Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 412/2020-T
Data da decisão: 2021-05-18  IRC  
Valor do pedido: € 65.958,48
Tema: IRC. Tributações autónomas. Despesas não documentadas. Conta 11 Caixa
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Sumário:

1. A divergência entre o saldo de caixa e o respetivo registo contabilístico é tributada autonomamente, a título de despesas não documentadas, nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC,  quando não exista qualquer documento de suporte da saída dos meios monetários.

2. Aplicam-se à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios e regras constantes do referido Código para a liquidação e cobrança do próprio IRC, mas não os incompatíveis com a natureza da tributação autónoma enquanto imposto incidente sobre certas despesas, e não sobre o rendimento.

3. Não se aplicam à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios do rendimento acréscimo, da periodização do lucro tributável e da anualidade.

 

Decisão Arbitral

 

                Os árbitros Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente), Prof.º Doutor Jónatas Machado e Dr. André Festas da Silva (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

1.A… LDA., NIPC ………, com sede em Estrada Nacional, …., …., ….- … Olhão, veio, nos termos dos arts. 1.º, 2.º/1/a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), e do art. 99.º do CPPT aplicável ex vi artigo 10.º/2/c) do RJAT, apresentar pedido de pronúncia arbitral relativa à liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, bem como a respetiva demonstração de acerto de contas, 2019 ………. / 2019 ………., referentes ao ano de 2018, com um total de IRC adicional a pagar no valor de € 65.958,48, com data limite de pagamento em 03.12.2019.

2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 17.08.2020.

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, os Árbitros que foram designados pelo Conselho Deontológico comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

5. Em 07.09.2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 13-11-2020 (tendo em conta a suspensão de prazos determinada pelo artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março) e é competente.

7. As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março)

8. A Administração Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.

9. O processo não enferma de nulidades.

10. Teve lugar, no dia 30.04.2021 a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT também destinada a produção testemunhal arrolada pela Requerente, tendo o processo prosseguido para alegações.

11. O sujeito passivo apresentou alegações a 10.05.2021 e a Autoridade Tributária a 17.05.2021. 

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

12. Consideram-se provados os seguintes factos, com base no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente.

 

A)           Ao abrigo do Despacho n.º DI2018…. e da Ordem de Serviço n.º OI2019……, pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direcção de Finanças de Faro foi efetuada uma ação inspetiva à Requerente, tendo por objeto o IRC do ano de 2018 , de natureza interna e de âmbito parcial, referente a “recolha e cruzamento de dados, tendo como objetivo proceder à contagem de caixa”. (vf. Processo Administrativo)

B)           Em 28.08.2019, o Requerente foi notificada, em sede de audição prévia, do projeto de correções do relatório da ação inspetiva efetuada pela Direcção de Finanças de Faro, datado de 27.08.2019, tendo apresentado as suas razões sobre a realidade factual.  (vd. Processo Administrativo)

C)           Nessa ação inspetiva foi elaborado o Relatório da Inspeção Tributária (RIT), atendendo à natureza da conta Caixa 11, de acordo com o seu enquadramento no SNC, e ao seu elevado saldo, foi efetuada uma contagem física dos valores em Caixa, em 18-12-2018, através do DI2018……, tendo-se apurado a existência de € 192,15 em Caixa. (vf. Processo Administrativo)

D)           Não havia quaisquer outros valores relativos à Caixa e não houve qualquer deliberação de distribuição de lucros ou pagamento dos mesmos a título de adiantamento.

E)            Tendo sido analisada a contabilidade verificou-se que estava contabilizado a 18-12-2018, a quantia de € 138.005,09 (saldo devedor), sendo que, depois de reconciliado o saldo da conta Caixa a 31-12-2018, através da análise dos movimentos e documentos contabilísticos dessa conta, foi apurada uma diferença de € 130.867,60 relativamente ao saldo contabilizado, foi aberta a ordem de serviço n.º OI2019…… por haver factos suscetíveis de correção em sede de IRC, (vf. Processo Administrativo)

F)            A 16-09-2019, foi notificada do relatório final (RIT).

G)           A 02-12-2019 a Requerente efetuou o pagamento do valor da liquidação adicional de IRC do ano 2018 no valor de € 65.958,40 (€ 63.425,33 + € 521,30 Juros Compensatórios. + € 3,30 Recebimento indevido de juros + € 2.008,47 Estorno da anterior liquidação).

