Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 386/2020-T
Data da decisão: 2021-06-11  IVA  
Valor do pedido: € 1.153.096,82
Tema: IVA - Operações simuladas. Direito à dedução – art. 19.º, 3 e 4 CIVA. Ónus da prova
Versão em PDF

 

 Sumário:

I – Os preços dos telemóveis transacionados por grosso sofrem frequentes oscilações de preços, por várias causas, como variações cambiais, desatualização de equipamentos, a quantidade que está em causa em cada transação, circunstância de os telemóveis serem bloqueados ou livres, a sua cor, o número de acessórios que trazem, terem ou não logotipos dos operadores móveis, existirem ou não campanhas promocionais, ser ou não fornecido suporte financeiro pelos fabricantes para os distribuidores escoarem stocks.

II – Não existe no comércio por grosso de telemóveis um preço a que entram no mercado nacional, uniforme para todas as transações verificadas em determinado período, que possa servir de padrão para concluir que os preços praticados por aquelas sete empresas, eram significativamente mais reduzidos do que os praticados por outras empresas de comércio por grosso.

III - Face à prova produzida e às evidências do funcionamento do mercado terá de se ficar numa situação de dúvida sobre a alegada natureza simulada das transações, dúvida essa que, por força do disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, tem de ser valorada a favor da Requerente.

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Joaquim Miranda Sarmento e Guilherme d’Oliveira Martins (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 14 de outubro de 2020, acordam no seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

A A..., ..., LDA., doravante “Requerente”, titular do número de pessoa coletiva …, com sede na …, …, …, requereu a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), na redação vigente, com vista à declaração de ilegalidade, e consequente anulação, das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) referentes aos períodos de janeiro a dezembro de 2016, no valor de € 1.153.096,82, e dos juros compensatórios correspondentes, de € 151.191,84, perfazendo o total de € 1.304.288,66. 

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também identificada por “AT” ou, simplesmente, “Autoridade Tributária”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 29 de julho de 2020 e, de seguida, automaticamente notificado à AT.

 

Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 5.º, na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 11 de setembro de 2020, foram as Partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 14 de outubro de 2020.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente baseia a sua pretensão em vícios de índole procedimental e de índole substantiva, alegando:

a)            Déficit instrutório do procedimento, em virtude de, na fase de direito de audição, a AT não ter admitido a produção da prova (testemunhal) aí arrolada pela Requerente, a seu ver imprescindível para a descoberta da verdade material, em violação dos princípios da verdade material, do inquisitório, de audiência dos interessados e do contraditório, com suporte nos artigos 58.º e 60.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”), 6.º e 60.º, n.º 1 do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) e 266.º, n.º 2 e 267.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição (“CRP”).

Neste âmbito, defende que a não realização da diligência de inquirição de testemunhas não permitiu que fossem contrariadas as informações prestadas pelos Serviços de Inspeção Tributária (artigo 76.º da LGT), comprometendo o seu direito de participação na tomada de decisão, sendo inaplicável o princípio de aproveitamento do ato por não estar em causa uma atividade vinculada;

b)           Vício de violação de lei relativo à recusa, pela AT, do direito à dedução do IVA relativamente às faturas emitidas pelos fornecedores identificados no Relatório de Inspeção Tributária, por inexistência de indícios sérios e objetivos da prática de atos simulados ou de simulação do preço. Para a Requerente, o enquadramento das transações no artigo 19.º, n.ºs 3 e 4 do Código do IVA não assentou em elementos objetivos e não respeitou os princípios da proporcionalidade, nem a interpretação do Tribunal de Justiça em diversa jurisprudência, uma vez que:

i)             Não se encontram preenchidos os pressupostos do negócio simulado, pois os equipamentos de telecomunicações foram efetivamente adquiridos às entidades que emitiram as faturas, tendo-lhe sido entregues e entrado no seu ativo, ao que acresce ter sido pago o preço mencionado nessas faturas;

ii)            Desconhece os factos relativos aos fornecedores e apurados em inspeções efetuadas a essas entidades;

iii)           Em relação à cadeia de transmissão dos equipamentos de telecomunicações transacionados e à “quebra de preços”, a Requerida não indicou factos que alicercem a conclusão de que interveio de forma concertada nestas operações, ou de que tinha conhecimento das anteriores operações dos seus fornecedores, ou de que beneficiava da prática de preços inferiores aos de mercado, asserções que rejeita. Aduz que a Requerida não empreendeu qualquer análise aos preços de mercado dos bens comercializados pela Requerente, seja no comércio a retalho, seja na venda ao público, no período em referência;

iv)           Ainda sobre a “quebra de preços”, em diversas situações, a variação de preços em baixa está associada ao aparecimento de novos modelos e os Serviços de Inspeção Tributária não concluíram que praticasse margens negativas;

