Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 428/2021-T
Data da decisão: 2022-01-04  ISV  
Valor do pedido: € 121.427,05
Tema: ISV – artigo 11.º do CISV - componente ambiental – artigo 110.º do TFUE.
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SUMÁRIO

 

I – É incompatível com o Direito da União Europeia qualquer prática administrativa que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário pelo que compete a todas as autoridades do Estado-Membro dar pleno efeito às normas comunitárias.

II – Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

 

Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)

 

                Os árbitros Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues (árbitro-presidente), Dra. Raquel Franco e Prof. Doutor Rui Miguel Marrana (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 10-09-2021, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A..., LDA, sociedade por quotas com capital social de € 80.000,00 (oitenta mil euros), titular do número de identificação de pessoa coletiva (NIPC)..., com sede social sita na Rua ..., ..., União das Freguesias de ... e..., ...-... ...-Valongo, abrangida no âmbito territorial do Serviço de Finanças de Valongo ... (C.R. 1899), (doravante abreviadamente designada por "Requerente”) veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo.

Ao Tribunal a Requerente pede que:

a. Seja reconhecida a ilegalidade do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa e determinada a anulação parcial dos atos de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) impugnados, resultantes das apresentações pela Requerente de 505 declarações aduaneiras de veículos (DAV’S), no valor total de € 925.309,98 (novecentos e vinte cinco mil, trezentos e nove euros e noventa e oito cêntimos), que aqui contesta, a título principal, no valor de € 121.427,05 (cento e vinte e um mil, quatrocentos e vinte e sete euros e cinco cêntimos), referente estritamente à desconsideração do tempo de uso na componente ambiental, em virtude do erro sobre os pressupostos de direito de que padecem os referidos atos por infringirem o disposto no artigo 110.º do TFUE na sua vertente de proibição de discriminação fiscal;

b. Determine a devolução à Requerente do valor do imposto indevidamente cobrado e já pago;

c. Condene a AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal aplicável, sobre o montante indevidamente cobrado, a liquidar a final, no momento do reembolso do imposto indevidamente pago.

 

A título subsidiário, caso o Tribunal entenda que o ISV é um imposto indivisível, requer a anulação total das liquidações visadas, com idênticas consequências ao nível da restituição do imposto já pago e juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09-07-2021.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, os Árbitros que foram designados pelo Conselho Deontológico comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 23-08-2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 10-09-2021.

A Administração Tributária e Aduaneira não apresentou Resposta, mas apresentou alegações escritas em que defendeu que a AT efetuou as liquidações em crise no cumprimento estrito da lei em vigor, a que estava vinculada à data da liquidação impugnada pedido de pronúncia arbitral.

A AT veio ainda contestar o valor económico atribuído ao pedido de pronúncia arbitral, salientando que da correção efetuada pela AT (...) veio a ser apurado que no caso sub judice o que está em causa é valor de €120.899,77 e não o montante de €121.427,05 indicado pela Requerente na PI. A AT fundamenta a dita correção com um ‘Mapa Resumo dos eventuais valores de ISV’ a reembolsar, e com os ‘Mapas anuais globais’, onde indica as respetivas DAV, para cada ano (2017, 2018, 2019 e 2020) e onde estão assinaladas, a cor vermelha, as divergências constatadas.

Esta questão será objeto de análise mais à frente nesta decisão.

Por despacho de 05-11-2021, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

                               A Requerente apresentou também alegações, em que reiterou os argumentos aduzidos no pedido de pronúncia arbitral, fazendo ainda referência ao Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, processo C-169/20, de 2 de setembro de 2021, que previamente havido sido junto ao processo.

                               O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a.            A Requerente é uma sociedade por quotas cujo objeto social visa o comércio por grosso e a retalho de veículos automóveis ligeiros e pesados ou usados, manutenção e reparação automóvel, venda de peças e acessórios, intermediação de crédito, avaliações e peritagens, comissionistas e outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão, conforme se afere por consulta à sua certidão permanente acessível mediante o código ... .

