Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 402/2020-T
Data da decisão: 2021-07-09  IRC  
Valor do pedido: € 742.347,61
Tema: IRC; variações patrimoniais positivas; despesas não documentadas.
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SUMÁRIO:

I. Os incrementos patrimoniais na esfera da Requerente que não se encontrem reflectidos no resultado de exercício e que cuja sustentação não seja subsumível a nenhuma das excepções do artigo 21.º, n.º 1, do Código do IRC são tributados enquanto variações patrimoniais positivas;

II. São consideradas despesas não documentadas e, nessa medida, sujeitas a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC, as despesas em que apesar de ser conhecida a sua origem e o seu destinatário não é possível certificar a respectiva natureza e finalidade.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

                Os árbitros José Poças Falcão (árbitro-presidente), Carla Castelo Trindade e Manuel Lopes da Silva Faustino (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante “CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.   RELATÓRIO

                1. A….., S.A., sociedade anónima com sede na Avenida ………………. Viana do Castelo, com o número único de identificação de pessoa coletiva ………….., (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (daqui em diante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira  (adiante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e consequente anulação parcial do acto de liquidação adicional n.º 2020 ………….., do acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2020 …………….. e do acto de liquidação de juros moratórios n.º ..2020 ………………….., todos eles referentes ao IRC do período de tributação de 2015.

                O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 12 de Agosto de 2020 pelo Ex.mo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

                A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

                Em 29 de Setembro de 2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

                Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 29 de Outubro de 2020.

                Por despacho proferido em 21 de Dezembro de 2020, foi designado o dia 9 de Fevereiro de 2021 para realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT. Posteriormente, em 8 de Fevereiro de 2021, foi proferido despacho no qual se adiou a realização daquela reunião para data a agendar em virtude da publicação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que estabeleceu a suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adoptadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19. Em 21 de Abril de 2021 foi proferido novo despacho no qual se designou o dia 19 de Maio de 2021 para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT. A referida reunião foi realizada no prazo indicado tendo o Tribunal, por um lado, notificado as partes para apresentarem alegações escritas de modo simultâneo no prazo de 20 dias e, por outro lado, designado o dia 9 de Julho de 2021 como data previsível para prolação da decisão arbitral. Por fim, as partes apresentaram alegações escritas em 9 de Junho de 2021, nas quais reiteraram os fundamentos já anteriormente expressos quanto às respectivas posições.

 

I.I. Síntese da posição da Requerente

                2. No âmbito do pedido de constituição do Tribunal Arbitral a Requerente sustentou a procedência dos seus pedidos com base nos seguintes argumentos:

                A Requerente é uma sociedade de direito português que se dedica principalmente à actividade de comércio internacional, adquirindo mercadorias e matérias-primas que revende aos seus clientes, essencialmente através de exportação para o mercado angolano. No exercício da sua actividade a Requerente apoia instrumentalmente a actividade das demais empresas associadas ao “Grupo B…..”, nomeadamente a sociedade de direito angolano “C…….- Engenharia e Construção, S.A” (doravante "C…… AO”), garantindo desta forma a operacionalização dos meios financeiros para aquisição de materiais em divisas como o euro e o dólar, uma vez que a aquisição de mercadorias directamente por Angola padece de várias dificuldades, designadamente na exportação de divisas para proceder a pagamentos internacionais.

                A C………. AO foi subcontratada pela sociedade D……, S.A. (daqui em diante “D……..”), residente em Portugal, para a execução de uma obra em Angola pelo valor de € 2.700.000,00, a pagar pela D……. por transferência para conta bancária a indicar pela C…….. AO. Tendo em conta que grande parte dos trabalhos desenvolvidos pela C………. AO exigiam a importação para Angola de várias matérias-primas e equipamentos a serem pagos em dólares ou euros, esta tinha interesse em receber o preço da subempreitada, ou pelo menos parte dele, no exterior de Angola. Isto na medida em que em 2015 era “tarefa quase impossível enviar divisas para fora de Angola”, o que poderia colocar em risco o negócio da C………. AO e impossibilitar o pontual cumprimento dos seus compromissos.

                A D……. atravessava dificuldades financeiras que poderiam levar a que tivesse que suspender pagamentos, somando já avultadas quantias em dívida à C……… AO. Em todo o caso, a D…….. acabou por receber pagamentos por parte da dona da obra em virtude da execução da empreitada em Angola, tendo então acordado com a C……. AO o pagamento em Julho de 2015 da quantia de € 900.000,00 por conta da facturação ao abrigo do contrato de subempreitada. Uma vez que à data a C……. AO ainda não possuía conta bancária aberta em Portugal (já que a conta no banco E……… só ficou em condições de ser movimentada em 16 de Setembro de 2015), esta acordou com a D…… que o referido pagamento seria entregue à Requerente e que esta, enquanto mandatária da D……., faria o pagamento devido à C…….. AO assim que esta estivesse em condições de receber tal dinheiro na conta bancária que se encontrava a abrir em Portugal. Desta forma, a Requerente recebeu da D……. o valor de € 900.000,00 através de várias transferências, cada uma de valor não superior a € 90.000,00, atentos os limites de segurança autorizados pela banco para se realizarem transferências via netbanking.

                A respeito desta operação, considerou a AT que o recebimento daquelas quantias constituía uma variação patrimonial positiva tributável nos termos do artigo 21.º, do Código do IRC, impondo o acréscimo integral do respectivo valor à matéria colectável do exercício de 2015. Ora, a Requerente não teve nenhum acréscimo patrimonial não reflectido no seu resultado de exercício em virtude do recebimento daquelas quantias, uma vez que aqueles recebimentos constituíram meras operações financeiras de balanço, enquanto contrapartida de um passivo perante a D………., pois perante ela se obrigou enquanto mandatária a entregar o valor em causa à C……….. AO. Isto mesmo resulta da contabilidade da Requerente, que na conta SNC n.º 1201 – “Depósitos à ordem”, registou o recebimento das transferências de € 900.000,00 na conta de depósitos titulada junto do Banco F….., contabilizando como contrapartida na conta SNC n.º 278881001 – “D…….. SA”, da classe “Outros Devedores e Credores”, um passivo a favor da D…….. de igual montante. Assim, ao gozarem os referidos lançamentos contabilísticos de uma presunção de veracidade nos termos dos artigos 59.º, n.º 2, e 76º, n.º 1, ambos da Lei Geral Tributária (daqui em diante “LGT”), e não tendo a AT logrado afastar essa presunção por via da fundamentação constante do Relatório de Inspecção Tributária (doravante “RIT”), entende a Requerente que as correcções operadas pela AT estão viciadas por erro sobre os pressupostos de facto e de direito. Isto na medida em que aquelas correcções desconsideraram um mandato verbal e gratuito, legitimamente celebrado nos termos dos artigos 1157.º e seguintes do Código Civil, cujas consequências estão devidamente reconhecidas na contabilidade, com base no pressuposto de um aumento patrimonial da Requerente que nunca existiu.