v)            Por outro lado, telemóveis do mesmo modelo podem ter preços diferentes por serem fabricados em países diferentes, comercializados em meses diferentes ou por estarem abrangidos por campanhas promocionais, neste último caso, a preços inferiores e fora das plataformas profissionais de comércio eletrónico;

vi)           Em transações com outros fornecedores, comprou equipamentos a preços aproximados e, em alguns casos, mais baixos do que aqueles praticados pelos fornecedores “problemáticos”;

vii)          Não é estabelecida ou demonstrada a conexão entre a cadeia de fraude em carrossel dos identificados fornecedores e a Requerente, nem a afirmação de que obteve uma margem de lucro anormal “à custa do IVA”;

viii)         Não foi apontada qualquer irregularidade às declarações de IVA ou aos elementos contabilísticos que as suportam, sendo aplicável a presunção de veracidade a que alude o artigo 75.º, n.º 1 da LGT;

ix)           A mera invocação da falta de credibilidade dos emitentes das faturas não é suficiente para demonstrar que os custos correspondentes não foram efetivamente suportados pelo sujeito passivo, ou que as operações tituladas nas faturas não se realizaram nos termos inscritos naqueles documentos;

x)            Desconhecia que os fornecedores identificados não dispunham de adequada estrutura empresarial, sendo o respetivo modus operandi igual ao das demais empresas intermediárias que atuam no mercado de comércio a retalho de telemóveis, nem lhe pode ser exigido especial conhecimento;

xi)           Deve considerar-se, pelo menos, uma situação de dúvida sobre a alegada natureza simulada das transações, a ser valorada a favor do contribuinte, de acordo com o disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”);

xii)          Em relação a diversas faturas dos fornecedores identificados como envolvidos em esquema de fraude nada é concretizado no Relatório de Inspeção sobre a alegada “quebra de preço” ou vantagem económica, pelo que se trata de uma posição não fundamentada que recusa o direito à dedução de forma desproporcionada, em violação do disposto nos artigos 167.º e seguintes da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro);

c)            Sobre os juros compensatórios, alega a preterição do direito de audição, uma ver que o Relatório de Inspeção não faz qualquer menção aos mesmos, formalidade que considera passível de influenciar a decisão final do procedimento, nomeadamente a imputação a título de culpa do retardamento da liquidação (v. artigos 35.º e 60.º da LGT).

 

A Requerente juntou 191 documentos e arrolou cinco testemunhas.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

                Em 18 de novembro de 2020, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defendeu por impugnação, concluindo pela improcedência da ação, por não provada, e pela absolvição do pedido, com as legais consequências, tendo junto o processo administrativo (“PA”).

 

                Neste âmbito, alega em síntese que:

a)            Não violou o princípio do inquisitório, o princípio da audiência dos interessados, ou o princípio do contraditório, assistindo-lhe o direito de denegar diligências  probatórias quando entenda serem desprovidas de interesse para o procedimento e para a descoberta da verdade material. No caso, sendo as testemunhas indicadas funcionários da Requerente, considerou que não teriam condição independente e isenta para infirmar o que estava apurado através de documentos. Para mais, a prova testemunhal não faz prova bastante para contrariar as constatações do procedimento, nem está prevista nos artigos 60.º da LGT e do RCPITA, sendo ao órgão instrutor que, nos termos do artigo 72.º do LGT, compete a opção pelos meios probatórios, não estando aquele vinculado à iniciativa dos interessados;

b)           Um conjunto de operadores lesaram o Estado não entregando imposto liquidado, atuando, para o efeito, à margem do circuito oficial de distribuição das marcas comerciais dos equipamentos (telemóveis) e abaixo do preço de mercado;

c)            A Requerente integra diversas plataformas profissionais de comércio eletrónico, como a XXX..., pelo que conhece a situação de mercado e os preços praticados;

d)           Os telemóveis topo de gama transacionados não foram produzidos pelas empresas que os colocaram no mercado nacional, pelo que a Requerente não podia deixar de considerar como uma anomalia que empresas com estrutura e dimensão inferior à sua, operando fora do circuito oficial de distribuição das marcas em causa, pudessem fornecer a preços que a Requerente não conseguia obter no mercado regularizado, disso tirando proveito;

e)           A Requerente sabia que a transação era irregular ou estava inserida num circuito em que ocorreu pelo menos uma transação irregular e tinha a obrigação tributária de verificar a legalidade das suas transações, pelo que lhe é adequadamente imputada a responsabilidade pelo imposto em falta, devendo recusar-se o benefício do direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 19.º, n.ºs 3 e 4 do Código do IVA.

* * *

Por despacho de 23 de novembro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com produção de prova testemunhal, por se julgar útil ao apuramento da verdade.

