Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 39/2020-T
Data da decisão: 2021-01-04  IRC  
Valor do pedido: € 21.051,34
Tema: IRC – Artigo 23º do CIRC – Dedutibilidade dos custos – Ónus da prova
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

O Árbitro Dra. Maria Antónia Torres, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar este Tribunal Arbitral Singular, constituído em 6 de julho de 2020, acorda no seguinte:

 

1. RELATÓRIO

1.1. A..., S.A., contribuinte nº..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Guimarães, (adiante dedignada como a “Requerente”), tendo sido notificada do despacho de indeferimento parcial proferido pela Diretora de Finanças de Braga, no procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019..., que tinha por objeto a demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., a demonstração de liquidação de juros n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., do ano de 2014, que conduziu à emissão da demonstração de liquidação de IRC n.º 2019... e da demonstração de liquidação de juros n.º 2019..., requereu a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e artigo 10.º, ambos do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante “RJAT” 1).

1.2 O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 21-01-2020. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Árbitro que foi designado pelo Conselho Deontológico comunicou a aceitação do encargo, no prazo aplicável. Em 10-03-2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 06-07-2020. Por despacho de 17-10-2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.

As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

1.3. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente e a Resposta da Requerida, e respectivas Alegações, são, em súmula, as seguintes:

 

A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objeto a tecelagem e acabamentos de algodão, fibras artificiais e sintéticas, encontrando-se sujeita ao regime geral de tributação de IRC.

Em processo de inspeção tributária foram efetuadas correções em sede de IRC ao ano de 2014, conforme consta do relatório de inspeção que a Requerente anexa à sua petição inicial.

Na sequência da dita inspeção, a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante referida como “AT” ou “Requerida”) procedeu à emissão das liquidações de IRC n.º 2018 ..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2018 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018 ..., da qual resultou valor a pagar no montante de €111.374,16.

A Requerente apresentou em 27-03-2019, reclamação graciosa tendo por objeto as referidas liquidações e foi, por carta registada em 16-10-2019, notificada da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada, tendo a AT reduzido o valor dos gastos não aceites fiscalmente de €622.922,07 para €91.527,58, por considerar que parte dos saldos que havia considerado na liquidação adicional inicial tinham “subjacentes operações comerciais, referindo-se a créditos de natureza comercial.” Com base nesta fundamentação, a AT aceitou gastos no montante de € 531,394.49.

 

Ora, a Requerente começa por referir não compreender como, com base na mesma fundamentação, a AT não aceitou a totalidade dos gastos, continuando a AT a sustentar que o valor de €91.527,58 suportados pela Requerente com juros, não deve ser aceite como gasto fiscal, ao abrigo do artigo 23.º do CIRC.

 

Contrapõe a AT que “A correcção mantida no valor de 91.527,58€, diz respeito a um saldo de 2.004.991,63€ registado a débito da subconta 2213020102015 para a subconta 27821306101027, a que não corresponderam operações comerciais.”. “Sendo uma conta de Fornecedores, o saldo devedor dessa subconta, encontraria justificação se estivéssemos na presença de adiantamentos por conta de compras ou adiantamentos a fornecedores. No entanto, não pode ser esse o caso, uma vez que o respectivo crédito revela a quase inexistência de operações comerciais.”.

Conclui dizendo que “Assim sendo, só podemos concluir que a canalização de tal montante para essa empresa teve em vista outros fins que não os constantes do objeto social da Requerente, que correspondem a “Tecelagem e acabamentos de algodão, fibras artificiais e sintéticas” -CAE 13201. Ora, tendo em conta o Quadro 10 da Declaração Anual- IES, verifica-se que a Requerente não cobra quaisquer juros por essa remessa de fundos para a sociedade sua participada. No referido Quadro 10, a única operação tida com essa sociedade consiste em Vendas/Prestações de Serviços no montante de 118,72€.

E conclui a Requerida dizendo “Assim sendo, parte dos empréstimos bancários contraídos pela Requerente, destinaram-se ao financiamento da B..., SA.”.