                Adicionalmente, a AT sujeitou a tributação autónoma à taxa de 50% a ulterior transferência dos € 900.000,00 para a conta bancária em Portugal da C……… AO, por considerar que estavam em causa despesas não documentadas nos termos e para os efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC. Sucede que a Requerente, em cumprimento do mandato que lhe tinha sido cometido, transferiu em 24 de Setembro de 2015 (com data-valor de 15 de Setembro de 2015) para a conta bancária da C…….. AO, entretanto aberta no E……. em Portugal, a quantia de € 900.000,00 que recebera cerca de dois meses antes por parte da D……... Em virtude de tal recebimento a C……… AO emitiu a factura n.º ../../2015 no valor de € 900.000,00 sobre a D…….., tendo dado quitação da quantia recebida. Esta operação foi devidamente reconhecida na contabilidade, tendo a Requerente registado o pagamento à C……….. AO através da saída do dinheiro da conta bancária no F……. (por crédito da conta SNC 1201 – Banco F…… – conta ……………..) e por contrapartida na anulação do passivo que se encontrava registado a favor da D………, assim saldando as contas. Por seu turno a D…………, após receber a factura e a quitação, registou na sua contabilidade, designadamente na conta corrente da C…….. AO, o pagamento e os recibos dos € 900.000,00, ficando em aberto o saldo da factura que ainda não se encontrava paga. Quer isto dizer que, no entender da Requerente, estava em causa uma operação devidamente documentada, estando a transferência bancária comprovada pelo respectivo documento emitido pela instituição bancária em questão. Assim sendo, não estaria verificada a ratio legis da tributação autónoma das despesas não documentadas ou confidenciais, já que estas têm por base a necessidade de efectuar uma imposição fiscal sobre transacções em relação às quais não se consegue determinar quem delas beneficiou ou a que título tal transacção ocorreu, por forma a evitar possíveis situações de elisão ou ausência de tributação naquilo que pudesse constituir rendimento para o beneficiário. Ora, no presente caso não existiriam, de acordo com a Requerente, dúvidas ou incertezas quanto à determinação do beneficiário da transferência nem quanto aos motivos da operação, razão pela qual não poderia a AT aplicar o regime de tributação autónoma previsto no artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC. No limite, caso a AT entendesse que a documentação da transferência bancária a favor da C………. AO, apesar de identificar devidamente o respectivo beneficiário e montante envolvido, não cumpria com os requisitos de documentação exigidos nos termos da lei, sempre seria de aplicar o regime previsto para as despesas indevidamente documentadas e já não o regime das despesas não documentadas. Dito de outro modo, a consequência fiscal de tal qualificação seria a não dedutibilidade das “despesas” para efeitos fiscais e já não a sua sujeição a tributação autónoma.

 

I.II. Síntese da posição da Requerida

                3. Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a Requerida apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (daqui em diante “PA”), pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

                As situações que originaram as correcções fiscais controvertidas, tiveram por base fluxos financeiros provenientes da sociedade D……… (entradas de meios monetários) e canalização de fluxos financeiros do mesmo montante (saídas de meios monetários) para a sociedade de direito angolano C……….. AO. Em função daqueles fluxos, a Requerente registou na sua contabilidade, designadamente na conta SNC “27881001 – Outras contas a receber e a pagar – Outros devedores – D……….. SA”, lançamentos contabilísticos a crédito no total de € 900.000,00 referentes a entradas em dinheiro por débito da conta SNC “1201 – Depósitos à òrdem - Banco F……. - Conta …………”. No entanto, os documentos que suportavam os créditos em causa limitavam-se aos extractos bancários das transferências efectuadas pela D………, inexistindo para o efeito relações comerciais entre aquela e a Requerente que justificassem a operação em questão. Sustentou a este respeito a Requerente que o recebimento dos € 900.000,00 na sua conta bancária se devia ao facto de esta ter relações especiais com a C………… AO – já que tinham accionistas em comum –, bem como à dificuldade de movimentação do dinheiro em contas de bancos angolanos, sendo que à data a C……….. AO não tinha conta bancária em Portugal que permitisse o recebimento directo daquele montante, visto que o processo de abertura de conta junto do banco E…….. foi demorado.

                Em todo o caso, a verdade é que os Serviços de Inspecção Tributária (daqui em diante “SIT”) constataram no âmbito do procedimento de inspecção tributária que as transferências monetárias foram efectuadas da D…….. para a Requerente em Junho e Julho de 2015, ou seja, antes do recebimento da quantia em questão pela D………, já que a dona da obra apenas procedeu ao respectivo pagamento em Setembro de 2015. Nessa data estava já activa a conta do E…….., pelo que não se verificavam os motivos invocados pela Requerente para o montante em questão não ter sido pago directamente pela D……… à C……… AO. Neste sentido, defendeu a Requerida, que não se pôde considerar que a Requerente tenha exibido documentação que demonstrasse inequivocamente a natureza das transacções, já que o documento comprovativo da transferência não permitiu certificar aquela natureza, para além de que a Requerente apenas apresentou um e-mail para o efeito quando os SIT verificaram a existência de três e-mails em relação àquela operação no âmbito de uma deslocação que efectuaram à D……... Acresce ao exposto o facto de a factura n.º …/…/15 emitida pela C…….. AO à D……. em 25 de Setembro de 2015, invocada pela Requerente, apenas ter sido registada pela D…….. na sua contabilidade em Novembro de 2015. Por outro lado, a Requerente afirma que a sua actuação foi efectuada a pedido da administração da C……… AO, contudo, a Requerente não apresentou quaisquer registos contabilísticos da C………. AO, recibo da factura e outras provas demonstrativas de que os movimentos financeiros realizados se referem “à operação em concreto que se relaciona com trabalhos efetivados pela C……….. AO à D…………SA, em Angola - conforme a factura de autos n.o ../../15 de ../…/2015”. Embora a Requerente alegue que o valor em causa foi utilizado para pagar a fornecedores da C……… AO, esta não apresentou qualquer evidência documental desse facto, sendo que as provas recolhidas pelos SIT permitem “comprovar que o valor de € 900.000,00 - transferido da A…… PT [requerente] para a C………. AO - foi de seguida transferido da C…….. AO - parte significativa - para os administradores/accionistas desta e outros, nomeadamente os não residentes em PT – G……, H…….., I…../J…….”. Nestes termos, entenderam os SIT que a operação em questão não visou o pagamento a fornecedores por forma a colocar materiais rapidamente em Angola, tendo pelo contrário visado efectivar pagamentos aos administradores/accionistas da C………. AO não residentes em Portugal. Concluiu assim a Requerida que a entrada de € 900.000,00 na esfera da Requerente provenientes da D…… sem qualquer documento de suporte quanto a eventuais operações comerciais entre estas duas entidades e sem evidências manifestas sobre as razões de tal incremento, representa uma variação patrimonial positiva que concorre para a formação do lucro tributável nos termos do n.º 1, do artigo 21.º, do Código do IRC. Isto sem contar com o facto de que no seu pedido de pronúncia arbitral a Requerente invocou argumentos que não havia apresentado no RIT para procurar certificar a natureza da operação, designadamente que a existência de várias transferências, cada uma de valor não superior a € 90.000,00, se teria devido aos limites de segurança autorizados para se realizarem transferências via netbanking, e que havia recebido as quantias em questão a título de mandatária da D……..

                Quanto à saída, em 30 de Setembro de 2015, de meios monetários da Requerente para a C………. AO no montante de € 900.000,00, a Requerente não apresentou provas conducentes à certificação de que o montante de € 900.000,00 “correspondia efetivamente ao pagamento por conta da factura de autos n.º ../../2015, de 25/09/2015”. Embora se conheça que o destinatário do pagamento efectuado é a C………. AO, não pode deixar de se considerar que o mesmo representa uma despesa não documentada na medida em que a saída dos meios monetários em causa não se encontra justificada documentalmente quanto à sua natureza e finalidade. Isto na medida em que a Requerente não logrou afastar as insuficiências já referidas a respeito da operação em questão, designadamente a inexistência de conta bancária da C……….. AO em Portugal e o intuito de pagamento a fornecedores, já que os extractos bancários evidenciam a distribuição de parte daquele montante aos administradores da C……… AO não residentes em Portugal. Em face do exposto concluiu a AT que a saída de meios monetários, no valor de € 900.000,00, por transferência bancária da Requerente para a C………. AO se qualificava como despesa não documentada sujeita a tributação autónoma à taxa de 50%, de acordo com a previsão legal do n.º 1, do artigo 88.º, do Código do IRC, sem prejuízo da sua desconsideração como gastos, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 23.º-A, do Código do IRC.

 

II.    SANEAMENTO

                4. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, n.º 3, alínea b), todos do RJAT.

                As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

                Não foram invocadas excepções que cumpra apreciar.

