Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 397/2019-T
Data da decisão: 2020-06-12  IRC  
Valor do pedido: € 71.955,55
Tema: IRC – Ajustamentos pelo justo valor. Arts. 18.º, n.º 9, al. a) e 45.º, n.º 3 do CIRC. Pedido de revisão oficiosa – competência material
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 DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Olívio Mota Amador e Jaime Carvalho Esteves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A... SGPS, S.A., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ... ..., ...-... Ponta Delgada, apresentou, em 6 de junho de 2019, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade parcial dos atos de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e derrama municipal, referentes aos exercícios de 2011 e 2012, nos montantes respetivamente de € 64.763,84 e € 7.191,71, num total de € 71.955,55, com a sua consequente anulação nestas partes, bem como a ilegalidade e a anulação dos subsequentes atos de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, que confirmaram aquelas autoliquidações. Peticiona o reembolso das referidas quantias, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Como fundamento da sua pretensão, a Requerente alega que os referidos atos padecem de vício material de violação de lei, devido à não relevação fiscal de metade (50%) dos gastos e variações patrimoniais negativas respeitantes a instrumentos financeiros, decorrentes da sua mensuração fiscal (e contabilística) ao justo valor.

 

                A Requerente juntou 32 documentos.

 

Em 7 de junho de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação à AT em 18 de junho de 2019.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, tendo sido notificadas dessa designação em 1 de agosto de 2019, não se opuseram.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 22 de agosto de 2019.

 

                Em 17 de setembro de 2019, a Requerida juntou o processo administrativo (“PA”) e apresentou Resposta, na qual se defende por exceção e por impugnação.

 

Em matéria de exceção, a Requerida alega que a via arbitral para a apreciação do litígio só pode ser aberta, em casos de autoliquidação, após a prévia apresentação de reclamação graciosa, nos termos do artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), por remissão do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, o que não se verifica nos presentes autos, onde se pretende a apreciação de um pedido de revisão oficiosa submetido mais de 2 anos após o facto tributário. Assim, verifica-se uma exceção dilatória, consubstanciada na incompetência material do Tribunal Arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido e determina a absolvição da instância da entidade Requerida.

 

Por impugnação, a Requerida preconiza, em síntese, que os gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor aos instrumentos de capital próprio apenas são dedutíveis em metade do seu valor, de acordo com o disposto no artigo 45.º, n.º 3, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 9, alínea a), ambos do Código do IRC.

 

Em 19 de setembro de 2019, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para se pronunciar sobre a matéria da exceção, o que esta concretizou em 24 de setembro de 2019.

 

A Requerente sustenta que após o indeferimento do pedido de revisão oficiosa é legalmente possível fazer uso da arbitragem tributária como meio paralelo ao da impugnação judicial, pois em ambos os casos se aplica, diretamente ou por remissão, o disposto no artigo 131.º do CPPT, que tem sido interpretado pela jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, a respeito da impugnação judicial, como abrangendo o procedimento de revisão oficiosa. O seu objetivo consiste em dar a oportunidade à AT de se pronunciar previamente à via contenciosa, o que tanto se verifica com a reclamação graciosa como com a revisão oficiosa. Considera não existir qualquer razão para interpretar de modo distinto a mesma norma quando esta seja aplicada (por remissão do RJAT) ao processo arbitral, que tem precisamente por finalidade constituir um meio alternativo ao processo de impugnação judicial.

 

Por despacho de 30 de setembro de 2019, o Tribunal Arbitral dispensou, por desnecessária, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e relegou o conhecimento da exceção para a decisão final.

 

Em 18 de outubro de 2019, o Tribunal Arbitral determinou a notificação das Partes para apresentação de alegações sucessivas e fixou a data de prolação da decisão arbitral.

 

A Requerente apresentou, em 31 de outubro de 2019, as alegações onde manteve as suas posições anteriormente enunciadas. A Requerida optou por não alegar.

 

O prazo para prolação da decisão foi prorrogado ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, por despachos de 17 de fevereiro e de 21 de abril de 2020.

 

II.            SANEAMENTO

 

1.            QUESTÃO PRÉVIA DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

Segundo a Requerida, a apreciação de um ato tributário de autoliquidação (neste caso, de IRC), na sequência do indeferimento expresso de um pedido de revisão oficiosa, extravasa as competências reservadas por lei aos Tribunais Arbitrais Tributários, de acordo com o RJAT e com a Portaria de Vinculação da AT ao regime da arbitragem tributária.

 

Neste âmbito, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT enuncia os critérios de repartição material da competência dos Tribunais Arbitrais nos seguintes moldes:

 

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)            A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)           A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;

c)            (revogada).”

 

Prevê ainda o artigo 4.º, n.º 1 do RJAT que “[a] vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”

 

Por fim, a Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) veio estabelecer as condições e limites da vinculação voluntária da AT à jurisdição arbitral, tendo em conta a especificidade das matérias e o valor da causa.  O artigo 2.º desta Portaria delimita o objeto da vinculação e exclui as “[p]retensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

 

O artigo 131.º do CPPT, para o qual a Portaria de Vinculação opera a remissão expressa, faz referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários. De acordo com o seu n.º 1, “[e]m caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.” (realce nosso)

 

No entender da AT, a Requerente não recorreu, em tempo, à reclamação graciosa aí prevista, deixando precludir o prazo de 2 anos, não podendo o procedimento de revisão oficiosa substituir esta reclamação, ainda para mais quando é iniciado além do prazo de 2 anos. Na perspetiva da Requerida, atenta a natureza voluntária e convencional da arbitragem, o intérprete não pode ampliar o objeto fixado pelo legislador quanto à vinculação da AT aos tribunais arbitrais.