 

b.            No âmbito da prossecução destas atividades empresariais, a Requerente procedeu, em diversos momentos, a aquisições, noutros Estados-Membros da União Europeia, de veículos ligeiros usadas, que depois foram objeto de entrada no território português.

 

c.            Em sequência disso, a Requerente, na sua qualidade de operador sem estatuto, apresentou por transmissão eletrónica de dados dirigida à Alfândega do Freixieiro, e para introdução no consumo de veículos usados, cerca de 505 DAVs, repartidas da seguinte forma:

 

 

 

d.            Nas liquidações de ISV efetuadas pela AT não foi aplicada qualquer redução de imposto na parte atinente à componente ambiental.

 

e.            As liquidações de ISV aqui visadas foram efetuadas com recurso às tabelas A e D, previstas, respetivamente, nos artigos 7.º e 11.º do CISV.

 

f.             A percentagem de redução, aplicada em função do número de anos de uso dos veículos, incidiu apenas sobre a componente cilindrada, não tendo sido aplicada à componente ambiental.

 

g.            No dia 17 de fevereiro de 2021, através de correio registado enviado para a Divisão do Gabinete da Diretora-Geral da AT, a Requerente apresentou, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, um pedido de revisão oficiosa.

 

h.            No dia 13 de maio de 2021, a Requerente foi notificada pela Alfândega do Freixieiro, na pessoa do seu Mandatário, do projeto de decisão de indeferimento e respetiva fundamentação, bem como para o exercício do seu direito de participação na formação da decisão.

 

i.             No dia 18 de junho de 2021, e depois de a Requerente ter optado por não exercer o seu direito de participação na formação da decisão, a Alfândega do Freixieiro notificou-a para a conversão do projeto de decisão em decisão final de indeferimento total do pedido de revisão oficiosa.

 

j.             O imposto liquidado através dos atos de liquidação impugnados foi pago pela Requerente dentro dos prazos aplicáveis.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Não há controvérsia sobre os factos relevantes para a decisão da causa.

 

3. Questão do valor da ação

 

A Requerida veio questionar o valor da ação tal como configurado pela Requerente.

 

A Requerente tinha atribuído à causa o valor de € 121.427,05, correspondente ao valor de imposto liquidado em excesso por não aplicação da redução atinente à componente ambiental.

 

Contudo, embora não tenha apresentado Resposta, a AT, nas alegações que apresentou, veio contrapor a esse valor o de €120.899,77, remetendo também (i) um Mapa Resumo dos eventuais valores de ISV a reembolsar, bem como (ii) os Mapas anuais globais, com as respetivas DAV, para cada ano (2017, 2018, 2019 e 2020) e onde estão assinaladas, a cor vermelha, as divergências constatadas.

 

Refere a AT, a título de exemplo, que só no ano de 2018, verifica-se que a DAV n.º 2018/..., mencionada pela Requerente, não existe (o registo de liquidação descrito no quadro de pedido de reembolso corresponde à DAV n.º 2018/...) e que no pedido de reembolso respeitante à DAV n.º 2018/..., foi mencionada como taxa de CO2, 45%, quando deveria ter sido 35%. De onde resulta, em seu entender, que o que está em causa é a eventual anulação parcial dos atos de liquidação de ISV, referente estritamente à desconsideração do tempo de uso na componente ambiental do imposto, no valor de €120.899,77.

 

Convidada a pronunciar-se sobre esta questão, a Requerente veio dizer o seguinte (destacam-se os pontos mais relevantes):

 

“Neste sentido, quanto ao ano de 2019, a Requerente nada sustentará adicionalmente, mantendo o valor a anular que havia sido indicado por si na sua petição inicial, i.e. de € 20.862,95.