H)           Na sequência da inspeção, a Administração Tributária enquadrou os meios líquidos em falta em despesas não documentadas, com a consequente tributação autónoma nos termos do n.º 1 do art.º 88º do CIRC, à taxa de 50%, perfazendo o valor de € 65.433,80.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

13. Quanto aos saldos apresentados pela Requerente, os documentos não são impugnados.

14. Não se provou, nem nos elementos documentais constantes dos autos, nem na reunião do artigo 18.º do RJAT, qual o destino que a Requerente deu às quantias em falta correspondentes ao saldo devedor da conta 11-caixa, nem foi apresentada qualquer prova sobre esse destino.

 

3. Matéria de direito

 

15. Em ação inspetiva, a AT, ao proceder à análise das demonstrações financeiras da sociedade, constatou um elevado saldo devedor da rubrica Caixa. Atendendo à natureza da conta Caixa 11, de acordo com o seu enquadramento no SNC, e ao seu elevado saldo, foi efetuada uma contagem física dos valores em Caixa, em 18-12-2018, através do DI2018….., tendo-se apurado a existência de € 192,15 em Caixa.

16. Tendo sido analisada a contabilidade verificou-se que estava contabilizado a 18-12-2018, a quantia de € 138.005,09 (saldo devedor), sendo que, depois de reconciliado o saldo da conta Caixa a 31-12-2018, através da análise dos movimentos e documentos contabilísticos dessa conta, apurou-se uma diferença de € 130.867,60 relativamente ao saldo contabilizado, tendo sido aberta a ordem de serviço n.º OI2019……. A AT enquadrou os meios líquidos em falta em despesas não documentadas, com a consequente tributação autónoma nos termos do n.º 1 do art.º 88º do CIRC, à taxa de 50%, perfazendo o valor de € 65.433,80.

                              

                3.1. Posições das Partes

 

                17. A Requerente defende o seguinte, em suma:

a)            a correção realizada pela AT não teve em conta a evolução do saldo de caixa e eventuais discrepâncias nos exercícios de 2013 a 2017, conforme demonstrado pela Demandante em sede de audição prévia;

b)           a AT desconsiderou a evolução do saldo da “conta 11-Caixa” que em 31.12.2013 tinha um saldo no montante de € 91.655,19 e com a consequente evolução até 2017, sendo que se verifica uma variação de saldo da “conta 11-Caixa” em 31.12.2018 para o montante de € 39.404,56;

c)            a AT optou por fazer uma presunção de custos para 2018, que a sua contabilidade demonstra serem inexistentes, face aos valores faturados e aos custos suportados, projetando o saldo de Caixa de 2018, para despesas não documentadas sem qualquer fundamentação legal;

d)           a AT não considerou a periodização de custos e proveitos dos exercícios, que poderia ter feito caso tivesse auditado o saldo de Caixa, para os exercícios anteriores e verificar a evolução desse mesmo saldo e a sua conexão com as contas de custos, o que foi demonstrado pela Demandante, pelo que foi violado o disposto no artigo 77.º da LGT.

e)           a AT partiu do entendimento de que em 18.12.2018 existia uma divergência entre a quantia em caixa resultante da contagem física dos valores efetuada nesta data e o saldo da conta “11-Caixa”, para concluir que a Demandante fez gastos, concretamente, no exercício de 2018 que, não estando identificados, devendo ser considerados como “despesas não documentadas”.

f)            A base de determinação do resultado fiscal deverá ser sempre o resultado líquido, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do CIRC, sendo que o ato tributário controvertido não se baseou em “despesas” ou gastos que tenham sido registados em 2018 e que tenha influenciado o resultado líquido desse exercício.

g)            Um exfluxo será considerado como despesa ou gasto se o mesmo tiver influenciado negativamente o resultado líquido.

h)           No relatório final da inspeção tributária não se identificam os concretos movimentos de “saídas de caixa” que registadas, em 2018, tiveram como contrapartida contas de despesas/gastos, e, consequentemente tenham reduzido o resultado líquido contabilístico daquele exercício 2018.

i)             Se os movimentos registados, a crédito, na conta de Caixa – saídas – totalizam, no exercício de 2018, o montante de €141.864,27, o resultado do exercício não poderia ter sido negativamente influenciado por exfluxos da conta de caixa do montante de € 130.867,70.

j)             A AT não demonstrou, quando, como e onde, ocorreram as “saídas de caixa” e qual o impacto que as mesmas tiveram no resultado líquido do período de 2018 e não expressou de forma clara, suficiente e congruente, os motivos porque concluiu que os exfluxos registados na conta de Caixa, totalizam no ano de 2018, a quantia de € 130.867,60, quando de acordo com os registos contabilísticos efetuados naquela conta os mesmos totalizam a quantia total de € 141.864,27€, e os influxos totalizam o valor de € 145.754,58.