 

Afigura-se, porém, que esta posição não é de sufragar, tendo este Tribunal jurisdição e competência para conhecer do pedido, pelas mesmas razões que conduziram à interpretação jurisprudencial que considera que, no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, os artigos 131.º a 133.º do CPPT devem ser entendidos como abrangendo, para além da reclamação graciosa, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, sendo que, no caso concreto, os pedidos de revisão foram suscitados dentro do prazo legal, de 4 anos, aí previsto.

 

Com efeito, a finalidade visada por estas normas é a de garantir que a autoliquidação seja objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso. A revisão oficiosa é uma das vias possíveis de alcançar essa pronúncia da AT, aliás, frequentes vezes será a única, pois, em geral, o prazo para a reclamação graciosa em caso de erro na autoliquidação é de dois anos e a revisão oficiosa de quatro anos, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago (artigo 78.º, n.º 1 da LGT, na redação à data dos factos). 

 

O legislador tributário consagrou a via administrativa como condição necessária e prévia do recurso à via jurisdicional, porquanto os atos de autoliquidação (assim como os atos de retenção na fonte e de pagamento por conta) decorrem da iniciativa do contribuinte, sem que a administração tributária tenha tido qualquer intervenção, ou seja, são atos em relação aos quais a administração tributária ainda não tomou posição, razão pela qual se justifica a obrigatoriedade de recurso à via administrativa prévia, como se extrai dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de setembro de 2012, processo n.º 476/12, e de 12 de julho de 2006, processo n.º 402/06.

 

Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid[a]s de recurso à via administrativa  nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusividade, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT, para os quais remete a Portaria em apreço, revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.

Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011.

 

Se o legislador, conhecendo a referida interpretação jurisprudencial, a quisesse afastar tê-lo-ia feito expressamente, como há muito podia ter alterado a própria redação dos artigos 131.º e 132.º do CPPT, optando, no entanto, por não o fazer.

 

Acresce notar, em linha com a fundamentação da decisão arbitral no processo n.º 245/2013-T, de 28 de março de 2014, que “[n]ão seria de todo razoável que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito do procedimento de revisão oficiosa se exigisse uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa, com o que se criaria, sem fundamento bastante, uma nova situação de reclamação graciosa necessária privativa da jurisdição arbitral”.

 

A questão em apreço tem sido, aliás, discutida em diversos processos no CAAD e é prevalecente a tese oposta à da AT .

 

De igual modo, o Tribunal Central Administrativo pronunciou-se sobre a questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação – cf. acórdãos de 27 de abril de 2017, processo n.º 08599/15, e de 25 de junho de 2019, processo n.º 44/18.6BCLSB.

 

A conformidade da interpretação preconizada com o parâmetro constitucional foi recentemente confirmada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 244/2018, de 11 de maio de 2018. Como aí se declara, não está em causa ampliar a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, mas antes interpretar uma norma da portaria que exclui essa vinculação, pelo que “não se verificando uma exclusão expressa, não se poderá dizer que estamos perante uma ampliação da vinculação, mas tão-somente perante interpretação de norma de exclusão de vinculação”.

 

O Tribunal Constitucional afirma ainda que não se suscita uma derrogação da garantia de acesso à tutela jurisdicional efetiva para tutela dos interesses públicos por parte da administração, uma vez que o artigo 209.º, n.º 2 da Constituição prevê expressamente a existência de tribunais arbitrais na ordem jurídica portuguesa que exercem a função jurisdicional com os tribunais estaduais.

 

São, desta forma, afastadas eventuais dúvidas que subsistissem acerca da conformidade constitucional da solução acolhida.

 

Por fim, importa precisar que, em rigor, a exceção suscitada não se enquadra nem corresponde ao pressuposto da competência (material) dos Tribunais Arbitrais. Este pressuposto está delimitado no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e compreende a apreciação da ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (alínea a)); e de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (alínea b)). Não oferece dúvidas que a questão submetida à apreciação deste Tribunal respeita a atos de autoliquidação (de IRC) que cabem nas competências previstas na norma legal em referência.

 

O problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário (e não da competência do tribunal), pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia (impugnação administrativa necessária) que, para a AT, teria de revestir necessariamente a forma procedimental de reclamação graciosa, enquanto que para a Requerente abrange igualmente o pedido de revisão oficiosa.

 

Este requisito configura o pressuposto processual da inimpugnabilidade do ato (in casu, do ato de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“CPTA”), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide VIEIRA DE ANDRADE, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.).  Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer.

 

Em qualquer caso, independentemente da sua qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria e não se encontra impedido de conhecer dos vícios imputados aos atos de autoliquidação de IRC (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).

