Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 396/2020-T
Data da decisão: 2021-03-19  ISV  
Valor do pedido: € 2.061,48
Tema: ISV – Artigo 11.º do CISV – Conformidade com o artigo 110.º do TFUE – Veículo usado proveniente de outro Estado-Membro.
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SUMÁRIO:

 

 1. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

2. Do princípio do primado do Direito Comunitário resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia, pelo que,  se  encontra ferido de ilegalidade um ato tributário praticado ao abrigo da citada norma do CISV, na medida da sua incompatibilidade com o artigo 110.º do TFUE.

3. Na revisão do ato tributário apresentada pelo contribuinte ao abrigo da 2ª parte do artigo 78º da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de revisão, quer a pretensão anulatória do contribuinte seja acolhida na decisão administrativa que tenha por objeto tal pedido, quer a anulação seja determinada em processo impugnatório deduzido contra o seu indeferimento pela AT no procedimento de revisão.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – Relatório

 

1. No dia 05.08.2020, o Requerente, A..., NIF ..., residente na Rua ..., nº..., ... (...), requereu ao CAAD a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação  parcial da liquidação  de Imposto de ISV efetuada pela AT em 2.03.2017, com base na DAV nº 2017/..., sendo a liquidação no valor total de 6.445,99€, e a parte cuja anulação se pretende, no valor de o valor de € 2.061,48.

 

O Requerente alegando ter pagado o valor total das liquidações pede, ainda, a restituição do montante de € 2.061,48, acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 26.10.2020.

 

3. O fundamento apresentado pela Requerente para sustentar a ilegalidade das liquidações e consequente anulação parcial das mesmas, diz respeito ao cálculo para efeitos de tributação da  componente ambiental ou CO2 porquanto entende que  a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – artigo 11º do CISV – , ao não estabelecer, quanto aos veículos usados uma percentagem de  redução pelo tempo de uso, à semelhança do estabelecido para a componente cilindrada,  viola o artigo 110º do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por exceção e por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:

 

Por exceção,

 

 

 

O Requerente apresentou em 05.08.2020 o presente pedido de pronúncia arbitral, na sequência do indeferimento, datado de 29.07.2020 e notificado ao Requerente em 31.07.2020, do pedido de revisão da liquidação de ISV atinente à DAV supra identificada, apresentada na Alfândega de Braga, com data de aceitação de 03.02.2017 e cujo termo do prazo de pagamento do imposto ocorreu em 12.03.2017.

Não tendo a Requerente invocado especificamente a primeira ou segunda parte do nº 1 do artigo 78º da LGT, mas tendo-o referido como um todo, resulta que, à luz do nº 1, 1ª parte, do artigo 78º da LGT, o pedido de revisão oficiosa apresentado é  intempestivo pois se encontrava há muito ultrapassado o prazo da reclamação graciosa, de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISV, para além de que, estando a AT vinculada ao princípio da legalidade e tendo a AT efetuado as liquidações em estrita observância da norma legal aplicável, não poderia a AT proceder por forma diversa daquela por que atuou, não podendo deixar de efetuar as liquidações impugnadas, inexistindo, pois, qualquer erro de direito imputável aos serviços.

Em face da manifesta extemporaneidade do pedido, verifica-se a exceção de caducidade do direito de ação, o que se invoca, devendo, em consequência, a Requerida, ser absolvida do pedido.

 

Por impugnação,

 

Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de um veículo usado, proveniente de outro Estado-membro, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV, na sua atual redação, que lhe foi dada pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016, diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2017.

 

Da interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo tratado, claramente se conclui que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas, tão só, como se referiu, direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE.

 

A interpretação da Requerente do artigo 11.º do CISV quando interpretado da forma em que o faz, viola os princípios da legalidade, da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade, da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual a Requerida reputa de inconstitucional, não podendo, por isso, ser aplicado no caso concreto.

 

A Requerente respondeu à matéria de exceção suscitada pela Requerida, alegando, em síntese:

 

A Requerente requereu, nos termos da 2ª parte, do nº 1, do artigo 78º, da LGT, a revisão da liquidação objeto do processo, com fundamento na ilegalidade da liquidação efetuada pela Requerida, por considerar que a norma que esteve na base da mesma -artigo 11º do CISV- viola o artigo 110º do TFUE, tendo sido posteriormente notificado de despacho com intenção de indeferimento do pedido com o fundamento que a ilegalidade invocada não se verificava, pelo que a liquidação não padecia de qualquer vício.