k)            Não se provando que a Requerente tenha afetado o resultado líquido do ano de 2018, com gastos e despesas do montante da €130.867,60, que devam nos termos do CIRC ser corrigidas, o ato é ilegal por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

l)             Se os gastos registados, que influenciam o resultado líquido, estão comprovados documentalmente, não há fundamento para aplicação do disposto no art.º 88.º do CIRC.

m)          O ato impugnado violou as disposições conjugadas dos artigos 75.º, n.º 1 da LGT e 88.º, n.º 1 do CIRC por ter que se considerar ilidida a presunção de veracidade da contabilidade a que se refere o n.º 1 do artigo 75.º da LGT, pelo próprio relatório de inspeção e respetivas conclusões.

n)           Caberia à AT provar a efetiva saída de meios monetários em que pretende fazer assentar a tributação autónoma a título de despesas não documentadas.

o)           As diferenças entre as quantias em caixa resultantes da contagem física dos valores e os saldos da conta 11-Caixa não podem, em caso algum, ser considerados como uma despesa não documentada sujeita a tributação autónoma.

p)           A AT deveria ter procedido à determinação da matéria coletável através de métodos indiretos (artigos 74.º, n.º 3 e 87.º da LGT) não podendo lançar mão da norma de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do CIRC, no segmento em que a mesma prevê a tributação autónoma de despesas não documentadas à taxa de 50%.

q)           Não tendo sido provada a verificação dos pressupostos de que depende a exigibilidade da liquidação em análise, não se constituiu qualquer facto tributário, pelo que o pagamento exigido à Requerente é ilegal e inexigível, suscitando a sua quantificação fundadas dúvidas, pelo que o ato de liquidação de imposto in casu deverá ser anulado, ex vi dos arts. 99.º/1/a) e 100.º do CPPT.

r)            O artigo 6.º do Regime Complementar da Inspeção Tributária (R.C.P.I.T.), respeitante à verdade material, não é uma norma meramente programática, mas sim uma regra de conduta imperativa que deve nortear a Inspeção Tributária, o que não sucedeu no caso “sub judice”.

s)            O dever de imparcialidade reclama que a AT procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja revelação seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração, tendo havido violação dos princípios do inquisitório e da verdade material nas suas relações com os particulares.

t)            A AT violou as legítimas expectativas e garantias da Requerente anteriormente constituídas, e o princípio da confiança e segurança jurídica ínsitos ao princípio do Estado de Direito, além de ter violado os princípios da legalidade tributária, da proibição da retroatividade da lei fiscal e da certeza e segurança jurídica previstos, entre outros, nos artigos 12.º da LGT, 12.º do CC e 103.º n.º 3 da CRP.

u)           Os atos em análise são nulos e de nenhum efeito por falta de atribuições e por ter criado impostos ou contribuições especiais não permitidos por lei (art. 161º/2/a) e d) do CPA e arts. 103º/2 e 165º/1/i) da CRP).

v)            Os atos impugnados enfermam de manifesta falta de fundamentação de facto e de direito, ou, pelo menos, esta é insuficiente, obscura e incongruente, pelo que foram frontalmente violados o art. 268º/3 da CRP, os arts. 152º e 153º do CPA e o art. 77º da LGT.

 

18. No presente processo, a Administração Tributária defende a posição assumida no RIT, dizendo, em suma:

a)            Em momento algum a Requerente prova o que cauciona ao longo do seu pedido de pronúncia arbitral, não se esforçando sequer para demonstrar em que medida o saldo da conta Caixa, não correspondia à realidade das existências em numerário ou outros meios monetários.

b)           A Requerente não contesta a quantificação da divergência entre o saldo contabilístico da conta Caixa e os montantes do numerário que deveriam estar disponíveis em Caixa e não se encontravam à data em que foi realizada a contagem física.

c)            A diferença entre o saldo contabilístico e os valores existentes em Caixa denunciava a ocorrência de saídas de meios monetários do património social que, além de não terem sido objeto do adequado registo na contabilidade, também não existia qualquer evidência documental suscetível de permitir a identificação dos seus destinatários, natureza das operações subjacentes e dos momentos da sua realização.

d)           Encontravam-se preenchidos os elementos caracterizadores da figura designada por «despesas não documentadas» sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, tendo a mesma sido liquidada pelo valor de € 65.433,80 e juros compensatórios no valor de € 521,30.