 

Em 18 de janeiro de 2021, realizou-se a referida reunião, com recurso a meios de comunicação à distância, na qual foram ouvidas quatro das cinco testemunhas indicadas pela Requerente, tendo sido prescindida a terceira testemunha.

 

Na mesma reunião, foi concedido o prazo de 10 dias para junção pela Requerente de documento comprovativo de um processo crime contra um fornecedor que corre na Letónia. As Partes foram notificadas para alegações escritas sucessivas, com a fixação do prazo de 10 dias, a contar após o decurso do prazo de junção do documento.

 

O Tribunal advertiu ainda a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, que se fixou no termo do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

 

Em 29 de janeiro de 2021, a Requerente juntou documentos.

 

Por despacho de 6 de abril de 2021, determinou-se a prorrogação por dois meses do prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivada da interposição de períodos de férias judiciais, da tramitação processual, que incluiu diligências instrutórias, e da situação pandémica (Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro).

 

Em 14 de abril de 2021, a Requerente apresentou as suas alegações e reiterou o já por si alegado no pedido de pronúncia arbitral (“ppa”). 

 

Em 27 de abril de 2021, a Requerida contra-alegou, remetendo para o que foi escrito em sede de Resposta. Confirma, à face do depoimento das testemunhas, a irrelevância da inquirição no direito de audição procedimental, uma vez que se verificou que não tinham intervenção nas compras do equipamento, mas apenas o sócio-gerente, o qual, porém, não foi indicado para prestar depoimento, nem no procedimento, nem na ação arbitral.

 

A Requerida destaca a afirmação, pelas testemunhas, do caráter anormal da rotação de telemóveis. Sobre os documentos juntos após a reunião, refere que não provam a alegada burla, nem uma queixa-crime na Letónia.

 

Expressa ainda perplexidade pelo facto de a Requerente alegar que após ser vítima de burla se vocacionou para o mercado nacional e passou a trabalhar com empresas relativamente às quais pouco ou nada conhecia, que eram recentes no mercado e que, pouco depois da realização dos negócios, tiveram a sua atividade encerrada. Quando, para mais, até àquela data, a Requerente trabalhava com várias empresas do exterior com quem não havia tido quaisquer problemas ao nível de entregas e cujos equipamentos, segundo as testemunhas, eram sempre mais baratos do que os comercializados dentro do território português. Por fim, salienta a contradição de depoimentos em relação aos pagamentos apenas serem efetuados com a receção dos bens, para evitar novas tentativas de burla, quando uma das testemunhas assegura que aqueles são, em regra, feitos antes do recebimento dos bens.

Em 25 de maio de 2021, o Tribunal Arbitral determinou a notificação das Partes para se pronunciarem, querendo, sobre a alteração oficiosa do valor da causa. A Requerente, por requerimento registado em 7 de junho, expôs o entendimento de que sendo a anulação dos juros compensatórios uma consequência da anulação das liquidações de IVA, não os considerou para efeitos do cálculo do valor do processo.

 

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de liquidação de IVA e juros compensatórios, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e artigo 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT e com o regime excecional de suspensão introduzido pela legislação COVID 19 (v. Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e Lei n.º 16/2020, de 29 de maio).

 

A cumulação de pedidos é admissível, em conformidade com o preceituado no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, atendendo a que está em causa a apreciação de idênticas circunstâncias de facto e o mesmo regime jurídico, em concreto, a não dedução do IVA com fundamento no artigo 19.º, n.ºs 3 e 4 do Código deste imposto.

 

Não existem exceções a apreciar. O processo não enferma de nulidades.

 

FIXAÇÃO DO VALOR DA CAUSA

 

Com a presente ação, a Requerente pretende a invalidação total dos atos tributários de liquidação de IVA reportados aos doze meses do ano 2016, no valor de € 1.153.096,82, e dos respetivos juros compensatórios, no montante de € 151.191,84, perfazendo o valor global de € 1.304.288,66.

 

Porque nos processos tributários regulados pelo CPPT e pelo RJAT não existe a fase do despacho saneador, o juiz deve fixar o valor da causa na decisão que ponha termo ao processo, de acordo com o preceituado no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária aos processos tributário e arbitral tributário (v. artigos 29.º, n.º 1 do RJAT e 2.º do CPPT).

 

Na jurisdição arbitral, o critério de fixação do valor retira-se do RCPAT que dispõe, no seu artigo 3.º, n.º 2 que “[o] valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário”. Por seu turno, o n.º 1, alínea a) deste último preceito estabelece que, no caso específico de impugnação da liquidação (sendo o processo arbitral tributário um processo de cariz impugnatório), o valor atendível, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, é “o da importância cuja anulação de pretende”.