                O processo não padece de nulidades ou de quaisquer outros vícios que o invalidem.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

                5. Com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A Requerente é uma sociedade anónima que no período de tributação de 2015 estava inserida nos Códigos de Actividade Económica (CAE) 41200 – Construção de Edifícios (Residenciais e não Residenciais) – actividade principal, 71120 – Actividades de engenharia e técnicas afins – actividade secundária 1), 46130 – Agentes do comércio por grosso de madeira e materiais de construção - actividade secundária 2 e 46630 – Comércio por grosso de máquinas para indústria extractiva, construção e engenharia civil – actividade secundária 3;

b)           No âmbito do IRC, a Requerente está enquadrada no regime geral e adopta um período de tributação coincidente com o ano civil;

c)            No início de 2015 foi adjudicada pela sociedade K……, S.A. (daqui em diante “dona da obra”), sociedade de direito angolano, à sociedade D……, sociedade de direito português, a empreitada de construção da obra “Subestação …….. - 1.ª Fase” em Angola;

d)           A D…… subcontratou à C…….. AO os serviços de mão-de-obra e trabalhos de instalação dos materiais e respectivos ensaios associados à construção de linhas de transporte de electricidade pelo valor total de € 2.700.000,00, com termo em 29 de Junho de 2015 (cfr. cláusulas 1.ª a 3.ª do Contrato de Prestação de Serviços assinado em 2 de Fevereiro de 2015 entre ambos os contraentes junto como Doc. 1 ao PPA e com o PA, fls. 143/152);

e)           Previa-se no âmbito do contrato a emissão de duas facturas para o pagamento da subempreitada, nada se dizendo quanto à respectiva data de emissão e apenas se determinado o pagamento no prazo de 30 dias úteis após a sua recepção;

f)            Não existem relações de domínio, de grupo ou de simples participação entre a D……. e a C……..AO;

g)            A Requerente detém a totalidade do capital social da C……… OA, com quem mantinha relações comerciais;

h)           A actividade da Requerente nessas relações comerciais visava, por um lado, coordenar e facilitar os processos de aquisição de mercadorias e matérias-primas (em Portugal e noutros países comunitários e terceiros) necessárias às actividades desenvolvidas em África, assegurando a agilização de procedimentos de compra dos materiais que necessitavam de ser importados pelas empresas desses países e, por outro lado, garantir a operacionalização dos meios financeiros para a aquisição desses materiais (necessariamente em divisas como o euro e o dólar) uma vez que a aquisição de mercadorias directamente por Angola padecia de várias dificuldades, nomeadamente na exportação de divisas para proceder aos pagamentos internacionais;

i)             No período em questão L……. era membro do Conselho de Administração da D…….. e Gerente e administrador da Requerente;

j)             Com base em ordens dadas pelo referido administrador, a D…….. transferiu em 2015 a importância de € 900.000,00 para a Requerente;

k)            A quantia de € 900.000,00 foi transferida da D…….. para a Requerente por via de 12 transferências bancárias, todas de valor inferior a € 100.000,00, realizadas em 30 de Junho de 2015, em 17 de Julho de 2015 e em 22 de Julho de 2015, nos seguintes termos:

 

l)             As transferências foram efectuadas apesar de a dona da obra apenas ter procedido ao pagamento da empreitada à D…… em Setembro de 2015;

m)          Os SIT detectaram três e-mails que despoletaram a efectivação das transferências bancárias referidas no ponto l), remetidos em 30 de Junho, em 17 de Julho e em 22 de Julho, todos de 2015, pelo administrador L……., nos quais não se efectua qualquer menção a facturas ou adiantamentos por conta da facturas a emitir pela C……. AO;

n)           Na esfera da D……. a transferência efectuada não ficou registada, não tendo sido realizados os movimentos de “saída de bancos” e “entradas em caixa” (cfr. depoimento da testemunha M……);

o)           Na contabilidade da Requerente a conta SNC “27881001 - Outras contas a receber e a pagar - Outros devedores e credores - Outros devedores – D…… SA” foi creditada em Julho por contrapartida do débito (entrada de dinheiro) na conta SNC “1201 - Depósitos à Ordem - Banco F….. - Conta ………..” com doze lançamentos contabilísticos no montante total de € 900.000,00 (cfr. PA junto pela requerida aos autos);

p)           Os SIT não detectaram na contabilidade da Requerente qualquer relação comercial entre esta e a D…… que justificasse as transferências em questão, nem a emissão ou comunicação de quaisquer facturas, sendo que para os referidos movimentos contabilísticos existiam como documentos de suporte apenas os extractos bancários das transferências (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);

q)           Nos três e-mails que os SIT detectaram do administrador L…. (que ordenaram as transferências), determina-se genericamente enquanto razão para a sua realização o seguinte:

(i)           E-mail de 30 de Junho de 2015 – “por conta de resultados referentes às operações em Angola”;

(ii)          E-mail de 17 de Julho de 2015 – “por conta dos valores que C….. tem na D……, para a conta da A…… Portugal”;

(iii)         E-mail de 22 de Julho de 2015 – “por conta dos resultados de Angola” (cfr. PA junto pela requerida aos autos);

r)            A conta da B….. AO no banco E…… em Portugal ficou activa em 11 de Setembro de 2015 e movimentável em 16 de Setembro de 2015;

s)            Em 14 de Setembro de 2015 o administrador L…… ordenou ao gestor de conta da Requerente a transferência da importância de € 900.000,00 para a C……. AO, a qual ocorreu em 24 de Setembro de 2015;

t)            A transferência efectuada pela Requerente para a C……..AO foi objecto do seguinte registo contabilístico: saída do dinheiro da conta bancária no banco F…….(por crédito da conta SNC 1201 - Banco F…… - Conta ………..) por contrapartida na anulação do passivo que se encontrava registado a favor da D……. (conta SNC n.º 27881001 – D……, SA da classe “Outras contas a receber e a pagar - Outros devedores e Credores”);

u)           A conta da D…….. na Requerente ficou assim saldada;

v)            Em 25 de Setembro de 2015 a C……. AO emitiu a factura de autos n.º ../../15, no valor de € 900.000,00 em nome da D…….., que apenas foi registada na contabilidade desta última em Novembro de 2015;

w)          Em 20 de Outubro de 2015 a C……. AO emitiu a factura de autos n.º ../…/2015, no valor de € 1.800.000,00 em nome da D……, constando da respectiva descrição: “Prestação de Serviços relativamente à empreitada da Subsestação ……….. 1.ª Fase.” e “Auto de Medição Final”;

x)            Parte significativa do montante de € 900.000,00 foi posteriormente transmitido pela C…….. AO para os administradores/accionistas desta e outros não residentes em Portugal, nomeadamente G……, H……, I…./J……;

y)            A Direcção de Finanças de Viana do Castelo, através da ordem de serviço n.º OI2018……., de 28 de Dezembro de 2018, instaurou à Requerente um procedimento de inspecção externa de âmbito parcial, tendo em vista o controlo declarativo em sede de IRC relativo ao exercício de 2015;

z)            Em resultado daquele procedimento o lucro tributável do exercício de 2015 da Requerente foi corrigido nos seguintes termos:

 

 

aa)         No seguimento das referidas correcções foram emitidos os actos de liquidação ora impugnados pela Requerente.

 

III.1.2. Factos não provados

                6. Com relevo para a decisão da causa, consideram-se não provados os seguintes factos:

a)            A Requerente recebeu a importância de € 900.000,00 proveniente da D……. no exercício de um contrato de mandato celebrado de forma verbal e a título gratuito, que visou solucionar a impossibilidade de recepção directa daquele valor em Portugal pela C…….. AO;

b)           Os € 900.000,00 recebidos pela Requerente respeitavam às operações desenvolvidas pela C……… AO no âmbito do contrato de subempreitada celebrado com a PAÍNHAS;

c)            Os € 900.000,00 transmitidos pela Requerente à C……… AO foram posteriormente utilizados para efectuar o pagamento a fornecedores desta última.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

7. Ao Tribunal incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental, o PA junto aos autos e a convicção formada durante a inquirição das testemunhas apresentadas pelas partes em sede da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

8. Relativamente aos factos julgados como não provados nos presentes autos cumpre ter em consideração os aspectos que estão na base da sua motivação.