e)           A expressão «despesas não documentadas» traduz uma conduta anómala e à margem da lei, tanto no plano contabilístico como perante os normativos do CIRC, por revelar desrespeito frontal do requisito previsto da alínea b) do n.º 3 do art.º 17.º segundo a qual a contabilidade deve “Refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo”, e das exigências contidas nos n.º 1 e nas alíneas a) e b) do art.º 123.º que obrigam a que todos os lançamentos estejam “apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário” e que as “operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objeto de regularização contabilística logo que descobertos.”

f)            Na falta de uma definição legal de «despesas não documentadas», seja na alínea b) do n.º1 do art.º 23.º-A, seja no n.º 1 do art.º 81.º do CIRC, o alcance da expressão utilizada nesses preceitos equivale ao significado que a linguagem comum atribui a «despesas» que mais não é o do que «saídas de dinheiro», in casu, do património social e sem prova documental.

g)            A Requerente insiste em estabelecer uma confusão terminológica entre «despesas» e «gastos», apesar da clarificação empreendida no âmbito da resposta ao direito de audição.

h)           A tributação autónoma das «despesas não documentadas” à taxa de 50% não depende da sua contabilização como «gastos», sem prejuízo de operar mesmo quando as despesas, estando contabilizadas como «gastos», não sejam dedutíveis por força da alínea b) do n.º 1 do art.º 23.º-A do CIRC.

i)             Se a relevação contabilística das «despesas não documentadas» como “gastos” fosse um requisito para a tributação autónoma, então, teria de aceitar-se que o legislador implicitamente pretenderia beneficiar aqueles contribuintes – como a Requerente - que optassem por não refletir na contabilidade todas as operações e acontecimentos relevantes da vida empresarial, situação que não se pode conceber ou conceder.

j)             É a constatação da falta de meios financeiros apurada pela contagem física que gera, por si mesma, o momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC.

k)            Quando as «despesas não documentadas» são objeto de relevação contabilística, o critério de imputação do facto gerador a cada período de tributação é o da competência de caixa, ou seja, atende aos momentos em que se verifica o exfluxo financeiro (pagamento), todavia, como no caso presente, as saídas de dinheiro não foram registadas na contabilidade, o momento da verificação do facto gerador só ficou evidenciado na data da contagem física, só podendo ser imputado ao exercício de 2018.

l)             A Requerente não demonstra que os saldos da conta Caixa no final dos exercícios de 2013 a 2017 não representavam de modo fidedigno a realidade, tanto mais que figuram nos balanços aprovados pelos sócios e também não foram disponibilizados documentos validados pelo órgão de gestão a evidenciar que os resultados de contagens físicas realizadas no final de cada exercício revelam divergências relativamente aos saldos contabilísticos.

m)          Se as despesas não estão documentadas então não é possível aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados na esfera empresarial, sendo factual e juridicamente impossível aplicar-lhes o princípio da especialização.

n)           A Requerente não logrou demonstrar que a divergência apurada nos valores em Caixa é explicada por saídas de meios monetários do património social, não documentadas nem contabilizadas ocorridas em exercícios anteriores ao de 2018.

o)           A Requerente limitou-se a referir que os registos contabilísticos efetuados na conta Caixa totalizam a quantia de € 141.864,27€, e os influxos totalizam o valor de € 145.754,58, importâncias que, por si mesmas, não permitem extrair qualquer efeito útil.

p)           A Requerente não consegue identificar as anomalias e irregularidades praticadas na contabilidade que poderiam afetar o apuramento e controle do lucro tributável, não satisfazendo o seu ónus da prova, nos termos do artigo 74.º, nº1º, da LGT.

q)           A par da ausência de documentação justificativa da saída dos meios monetários da esfera societária, verifica-se a sua não relevação contabilística, o que impede o escrutínio da AT sobre o seu destino e momentos da sua concretização.

r)            À AT cabe o ónus da prova da existência de despesas não documentadas, sendo que a prova foi produzida com a evidenciação quer da divergência de valores apurada entre o saldo contabilístico de caixa e as quantias que efetivamente estavam na sua disponibilidade quer na solicitação dos documentos justificativos.

s)            Não pode recair sobre a AT o ónus de prova (probatio diabolica) das saídas de meios monetários e das concretas despesas realizadas, justamente aquilo que só a própria Requerente se encontraria em condições de provar, através, nomeadamente, da apresentação de mapas e documentos internos como as folhas de Caixa, por cuja elaboração é responsável o órgão de gestão, ou de documentos externos (faturas e recibos).

t)            A aplicação de métodos indiretos tem por objetivo apurar o lucro tributável, conforme resulta do n.º 4 do art.º 16.º e dos art.ºs 57.º e 59.º todos do CIRC, e não para apurar se e quando foram feitas despesas que não estão documentadas nem contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma.

u)           Não procede a invocada aplicação do disposto no art.º 100.º, n.º 1, do CPPT pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não foram apresentadas provas factuais suscetíveis de abalar a convicção sobre a ocorrência de «despesas não documentadas». 