 

                E o certo é que, independentemente de hesitações da jurisprudência emanada dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, incluindo decisões em sentido inverso ao aqui preconizado, a questão está hoje ultrapassada, em função de jurisprudência constante dos tribunais superiores e que, também por essa razão, aqui se entende ser de acolher sem reserva.

 

2.            DEMAIS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

                O Tribunal foi regularmente constituído (cf. 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT).

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, por remissão para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, contado da notificação dos despachos de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa (alínea e)).

 

É admissível a cumulação de pedidos reportados a dois exercícios distintos [2011 e 2012], por estarem em causa idênticas circunstâncias de facto e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, nos termos do preceituado no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

                Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

A.           A A... SGPS, S.A., aqui Requerente, é um sujeito passivo de IRC que, nos períodos de tributação de 2010 a 2012, detinha um acervo de partes de capital (ações) cotadas em bolsa de valores, que lhe conferiam uma participação inferior a 5% do capital social das seguintes entidades:

             B... SGPS, S.A.;

             C..., S.A.;

             D..., S.A.;

             E... SGPS, S.A.;

             F..., S.A.;

             G..., S.A.;

             H..., SGPS, S.A.;

             I... (a partir de 2011 incorporada por fusão na J... S.A.);

             K..., SGPS, S.A.;

             L...;

             M..., S.A. (atualmente designada por N..., S.A.);

             O..., SGPS, S.A. (atualmente designada por P... SGPS, S.A.);

             Q..., SGPS, S.A.;

             R..., SGPS, S.A.;

             S... SGPS, S.A.;

             T... SGPS, S.A.,

– cf. documentos 8 a 23 juntos pela Requerente.

B.            Até 31 de dezembro de 2009, estas participações sociais eram mensuradas nas demonstrações financeiras da Requerente ao respetivo custo de aquisição, em obediência ao método do custo histórico, conforme as regras contabilísticas aplicáveis de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade (“POC”) – cf. documentos 8 a 23 juntos pela Requerente.

C.            Com a aprovação do Sistema de Normalização Contabilística, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2010, certos instrumentos de capital próprio (como as participações sociais negociadas em mercado regulamentado representativas de menos de 20% do capital social das entidades detidas), passaram a ser mensurados ao justo valor através de resultados, pelo que a Requerente adotou esse procedimento, contabilizando as ações acima identificadas pelo seu valor de cotação a partir do exercício de 2010 (inclusive) – cf. NCRF  n.º 27, parágrafos 11, 12/c, 15 e 16, e documentos 8 a 23 juntos pela Requerente. 

D.           No exercício de 2010, para relevação dos efeitos retrospetivos dessa alteração do referencial contabilístico, a Requerente registou em capitais próprios a diferença entre o custo de aquisição de tais participações e o seu justo valor (ou valor de cotação) no final do exercício social precedente (31 de dezembro de 2009), cifrada na variação patrimonial negativa de € 378.511,10, com a inerente diminuição dos seus capitais próprios – cf. quadros constantes dos documentos 8 a 23 juntos pela Requerente.

E.            Em cada um dos anos de 2011 e 2012, 1/5 (um quinto) da mencionada variação patrimonial negativa, correspondente a € 75.702,22, foi tida em conta em metade do seu valor (50% = € 37.851,11) no apuramento do lucro tributável, conforme autoliquidação efetuada nas declarações modelo 22 desses períodos de tributação – cf. documentos 1 a 3 e 8 a 23 juntos pela Requerente.

F.            Com referência ao exercício de 2011, a Requerente apurou ajustamentos de justo valor, em relação às participações sociais acima identificadas, nos seguintes montantes – cf. documentos 8 a 23 juntos pela Requerente:

AJUSTAMENTOS              RUBRICA CONTABILÍSTICA          MONTANTE

Positivos             # 771     € 61.897,77

Negativos           # 661     € 413.081,48

Efeito líquido                     € (351.183,71)

 

G.           Tendo novamente considerado que a desvalorização de € 413.081,48 só concorria para a formação do lucro tributável em 50% do seu valor, ou seja, em € 206.540,74, ao passo que a valorização concorreu integralmente, conforme refletido no apuramento da matéria coletável de IRC referente ao ano 2011 e na autoliquidação efetuada na declaração modelo 22 relativa a esse período de tributação – cf. documentos 1 a 3 e 8 a 23 juntos pela Requerente.

H.           Este procedimento de consideração em apenas 50% das reduções de justo valor de partes de capital no cômputo do lucro tributável de IRC, incluindo os ajustamentos de transição (do modelo do custo histórico para o modelo do justo valor), é consonante com a posição expressa pela AT na Ficha Doutrinária decorrente do processo n.º 39/2011, sancionada por despacho do Senhor Diretor-Geral de 24 de fevereiro de 2011. Segundo esta Ficha, as variações decorrentes da mensuração de instrumentos financeiros pelo seu justo valor, incluindo as de participações sociais (ações) emitidas por entidade cotadas em bolsa, que correspondam a menos de 5% do correspondente capital social, como sucede com a carteira de participações da Requerente, relevam para cálculo do lucro tributável de IRC por apenas metade do seu montante – cf. documento 24 junto pela Requerente.