Continua a AT “No ano de 2014 a B... considerou como gastos, encargos financeiros associados a juros, despesas bancárias e imposto de selo, decorrentes de operações de financiamento junto de diversas instituições financeiras, …”.  “A concessão de empréstimos não integra a atividade da B..., não sendo necessários para a obtenção dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtora, pelo que os juros suportados pelos financiamentos obtidos, despesas bancárias e imposto de selo não podem ser aceites como gasto da atividade, uma vez que os mesmos foram incorridos não para a prossecução da atividade da empresa, mas para outros interesses alheios. E, sendo assim, os encargos com empréstimos obtidos pela B..., junto de terceiros, só podem legalmente ser havidos como gastos abrangidos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC e como tais aceites para efeitos fiscais, na parte e medida que correspondam a recursos efetivamente empenhados na atividade estatutária da empresa…”

 

Para apurar o valor dos gastos não aceites, a AT calculou o peso do saldo médio do valor a débito na subconta 221302102015 da C... SA. sobre o valor das contas #2511 e #2513 “Empréstimos Bancários e Locações Financeiras” e aplicou a percentagem daí resultante, 14,69%, ao valor total dos gastos financeiros existentes em 31-12-2014, nas subcontas 691 (523.371,52€) e conta 698: (99.550,95 €), chegando ao montante da liquidação adicional de IRC sub judice.

Por sua vez, expõe a Requerente que recorreu a empréstimos bancários para financiamento da sua atividade em geral, nomeadamente investimentos, inventários e créditos concedidos a clientes, cobranças internacionais, leasings, etc., tendo suportado em 2014 gastos com juros, despesas bancárias e imposto do selo no valor total de 624.869,15 €. Sendo que desse valor, na sequência do deferimento parcial da reclamação graciosa, o valor de €91.527,58 não foi aceite como gasto fiscal pela AT.

Ora, reitera a Requerente que os gastos desconsiderados pela AT respeitam a juros resultantes de financiamentos e serviços bancários associados à sua atividade. Não seria possível a Requerente funcionar sem o pagamento desse montante de juros, considerado mínimo em comparação com o setor.

Os referidos juros remuneram, sobretudo, o serviço bancário da cobrança e facilitação das operações. Os gastos de financiamento suportados pela Requerente em 2014 são perfeitamente normais e indispensáveis à obtenção dos proveitos, referindo que não existe qualquer conexão entre os financiamentos obtidos pela Requerente junto dos Bancos e os créditos concedidos à B... .

 

Refere ainda a Requerente que tem interesse na atividade da B... e no potencial recurso a esta no desenvolvimento da sua atividade, embora a atividade da B...  não integre a sua cadeia de valor, nomeadamente quanto à possibilidade de cedência de lojas por parte da B..., para realizar a venda ao público, como já hoje acontece.

Entre a Requerente e a B... existem relações especiais, dado que têm os mesmos sócios e administradores (conforme se pode verificar pelas certidões permanentes das sociedades).

Entende ainda a Requerente que existe ainda um vício de falta de fundamentação subjacente às liquidações sub judice. Face ao exposto, as correções operadas padecem de erro sobre os pressupostos de direito e de facto, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 23.º, n.º 1, alínea c) do Código do IRC, devendo ser declaradas ilegais já que, no limite, as correções deveriam fazer-se nos termos do artigo 63.º do CIRC.

Além disso, continua a Requerente, a AT baseia as correções efetuadas no facto de haver relações especiais. Quando existem relações especiais a lei impõe à AT uma exigente e especial dever de fundamentação, previsto no artigo 77º n.º 3 da LGT.

Acrescenta a Requerente que a AT não alega nem prova a relação direta entre a contração de empréstimos pela Requerente e a alegada beneficiação das demais sociedades. A AT nada disse sobre a data em que a Requerente recorreu ao crédito, nem quanto à aplicação que, nessa data, fez desses fundos.

Em síntese, entende que a AT nada alegou quanto à relação temporal e substancial entre o recurso ao crédito por parte da Requerente e a alegada beneficiação das demais entidades, acrescentando que é à AT que cabe o ónus da prova da existência de todos os pressupostos do ato de liquidação adicional, designadamente dos factos concretos existentes e comprovados que justificam e fundamentam a desconsideração dos gastos.

Entende ainda a Requerente que um financiamento não oneroso efetuado em benefício das participadas não pode, só por se tratar de uma operação gratuita, levar à desconsideração como custo fiscal dos eventuais encargos financeiros suportados pela Requerente, uma vez que são essenciais para a obtenção de ganhos futuros ou para a manutenção da fonte produtora da sociedade participante não existindo, mantém, qualquer nexo relacional direto entre o tipo de financiamento obtido e o crédito concedido aos seus clientes, entre os quais as empresas ligadas.

Contrapõe a AT “A Requerente no presente pedido arbitral não faz qualquer prova de que respeita afinal o elevado montante registado a débito na subconta 2213020102015- B... . Assim sendo, só podemos concluir que a canalização de tal montante para essa empresa teve em vista outros fins que não os constantes do objeto social da Requerente, que correspondem a “Tecelagem e acabamentos de algodão, fibras artificiais e sintéticas” -CAE 13201.”