 

3.2. Apreciação da questão decidenda

19. A questão decidenda prende-se, essencialmente, com a legalidade da tributação autónoma de despesas não documentadas nem contabilizadas, evidenciadas no momento da contagem física do dinheiro. O artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A». Impõe-se, por tanto, esclarecer o sentido do conceito “despesa” aí mencionado. Este, não sendo definido no CIRC, não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC, que compreende, designadamente, «perdas» e «ajustamentos». Assim sendo, deve ser-lhe atribuído o significado que tem na linguagem comum, a saber, de saída de dinheiro do património de uma empresa. No seu acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 0204/10, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu «tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afetam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o».

20. O encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efetivamente suportado pelo sujeito passivo. A apreciação da existência ou não da devida documentação é feita tendo por objeto o ato através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é suscetível de afetar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Este entendimento assenta no pressuposto de que as despesas, embora não documentadas, foram contabilizadas, sem o que nem mesmo em termos contabilísticos aquelas afetam o resultado do exercício. Se tiverem sido contabilizadas, mesmo que não documentadas, não há necessidade de adição de tais despesas quando é apurado o lucro tributável, em sede de autoliquidação na declaração anual, nem se mostra necessário que a AT proceda, nessa parte, a uma correção da referida liquidação.

21. Situação diversa ocorre quando não existe contabilização nem documentação das despesas. Neste caso, não vale dizer que as despesas implicam necessariamente um desembolso financeiro, um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro, uma saída efetiva de fundos ou diminuição do património do sujeito passivo, em termos suscetíveis de afetar negativamente o resultado líquido do exercício. Apenas seria assim caso a Requerente tivesse contabilizado as despesas não documentadas, para refletir as saídas de caixa. Ora, não foi isso que sucedeu. A Requerente não as contabilizou, e por isso apresenta os saldos da conta 11-Caixa que apresenta, não tendo havido diminuição do resultado líquido do exercício.

22. Uma boa aplicação dos regimes e dispositivos do CIRC só é possível se a tributação for compreendida na relação que estabelece com as normas contabilísticas. O artigo 17.º, n.º 1, do CIRC, dispõe que «[o] lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código». Resulta claro que o teor literal do preceito se refere expressamente ao lucro tributável e não às despesas objeto de tributação autónoma apurada na mesma declaração. Por sua vez, o “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística” ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, determina, no respetivo n.º 2.3.1 - Regime de acréscimo (periodização económica) determina que “[u]ma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).”

23. Quer dizer, se as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, para movimentações de caixa, o regime aplicável é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada). E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’. Não o fez. Não contabilizou saídas. Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa . Na ausência de contabilização, só é possível apurar que elas existem quando se faz a contagem de caixa. A ausência na caixa dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidencia, conjugada precisamente com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, a despesa não documentada.

24. Como pode ler-se no Acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15: “As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.” Daqui resulta que não existe uma relação necessária entre a tributação autónoma de despesas não documentadas e a eventual relevância das mesmas como gastos para determinação do lucro tributável.

25. Representa já um locus classicus da jurisprudência arbitral a remissão, a este propósito, para o voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T, onde se encontra, como que cinzelada em lápide, a seguinte formulação: 

«(...) devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afetaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».

 

Este modo de ver é inteiramente acolhido pelo presente tribunal arbitral. As despesas não documentadas referidas no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, reconduzem-se a quaisquer saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário.

26. Esta leitura é a que em maior medida garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa – orientada para a formalização, transparência e conformação legal das relações económicas, sendo a que imediatamente resulta da sua interpretação teleológica.  Prosseguindo nesta linha argumentativa, importa ter presente que não é aqui aplicável o princípio da especialização dos exercícios, devendo as despesas ser imputadas ao exercício em que foi detetada a divergência entre o saldo da caixa e a realidade do cofre. Assim é, em virtude de a Requerente não ter cumprido a obrigação de contabilizar as «despesas não documentadas», dando azo a que a verificação da falta de meios financeiros detetada pela contagem física do dinheiro determine, em si mesma, o momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC.