 

Requerente e Requerida mantiveram as suas posições, no exercício do direito de audição e na decisão final que incidiu sobre o pedido de revisão oficiosa, na qual a Requerida sustenta a inexistência da invocada ilegalidade da norma aplicada, logo, na inexistência de erro na liquidação do imposto.

 

A Requerida não faz uma correta interpretação do nº 1, do artigo 78º da LGT, pois o erro previsto nesta norma, além de englobar o erro material ou de facto, engloba também o erro de direito, desde que essa errada aplicação da lei não decorra de qualquer informação ou declaração do contribuinte, sendo manifesto que não se verifica a exceção suscitada que deve, em consequência, ser julgada improcedente.

 

5. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.

Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.

 

6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

 

7. Cumpre solucionar as seguintes questões:

1) Exceção de caducidade do direito de ação.

2) Ilegalidade das liquidações de ISV.

3)Inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV, quando efetuada nos termos em que é feita pela Requerente.

4)Direito da Requerente à restituição do imposto pago indevidamente.

5) Direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

II – A matéria de facto relevante

 

8. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

1.            O Impugnante, introduziu em Portugal, o veículo automóvel de passageiros usado, marca ..., modelo ..., proveniente da Bélgica.

2.            No cumprimento das suas obrigações legais, designadamente tributárias, o Impugnante procedeu à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT procedido à liquidação do ISV (Imposto Sobre Veículos), no valor de € 6.445,99, imposto que foi pago pelo Impugnante.

3.            Deste valor liquidado pela AT, € 2.481,61, corresponde ao valor da componente cilindrada e € 3.964,38 ao valor da componente ambiental.

4.            Para o cálculo do ISV relativamente à componente cilindrada, a base tributável foi objeto de redução em função do tempo de uso do veículo, nos termos da Tabela D, do artigo 11º, nº 1, do CISV.

5.            A componente ambiental não foi objeto de redução em função do tempo de uso do veículo.

6.            Pela aplicação das percentagens de redução em função do em função do tempo de uso do veículo à componente ambiental, em conformidade com o critério de desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional estabelecidos na Tabela D, do artigo 11º, nº 1, do CISV, a liquidação seria inferior no montante de  € 2.061,48.

7.            Por carta registada enviada por correio em 9.06.2020, rececionado pelos Serviços da Requerida em 12.06.2020, o   Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 78º, nº 1, da Lei Geral Tributária pedido de revisão oficiosa dos atos tributários objeto do processo, alegando ter pagado € € 2.061,48 a mais que corresponde à dedução que, no seu entender, deveria ter sido efetuada à componente ambiental, pedindo a restituição de tal valor.

8.            Em 29.07.2020 foi o pedido de revisão oficiosa indeferido com base em informação da mesma data, com o seguinte teor:

 

 

 

 

 

 

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados

 

9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, bem como da posição da Requerida relativamente aos factos alegados pelo Requerente que, nem em sede de procedimento de revisão, nem em sede de resposta no presente processo, foram contestados, antes emergindo concordância das partes relativamente à matéria de facto alegada pela Requerente, restringindo-se o desacordo, em exclusivo, a matéria de direito.

 

-III- O Direito aplicável

 

 

 DA EXCEPÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO

 

10. Como supra se referiu, sustenta a Requerida a intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado, por inexistência de erro imputável aos serviços  e por, aquando da sua apresentação, há muito ter sido ultrapassado o prazo de revisão previsto na 1ª parte, do nº 1, do artigo 78º, da LGT, com a consequente caducidade do direito de ação, por se encontrar igualmente ultrapassado o prazo de 90 dias, contados após o termo do prazo de pagamento do imposto, para apresentação do pedido arbitral.

 

O   Requerente, ao invés, considera estar verificada a ocorrência de erro imputável aos serviços, no caso, um erro de direito, por violação do artigo 110º do TFUE.

 

Vejamos.