Continua a Requerida “Atendendo a que a dedutibilidade fiscal de um gasto depende, por regra, de uma relação de causalidade económica, justificada com a atividade produtiva, com o escopo societário, e, consequentemente, com o interesse empresarial, tais quantias, suportadas a título de gastos financeiros, a serem efetivamente necessárias e a terem ligação direta na obtenção de rendimentos, seriam para o desenvolvimento da atividade e para a manutenção da fonte produtora das empresas beneficiárias dos financiamentos. E, sendo assim, os encargos financeiros com empréstimos obtidos pela Requerente, junto de terceiros, só podem legalmente ser havidos como gastos abrangidos pela al.c), do n.º1 do art.º 23.º do Código do IRC e como tais aceites para efeitos fiscais, na parte e medida em que correspondam a recursos efetivamente empenhados na atividade estatutária da empresa, de acordo com o princípio da especialidade.”

Mais acrescenta a Requerida que “As correcções efectuadas controvertidas nos presentes autos não se fundamentam no art.º 63.º do IRC, mas sim na não dedutibilidade dos custos ao abrigo do art.º 23.º do CIRC, pelo que não se logra alcançar a alegação de incongruência na fundamentação da AT”, que é referida pela Requerente, não se vislumbrando “em que possa a AT ter violado o disposto no art. 77º do CPPT, resultando clara, coerente e suficiente a fundamentação de facto e de direito das correcções controvertidas.”

 

2. DOS FACTOS

2.1 Factos provados

 

a) A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objeto a tecelagem e acabamentos de algodão, fibras artificiais e sintéticas, encontrando-se sujeita ao regime geral de tributação de IRC.

b) No âmbito de um processo de inspeção tributária ao exercício de 2014 foram efetuadas correções em sede de IRC, designadamente através da desconsideração, para efeitos fiscais, dos gastos financeiros incorridos com empréstimos obtidos junto de instituições bancárias.

c) Na sequência de dita inspeção, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) procedeu à emissão das liquidações de IRC n.º 2018..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2018 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018 ..., da qual resultou um valor a pagar no montante de €111.374,16.

d) Tendo a Requerente apresentado reclamação graciosa das referidas liquidações, a mesma foi parcialmente deferida.

e) Considerou a AT que parte dos saldos que havia considerado na liquidação adicional inicial tinham “subjacentes operações comerciais, referindo-se a créditos de natureza comercial, fazendo referência a um conjunto de saldos com entidades relacionadas que teriam um prazo médio de pagamento superior a 90 dias.

f) Com base nesta fundamentação, a AT aceitou gastos no montante de € 531,394.49, continuando a sustentar que o valor de €91.527,58 suportados pela Requerente com juros, não deve ser aceite como gasto fiscal, ao abrigo do artigo 23.º do CIRC.

g) Para apurar o valor não aceite, calculou a AT o peso do saldo médio do valor a débito na subconta 221302102015 da C... SA., subjacente ao qual a AT considera não existirem transacções comerciais, sobre o valor total das contas #2511 e #2513 “Empréstimos Bancários e Locações Financeiras” e aplicou a percentagem daí resultante, 14,69%, ao valor total dos gastos financeiros existentes a 31-12-2014, nas subcontas 691 (523.371,52€) e conta 698: (99.550,95 €), chegando ao montante da liquidação adicional de IRC sub judice.

 

2.2. Factos não provados

Os factos provados baseiam-se no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente.

Não fica provado o destino dado aos empréstimos bancários efectuados pela Requerente e que originaram os custos parcialmente não aceites pela AT.

2.3 Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que são relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Os factos dados como provados e como não provados resultam da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, do processo administrativo e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.

 

3. DO DIREITO

 

Conforme referido claramente pela AT na sua Resposta, a liquidação adicional sub judice sustenta-se na aplicação do previsto no artigo 23º do Código do IRC.

Estabelece o artigo 23º nº 1 do Código do IRC, com a redação vigente em 2014, dada pela Lei nº 2/2014 de 16 de Janeiro, o seguinte: “Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.”

No nº 2 alínea c) do mesmo artigo considera-se, nomeadamente, os custos:

“De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efectivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;”

Por fim, no nº 3 do mesmo artigo:

“Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.”