 27. Pelas suas características específicas, as «despesas não documentadas» afastam a aplicação do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do art.º 18.ºdo CIRC, assente no critério de competência económica. Com efeito, este critério é materialmente insuscetível de aplicação às «despesas não documentadas», na medida em que se desconhece a natureza e a causa das transações correspondentes. Quando se trata de estabelecer a respetiva imputação a um dado exercício apenas pode ser utilizado o critério de competência de caixa.  Em todo o caso, mesmo este critério da competência de caixa só é praticável se se estiver perante «despesas não documentadas» relevadas contabilisticamente, em conta apropriada de “gastos”, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também refletido nas contas de meios monetários. A verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada na data da contagem física, só podendo o mesmo ser imputado ao exercício de 2018 .

28. Justifica-se, neste momento, um breve excurso sobre o enquadramento normativo das tributações autónomas sobre despesas. A consagração deste tipo de tributação foi feita pela primeira vez por lei avulsa, por via do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, que consagrou a aplicação de uma tributação à taxa de 10% para “despesas confidenciais ou não documentadas”. Até então, essas despesas eram unicamente objeto de exclusão de dedutibilidade, como ainda sucede. O âmbito de aplicação das tributações autónomas foi sucessivamente alargado a outras tipologias de despesas através de várias modificações ao mencionado preceito, introduzidas por leis do orçamento de Estado.

29. Inicialmente dotadas de autonomia formal e sistemática, as tributações autónomas viriam a ser inseridas no CIRC quando da Reforma Fiscal de 2001, com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, sendo-lhes aplicáveis as disposições do CIRC relativas à apresentação de declarações, à autoliquidação, à liquidação adicional e as demais que sejam necessárias para a sua aplicação. As tributações autónomas em IRC são apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, e a respetiva liquidação reporta-se a cada período fiscal. Nos termos do respetivo regime legal, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas. No entanto, daí não resulta que também lhes seja aplicável o princípio da especialização dos exercícios e da anualidade, este enunciado no artigo 8.º, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».

30. Sobre esta questão, a jurisprudência constitucional já se pronunciou esclarecendo que «A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal»  .

31. Nas palavras da mesma instância suprema, «no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e, por isso, passível de tributação.»   Por seu lado, o Supremo Tribunal Administrativo sustentou, que «Sobre a razão de ser das tributações autónomas, segundo a doutrina dominante, o legislador criou taxas de tributação autónomas que visam aplicar-se a determinado tipo de despesas com vista a dissuadir as sociedades, no caso de IRC, a apresentá-las com regularidade e de elevado montante, para evitar que os sujeitos passivos de IRC utilizem determinadas despesas para proceder a distribuição camuflada de lucros e para evitar a fraude e a evasão fiscal» .

32. Daqui resulta que, à luz do objeto e do fim da norma do artigo 88.º n.º 1 CIRC, não existe qualquer fundamento hermenêuticamente válido, do ponto de vista das regras interpretação das leis fiscais (artigo 11.º n.º 1 LGT), para se limitar a respetiva aplicação aos casos de contabilização da despesa como gasto ou/e ser necessário afetar o resultado líquido do período de tributação. Pelo contrário, devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afetaram o resultado líquido do período.  Também estas se reconduzem à categoria das despesas não documentadas. Dificilmente se poderia entender de outro modo, considerando estar em causa evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, favorecendo a erosão da base tributária e a transferência indevida de lucros (base erosion and profit shifting).

33. Embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, a tributação autónoma é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa. Trata-se de um imposto de obrigação única, incidindo sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos e instantâneos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada, desprovida de qualquer relação com o volume de negócios da empresa. A tributação autónoma exprime o exercício de uma função regulatória através do CIRC, inerente às finalidades e exigências de um Estado de direito material, onde se incluem objetivos incentivar a formalização da economia, o rigor e a fiabilidade das contas das empresas, prevenir a fraude e a evasão fiscal, nomeadamente através da retirada dissimulada de ativos monetários.

34. No caso em apreço, constatou-se que a conta 11-Caixa tinha um saldo elevado, mas não existiam na empresa os meios financeiros correspondentes a esse saldo, não se apurando quais as razões da divergência. A diferença entre o saldo contabilizado e os valores efetivamente existentes na empresa denunciava a ocorrência de saídas de meios monetários do património social que, além de não terem sido objeto do adequado registo na contabilidade, também não constavam de qualquer evidência documental suscetível de permitir a identificação dos seus destinatários, da natureza das operações subjacentes e dos momentos da sua realização. Encontravam-se, assim, preenchidos os elementos caracterizadores da figura designada por «despesas não documentadas» sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, tendo a mesma sido liquidada pelo valor de € 65.433,80 e juros compensatórios no valor de € 521,30.