Quanto à determinação como não provado do facto constante da alínea a) do ponto 6 dos presentes autos, cumpre desde logo referir que a Requerente apenas alegou a sua existência no âmbito do pedido de pronúncia arbitral, omitindo qualquer referência ao mesmo quando procurou justificar as operações em juízo perante os SIT. Segundo a Requerente, a celebração do contrato de mandato com o consequente recebimento dos € 900.000,00 provenientes da D…….. e a posterior transferência desse montante para a C……. AO ter-se-ia devido ao facto de existirem relações especiais entre a Requerente e a C……… AO, já que ambas tinham accionistas em comum. Acrescia que a D……. se encontrava em dificuldades financeiras que poderiam levar a que tivesse de suspender pagamentos, existindo uma necessidade de transferir imediatamente para C……….. AO os pagamentos que havia recebido da dona da obra em execução do contrato de empreitada. Ora, conforme resultado da matéria de facto dada como provada, verifica-se que tal justificação não corresponde à verdade, uma vez que a D……. realizou as transferências para a Requerente em Junho e Julho de 2015, isto é, antes de ter recebido o pagamento pela empreitada realizada em Angola que só veio a ocorrer em Setembro de 2015 e antes da C……… AO emitir as duas facturas para o pagamento da subempreitada nos termos do contrato celebrado entre as partes.

Sustentou também a Requerente que a C……… AO tinha interesse em receber os € 900.000,00 no exterior de Angola, nomeadamente em Portugal, já que à data era extremamente difícil enviar divisas para o exterior de Angola. Como a C……. AO não tinha à data conta bancária aberta em Portugal, aquele montante teria sido transferido de forma parcelada pela D………. para a Requerente, sob condição de esta transferir esse dinheiro para a C…….. AO assim que esta última tivesse a conta aberta em Portugal. Ora, constata se uma vez mais a improcedência do argumento tecido pela Requerente, por contrariedade com a prova produzida nos presentes autos. De facto, no momento em que a D…….. recebeu o pagamento pela empreitada realizada em Angola a D…….. AO já tinha conta activa em Portugal, de tal forma que o pagamento da subempreitada poderia ter sido realizado de forma directa entre as partes, sendo a intermediação da transferência com recurso à Requerente desnecessária para que a C…… AO assegurasse a detenção de divisas fora de Angola para proceder a pagamentos internacionais.

Nestes termos, é forçoso concluir-se que da prova produzida resulta que os fundamentos invocados pela Requerente para a celebração do contrato de mandato são contraditórios e divergentes em face do contexto fáctico-temporal delineado, não sendo possível certificar a respectiva materialidade e veracidade.

 

9. Relativamente à determinação como não provado do facto constante da alínea b) do ponto 6 dos presentes autos, sustentou a Requerente que a factura de autos n.º ../../15, emitida pela C……… AO em 25 de Setembro 2015 em nome da D……., permitia estabelecer a correspondência entre a transferência dos € 900.000,00 e o contrato de subempreitada desenvolvido em Angola. Sucede que a prova produzida nos presentes autos não permite comprovar tal alegação. Conforme resulta da matéria de facto dada como provada, os elementos justificativos da referida operação de um ponto de vista contabilístico resumem-se aos extractos bancários das transferências e aos e-mails enviados pela administrador L……. que as ordenaram. Sucede que em nenhum desses elementos consta a menção ou relação das transferências com quaisquer facturas ou adiantamentos por conta de facturas emitidas em relação à realização da subempreitada em Angola (já que as transferências foram efectuadas mesmo antes da emissão da factura pela C…….. AO à D……..). A única referência justificativa passível de estabelecer em relação à operação em questão resulta da menção de que a entrada dos € 900.000,00 na conta da Requerente foi efectuada “por conta de resultados referentes às operações de Angola”. Sucede que essa mera referência pode respeitar a qualquer transacção efectuada entre a D……. e a Requerente não registada na contabilidade.

Nestes termos, entende-se que os movimentos reflectidos nos extractos bancários da Requerente apenas permitem certificar a existência de fluxos financeiros ao nível das entradas e saídas e já não a natureza das referidas operações, isto é, não permitem certificar a real ligação entre a transferência dos € 900.000,00 da D…… para a Requerente e a posterior transferência daquele montante para a C……. AO, como correspondendo a uma transferência efectuada por conta de montantes devidos pela D…… à C……… AO em virtude do contrato de subempreitada que aquelas realizaram.

 

10. Por último, no que concerne à determinação como não provado do facto constante da alínea c) do ponto 6 dos presentes autos, sustentou a Requerente que a importância de € 900.000,00 transferida para a C……. AO teria visado o pagamento a fornecedores. A este respeito realça-se de forma singela que a Requerente não carreou aos autos qualquer prova que sustentasse tal afirmação. Em sentido contrário, comprovaram os SIT no âmbito do procedimento de inspecção que os montantes em questão tinham sido parcialmente utilizados pela C……. AO para efectuar pagamentos a administradores/accionistas desta e outros não residentes em Portugal. Assim sendo, fica uma vez mais em crise a justificação levada a cabo pela Requerente nos presentes autos, não sendo possível garantir a veracidade material do circuito fáctico-temporal que aquela procurou comprovar.

 

11. A respeito de toda a motivação da matéria de facto cabe ainda mencionar que não assiste razão à Requerente ao sustentar no seu pedido de pronúncia arbitral que “Esperar-se-ia que a AT, a quem competiria o ónus da prova a este propósito apresentasse uma qualquer evidência de que a Contribuinte não tivesse registado devidamente as suas operações na contabilidade, com os documentos bancários inequívocos, ou que as ditas operações teriam subjacentes quaisquer outros factos ou motivações fiscalmente o que manifestamente não o fez”. De facto, seja no âmbito do procedimento de inspecção, seja nos articulados apresentados nos presentes autos, seja no âmbito da inquirição das testemunhas em sede da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, constatou-se que a AT suscitou dúvidas e desenvolveu argumentos suficientes para ilidir a presunção constante do artigo 75.º, da LGT relativamente à veracidade dos elementos apresentados pela Requerente. Neste sentido, competia à Requerente provar a materialidade das operações em questão tendo em conta a matéria de direito por si invocada, quer relativamente aos factos cuja presunção de veracidade foi ilidida, quer relativamente aos factos que padeciam de inexactidões e insuficiências e, nessa medida, não gozavam da referida presunção.

               

                12. Por fim, evidencia-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

III.2.1. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados

                12. Quanto à ordem de conhecimento dos vícios dispõe o artigo 124.º, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT que o Tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação. Quanto a estes últimos, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pela Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade.

Assim sendo, a apreciação da matéria de direito seguirá a ordem dos vícios alegados pela Requerente, cabendo apreciar em primeiro lugar a correcção fiscal a título de variação patrimonial positiva da entrada dos € 900.000,00 na esfera da Requerente e, de seguida, a consideração da saída daquele montante enquanto despesa não documentada com a consequente sujeição a tributação autónoma.

 

III.2.2. Correcção fiscal a título de variação patrimonial positiva

                13. A este respeito cumpre aferir se a Requerente, ao ter recebido da D…… a importância de € 900.000,00, deveria ou não ter registado uma variação patrimonial positiva que concorre para a formação do lucro tributável.

                Para o efeito, cumpre efectuar o enquadramento legal aplicável à data dos factos, tendo em consideração que a Requerente era uma sociedade residente em território português, que exercia uma actividade comercial, industrial ou agrícola, sendo tributada com base nos rendimentos auferidos de base mundial, conforme resultava dos termos conjugados do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do artigo 3.º, n.ºs 1 e 4 e do artigo 4.º, n.º 1, todos do Código do IRC.

                Determinava o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IRC que o imposto sobre as pessoas colectivas incidia sobre “[o] lucro das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas colectivas ou entidades referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola”, especificando o n.º 2 do mesmo artigo que “(…) o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código”.