I.             A Requerente procedeu ao pagamento do valor do imposto autoliquidado – IRC e Derrama Municipal – referente aos períodos de tributação de 2011 e 2012 em 30 de maio de 2012 e em 31 de maio de 2013, respetivamente – cf. documentos 31 e 32 junto pela Requerente.

J.             A partir do final de 2013, com a prolação do acórdão do Tribunal Arbitral no processo do CAAD n.º 108/2013-T, consolidou-se uma corrente jurisprudencial que preconiza uma interpretação diversa da que vinha sendo defendida pela AT em relação ao tratamento fiscal a conferir aos gastos, em resultado de desvalorizações, decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados. De acordo com esta jurisprudência, a dedução desses gastos deve ser integral e não limitada a 50%, interpretando-se o artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) deste Código – cf. jurisprudência arbitral tributária disponível na página eletrónica do CAAD. 

K.            Na sequência do que a Requerente, pretendendo beneficiar dessa interpretação, apresentou pedidos de revisão oficiosa contra as autoliquidações de IRC respeitantes aos exercícios de 2011 e 2012, na parte em que as mesmas apenas consideraram os ajustamentos negativos (de justo valor) enquadráveis no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC em 50% do seu quantitativo, tendo os respetivos procedimentos de revisão sido abertos pela AT em 22 de maio de 2015 (processo ...), relativamente ao período de tributação de 2011, e em 4 de março de 2016 (processo ...), no que se refere ao período de tributação de 2012 – cf. procedimentos de revisão oficiosa constante do PA. 

L.            A consideração do valor total e não apenas de 50% dos referidos ajustamentos negativos de justo valor no exercício de 2011, dá origem às correções refletidas no quadro seguinte, materializadas numa variação, para menos, do IRC e derrama municipal devidos, no valor de € 64.763,84 – cf. documentos 1 a 3 e 8 a 23 juntos pela Requerente:

 

M.          A consideração do valor total e não apenas de 50% dos referidos ajustamentos negativos (de transição) no exercício de 2012, dá origem às correções refletidas no quadro seguinte, materializadas numa variação, para menos, do IRC e derrama municipal devidos, no valor de € 7.191,71 – cf. documentos 1 a 3 e 8 a 23 juntos pela Requerente:

 

N.           Em 14 de março de 2019, a Requerente foi notificada das decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, por despachos proferidos em 8 de março de 2019 pela Exma. Senhora Diretora de Serviços do IRC, por subdelegação de competências, que manteve a interpretação preconizada na Ficha Doutrinária relativa ao Processo n.º 39/2011, de 24 de fevereiro, no sentido da limitação a 50% da dedução dos gastos referentes a ajustamentos negativos de justo valor subsumíveis ao artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC, com fundamento no artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC – cf. cópia das decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa que juntos pela Requerente como documentos 4 e 5 e respetiva fundamentação constante dos projetos de decisão que as antecederam, juntos como documentos 6 e 7 (também constantes do PA), em relação aos quais a Requerente não exerceu direito de audição prévia.

O.           Inconformada com o indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e com a (auto)liquidação de IRC dos períodos de tributação de 2011 e 2012, na parte relativa à não dedução (em 50%) dos mencionados ajustamentos negativos pelo justo valor, a Requerente apresentou no CAAD, em 6 de junho de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

A convicção do Tribunal funda-se nos elementos documentais carreados para os autos pelas Partes, não sendo a matéria de facto controvertida.

 

IV.          APRECIAÇÃO DO MÉRITO

 

1.            A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 45.º, N.º 3 DO CÓDIGO DO IRC

 

A questão que se suscita nesta ação é estritamente de direito e prende-se com a interpretação do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC. Importa aferir se, à data dos factos, a previsão desta norma (entretanto revogada ) englobava os gastos (variações anuais negativas) derivados do método do justo valor relativamente aos instrumentos de capital próprio mencionados no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do mesmo diploma, com a consequente limitação da respetiva dedutibilidade fiscal em 50%.

 

Estão em causa ajustamentos de transição relativos à passagem do POC, aprovado pelo Decreto-lei n.º 410/89, de 21 de novembro, para o Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 158/2009, de 13 de julho, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2010, referentes às participações identificadas na matéria de facto (ponto A supra) registadas ao custo histórico até à entrada em vigor do SNC. Bem como, ajustamentos de justo valor reportados ao exercício de 2011, em relação aos quais a questão de direito a dilucidar é a mesma.

 

Quanto aos ajustamentos de transição, as diferenças negativas entre o valor de aquisição das ações e a sua cotação oficial em bolsa resultaram numa variação patrimonial líquida negativa de € 378.511,10, que a Requerente refletiu nos capitais próprios e deduziu fiscalmente em cinco partes iguais (1/5) no exercício em que a mesma se verificou (2010) e nos 4 (quatro) consecutivos, conforme disposto no artigo 5.º do Decreto-lei n.º 159/2009, de 13 de julho, diploma que reviu o Código do IRC na perspetiva da entrada em vigor das novas normas contabilísticas. No entanto, a Requerente deduziu apenas 50% do valor da referida variação negativa (i.e., € 37.851,11 por ano), em linha com o entendimento da AT sobre a aplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, tendo posteriormente questionado tal solução e, nessa medida, solicitado a revisão da autoliquidação.