35. Sustenta a Requerente que a correção realizada pela AT não teve em conta a evolução do saldo de caixa e eventuais discrepâncias nos exercícios de 2013 a 2017, conforme referido em sede de audição prévia. Em seu entender, caberia à Requerida provar a efetiva saída de meios monetários em que pretende fazer assentar a tributação autónoma a título de despesas não documentadas. Assim não entende o presente tribunal. A Requerente não demonstra que os saldos da conta Caixa no final dos exercícios de 2013 a 2017 não representavam de modo fidedigno a realidade, tanto mais que figuram nos balanços aprovados pelos sócios e também não foram disponibilizados documentos validados pelo órgão de gestão a evidenciar que os resultados de contagens físicas realizadas no final de cada exercício revelam divergências relativamente aos saldos contabilísticos.

36. A Requerente não demonstrou que a divergência apurada nos valores em Caixa é explicada por saídas de meios monetários do património social, não documentadas nem contabilizadas ocorridas em exercícios anteriores ao de 2018, limitando-se a referir que os registos contabilísticos efetuados na conta Caixa totalizam a quantia de € 141.864,27€, e os influxos totalizam o valor de € 145.754,58, importâncias que, por si mesmas, não permitem extrair qualquer efeito útil. Ela não consegue identificar as anomalias e irregularidades praticadas na contabilidade que poderiam afetar o apuramento e controle do lucro tributável, não satisfazendo o seu ónus da prova, nos termos do artigo 74.º, nº1º, da LGT. À AT cabe o ónus da prova da existência de despesas não documentadas, sendo que a prova foi produzida com a evidenciação quer da divergência de valores apurada entre o saldo contabilístico de caixa e as quantias que efetivamente estavam na sua disponibilidade quer na solicitação dos documentos justificativos.

37. Importa salientar, a este propósito, que o facto de o CIRC assentar na declaração voluntária dos rendimentos e lucros coloca sobre o contribuinte uma maior responsabilidade no cumprimento das suas obrigações acessórias de natureza declarativa, isto é, na elaboração e conservação dos registos contabilísticos, na documentação de todas as transações e na garantia da congruência entre a contabilidade de caixa e o dinheiro efetivamente existente. Por outro lado, o contribuinte está em melhor posição para conhecer detalhadamente a sua situação económica, financeira e fiscal do que a AT. Na medida em que ele esteve diretamente envolvido nas transações ou nos movimentos que justificaram a diferença entre o saldo da caixa e o dinheiro efetivamente contado, ele está em melhores condições para proceder à respetiva justificação. Considerando que todos os fluxos de caixa, de entrada e saída, devem estar devidamente documentados, é o contribuinte que está em melhores condições para obter, manter e apresentar a documentação relevante. Ainda que os documentos disponíveis possam ser insuficientes, o contribuinte sempre terá acesso a outras evidências indiretas dessas transações. No caso, nada foi trazido aos autos pela Requerente.

38. Não pode recair sobre a AT o ónus de prova (probatio diabolica) das saídas de meios monetários e das concretas despesas realizadas, justamente aquilo que só a própria Requerente se encontraria em condições de provar, através, nomeadamente, da apresentação de mapas e documentos internos como as folhas de Caixa, por cuja elaboração é responsável o órgão de gestão, ou de documentos externos (faturas e recibos). Se não fosse adotado este entendimento, seria muito provável que os contribuintes passassem a não guardar, ou mesmo a destruir, documentos contabilísticos ou fossem gradualmente esvaziando a caixa em sentido físico, afastando-a completamente do correspondente registo contabilístico. Uma interpretação sistemicamente adequada do artigo 74º, n.º 1, da LGT, nunca poderia conduzir a um resultado que beneficiasse contribuintes desonestos e negligentes ou acabasse por obrigar a inspeções tributárias mais frequentes, invasivas e onerosas para todos os contribuintes.

39. Resulta das considerações expostas que existe fundamento material para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado. Delas decorre, por outro lado, não ter aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.

40. Do mesmo modo, não é procedente a alegação de que a AT deveria ter lançado mão de métodos indiretos, pois que estes têm por objetivo apurar o lucro tributável, quando se demonstra que a contabilidade não é feita e mantida com o rigor exigido por lei e pelos princípios contabilísticos, não sendo relevantes para apurar se e quando foram feitas despesas não documentadas nem contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma. Isto mesmo é afirmado, pelo TCA Sul, para quem, “[e]m face do ordenamento jurídico português, cabe distinguir entre a tributação autónoma, incidente sobre gastos detetados, mas não suportados em elementos justificativos e a determinação do rendimento por métodos indiretos, a qual, na falta de credibilidade da contabilidade impossibilitante da avaliação direta, determina, verificados os pressupostos elencados na lei, a necessidade da fixação da matéria coletável através de métodos indiretos (artigos 87.º e 88.º da LGT)” .