Quanto ao ano de 2017, analisando a DAV aqui em causa, identificada sob o n.º 2017/..., a Requerente corrobora que a Requerida tem razão, pelo que reconhece o lapso, a seu desfavor, porquanto o valor a anular é de € 301,38 e não € 276,96.

Quanto ao ano de 2018, a Requerente reconhece o lapso na identificação de uma DAV, porquanto quando declarou “2018/...” deveria antes ter declarado “2018/...”.

Sem prejuízo, esta inexatidão não tem qualquer influência no valor da causa, porquanto os dados da liquidação a anular estão corretos.

Quanto à segunda situação do ano de 2018, a Requerente reconhece que na situação da DAV n.º 2018/..., foi mencionada, por mero lapso, como taxa de CO2, 45%, quando deveria ter sido 35%, pelo que a correção do valor a anular para € 355,41, ao invés dos € 456,95, é devida.

Por fim, a Requerida sustenta uma correção para o ano de 2020, respeitante à DAV n.º 2020/..., indicando que o montante da componente ambiental não é de € 1.270,00, mas sim € 216,06, pelo que defende que o valor passível de anulação, tendo por base uma taxa de CO2 de 43%, é apenas de € 92,91 e não os € 546,10, indicados pela Requerente.

Ora, com o devido respeito, mas parece-nos que a Requerida está a incorrer em erro, porquanto analisando-se esta DAV constata-se que o valor da componente ambiental nela ínsito é, na realidade, € 1.270,34 e não os € 216,06 indicados pela Requerida, e também não os € 1.270,00 indicados pela Requerente, conforme decorre do documento que aqui se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 1), e que aqui se junta por simplificação de referência, apesar de já fazer parte integrante destes autos.

Em razão disto, considera a Requerente que, relativamente a esta DAV o valor a anular deveria ser de € 546,25 e não os € 546,10 indicados na sua petição inicial, conforme se detalha:

 

Face ao exposto, considera a Requerente que o valor desta causa arbitral deverá antes ser corrigido em apenas € 76,97, passando dos € 121.427,05, para € 121.350,08, conforme se explicita:

 

As clarificações aduzidas pela Requerente são, segundo se entende, suficientes para esclarecer as dúvidas suscitadas pela AT, pelo que se admite o novo valor proposto pela Requerente. O valor da ação fica, assim, fixado em € 121.350,08.

 

4. Matéria de direito

 

O presente pedido de pronúncia arbitral fundamenta-se na ilegalidade da norma do artigo 11.º do CISV, relevante na liquidação ora impugnada, por violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

A questão que se coloca é saber se as liquidações de ISV relativas às viaturas usadas identificadas nos autos padecem ou não de ilegalidade parcial, devendo, em caso afirmativo, declarar-se a anulação parcial daqueles actos tributários (conforme pretendem os Requerentes).

 

De facto, a aplicação do referido art. 11.º do CISV aos veículos portadores de matrículas de Estados membros da UE tem em vista contemplar, no cálculo do imposto devido, a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, prevendo uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo – mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.

 

Defende a Requerente que a aplicação da referida norma leva a que seja cobrado aos veículos importados (a lei refere também o termo ‘admitidos’) de outros Estados membros da UE um imposto superior àquele que subsiste nos veículos idênticos transaccionados no mercado nacional, por não aplicar a redução à componente ambiental. Tal circunstância configurará uma discriminação fiscal proibida pelo art. 110.º TFUE.

 

A AT limita-se a referir que efetuou as liquidações em crise no cumprimento estrito da lei em vigor, a que estava vinculada à data da liquidação impugnada.

 

Não pode deixar de se estranhar o entendimento da AT quanto ao princípio da legalidade por si invocado. Isto porque é a própria Constituição que reconhece que a aplicação do direito europeu se faz nos termos definidos pela UE (art. 8.º/4). E a propósito, os Estados membros (incluindo Portugal, naturalmente) convieram que, em conformidade com a jurisprudência constante do TJUE, os tratados e o direito adoptado pela União com base nos tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência (Declaração 17 anexa ao TFUE).