 

De igual modo, as variações negativas cifradas em € 413.081,48, verificadas no exercício de 2011, resultantes da oscilação da cotação das ações, apenas foram tidas em conta pela Requerente no cômputo do lucro tributável em 50% do seu valor, i.e., em € 206.540,74, procedimento que, por idênticas razões, vem colocar em crise.

 

A matéria que se discute nestes autos foi objeto de apreciação em inúmeros processos arbitrais, tendo-se consolidado uma corrente maioritária no sentido da inaplicabilidade do regime do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC aos gastos provenientes de variações de ativos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor .

 

Posição maioritária que veio a ser confirmada pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 0582/17, de 6 de junho de 2018, segundo o qual “[a] norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC não é aplicável quando ocorre a determinação – ao Justo Valor – do valor dos ativos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação, o valor dos ativos – a posição financeira – acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respetivo ativo.”

 

Conclusão que rejeita uma pura interpretação literal do preceito em análise (artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC), com base nos seguintes argumentos:

 

“[…] o n.º 3 introduzido no art. 42.º do CIRC (depois, art. 45.º) pelo Orçamento do Estado para 2003 veio impor uma limitação à dedutibilidade das perdas resultantes de menos-valias, nos termos da qual a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital concorre em apenas metade do seu valor para a formação do lucro tributável.

                Sob essa ótica, na realização de uma menos-valia seria determinante apurar se esta resulta da transmissão onerosa de partes de capital. Na afirmativa, haveria de se aplicar a limitação dos 50% da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias.

                Com o Orçamento do Estado para o ano de 2006, a referida limitação viu o seu âmbito de aplicação ser alargado: para além das menos-valias resultantes de alienações onerosas, passou também a incluir as transmissões onerosas de «outras componentes do capital próprio».

                A norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, na medida em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal.      

                […]

                A existência desta norma visou, portanto, de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar.

                Vejamos agora em que medida a mensuração dos ativos-instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados - ao Justo Valor pode ser compatibilizada com esta norma do CIRC.

                […]

                O conceito de Justo Valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística – SNC, Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho), quer internacionais (NIC), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na “quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes”.

                […]

                Portanto, a consideração do Justo Valor, no que aqui nos interessa (a introdução do modelo do Justo Valor no âmbito do IRC quando estejam em causa instrumentos financeiros, operou-se pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do CIRC se encontra diretamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos -realização das mais ou menos valias- passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de ações de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.

Estas “mais valias ou menos valias” assim determinadas pelo Justo Valor são meramente potenciais ou provisórias (…)  porque não há uma efetiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do CSC.

                Não há, assim, qualquer dúvida que o Justo Valor negativo, (…) não lhe …subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos ativos transacionados em mercado organizado, onde a cotação do ativo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo…cfr. Tomás Castro Tavares, ibidem, págs. 1143 e 1144 .                   […]

                Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação – ao Justo Valor – do valor dos ativos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos ativos –a posição financeira- acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respetivo ativo.”

 

Acompanhamos este entendimento, por concordância com os respetivos fundamentos, nos moldes infra explicitados.

 

2.            DA ERRÓNEA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 45.º, N.º 3 DO CÓDIGO DO IRC

 

OS ELEMENTOS LITERAL E HISTÓRICO

 

O artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, quer na sua redação primitiva, resultante da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro, explica-se, de acordo com a motivação explicitada pelo legislador, por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à consolidação das contas públicas. Trata-se, à semelhança de outras normas dispersas pelo compêndio do IRC, de atenuar os efeitos de práticas de erosão na base tributável.

 

Na sua redação original, dispunha esse n.º 3 que “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.  O âmbito desta restrição foi estendido (pela Lei n.º 60-A/2005) a “outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares”.

 

Visou-se, assim, com aquela alteração legislativa abranger, ou explicitar que se encontravam abrangidas, as transmissões de outras componentes do capital próprio que não estritamente partes sociais.

 

No mesmo sentido refere TOMÁS CANTISTA TAVARES, quanto ao fito da alteração legislativa que “[a] regra ínsita no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, restringia-se, inicialmente, à limitação fiscal das perdas económicas em partes de capital. No entanto, por superveniente alteração legal, essa estatuição estendeu-se também às variações patrimoniais negativas de capital próprio (…)” (cf. “IRC e Contabilidade – da Realização ao Justo Valor”, Almedina, Coimbra, 2011, p. 246).

 

Na ausência de qualquer alteração ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, concomitante com a adoção limitada, em 2010, do modelo do justo valor, aquela norma não comportou uma interpretação diferente da que vinha sendo aplicada até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho. Assim, continuou a aplicar-se à diferença negativa entre as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa a qualquer título, sendo condição de aplicação do preceito que houvesse “realização”.