 

Pode ler-se no acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em linha com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:

 

“Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”

 

Por outro lado, no acórdão TJUE de 4 de dezembro de 2018,no processo C 378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida, consta o seguinte:

38      Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C 198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C 341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).

39      Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”

Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, pode ainda ler-se

que:

 “há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C 224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C 614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).

 

Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros que “(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito”.

No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques que, debruçando-se sobre o princípio do primado do direito comunitário, escreve que “(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária” 

 

Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a alegação da Requerente de que a Requerida aplicou norma do CISV contrária ao direito comunitário, consubstancia a alegação de erro de direito imputável aos serviços.

Nesta medida, e com tal fundamento, poderia a Requerente apresentar o pedido de revisão no prazo de quatro anos após a liquidação.

Assim sendo, tendo a Requerente apresentado o pedido de pronúncia arbitral dentro do prazo de noventa dias após a notificação da decisão que indeferiu o pedido de revisão, que sustentou a legalidade da liquidação, foi a presente ação apresentada tempestivamente, improcedendo a suscitada  exceção de caducidade do direito de ação.

 

11.DA ILEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE ISV.

 

Escreveu-se na decisão arbitral proferida no processo 572/2018-T, designadamente, o seguinte:

 

“6.47. Em sede de ISV, existe um longo percurso no que diz respeito às questões que a Comissão Europeia tem levantado ao Estado Português em matéria de legalidade das normas nacionais, nomeadamente, quanto à carga fiscal incidente sobre os veículos usados.

6.48. Com efeito, essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.

(…).

6.66. Não obstante as disposições internas, e como já vimos, o artigo 110º do TFUE (na esteira do artigo 90º do Tratado de Roma), preceitua que “nenhum EM fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares”.

6.67. Sobre a interpretação deste artigo face aos direitos nacionais já o TJUE se pronunciou por diversas vezes precisando o seu alcance dado que a admissão nos mercados nacionais de veículos automóveis portadores de placa de matrícula definitiva de outros Estados membros, isto é de veículos usados, rege-se exclusivamente pelo direito nacional, não podendo, todavia, tal direito contrariar os princípios em que se alicerça o funcionamento da UE.

 

 

 

6.68. Por isso, dentro da liberdade conformadora que o legislador nacional dispõe para modelar o imposto de forma a proceder à sua cobrança de forma exequível e eficaz, é necessário ter em conta, para além da opinião da Comissão Europeia, enquanto entidade a quem cabe zelar pelo respeito pelo Tratado, a jurisprudência comunitária que se vai produzindo.

6.69. E tanto assim é que em conformidade com o documento anexado pela Requerida com as suas alegações escritas se percebe que o Estado Português, interpelado pela Comissão Europeia em 2009/2010, quanto à forma como eram tributados os veículos usados admitidos em Portugal provenientes da UE (porque contrária ao previsto no referido e citado artigo 110º do TFUE), se viu forçado a alterar a legislação em vigor em matéria de ISV, em concreto o artigo 11º, nº 1 do Código do ISV (naquela data vigente), através da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2011), no sentido de:

“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental:

6.70. Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE nº C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional,

 

 

 

consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que “a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE” (sublinhado nosso).

6.71. E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

6.72. Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, nº 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

6.73. A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este EM não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados “importados” de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional.

6.74. Com efeito, a Comissão volta a entender que a legislação nacional não é compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, na medida em que os veículos usados “importados” de outros EM são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado nacional. “

(…)

 

6.85. Não obstante a Requerida referir que “(…) o conteúdo do artigo 110º deste tratado proveio do artigo 90º do tratado CE, ao qual ainda não estavam subjacentes as preocupações ambientais, com a acuidade que hoje se colocam”, tal afirmação não será de todo correcta porquanto o artigo 191º do TFUE teve origem no artigo 174º daquele Tratado e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90º, nomeadamente, no já citado processo C-290/05.

6.86. E, recorde-se, em conformidade com o que é defendido pelo Requerente, o Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, refere que “este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.

 

(…)

6.87. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, o que deverá aqui relevar é que o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.”

 

 

Esta posição tem vindo a ser perfilhada em sucessivas decisões arbitrais, designadamente, nos processos n.º 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 498/2019-T e 660/2019-T, 13/2020-T, 293/2020-T e 320/2020-T. Também este Tribunal Arbitral acompanha o entendimento da douta decisão arbitral citada, pelas razões nela expostas.