Ora, face aos factos apresentados por ambas as partes, não está sob contestação tratarem-se de custos devidamente comprovados documentalmente, nem tão pouco se contesta a aceitação dos mesmos pela sua natureza financeira, ao abrigo da alínea c) do nº 2 do artigo 23º, como acima se transcreve.

Assim sendo, está unicamente em questão nos autos em apreço considerarem-se ou não, os referidos gastos financeiros incorridos pela Requerente, “gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

O artigo 23º do Código do IRC, quer na sua anterior redacção, quer na actual redacção, tem gerado há vários anos muita doutrina e jurisprudência sobre o seu alcance. Na redacção anterior, a temática mais relevante era o conceito de indispensabilidade dos custos. Esse conceito desaparece na nova redacção, dando lugar ao conceito de custos incorridos ou suportados para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

Parece ter assim o legislador a intenção, salvo melhor opinião, e muito embora as opiniões se dividam, de excluir o julgamento sobre a decisão de gestão subjacente aos custos, bastando que haja uma ligação com o obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, não tendo os custos que ser necessariamente indispensáveis a essa obtenção, nem terem resultado efectivamente num ganho ou proveito para a empresa.

Vale a pena ponderar que a norma, ao referir expressamente que para serem aceites é necessário que se tratem de “gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, não exclui, em momento algum, rendimentos sujeitos a IRC que derivem de actividades que não constem do objecto social ou CAE do sujeito passivo. Não existe uma proibição na lei fiscal da realização de actividades que não constem do objecto social ou CAE do sujeito passivo, nem tão pouco uma não sujeição de tais rendimentos a IRC. Não existe pois, salvo melhor opinião, como retirar essa conclusão da redacção actual do artigo 23º do Código do IRC.

Voltando ao caso concreto, a questão sub judice é, portanto, se os custos de natureza financeira contabilizados pela Requerente em 2014 foram ou não “incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

A AT entendeu que não o que gerou a liquidação adicional de IRC controvertida. A Requerente entende que sim.

Ora, compete à AT a realização da prova.

Cabe à A.T., enquanto fundamentação formal do ato de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, para que possa desconsiderar os elementos declarados pelo sujeito passivo na respetiva declaração de rendimentos, por forma a suportarem o mesmo.

Como se depreende, a aplicação do enquadramento legal invocado pela AT assenta na verificação de um pressuposto essencial: a afetação dos financiamentos obtidos junto das entidades bancárias a empréstimo realizado à referida sociedade participada, o que entendemos, no caso concreto, não foi demonstrado.

Com efeito, não ficou comprovado que os encargos financeiros em discussão fossem conexos com os valores contabilizados pela Requerente como um crédito sobre a B..., sua participada. Não se estabeleceu, na verdade, qualquer nexo entre as duas realidades: nem um nexo temporal, nem quantitativo, nem contratual, nem qualquer outro, que permitisse inferir que dos diversos meios financeiros à disposição da Requerente, fossem os financiamentos geradores dos encargos financeiros em questão aqueles que a Requerente efetivamente utilizou para gerar o referido valor a crédito sobre a sua participada.

Poderíamos estar perante uma situação em que o nexo era evidente, o que não é o caso. A Requerente tinha, à data, actividade operacional relevante. Fornecedores, clientes, empregados, imobilizado, inventários, locações financeiras, etc., podendo os financiamentos bancários que originaram os custos sub judice ter sido direccionados para qualquer uma dessas realidades, entre outras.

E, na verdade, do próprio processo administrativo parece decorrer que, pelo menos, parcialmente foram, dado que, por exemplo, a AT considera para a sua quantificação os montantes inscritos numa conta #2513 – Locações Financeiras, nada se referindo sobre estarem mal qualificados como decorrendo de contratos de locação financeira. E, como tal, estando correctamente qualificados, não se percebendo como podem estar relacionados com o valor que se considera ter sido objecto de empréstimo à sua participada pela Requerente.

 

Acresce que, de acordo com o próprio processo administrativo, tinha a Requerente, à data, saldos com clientes terceiros ao grupo de montante superior (cerca do dobro) aos saldos com participadas.

 

A comprovação do pressuposto em causa – que postula uma afetação específica, i.e., a inequívoca conexão entre os encargos relativos aos financiamentos contraídos e o “empréstimo a título gratuito” efetuado à sua participada – competia à AT, sobre quem impende o ónus de demonstração dos pressupostos legitimadores da sua atuação, como corolário do princípio da legalidade administrativa, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova constantes do artigo 74.º, n.º 1 da LGT.