 

O facto de o legislador não ter diferenciado, quando da introdução do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC entre perdas e variações patrimoniais realizadas e perdas e variações patrimoniais não realizadas, para efeito de subtrair estas à restrição consagrada, não pode ser valorado como manifestação de vontade, ainda que meramente implícita, no sentido de os gastos resultantes da aplicação do justo valor serem abrangidos pela limitação à dedutibilidade. Tais gastos apenas com o Decreto-Lei n.º 159/2009 e a consequente adaptação do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade passaram a concorrer para a formação do lucro tributável, operando assim a reconstituição do pensamento legislativo em sentido contrário: o legislador não manifestou, ainda que tacitamente, qualquer vontade de incluir no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, os gastos resultantes da aplicação do justo valor aos instrumentos financeiros.

 

Na verdade, embora a letra da lei aparente autorizar a interpretação abrangente sustentada pela AT, é também a análise atenta e rigorosa do elemento literal que permite apreciar o sentido próprio e distinto dos conceitos ali em causa. Segue-se, na análise desta questão, a fundamentação do acórdão arbitral proferido no processo n.º 108/2013-T.

 

Com efeito, “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas” são conceitos não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto. Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do Código do IRC, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009. Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do Código do IRC referiam, respetivamente, que: – “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”; – “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício, exceto: (...)”.

 

Verifica-se, deste modo, que, quando da consagração da redação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC vigente em 2011 e 2012, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

a)    Custos;

b)           Perdas;

c)            Variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício.

 

A previsão do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC dever-se-á considerar, assim, reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redações anteriores ao Decreto-Lei n.º 159/2009.

 

Deste modo, da previsão daquela norma [artigo 45.º, n.º 3] dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos a partes sociais, pois a mesma não os contempla, como se pode constatar do seu teor literal: “3. A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.” (sublinhado nosso)

 

A alteração normativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009 não introduziu modificação relevante na matéria em causa. Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do Código do IRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

                O ELEMENTO SISTEMÁTICO

 

Importa ainda interpretar o artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC tendo em conta a unidade do sistema jurídico . Neste contexto, a limitação aí prevista não se aplica aos gastos por justo valor contemplados no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC, na medida em que esta constitui uma norma excecional–particular, que não é nem pode considerar-se ab initio derrogada pelo artigo 45.º, n.º 3, norma excecional-comum pré-existente àquela.

Com efeito, o artigo 23.º do Código do IRC prevê a dedutibilidade, para efeitos fiscais, da generalidade dos gastos contabilísticos, desde que observados determinados critérios formais e substanciais, i.e., que sejam comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, determinando a alínea i) do n.º 1 deste preceito a dedutibilidade fiscal dos gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros. Assim, o artigo 23.º do Código do IRC afigura-se uma norma geral, porquanto aplicável à generalidade das situações em que se apurem gastos.

 

Pelo contrário, o corpo do n.º 9 do artigo 18.º consagra uma exceção comum à dedutibilidade dos referidos gastos e a alínea a) do mesmo número estabelece, por sua vez, uma exceção particular à exceção comum, voltando a repor a regra de dedutibilidade quanto aos instrumentos de capital próprio mensurados ao justo valor através de resultados.

 

Note-se que não estão em causa na referida alínea todos e quaisquer instrumentos financeiros.

 

Por último, o artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC limita, em contradição com a regra geral prevista no artigo 23.º do mesmo diploma legal, a dedutibilidade de certos gastos fiscais, quais sejam, as perdas geradas com a transmissão de todas e quaisquer partes de capital.

 

A aludida norma consubstancia, pois, uma norma excecional-comum e por isso, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que não derroga a norma excecional-particular introduzida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC.

 

A relevância fiscal de tais valorizações ou desvalorizações (ganhos ou perdas potenciais), constitui exceção à consagração da regra geral de irrelevância de perdas e ganhos de justo valor,  pelo que se o legislador pretendesse que os ajustamentos pelo justo valor, quando negativos, apenas concorressem em metade do seu valor, tê-lo-ia que dizer expressamente, não sendo a norma particular aditada derrogada pela norma comum pré-existente.

Em suma, interpretando o artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC no quadro do sistema jurídico em que este se insere, conclui-se que o mesmo não pode aplicar-se às reduções de justo valor em apreço.

 

                O ELEMENTO TELEOLÓGICO

 

Como assinala o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0582/17 acima citado, subjaz à norma em análise um marcado propósito anti-abusivo, de evitar uma manipulação do resultado (fiscal) pelo sujeito passivo através da gestão do momento e/ou do quantum da perda com a transmissão de partes de capital.

 

Sucede que o desincentivo à obtenção de certas perdas em partes de capital só faz sentido nos casos em que a vontade do sujeito passivo seja determinante do momento e do montante da perda (assim o refere igualmente o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de fevereiro de 2016, no processo n.º 01401/14).

 

De facto, no que respeita aos presentes valores mobiliários e correspondentes desvalorizações, não é possível qualquer controlo ou prática do tipo “wash sales"” e, a aplicar-se a limitação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, seria inequívoca a assimetria de tratamento entre ganhos, tributados na totalidade pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, e perdas, aceites apenas em metade do valor.

 

Nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), como as ações com as características do caso sub judice, passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor passam a relevar diretamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do Código do IRC) no próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º, n.º 9, do Código do IRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC).

Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um ato de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objetivamente fixada (assente nos pressupostos da transacionabilidade regular, regulamentação do mercado e divulgação pública dos preços). Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

 

Penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico, constituindo um desvio à regra do tratamento simétrico de ganhos e de perdas. Aliás, basta notar que a desvalorização de um ativo aqui considerado no ano “n” relevaria para o cálculo do lucro tributável do sujeito passivo que dele fosse titular por metade do montante dessa desvalorização (ditada pelas regras de mercado e, logo, sem influência do sujeito passivo) e uma valorização de igual valor no ano subsequente (“n+1”), seria agora relevante para os mesmos efeitos pelo seu valor total, dando lugar, no cômputo dos dois exercícios, à tributação de metade do valor absoluto dessa variação, quando nenhum ganho é apurado pelo sujeito passivo. O que demonstra o desacerto da interpretação pugnada e a sua manifesta contradição com o princípio da tributação pelos rendimentos reais ou, dito de outra forma, a insusceptibilidade de tributar sempre que nenhuma capacidade contributiva seja exteriorizada.

 

Conduziria, aliás, a resultados económicos e fiscalmente absurdos, nomeadamente os ilustrados na decisão do processo arbitral n.º 85/2018-T, pois possibilitaria o apuramento de lucro tributável em exercícios em que nenhum incremento patrimonial existisse na carteira de investimento do sujeito passivo. 

 

Como se refere no acórdão proferido no processo arbitral n.º 393/2016-T, “Tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável, que, por imperativo do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, tem de fazer assentar a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

O desacerto de uma hipotética solução legislativa a que conduz uma determinada interpretação é, seguramente, um argumento decisivo para rejeitar essa interpretação, pois, em boa hermenêutica, tem de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada para uma determinada situação jurídica e não uma solução insensata e sem fundamento lógico (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Para além disso, o direito tributário tem especificidades interpretativas e uma delas é a de que, a estar-se perante uma situação de dúvida sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (como patenteia a existência de decisões arbitrais contraditórias), ter de se atender «à substância económica dos factos tributários» (por imposição do artigo 11.º, n.º 3, da LGT), que, em situações em que, findo o período de detenção de partes de capital, não ocorreu realização mais-valias ou até houve realização de menos-valias, conduz inexoravelmente à interpretação que afasta a incidência de imposto sobre o rendimento e não à que se reconduz a tributar o prejuízo como se fosse um rendimento.

O que permite concluir que, ao contrário do que se terá entendido no processo arbitral n.º 90/2016-T, citado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, na interpretação em matéria tributária, os Tribunais têm de atender ao «mérito das normas» que aplicam, numa dupla aceção, pelo menos: não podem ser aceites interpretações que conduzam a soluções desacertadas, por que a tal se opõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil; nem são admissíveis interpretações que se reconduzam à tributação de rendimentos inexistentes, porque tal não se compagina com as diretrizes teleológicas que emanam do referido artigo 11.º, n.º 3, e dos princípios que lhe estão subjacentes, da justiça material, da igualdade e da tributação fundamentalmente com base na capacidade contributiva (artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2 da LGT), que têm suporte constitucional em princípios basilares do Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP).

Assim, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”.

 

Quanto à eventual lesão de princípios constitucionais provocada pelo regime da dedutibilidade em apenas 50% das perdas decorrentes das reduções do justo valor, a AT refere que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre tal questão no sentido de o mesmo não ferir tais princípios. O acórdão n.º 85/2010, de 16 de abril, é habitualmente mencionado neste contexto, tendo sido reiterado posteriormente pelo acórdão n.º 753/2014, de 12 de novembro. Porém, interessa notar que estes acórdãos apreciam apenas a primeira parte do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, e não a segunda parte, onde constam as perdas aqui em causa. Sendo que a motivação subjacente à admissão, por parte do Tribunal Constitucional, da redução a 50% das menos-valias realizadas se estriba no controlo da evasão fiscal, fator que não pontua no caso concreto dos gastos ou perdas de justo valor em instrumentos financeiros cotados com percentagem de participação abaixo de 5%. 

 

Acresce que aquele Tribunal não se pronuncia sobre a melhor interpretação das normas no plano infra-constitucional, nem para a mesma aduz critérios hermenêuticos preferenciais. Limita-se a um estrito controlo negativo que visa aferir a desconformidade ou não desconformidade ao parâmetro constitucional de uma determinada interpretação de uma norma que lhe é dada.

 

À face do exposto, conclui-se não se encontrar, preenchida a ratio legis artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC no que respeita às desvalorizações do justo valor, razão pela qual aquele preceito não se lhes aplica, sendo as mesmas fiscalmente dedutíveis na totalidade.

 

No caso dos autos, esta interpretação significa que se impunha à AT, em observância do princípio da legalidade, proceder à revisão oficiosa das autoliquidações de IRC da Requerente reportadas aos períodos de tributação de 2011 e 2012, nos termos por esta peticionados, relevando como dedutíveis na totalidade, e não apenas em 50%, as reduções de justo valor derivadas dos ajustamentos de transição (do POC para o SNC) e as ocorridas no exercício de 2011, conforme ilustrado nos quadros constantes dos pontos L e M da matéria de facto. Assim, devem ser deduzidas adicionalmente à matéria coletável do imposto, as importâncias de € 244.391,85 no exercício de 2011 (€ 37.851,11 + 206.540,74) e de € 37.851,11 no exercício de 2012 e, em consequência, reduzido o respetivo montante de IRC a pagar em € 64.763,84 (2011) e € 7.191,71 (2012).