 

12. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 11.º DO CISV EFETUADA PELA REQUERENTE

 

Quanto a esta questão, acompanha-se o decidido da decisão arbitral proferida no processo 293/2020-T, onde se pode ler:

 

“12. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.”

 

13. Assim, o ato de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV é, nesta medida, ilegal, devendo ser parcialmente anulado, no que respeita ao excesso de tributação decorrente daquela ausência de redução, nos termos peticionados pelo Requerente.

 

14. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida a reembolso das quantias indevidamente arrecadadas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força  dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

 

15.No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.

Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Por sua vez dispõe o nº 3 do mesmo artigo:

“3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

(…)

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”

 

 

Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-05-2018, processo 1201/17:

“3.8. Importa, por isso, afrontar a questão de saber se os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que o pagamento do tributo foi efetuado ou a partir de um ano após o pedido de revisão formulado pelo contribuinte.

 

Já vimos que o acórdão fundamento entendeu que os juros indemnizatórios a que as impugnantes têm direito neste processo são apenas devidos a partir de um ano após o pedido de revisão por elas formulado.

 

O acórdão de 15-02-2007, processo 01041/06, deste STA tem o seguinte sumário:

“I - A revisão oficiosa dos actos de liquidação é susceptível de ser provocada pelo interessado, dentro do respectivo prazo, com fundamento em qualquer erro, de facto ou de direito, imputável à Administração.

 

II - Pedida a revisão oficiosa do acto de liquidação e vindo o acto a ser anulado, mesmo que só na impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada.”.

 

Neste acórdão são referidos os diversos acórdãos que neste mesmo sentido se pronunciaram.

E o acórdão fundamento acompanhou esta corrente jurisprudencial afirmando no seu sumário o seguinte:

 

“I - O art.º 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, sem definir o momento a partir do qual são os mesmos devidos.

II - O nº 3, c) do mesmo preceito consagra que também são devidos juros indemnizatórios, «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária».

III - O legislador considera que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respectiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.”.

 

Do artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária resulta que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Não resulta desta norma qual o momento a partir do qual são os juros indemnizatórios devidos.

O n.º 3, c) do mesmo preceito estabelece, contudo, que são devidos juros indemnizatórios, “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária”.

À situação em apreciação é aplicável o nº 3, al. c) do artigo 43º da Lei Geral Tributária pois que podendo a recorrida ter questionado a liquidação optou por nada fazer até ao momento em que apresentou um pedido de revisão oficiosa do ato tributário.

 

Como se escreveu no acórdão fundamento entre a data da liquidação e a data do pedido de revisão decorreu um extenso período em que a reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não impulsionou, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte, suscita a questão da ilegalidade do ato de liquidação imediatamente após o pagamento da quantia em questão pois que entendeu o legislador que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respetiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.

 

Daí que se possa concluir que esta norma do artigo 43.º, n.º 3 c) da LGT consagra um regime especial, quanto aos juros indemnizatórios, aplicável apenas em situações de revisão, como é o caso dos presentes autos e não perante a situação normal típica em que a impugnação da liquidação se inicia após o pagamento.” 

 

Em conformidade com este aresto, que se acompanha, o Requerente apenas terá direito a juros indemnizatórios a partir do fim do prazo de um ano após a apresentação do pedido de revisão formulado, ou seja, a partir de 9.06.2021 , não tendo, consequentemente, direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto como peticionado, pelo que, não pode o pedido, nesta parte, deixar de improceder.

 

-IV- Decisão

 

Assim, nos termos e com os fundamentos supra expostos decide o Tribunal arbitral:

a)            julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se a anulação parcial do ato de liquidação, no que respeita à parte impugnada, no valor de € 2.061,48, condenando-se a Requerida a restituir tal montante ao Requerente.

b)           Absolver a Requerida do pedido formulado referente a juros indemnizatórios.

 

Valor da ação: € 2.061,48 (Dois mil e sessenta e um euros e quarenta e oito cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas pela Requerida, no valor de 612.00 €, nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 19 de Março de 2021

 

O Árbitro

Marcolino Pisão Pedreiro