41. As despesas em causa não correspondem a rendimento, mas antes a despesa incorrida não documentada, a qual é tributada, enquanto facto tributário instantâneo e autónomo, nos termos do artigo 88.º/1, do CIRC. O que nada tem que ver com a determinação do rendimento, segundo os critérios dos artigos 89.º a 90.º da LGT. Não existe qualquer fungibilidade entre a tributação autónoma de despesas não documentadas e a determinação da matéria coletável por métodos indiretos. A segunda tem em vista apurar o rendimento percebido em certo período, pelo sujeito passivo, com vista à sua tributação.

43. Por outro lado, a liquidação adicional em IRC por efeito da aplicação de taxa de tributação autónoma a despesas não documentadas encontra-se devidamente fundamentada no ponto III do relatório de inspeção tributária. Aí se descrevem os factos em que se baseia a correção, fazendo-se menção à diligência de contagem do saldo de caixa e à discrepância existente entre o saldo e o registo contabilístico e ao auto de declarações do sócio gerente, que permitem constatar que não houve lugar à saída de dinheiro para pagamentos externos, nem distribuição de lucros ou adiantamentos por conta dos lucros. Sendo certo que o n.º 2 do mesmo ponto III do Relatório, intitulado “Legislação fiscal aplicável”, igualmente faz referência expressa às normas dos artigos 17.º, n.º 3, alínea b), e 88.º, n.º 1, do CIRC, que justificam a correção aritmética a título de tributação autónoma. Encontrando-se preenchidos, deste modo, os requisitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º da LGT quanto ao dever de fundamentação.

44. Acresce que, como se deixou referido, não é à Autoridade Tributária que cabe realizar a prova dos custos fiscais que não têm suporte contabilístico, e, apesar disso, os serviços inspetivos efetuaram as diligências instrutórias pertinentes, designadamente mediante a audição do sócio gerente em declarações e a solicitação das atas da assembleia geral, tendo em vista determinar o fundamento material para a divergência entre o saldo da caixa e o registo contabilístico. Não tendo sido obtido, através dessas diligências, um resultado probatório favorável à posição da Requerente, não é possível afirmar que foi violado o princípio da verdade material, consubstanciado no artigo 58.º da LGT, quando foi dada oportunidade ao sujeito passivo, no decurso do procedimento inspetivo, de juntar os elementos que permitissem justificar de valores monetários em falta no saldo de caixa.

45. Por fim, encontrando-se justificada a liquidação adicional em IRC por aplicação do disposto no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, que manda tributar autonomamente, à taxa de 50%, as despesas não documentadas, não se vê em que medida é que a referida liquidação viola os princípios da confiança e segurança jurídica, da legalidade tributária e da proibição da retroatividade da lei fiscal, bem como a reserva de competência da Assembleia da República,  quando é certo que a tributação autónoma, nessa circunstância, foi criada por lei, que define o âmbito de incidência e a taxa, e não corresponde a um imposto com que o contribuinte não devesse contar.

46. Por conseguinte, não há lugar para a declaração da ilegalidade da liquidação de tributação autónoma sobre despesa não documentada nem contabilizada que é apurada pela AT em ação de inspeção externa para verificação de caixa, afetando a totalidade da despesa ao exercício em que é apurada a inexistência na Requerente do valor contabilizado como saldo da conta 11-Caixa e muito menos por omissão de recurso pela AT a métodos indiretos para determinar quais as despesas que foram feitas, patenteadas pela inexistência na empresa dos meios monetários evidenciados pelo saldo da conta 11-Caixa, devendo considerar-se totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral .

47. A autoliquidação da tributação autónoma é uma obrigação dos sujeitos passivos de IRC sempre que apresentam despesas a ela sujeitas [artigos 88.º, n.º 22, e 89.º a) do CIRC]. Não tendo procedido a essa autoliquidação, a Requerente retardou a liquidação do IRC respetivo, não se identificando vício que afete a liquidação de juros compensatórios.

 

4. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

5. Valor do processo

 De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor indicado pela Requerente, de € 65.958,48

 

6. Custas

                Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2 448.00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 18.05.2021

 

Os Árbitros

 

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha)           

(Jónatas Machado)

(André Festas da Silva)