 

                Pelo exposto, procede o vício substantivo invocado pela Requerente, gerador de invalidade, sendo as liquidações de IRC referentes aos exercícios de 2011 e 2012 parcialmente anuladas, na parte correspondente à não relevação de 50% das reduções de justo valor vertentes, e, bem assim, as decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa que confirmaram tais autoliquidações, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do novo CPA, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT.

 

3.            JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Segundo a Requerente, a ilegalidade das (auto)liquidações, na parte peticionada, implica não só o respetivo reembolso da prestação de IRC e derrama paga em excesso, como ainda a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, calculando-os desde a data em que ocorreu o pagamento do IRC autoliquidado (ou em que este devia ter sido reembolsado), a saber:

(a)          30 de maio de 2012, em relação ao valor de € 64.049,08, e, quanto à importância de € 714,76 que deveria ter sido reembolsada, até 31 de agosto de 2012 – IRC de 2011;

(b)          31 de maio de 2013, relativamente ao valor de € 7.191,71 – IRC de 2012,

até integral reembolso dos montantes do imposto indevidamente pagos.

 

Tem razão a Requerente em entender que lhe assiste o direito a ser ressarcida, através de juros indemnizatórios, direito alicerçado no artigo 43.º da LGT, que concretiza o princípio geral de responsabilidade consagrado no artigo 22.º da Constituição. Contudo, tal direito deriva da situação especificamente prevista no artigo 43.º n.º 3, alínea c) da LGT e não do caso geral (do n.º 1) no qual a Requerente o parece enquadrar, com distintas implicações relativas ao momento do nascimento desse direito e da sua extensão temporal.

 

O artigo 43.º, n.º 1 da LGT dispõe que o contribuinte terá direito a ser ressarcido, através de juros indemnizatórios, sempre que o pagamento indevido de imposto seja imputável a erro dos serviços. “O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte (por exemplo, haverá anulação por erro imputável ao contribuinte quando a liquidação assentar em errados pressupostos de facto, mas o erro ter por base uma indicação errada na declaração que o contribuinte apresentou).” (CAMPOS, DIOGO LEITE DE; RODRIGUES, BENJAMIM SILVA, SOUSA, JORGE LOPES DE, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.º Ed. 2012 Encontro da Escrita, Lisboa, pág. 342).

 

Para além deste caso [que designamos de caso geral] o artigo 43.º, contempla no seu n.º 3, as situações de “revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte” determinando, em relação a estas, que o direito a juros indemnizatórios surge quando tal revisão “se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo considera que se trata de um regime especial, aplicável especificamente às situações de revisão, em que se justifica a dilação do prazo, pois o interessado poderia ter suscitado a questão da ilegalidade do ato de liquidação imediatamente após o pagamento, só o tendo feito, porém, após decorrido um extenso período (em que a legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que não a impulsionou). Por esta razão, o direito a juros indemnizatórios é encurtado, por contraposição à situação normal típica, da impugnação imediata do ato tributário após o seu pagamento, considerando o legislador que o prazo de um ano é o prazo razoável para a AT decidir o pedido de revisão e executar a respetiva decisão. Esta solução afasta a indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte – acórdãos do Pleno (da Secção de Contencioso Tributário), de 24 de outubro de 2018, no processo n.º 099/18.3BALSB, e de 23 de maio de 2018, no processo n.º 1201/17.

 

Este entendimento já resultava do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de fevereiro de 2007, no processo n.º 01041/06, nos seguintes moldes: “Pedida a revisão oficiosa do ato de liquidação e vindo o ato a ser anulado, mesmo que só na impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada.”

 

No caso concreto, tendo os procedimentos de revisão sido iniciados em 22 de maio de 2015 [quanto ao exercício de 2011] e 4 de março de 2016 [quanto ao exercício de 2012], o cômputo dos juros indemnizatórios devidos à Requerente somente terá início a partir de um ano a contar dessas datas e não, como aquela reclama, a contar do pagamento do IRC (ou da data em que este imposto devia ter sido reembolsado).

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), nomeadamente de inconstitucionalidade, à face da interpretação adotada.

 

V.           DECISÃO

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

(a)          Julgar improcedente a exceção de incompetência material suscitada pela Requerida;

(b)          Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade parcial das autoliquidações de IRC relativas aos exercícios de 2011 e 2012, por desconsiderarem, em 50%, reduções de justo valor, no valor global de € 71.955,55, anulando-as parcialmente, e, bem assim, declarar a ilegalidade das decisões de indeferimento dos pedidos de Revisão Oficiosa que recaíram sobre esses pedidos de revisão, anulando-as;

(c)          Julgar procedente o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, porém, contados apenas depois de ter decorrido um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT,

tudo com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 71.955,55 (setenta e um mil novecentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e cinco cêntimos), correspondente à parte dos valores das autoliquidações cuja anulação é peticionada pela Requerente – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 2.448,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de junho de 2020

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

Alexandra Coelho Martins

Olívio Mota Amador

Jaime Carvalho Esteves