                No que respeita à determinação da matéria colectável, referia o artigo 15.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC que “(…) a matéria colectável obtém-se pela dedução ao lucro tributável, determinado nos termos dos artigos 17.º e seguintes, dos montantes correspondentes a:

1) Prejuízos fiscais, nos termos do artigo 52.º;

2) Benefícios fiscais eventualmente existentes que consistam em deduções naquele lucro;”.

                Já o artigo 17.º, n.º 1, do referido Código dispunha que o lucro tributável era constituído “(…) pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”.

                Não tendo o montante de € 900.000,00 transferido pela D…… para a esfera da Requerente integrado o resultado líquido de exercício, a sua inclusão no conceito de “lucro tributável” estava dependente de o referido montante ser considerado uma variação patrimonial positiva não reflectiva naquele resultado e de o Código determinar a sua relevância fiscal para o efeito. A respeito das variações patrimoniais positivas determinava o artigo 21.º, do Código do IRC que:

“1 — Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

a) As entradas de capital, incluindo os prémios de emissão de ações ou quotas, as coberturas de prejuízos, a qualquer título, feitas pelos titulares do capital, bem como outras variações patrimoniais positivas que decorram de operações sobre ações, quotas e outros instrumentos de capital próprio da entidade emitente, incluindo as que resultem da atribuição de instrumentos financeiros derivados que devam ser reconhecidos como instrumentos de capital próprio;

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;

c) As contribuições, incluindo a participação nas perdas do associado ao associante, no âmbito da associação em participação e da associação à quota;

d) As relativas a impostos sobre o rendimento.

e) O aumento do capital próprio da sociedade beneficiária decorrente de operações de fusão, cisão, entrada de ativos ou permuta de partes sociais, com exclusão da componente que corresponder à anulação das partes de capital detidas por esta nas sociedades fundidas ou cindidas.

2 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado, não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo.”

               

                14. Conforme decorre da formulação ampla do referido preceito, todas as variações patrimoniais positivas que não estejam reflectidas no resultado líquido do período de tributação são consideradas para efeitos de determinação do lucro tributável, apenas sendo excluídas as variações expressamente previstas pelo legislador nas alíneas a) a e), do n.º 1, do artigo 21.º, do Código do IRC. É precisamente neste sentido que GUSTAVO COURINHA, em Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, Almedina, 2019, pp. 93-94, refere que “Elas [as variações patrimoniais] ultrapassam os meros resultados contabilisticamente registados pela empresa e relevados fiscalmente e abarcam quaisquer outras oscilações de património (acréscimos ou decréscimos) apurados no decurso do período de tributação”. Prossegue o autor referindo que “É esta conceção que se extrai, além dos supra referidos artigos 3º/nº 2 e 17º/nº 1 do Código do IRC, também dos artigos 21º e 24º do Código do IRC: as variações patrimoniais positivas (VPP), assim como as variações patrimoniais negativas (VPN), mais não são do que manifestações de uma capacidade contributiva muito alargada e que, assim, surge chamada à tributação. Tais variações patrimoniais representam, neste sentido, as estremas da base tributável do IRC”, constatando ainda que “(…) ambos os artigos (artigo 21.º e artigo 24.º do Código do IRC) possuem uma formulação residual e muito abrangente, que assume sempre a relevância fiscal destas oscilações patrimoniais, salvo no caso das (importantes) exceções legais de seguida elencadas”.

               

                15. Aqui chegados cumpre salientar que à importância de € 900.000,00 transferida pela D…….. para a esfera da Requerente não corresponde nenhum documento de suporte que ateste a materialidade e natureza da operação estabelecida entre as partes, não sendo procedente pelas razões expostas na motivação da matéria de facto dada como provada e não provada o argumento de que a Requerente estaria a agir enquanto mandatária da D……. Além disso, a Requerente não apresentou evidências manifestas sobre as razões de tal incremento patrimonial tendo em consideração a materialidade do circuito fáctico-temporal anteriormente evidenciado, não sendo possível certificar que aquele montante respeitava à quantia devida pela D….. à C……. AO em virtude da subempreitada contratada entre as partes.

                Nestes termos, e não se subsumindo a quantia recebida a nenhuma das excepções constantes do n.º 1, do artigo 21.º, do Código do IRC, é forçoso concluir-se que a importância de € 900.000,00 transferida pela D…… para a esfera da Requerente constitui uma variação patrimonial positiva que concorre para a formação do lucro tributável nos termos anteriormente enunciados, sendo assim improcedente o pedido da Requerente a este respeito.

 

III.2.3. Despesa não documentada e consequente sujeição a tributação autónoma

                16. Quanto a este ponto cabe aferir se a transferência pela Requerente do montante de € 900.000,00 que esta havia recebido da D……, para uma conta bancária em Portugal da C…… AO constitui ou não uma despesa não documentada para efeitos de sujeição a tributação autónoma.

                Dispõe o artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC a este respeito que “As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A”. Neste sentido, revela-se essencial precisar o conceito de despesas não documentadas.

                Referiu-se quanto a esta matéria no sumário do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 08 de Maio de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 1119/16.1BELRA que:

“1) «Despesas não documentadas» são aquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique.

2) «Despesas invidamente documentadas» são aquelas que têm suporte documental, mas o mesmo, só por si, não permite identificar, em termos quantitativos e qualitativos quais os bens ou serviços que determinaram certo pagamento a determinada entidade.

3) As despesas não documentadas ou despesas confidenciais são sujeitas a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º/1, do CIRC. Por seu turno, as despesas não devidamente documentadas apenas são consideradas custos não dedutíveis – artigo 23.º-A/1/c), do CIRC.

4) O objectivo da tributação autónoma das despesas confidenciais parece ser o de tentar evitar (atenuando ou anulando a “vantagem” delas resultante em IRC) que, através dessas despesas, o sujeito passivo utilize para fins não-empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis; ou que sejam pagas remunerações a terceiros com evasão aos impostos que seriam devidos por estes. A realização de tais despesas implica um encargo fiscal adicional para quem nelas incorre porque a lei supõe que, assim, outra pessoa deixa de pagar imposto.

5) A distinção entre despesas indevidamente documentadas e despesas não documentadas tem outras consequências, nomeadamente, no que respeita ao ónus da prova da efectividade da despesa.

6) No que respeita às despesas não devidamente documentadas, o juízo de não suficiência de suporte documental da despesa é meramente negativo, reportando-se a uma constatação do incumprimento de um ónus contabilístico do sujeito passivo.

7) Já o reconhecimento de uma despesa como não documentada, em ordem a sujeitá-la a tributação autónoma enquanto tal, não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma.

8) Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, de molde a permitir ao administrado ajuizar da correcção/legalidade da mesma.”.

                A respeito do referido aresto cumpre precisar que o Código do IRC já não realiza qualquer distinção entre despesas confidenciais e despesas não documentadas, uma vez que as primeiras se inserem no escopo das segundas. Neste sentido veja-se a decisão arbitral de 20 de Setembro de 2012, proferida no âmbito do processo n.º 7/2011-T, na qual se salientou a redundância daquela distinção, referindo-se inclusive que é “(…) duvidoso que a distinção entre as duas figuras tenha tido alguma relevância no nosso regime fiscal enquanto existiu”.

               

                17. Também a respeito desta distinção, referiu-se na decisão arbitral de 12 de Fevereiro de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 256/2018-T, que “o caráter secreto ou não divulgado do beneficiário da despesa, que se poderia invocar como requisito das despesas confidenciais (ainda que não fosse a única interpretação possível), não tem correspondência na categoria de despesas não documentadas. Afigura-se, assim, irrelevante para a qualificação de uma despesa como não documentada, à luz do atual artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, a ocultação, cognoscibilidade ou divulgação do seu beneficiário.