 

A Requerida AT persiste numa perspetiva que ignora que o princípio de legalidade não se esgota no ordenamento interno. Pelo contrário, este princípio impõe a devida ponderação do direito da UE que é directamente aplicável na ordem interna, nos termos constitucionais referidos.

 

A posição deste tribunal nesta matéria segue toda uma série de diversas decisões arbitrais anteriores, nomeadamente as proferidas nos processos 474/2020-T; 457/2020-T; 572/2018-T e 77/2021-T.

 

As taxas a aplicar para efeito de cálculo do ISV não incidem sobre o valor do automóvel, mas têm por base a cilindrada do motor (componente cilindrada) e a quantidade de CO2 emitida por quilómetro (componente ambiental) – sendo que foram estruturadas em taxa normal, taxa intermediária e taxa reduzida e taxa para veículos usados, nos termos do disposto nos artigos 7.º a 11.º do Código do ISV.

 

Para o cálculo do ISV devido por veículos usados portadores de matrículas atribuídas por outros Estados membros da UE, dispõe o artigo 11.º/1 e 2 do CISV o imposto  […] é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional.

 

Esta matéria (da aplicação do ISV aos veículos importados de outros Estados membros) vem sendo objeto de um prolongado atrito entre as instituições europeias e o Estado Português, no tocante à legalidade do regime nacional (que vem sendo objecto de sucessivas modificações).

 

No seguimento de algumas decisões desfavoráveis ao entendimento oficial nacional, no ac. de 22.02.2001 (Gomes Valente, proc.º C-393/98) do Tribunal de Justiça afirmou que o montante máximo do imposto aplicável aos veículos usados importados é determinado pelo do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional (n.º 24).

 

O legislador vem, todavia, introduzindo pequenos ajustamentos no regime, sem cuidar de o adequar às exigências resultantes do TFUE, o que deu origem a novas reações por parte da Comissão Europeia e do TJUE.

 

Pondo fim à discussão – ou ao que dela restava – o TJUE, em 2.9.2021 (proc. C-169/20. Comissão c. Portugal) decidiu, sobre a questão em apreço que [a]o não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro EstadoMembro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.

 

Nesse sentido, não pode este tribunal arbitral deixar de insistir que o art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto aquela norma não pode, em conformidade com o que esta dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de forma a que o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.

               

5. Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios

 

A Requerente efetuou o pagamento do imposto liquidado, razão pela qual formula também um pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão declaração de ilegalidade para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), de harmonia com o qual  se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea.

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Na sequência da anulação parcial das liquidações, no montante total de € 121.350,08 e da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, a Requerente tem direito a ser reembolsada do montante de imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

A ilegalidade das liquidações de imposto aqui impugnadas é imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira que as emitiu por sua iniciativa.

Assim, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, desde a data do pagamento das quantias liquidadas.

Os juros indemnizatórios são calculados com base na quantia de € 121.350,08, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data em que o erro é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

 

6. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Anular parcialmente as liquidações impugnadas;

c)            Anular a decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa;

d)           Julgar procedentes os pedidos de reembolso da quantia paga e de juros indemnizatórios e condenar a Administração Tributária a pagar à Requerente a quantia de € 121.350,08 acrescida de juros indemnizatórios, nos termos referidos.

 

7. Valor do processo

 De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 121.350,08€ (cento e vinte e um mil trezentos e cinquenta euros e oito cêntimos).

 

8. Custas

                Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3 060.00 (três mil e sessenta euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Administração Tributária.

 

Notifique-se, nos termos da lei, o Ministério Público.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, quatro de janeiro de 2022

Os Árbitros

 

(Nuno Cunha Rodrigues)

(Raquel Franco)

(Rui Miguel Marrana)