestal, silvícola, agrícola e sobretudo à cinegética;

(iv) que, à exceção das construções referentes ao projeto hoteleiro (que foi abandonado em 2003), todas as construções, quer de raiz quer as de reabilitação e de melhoramentos, foram terminadas há muito e, ainda mais importante, todas essas infraestruturas começaram a ser ocupadas e utilizadas nas atividades florestal, agrícola, silvícola e cinegética logo após a conclusão das respetivas obras, que é muito anterior a 2015.”

 

5. Ao dar prevalência à errada contabilização dos bens do activo imobilizado como tratando-se de imobilizado em curso e à falta de outros elementos contabilísticos, e não dar qualquer relevância ao facto de que uma parte importante de tais bens estavam concluídos e a ser utilizados há décadas, a AT nega à Requerente o seu direito à dedução sem que na base exista qualquer razão atendível para o efeito.

Interessa atender igualmente aos princípios da justiça, da proporcionalidade, da imparcialidade e da boa-fé ao abrigo dos quais a AT deve pautar a sua actuação.

O procedimento tributário é exercido pela administração de acordo com os vários princípios enunciados no artigo 55.º da LGT, entre os quais o da proporcionalidade, também referido no artigo 46.º do CPPT e com assento expresso no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa A liquidação correctiva pretendida pela AT sempre conduziria a um resultado de valor desproporcionado perante o volume do negócio da empresa e uma actuação igualmente também desproporcionada tendo em vista o incumprimento das obrigações acessórias de registo e de contabilidade.

Sem invocação de fraude, e sublinhe-se uma vez mais, não foi aqui invocada nem tão pouco se provou que os elementos contabilísticos e a documentação tivessem sido eliminados pela Requerente como se pretende dar como facto provado, a solução jurídica que resulta da pretensão da AT de proceder à regularização de todo o IVA deduzido, desde o início da actividade viola o princípio basilar deste imposto – a neutralidade.

Determinam os artigos 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1, do Código Civil, que cabe a quem invoque os factos socorrer-se de todos os meios de prova em direito admitidos para a descoberta da verdade, o que a AT não fez, ignorando aliás os elementos trazidos ao processo inspectivo pela Requerente e as testemunhas ouvidas nesse sede.

No que se reporta aos imóveis, a dedução inicialmente praticada com a intenção de afectar os imóveis às operações tributáveis do sujeito passivo, foi correctamente feita, independentemente do início da utilização ou ocupação dos bens. Quanto à regularização devida à venda, ela só poderia fundamentar-se no artigo 26.º, importando determinar se foi ou não respeitado o período de dez anos, até 2001 e de vinte anos a partir desse ano, para fundamentar regularizações anuais de 1/20 do valor do imposto deduzido.

A regularização de IVA pretendida pela AT tem como fundamento a obrigação de a sociedade consulente regularizar, de uma só vez, todo o IVA deduzido, constante da conta “imobilizado em curso”, desde o início da sua actividade e não o ter feito em sequência da alienação da Herdade E..., onde desenvolvia a sua actividade de prestação de serviços de reserva de caça. Com efeito, o evento desencadeador da obrigação de regularizar, segundo o relatório da inspecção, seria a alienação da Herdade, que foi efectuada a um não sujeito passivo de IVA, portanto sem renúncia à isenção de imposto, prevista no n.º 5 do artigo 12.º, tendo-se tratado de uma venda de um bem imóvel isenta de IVA, ao abrigo do n.º 30 do artigo 9.º do CIVA, de acordo com o entendimento da AT.

Como vimos, do disposto no artigo 24.º, n.º 3, por remissão de outras normas, conclui-se que a contagem do tempo do período de regularização tal período se inicia com o início da ocupação dos bens, se se tratar de imóveis, não podendo a AT estender o direito a regularizar as deduções do activo imobilizado a todo um extenso período, que se inicia praticamente com o início da actividade da empresa, incluindo o imposto que a própria administração reembolsou ao sujeito passivo, ainda no final do século passado, decorridos mais de vinte anos após a utilização ou ocupação dos bens em causa.

Invocando a falta de elementos documentais e a circunstância de a contabilidade da empresa registar tais despesas em “imobilizado em curso”, a AT entende que os bens assim contabilizados ainda não começaram a ser ocupados e que portanto está aberto, relativamente a todos eles, o período de regularização. Durante o procedimento de inspecção e na apreciação do exercício do direito de audição, a AT recusou atender as provas apresentadas pelo contribuinte sobre o início da ocupação dos bens em questão. Para a AT, a inscrição de tais bens em imobilizado em curso significa que não estão ainda em condições de ser ocupados, e portanto tem o direito a obrigar o sujeito passivo a regularizar todas as deduções antes efectuadas, sem procurar identificar o momento em que os bens foram efectivamente postos ao serviço da sociedade.