Aliás, mesmo na subcategoria anteriormente destacada de despesas confidenciais, a definição jurisprudencial constante do Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 18 de fevereiro de 2009, no processo n.º 600/08, referia-se objetivamente ao caráter da despesa – “despesas confidenciais são despesas não especificadas ou identificadas quanto à sua natureza, origem e finalidade” – e não ao conhecimento ou desconhecimento do titular beneficiário da despesa. O anterior Acórdão do Pleno do STA, de 24 de outubro de 2007, proferido no processo n.º 488/07, afirmava em sentido consonante, no âmbito de um dos (muitos) processos relativos aos “cheques auto”, que “sendo desconhecido o destino dado a esses cheques, eles devem ser considerados despesas confidenciais e/ou não documentadas”, apesar de se poder conhecer o seu beneficiário desses cheques”. (destaque nosso)

                Em idêntico sentido, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 22 de Fevereiro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 837/15, que a identificação da natureza das despesas e do respectivo beneficiário não era suficiente para afastar a respectiva sujeição a tributação autónoma. Pelo contrário, era necessário que o sujeito passivo provasse a origem e finalidade das despesas, já que estes eram “elemento[s] indispensáve[is] para afastar a sua qualificação como despesas confidenciais”, não sendo assim suficiente “(…) que se saiba que tais despesas foram pagas ao banco e que tais despesas constem de um documento – o extrato bancário, porque continuamos sem saber nada da ligação da despesa à atividade prosseguida”.

               

                18. Atentando agora ao caso concreto, resulta da matéria de facto dada como provada nos presentes autos e da respectiva fundamentação que a Requerente não cumpriu todos aqueles requisitos concretizados pela jurisprudência citada para que se afaste a consideração de uma despesa como não documentada. De facto, apesar de a Requerente identificar a D…… enquanto fonte de proveniência do montante de € 900.000,00 e apesar de identificar a C……. AO enquanto destinatária da saída do referido numerário, a verdade é que esta não logrou demonstrar os restantes requisitos. Dito de outro modo, a Requerente não conseguiu demonstrar a natureza e finalidade daquelas despesas, limitando-se a efectuar operações contabilísticas de saídas de numerário desprovidas de suporte documental, apenas juntando para o efeito os extractos bancários associados a tais movimentos, não sendo igualmente possível estabelecer a devida ligação da despesa ora em juízo com a operação de subempreitada estabelecida entre a D……. e a C……..AO em Angola.

                Em face do exposto, conclui-se que a Requerente não cumpriu com o ónus da prova que lhe competia nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT e do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, para afastar a sujeição a tributação autónoma da transferência de € 900.000,00 da sua esfera para a esfera da C……… AO, considerando-se improcedente o seu pedido a este respeito por estar efectivamente em causa uma despesa não documentada.

 

IV. JUROS COMPENSATÓRIOS

                19. Quanto aos juros compensatórios dispõe o artigo 35.º, n.º 1, da LGT que “São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.”.

                A este respeito concretizou o Tribunal Arbitral, na decisão de 29 de Abril de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 405/2018-T que “(…) os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só é exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência”. (destaque nosso)

                Ora, conforme resulta de tudo o exposto, verifica-se a existência de um efectivo nexo de causalidade entre a conduta da Requerente e o atraso na liquidação de imposto, senão por dolo pelo menos por negligência. A conduta da Requerente não só padece de ilicitude como merece censura, na medida em que lhe é imputável a falta da sustentação das operações por si efectuadas, seja pela falta de comprovação probatória da sua materialidade seja pela falta da actuação que se lhe impunha, designadamente no que respeita à contabilização dos montantes recebidos na sua esfera como variações patrimoniais positivas e à sujeição a tributação autónoma do exfluxo financeiro dos montantes já devidamente referidos.

                Não tendo sido invocados outros vícios autónomos em relação ao acto de liquidação de juros compensatórios, julga-se improcedente a pretensão da Requerente a este respeito, devendo o referido acto manter-se na ordem jurídica enquanto tal em virtude de se encontrarem reunidos os respectivos pressupostos de liquidação, nos termos do referido artigo 35.º, da LGT.

 

V. DECISÃO

                Termos em que se decide:

                a) Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela          Requerente.

                b) Condenar a Requerente nas custas do processo, no valor de 10.710,00€.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

                Atendendo ao disposto no artigo 32.º, do CPTA e no artigo 97.º-A, do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 742.347,61.  

 

VII. CUSTAS

                Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 10.710,00, a cargo da Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

Lisboa, 9 de Julho de 2021.

 

 

Os Árbitros

 

José Poças Falcão (Presidente)

 

 

Carla Castelo Trindade

(Relatora)

 

Manuel Faustino

(Vencido, nos termos da declaração anexa)

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

                Votei vencido a presente Decisão Arbitral com os seguintes fundamentos:

 

                1. Refere CASALTA NABAIS, em Problemas Nucleares de Direito Fiscal, (Coimbra, 2020), a pp. 59 e seguintes (pedimos desculpa pela extensa transcrição, mas ela é fulcral para o que está em causa decidir neste processo, a saber): existem factos tributários? A existirem, quais são e que norma ou normas legais do elemento objetivo da incidência os tipificam?):

 

"Capítulo II

A centralidade do facto tributário no direito fiscal

 

Na linha do que dissemos no início deste nosso estudo, são surpreenderá que o facto tributário, facto gerador ou pressuposto de facto ocupe um lugar central e decisivo nas relações tributárias em geral e no respeitante à relação de imposto em particular, pois trata-se de algo que reporta à pessoa do destinatário do poder tributário do Estado concretizado, segundo especiais exigências constitucionais, nas normas de incidência fiscal, ou seja, diz respeito aos contribuintes. O que implica proceder à localização precisa do facto tributário ou facto gerador do imposto na constituição e desenvolvimento das relações jurídico-tributárias de modo a obtermos, depois, o sentido e alcance da sua distinção face ao acto tributário, uma vez que, enquanto aquele tem a sua disciplina legal especificamente moldada pelo direito constitucional, este releva sobretudo do direito administrativo. Vejamos, então, o lugar que o facto tributário ocupa, bem como a importância da sua distinção face ao acto tributário em que se insere a matriz jurídico-administrativa deste.

 

1. O lugar do facto tributário ou facto gerador do imposto

 

E para localizarmos o facto tributário ou facto gerador nas relações tributárias, nada melhor do que começarmos por identificar os diversos actores tributários e assinalar o papel que cabe a cada um. Pois bem, alinhando os autores pela ordem temporal em que entram em cena, dinâmica ou momentos da vida do imposto, temos a seguinte ordenação: o legislador fiscal, os contribuintes, a administração tributária e, eventualmente, os tribunais.

Uma intervenção que, é bom que se diga e sublinhe, é cumulativa, pelo que a falta ou actuação de deles deixa sem base a actuação dos seguintes. Daí que, quando se conclua pela inexistência do facto tributário, fique sem qulquer suporte a prática de qualquer uma das múltiplas actuações em que se desdobra o correspondente acto tributário, a menos que se presuma a existência daquele, o que, pela natureza das coisas, será verdadeiramente excepcional.

 

....

 

O que materializa a relação de mais elevado nível - a relação de direito constitucional fiscal - que inicia a relação do imposto lato sensu, em que, de um lado, temos o poder tributário do Estado ou de outras entidades que dele constitucionalmente disponham, exercido no quadro do particularmente exigente princípio da legalidade fiscal, e, de outro, o dever fundamental de pagar impostos moldado constitucionalmente na nossa Constituição a partir de um direito fundamental a não pagar impostos pela via negativa, uma vez que este dever fundamental se encontra formulado a partir do direito de não pagar impostos a não ser aqueles que hajam sido criados nos termos da Constituição, que não tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se façam nos termos da lei (sublinhou-se o que no original se encontra em itálico).

 

Um entendimento das coisas que, como é fácil de intuir, tem inúmeras concretizações na lei, ou seja, nos regimes legais - sejam estes gerais ou especiais - dos impostos, entre as quais podemos referir duas das mais paradigmáticas que encontramos na LGT. Trata-se das normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do seu art. 36.º, ao disporem, respectivamente, que a relação jurídica tributária se constitui com o facto tributário e os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes. O que significa que a obrigação tributária nasce e constitui-se com a correspondente verificação do facto tributário, portanto, independentemente da vontade das partes, ou seja, da vontade da parte do contribuinte, de um lado, e da competência da administração tributária, por outro (negrito nosso).