A demonstração de que essa afectação não existe, é que a AT recorre a uma percentagem para quantificar o valor dos custos financeiros a desconsiderar.

Aliás, na liquidação adicional inicial a AT desconsidera a totalidade dos custos financeiros registados no exercício de 2014, correspondentes aos financiamentos registados nas contas #2511 e #2513 Empréstimos Bancários e Locações Financeiras. Considera que a totalidade dos custos com vários empréstimos bancários e locações financeiras estão integralmente relacionados com os saldos sobre as várias participadas da Requerente, excluindo toda e qualquer outra realidade da actividade da Requerente, desconhecendo-se, por exemplo, em que ano(s) foram contraídos e como podem ser considerados, para o efeito, aqueles que respeitam a locações financeiras.

Posteriormente, vem dizer que aceita que não seja desconsiderada uma parte significativa desses custos, parte essa que corresponde aos saldos com participadas em que existam “transacções comerciais subjacentes”.

 

Mantém que, no caso do saldo sobre a B..., não existem relações comerciais subjacentes entre a Requerente e esta sua participada. Não existindo relações comerciais relevantes entre as empresas que justifiquem tais saldos, entende a Requerida tratar-se de empréstimos efectuados pela Requerente a título gratuito.

Não constando do objecto social da Requerente o financiamento à actividade de outras empresas, conclui a Requerida “que a canalização de tal montante para essa empresa teve em vista outros fins que não os constantes do objeto social da Requerente. E continua referindo que “Não se podendo considerar que a concessão de empréstimos, com vista ao financiamento da atividade de outras empresas, integre um acto da sua atividade normal e corrente. “e “Atendendo a que a dedutibilidade fiscal de um gasto depende, por regra, de uma relação de causalidade económica, justificada com a atividade produtiva, com o escopo societário…,” entende a Requerida que os juros suportados pelos financiamentos obtidos, despesas bancárias e imposto de selo não podem ser aceites como gastos da atividade da Requerente, uma vez que os mesmos foram incorridos não para a prossecução da atividade da empresa, mas para outros interesses alheios.

Ora, em nenhum momento a AT suporta, prova, o facto de haver uma conexão, de qualquer natureza – temporal, contratual, quantitativa, etc. - entre os financiamentos bancários que originaram os custos financeiros que pretende sejam desconsiderados para efeitos fiscais em 2014 e o valor do saldo que considera tratar-se de um empréstimo sem juros a uma participada da Requerente.

Do raciocínio de que se trata de um empréstimo a título gratuito, não conexo com a actividade da Requerente, salta para a desconsideração de parte dos custos financeiros incorridos pela Requerente nesse ano de 2014. Sem mais. E como acima se refere, poderia tratar-se de um caso em que esse nexo fosse evidente, mas não o é. A Requerente tinha, à data, actividade operacional relevante sendo possível, e parcialmente até indicado pela própria informação junta aos autos, como acima também se refere, que tais financiamentos bancários, que deram origem aos custos que se pretendem desconsiderar, tivessem sido obtidos para diversas outras realidades do dia-a-dia da Requerente.

Era necessário a prova de haver uma afectação de tais financiamentos ao saldo referido sobre a B... . A própria quantificação dos gastos financeiros a desconsiderar, comprova que essa afectação não foi devidamente comprovada.

A AT, para apurar esse valor, calculou o peso do saldo médio do crédito sobre a B... sobre o valor dos empréstimos e locações financeiras obtidos junto das instituições financeiras.

 

Tal originou uma percentagem (14,69%) que aplicou sobre o valor total dos gastos financeiros existentes, relevados contabilisticamente, a 31 de Dezembro de 2014.

 

Confirma o próprio cálculo que a Requerida não efectua a prova necessária para suportar o seu raciocínio. Desde logo, em que se consubstancia a sua conclusão de que aqueles custos financeiros derivam de empréstimos obtidos junto de terceiros para financiar a participada da Requerente. Assume essa ligação mas não suporta, não prova, de todo, essa conclusão.

Face ao exposto, procede o vício de violação de lei invocado pela Requerente, devendo ser aceite a dedução dos encargos financeiros incorridos, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 1 do Código do IRC.

Questões de conhecimento prejudicado

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade da liquidação objecto do presente processo, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

 

4. DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar procedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2014, bem como da decisão de indeferimento parcial do pedido de reclamação graciosa deduzido contra o ato de autoliquidação, assim como da respectiva liquidação de juros.

 

Valor da causa

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 21.051,34 que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, que ficam a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de janeiro de 2021

 

O Árbitro

Maria Antónia Torres