O sujeito passivo não contesta as graves deficiências dos seus registos contabilísticos, que, de facto, levam a “imobilizado em curso” as despesas com as obras, da mais diversa espécie, de adaptação da Herdade às exigências da actividade que se propôs desenvolver e efectivamente desenvolveu. Como vimos, muitas dessas obras, que implicaram despesas com IVA que foi deduzido, realizaram-se na década de 90 do século passado e os bens duradouros qualificáveis como imóveis foram ocupados durante essa década, estando assim claramente fora do período de regularização, seja ele de dez ou de vinte anos. É seguramente o caso das obras com a vedação da Herdade, com a construção das charcas ou bebedouros e dos caminhos florestais, com as habitações para o pessoal da Herdade, que serviram depois para alojamento dos próprios caçadores, com o posto de transformação de energia eléctrica. Vimos que a própria AT o reconheceu implicitamente aquando das inspecções que levou a cabo para controlar os pedidos de reembolso de IVA requeridos pelo sujeito passivo. Não só admitiu a regularidade das deduções iniciais do IVA, como acabou por atestar que os bens em causa estavam a ser utilizados (posto que constassem, como sempre constaram de “imobilizado em curso”). Na verdade, a AT, na inspecção que levou a cabo em 1998, alegou que a Herdade era frequentemente utilizada por amigos dos proprietários, realizando assim prestações de serviços gratuitas, as quais, de acordo com a regra e o critério da alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA constituem operação tributável. E a administração procedeu, através de um procedimento de avaliação indirecta, a liquidações correctivas de IVA para os anos de 1994, 1995, 1996 e 1997. Como pode agora considerar aberto o período de regularização? Como pode entender que os bens, cujo IVA foi deduzido nesses períodos, não estavam, nessa época, a ser utilizados ou ocupados se apurou que houve utilização deles para a realização de prestações de serviços gratuitas e como tal tributáveis, liquidando o imposto devido? Não há pois que regularizar o imposto deduzido nesses períodos. Está claramente fora do prazo de regularização pelo que respeita aos bens imóveis que foram ocupados, que seria à época de 10 anos, pelo menos a partir de 1994, já lá vão 26 anos. Não colhe argumentar que estão registados em “imobilizado em curso” – conta em que se inscrevem os gastos suportados com activos que não se encontram ainda disponíveis para o uso pretendido. Não é a contabilidade que determina o regime do direito à dedução, mas antes é a realidade material que o rege. Foram ou não os bens utilizados ou ocupados durante esses anos? A verdade é que o foram, porque deram origem a operações, atestadas pela AT. Proceder agora a regularização dessas deduções seria violar a lei, por estar fora do período legal em que tal regularização se pode fazer e frustrar o objectivo fulcral do direito à dedução que é o de libertar o empresário do imposto suportado a montante.

 

6. No caso que nos ocupa, a AT deveria ter recorrido a métodos indirectos para quantificar o imposto deduzido em bens qualificáveis como imóveis e para aferir da data da sua ocupação e assim apurar o seu eventual direito a regularização das deduções praticadas. Para tanto, devia recorrer a todos os elementos disponíveis, que o sujeito passivo, em sede de exercício de direito de audição, lhe forneceu. Ora, quer no exercício do direito de audição, como na petição de pronúncia arbitral, o sujeito passivo forneceu elementos que, embora não assentes em seguros registos contabilísticos, mas em outros meios igualmente válidos de prova, mostram que uma significativa parte do imposto deduzido está fora de qualquer regularização.

No caso concreto o princípio da prevalência da substância sobre a forma e o mais elementar bom senso determinariam desde logo que não poderíamos cortar totalmente o direito à dedução da Requerente em despesas relativas a operações realmente efectuadas e, mais, como fez a AT, venire contra factum proprium,

A fixação da matéria tributável através de avaliação directa (alternativa à utilização de  métodos indirectos), pressupõe a possibilidade de «comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável», como decorre do preceituado nos artigos 83,º, n.º 1, 87.º, alínea b) e 88.º da LGT. Quando não se puder efectuar uma comprovação e quantificação directa e exacta dos factos tributários, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de utilizar métodos indirectos, com o procedimento próprio previsto na LGT.

Neste caso, não se produziu prova consolidada no sentido pretendido pela AT (e, sublinhe-se, bastante alargado e deturpado nos termos da presente Decisão), mas antes no sentido contrário, pelo que, no mínimo, estamos perante uma situação de fundadas dúvidas sobre os fundamentos subjacentes às liquidações impugnadas.

Ora, de harmonia com o disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, quando não foram utilizados métodos indirectos, «sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado».

Pelo exposto, justificar-se-ia, no mínimo, a anulação da liquidação de IVA impugnada, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

Lisboa, 11 de Outubro de 2021

 

A Árbitra Adjunta

Professora Doutora Clotilde Celorico Palma