 

Por conseguinte, é ao respectivo contribuinte que hão-de reportar-se todas as múltiplas vertentes em que se analisa o facto tributário ou facto gerador do imposto, como são as suas vertentes ou dimensões subjectiva e objectiva (em que temos, ainda, os elementos quantitativos, materiais, espaciais e temporais). E isto tanto na sua configuração abstracta de norma legal definidora da incidência tributária como na sua vertente concreta de facto tributário ou facto gerador do imposto. Uma relação tributária que, a ter-se por ocorrida quando não tenha tido lugar a verificação do correspondente facto tributário, acaba por ser constituída inteiramente à revelia do contribuinte (negrito nosso).

 

..."

 

                2. Na minha perspetiva, o que está em causa é saber se pode dar como provada a existência de factos tributários na esfera da Requerente, que consequentemente lhe imponham o pagamento de imposto, tendo por base a factualidade descrita, tanto no RIT, como no PAP, a saber:

a)            A Requerente recebeu da sociedade D….., com sede e direção efetiva em Portugal, em junho de 2015, a importância de € 900.000,00, de que ficou fiel depositária até poder transferi-la para uma conta de depósitos bancários a abrir em Portugal pela sociedade C., com sede e direção efetiva em Angola, e que transferiu de facto em Setembro de 2015, quando a conta aberta ficou movimentável;

b)           A Requente, no quadro das obrigações assumidas quando aceitou ser fiel depositária da importância referida, a transferiu, logo que pôde, para a conta bancária da sociedade C.

 

                3. Ainda do meu ponto de vista, a fundamentação com base na qual se ancora a decisão arbitral assenta em "factos considerados não provados" (factos considerados não provados que, pessoalmente, não aceitamos) e em juízos de valor, em considerações hipotéticas e em "cenários" que se constroem a partir deles. Não a tenho, portanto, por fundamentação consistente e coerente, com profunda convicção assente por toda a documentação junta quer pela AT quer pela Requerente e pela inquirição das testemunhas por ambas as partes apresentadas.

 

                4. Sugere-se, desde logo, que não ficou provada qualquer relação entre a transferência de € 900.000,00 da sociedade D….. para a Requerente, dado que não existem entre elas quaisquer relações comerciais. A não ser, escreve-se "que a Requerente tenha tido algum negócio com a sociedade C. não relevado na contabilidade". Isto não passa de mera suposição ou hipótese, sinteticamente, não é factual. Não há no RIT qualquer indício de uma situação dessas, não foi apresentado qualquer rasto, designadamente em matéria de fluxos financeiros, sobre esse hipotético negócio, o que competia à AT carrear para o processo no âmbito da repartição do ónus da prova, e a Requerente, tendo recebido essa importância, que sabia não ser sua, contabilizou-a corretamente: creditou-a na sua contabilidade à sociedade C., de quem ficou, naturalmente, devedora.

                O que se constata no RIT, quanto à transferência em causa é que se encontram registadas no Diário 2 da sociedade D…., que ,como foi esclarecido em e-mail de 3 de abril de 2020, se trata do Diário contabilístico referente a bancos, nas datas em que foram efetuadas, as transferências parciais de € 100.000,00 (30/06/2015), € 400.000,00 (17/7/2015) e € 400.000,00 (17/7/2016) (RIT, pp. 11 a 14). E que, eventualmente de forma irregular, imputável apenas à sociedade A., apenas foram contabilizadas em 01-11-2015, como se colhe do extrato da conta 221133266-C….. - Engenharia e Construção, SA transcrito a p. 14 do RIT.

                Não está em causa que essa transferência, independentemente da forma parcelada como foi feita, não tenha sido determinada por um Administrador da sociedade A., que, sublinhe-se, era também, à data, gerente/administrador da Requerente, à sua direção financeira, justificando-a com a "operação em Angola". Em todo o caso, embora convicto de que essa operação é real e efetiva, não é, objetivamente, quem tem de provar a sua "materialidade". De resto, o conceito de "verdade material", tão controvertido por "oposição" ao denominado conceito de "verdade formal", reconduz-se, para o Tribunal, à "verdade do processo", pois é sobre os factos a ele trazidos que legitimam, mas também limitam, a sua jurisdição.

                Sendo certo que a "operação em Angola" decorria de um contrato de subempreitada que a sociedade K…., a quem a obra foi adjudicada, por esta celebrado com a sociedade D….., em Angola, não se colhe fundamento suficiente para quase "exigir" que a Requerente comprove a "materialidade das operações subjacentes". Essa prova haveria de ser efetuada pela sociedade D., eventualmente pela sociedade C. no âmbito da cooperação administrativa com Angola. Exigi-la à Requerente é excessivo, desproporcionado e não tem qualquer fundamento jurídico.

Ainda se diz que a sociedade D…... não teria feito na sua contabilidade qualquer lançamento com base na transferência para a Requerente do montante de € 900.000,00.

                Como acima se referiu, esta afirmação não espelha a realidade dos factos. A soc. D…. fez, em 01-11-2015 os lançamentos contabilísticos correspondentes na conta relativa à sociedade A…. e devidamente discriminados: três transferências bancária para a A…….. (a Requerente) duas de € 400.000,00 e uma de € 100.000,00, o lançamento de 3 faturas da sociedade C….. no valor total de € 5.200.000,00, de tudo resultando um saldo credor da sociedade C. na sociedade A. de € 4.300.000,00. Isto é, o débito que a sociedade D….. fez, nestes lançamentos, à sociedade C. corresponde exatamente ao montante das três transferências efetuadas para a Requerente. O que permite esclarecer, muito para além do limite da dúvida fundada, que a Requerente foi um mero e transitório depositário, independentemente do título a que o tenha sido, da importância de € 900.000,00, cujo último beneficiário foi a sociedade C.

                Se se entende que os lançamentos contabilísticos na sociedade D….. foram feitos fora de tempo ou com irregularidade contabilística e fiscal, tal conduta não pode, de forma alguma, no enquadramento e na qualificação fiscal dos factos na Requerente. 

 

                5. Pois bem, neste contexto da "entrada" de € 900.000,00 na Requerente, provenientes da sociedade D….., constando-se a regularidade dos lançamentos contabilísticos efetuados, o RIT parte para a qualificação, quanto à sua natureza, dessa entrada, como "variação patrimonial positiva" que não foi considerada nos resultados. Qualificação esta que a decisão sufraga, mas, baseados nos princípios e na lei, nós não podemos sufragar. Vejamos.

               

                Sobre "variações patrimoniais positivas" (o que aqui está em causa), dispõe o artigo 21.º do CIRC:

 

Artigo 21.º

Variações patrimoniais positivas

 

1 — Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:                                                       

a)            As entradas de capital, incluindo os prémios de emissão de ações ou quotas, as coberturas de prejuízos, a qualquer título, feitas pelos titulares do capital, bem como outras variações patrimoniais positivas que decorram de operações sobre ações, quotas e outros instrumentos de capital próprio da entidade emitente, incluindo as que resultem da atribuição de instrumentos financeiros derivados que devam ser reconhecidos como instrumentos de capital próprio;

b)           As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;

c)            As contribuições, incluindo a participação nas perdas do associado ao associante, no âmbito da associação em participação e da associação à quota;

d)           As relativas a impostos sobre o rendimento;

e)           O aumento do capital próprio da sociedade beneficiária decorrente de operações de fusão, cisão, entrada de ativos ou permuta de partes sociais, com exclusão da componente que corresponder à anulação das partes de capital detidas por esta nas sociedades fundidas ou cindidas.

 

2 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado, não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo.

 

                Nada temos a objetar à posição doutrinária transcrita na decisão, de COURINHA (2019). Divergimos é da não relevância do vocábulo "de património" que qualifica a expressão "quaisquer outras oscilações", o que degenera, em nosso entender, numa interpretação descontextualizada. Aliás, HELENA MARTINS (Lições de Fiscalidade, 7.ª ed., 2020) é muito clara quando refere que "para além das componentes que estão refletidas no resultado líquido do período, há que entrar em linha de conta com as variações patrimoniais positivas (artº 21º) isto é, as que aumentam o valor do património (variações quantitativas) modificando a situação líquida da empresa, mas que não estão refletidas no resultado".

                O que, aliás, é a posição, desde sempre, da própria administração fiscal. Com efeito, a então DGCI deixou claro, no comentário ao já então artigo 21.º do Código do IRC (DGCI, 1990) o seguinte: "Como se sabe, o património de uma empresa está sujeito a variações em consequência das operações realizadas. Se algumas dessas operações alteram a composição do património - variações qualitativas, outras existem que, para além da composição, alteram o seu valor - variações quantitativas, que serão positivas ou negativas consoante impliquem o aumento ou diminuição do valor do património ou situação líquida". Posição reiterada no Manual do IRC (AT, 2016) onde se escreve: "A noção de variação patrimonial liga-se necessariamente à ideia de balanço, principalmente na sua estrutura, composição e reflexos no valor do património, entendendo-se na mesma aceção da situação líquida, ou seja, consistindo genericamente na diferença entre o ativo e o passivo. Daí se pode inferir que o património de uma empresa não é uma realidade estática, mas sim dinâmica e suscetível de implicar permanentes alterações, em consequência da sua atividade económica. Estas alterações podem assumir duas variantes: variações qualitativas (as que alteram a sua composição); Variações quantitativas (as que alteram o seu valor). Relativamente a estas podem ser negativas ou positivas, consoante diminuam ou aumentem o valor do património ou situação líquida". Não podemos ignorar que, de facto, as variações patrimoniais positivas não são tipificadas pelo legislador. E, a esta constatação, adita um comentarista do Código do IRC (MARQUES, 2019) o seguinte e esclarecedor exemplo: "Por exemplo, um depósito efectuado na conta bancária de um sujeito passivo sem que a este caiba qualquer obrigação efectiva que se lhe associe, é definível como variação patrimonial positiva, pois uma tal entrada de capital permite-lhe diminuir os seus passivos, sem qualquer contrapartida firme e indiscutível".

 

                6. A questão, pois, que tem de colocar-se, tendo em vista observar os princípios da justiça e da legalidade na tributação, é a de saber da validade ou invalidade da qualificação da "entrada" como "variação patrimonial positiva".                 Ora, não obstante no momento da sua contabilização na Requerente ter ocorrido uma variação patrimonial qualitativa (alterou a composição do seu passivo), desde logo, e pelo disposto no n.º 9 do artigo 8.º do CIRC, segundo o qual "o facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação", essa variação patrimonial qualitativa não podia ter degenerado em variação patrimonial quantitativa, na sua dimensão de variação patrimonial positiva, porque no último dia do exercício de 2015 a conta que tinha sido movimentada, na entrada, a crédito e na saída a débito, tinha saldo nulo. Isto é, no dia em que ocorreu o facto gerador do imposto já não existia sequer a variação patrimonial qualitativa, muito menos podendo existir uma variação patrimonial quantitativa.

                Por outro lado, está documentado e consequentemente provado que a transferência para a Requerente foi feita pela sociedade D…. com um dever conexo: o de entregar à sociedade C. as importâncias que ora lhe eram feitas, logo que fosse possível. O que se mostra cumprido e também provado: a transferência bancária efetuada a 16 de setembro de 2015 pela Requerente para a conta da sociedade C….

                De tudo concluindo que, pelo menos, se devia ter considerado instalada fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, resolvendo-se a questão de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 100.º do CPPT: "Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e a quantificação do ato tributário, deverá o ato impugnado ser anulado". O que está em linha com a lição de CASALTA NABAIS inicialmente transcrita: "O que significa que a obrigação tributária nasce e constitui-se com a correspondente verificação do facto tributário, portanto, independentemente da vontade das partes, ou seja, da vontade da parte do contribuinte, de um lado, e da competência da administração tributária, por outro".

 

                7. Quanto à tributação do montante da transferência bancária que a Requerente efetuou, em cumprimento do encargo que tinha aceitado, para a sociedade C…., para a conta bancária aberta em seu nome em instituição de crédito com sede ou direção efetiva em território português - o que até permitiu aos SIT, levantado o sigilo bancário, ter conhecimento de quem tinham sido os beneficiários de "parte significativa do montante transferido", sem indicar o montante - como "despesa não documentada", manifestamos veemente discordância, por violação de princípios básicos que informam a tributação da denominada "tributação autónoma", tal como se encontra consagrada no artigo 88.º do Código do IRC.

                Não colhe, neste caso, não o ignoramos, o princípio da especialização de exercícios ou a regra da anualidade do imposto porque a tributação autónoma a que nos referimos é um imposto instantâneo (PAULA DOURADO, Direito Fiscal, pp. 192).

                Mas é princípio fundamental da tributação autónoma a sua incidência sobre uma despesa. No que respeita ao caso que aqui se decide, refere HELENA MARTINS (op. cit., pp. 405) que: "Figuram, à cabeça, as despesas não documentadas, ou seja, aquelas despesas que carecem de qualquer documento justificativo ou em que os documentos existentes são de tal modo deficientes que não permitem conhecer quer a natureza da despesa, quer o respetivo beneficiário". Por seu turno, PAULA DOURADO (op. cit., pp. 251/252) refere que "no nosso regime, a ausência de prova documental que é exigida para efeitos fiscais implica não apenas a sua indedutibilidade, mas também a sua tributação autónoma".

                É, pois, assente que só pode ser sujeita a tributação autónoma (i) uma despesa (gasto, custo), (ii) refletida na contabilidade e (iii) dedutível para a determinação do lucro contabilístico. Neste sentido se pronunciaram pelo menos dois Acórdão do Tribunal Constitucional.

                O Acórdão n.º 18/11, ao dizer:  "No caso dos n.ºs 1 e 2, estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transacções efectuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo directamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afectar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal".

                E o Acórdão 217/17 de onde se colhe: "Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa".

                Ora, os factos provados no processo não deixam qualquer dúvida sobre o facto de a transferência bancária ter sido efetuada. E, contabilisticamente, uma transferência bancária não é despesa, nem proveito. Tem, assim, uma natureza neutra quanto à conta de resultados de uma empresa. Se a transferência bancária está, como ficou provado, documentada com o documento bancário que se lhe refere e, nessa medida, e com essa natureza, refletida na contabilidade da Requerente, não reúne as duas restantes características suscetíveis de lhe modificarem a sua natureza: não é uma despesa, e, consequentemente, nem sequer é dedutível para efeitos de determinação do lucro contabilístico. Não se vê, assim, como poderia ter sido "acrescida" ao lucro tributável - embora de facto o não tenha sido enquanto "despesa não documentada" como se colhe do RIT.

                Assim, no caso da tributação autónoma efetuada à requerente, nem sequer se pode falar, em meu entendimento, em dúvida fundada sobre a inexistência do facto tributário, mas apenas e só em inexistência de facto tributário. Com a natural consequência de não haver lugar a tributação.

 

                8. O RIT transformou a empresa Requerente como o epicentro de um conjunto de pretensos factos tributários que, a existirem, se localizariam na empresa D…., que não pertence à área de jurisdição dos SIT de Viana do Castelo, mas sim à área de jurisdição dos SIT do Porto, e na empresa C., uma empresa sem sede ou direção efetiva em território português onde também não tinha estabelecimento estável e, consequentemente, não podia ser aqui tributada. Todavia, isso não justifica a violação do conceito geral e abstrato de "sujeito passivo", elemento subjetivo do facto tributário, através da sua modificação, o que a lei não prevê. E quanto ao modo como funcionam as relações de cooperação entre as autoridades fiscais angolanas e as autoridades fiscais portuguesas é matéria sobre a qual não me devo pronunciar.

 

                9. Teria, pois, considerado totalmente procedente o pedido da Requerente.

 

Lisboa, 9 de julho de 2021

 

O co-Árbitro,

(Manuel Faustino)