 

Este entendimento emana e é corolário do princípio geral de que o valor da causa representa a utilidade económica imediata do pedido, princípio com expressão em diversos compêndios processuais, desde logo no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – artigo 31.º, n.º 1 – e no Código de Processo Civil – artigo 296.º, n.º 1, aplicáveis a título subsidiário ao processo tributário que, sobre esta matéria, se cinge a um único preceito relativo aos critérios específicos, o mencionado artigo 97.º-A.

 

Conclui, neste âmbito, JORGE LOPES DE SOUSA que o valor do processo “será o da própria liquidação, se for pedida a anulação total, ou o valor da parte impugnada, se se pretender uma anulação apenas parcial.” – v. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª edição, Áreas Editora, p. 72. Em sentido idêntico se pronuncia o acórdão do TCA Sul, de 13 de março de 2014, no processo n.º 7125/13, e a decisão arbitral do processo n.º 55/2018-T, de 23 de outubro de 2018.

 

Na situação concreta, a satisfação do pedido da Requerente implica a anulação de atos tributários no montante de € 1.304.288,66, nos exatos termos por esta peticionados, pois a sua pretensão abrange, quer o imposto [IVA], quer os juros compensatórios liquidados. Porém, aquela indicou como valor da causa apenas a importância referente às liquidações de IVA, de € 1.153.096,82, não tomando em consideração o montante das liquidações de juros compensatórios, que também pretende anuladas.

 

À face do exposto, com base nos legais critérios enunciados, fixa-se em € 1.304.288,66 (um milhão, trezentos e quatro mil duzentos e oitenta e oito euros e sessenta e seis cêntimos) o valor da ação, coincidente com o benefício pecuniário da pretendida anulação total das liquidações de IVA e de juros compensatórios, relativas a 2016, objeto dos autos.

 

 

III.          QUESTÕES A APRECIAR

 

Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral os vícios procedimentais e materiais invocados.

 

Nos primeiros, de índole formal, insere-se o alegado déficit instrutório, a violação do contraditório e a preterição do direito de audiência dos interessados.

 

Nos segundos, está em causa o erro nos pressupostos de facto e de direito relativamente à aplicação do artigo 19.º, n.ºs 3 e 4 do Código do IVA, e a eventual aplicação do regime da dúvida fundada previsto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, bem como a violação do princípio da proporcionalidade. Em relação aos juros compensatórios, suscita-se ainda o vício autónomo de preterição absoluta do direito de audição.

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO

 

1.            DE FACTO

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A.           A A..., ..., LDA., aqui Requerente, é uma sociedade que, à data dos factos, reportados ao ano 2016, exercia a atividade de venda ao público de telemóveis e seus acessórios, nas suas lojas na … e em … e através da Internet, bem como de venda por grosso a outros operadores, nacionais e comunitários. Para esse efeito, adquiria os telemóveis e acessórios comercializados a outros operadores, nacionais e comunitários – cf. Relatório de Inspeção Tributária ao ano 2016, adiante referido por “RIT”.

B.            O objeto social da Requerente, na parte que releva à matéria dos autos, era o seguinte: “Comércio, assistência técnica e acessórios de telecomunicações, tais como telemóveis, telefones e outros equipamentos de comunicações; Representações; Comércio e assistência técnica de equipamentos informáticos e eletrodomésticos; Sistemas de comunicações e telecomunicações […]” n – cf. RIT.

C.            A Requerente estava enquadrada com o CAE principal 47420 – Comércio a retalho de equipamento de telecomunicações, em estabelecimentos especializados, sendo abrangida pelo regime normal de periodicidade mensal, para efeitos de IVA, e procedia com regularidade à entrega das declarações periódicas deste imposto – cf. RIT.

D.           A Requerente baseava as suas compras nas ofertas de fornecedores de telemóveis que recebia com regularidade, em regra por via eletrónica, e estabelecia com estes contactos/comunicação por e-mail e telefónicos/mensagens. Eram frequentes as campanhas promocionais de redução de preço praticadas pelos fornecedores do mercado a retalho efetuadas fora da plataforma profissional de comércio eletrónico XXX... – cf. documentos 27 a 185 e depoimento da primeira testemunha.

E.            Os preços dos telemóveis adquiridos na atividade da Requerente vão diminuindo com o decurso do tempo e a desatualização dos equipamentos à medida que vão surgindo novos modelos. Neste mercado, dada a rapidez com que aparecem novos modelos, uma diferença de 6 meses faz alterar os preços dos equipamentos de forma significativa – cf. depoimento da primeira, segunda e terceira testemunhas inquiridas.

F.            É habitual que empresas que trabalham com o mercado europeu consigam praticar preços mais baixos do que em Portugal – cf. documento 26 e depoimento da primeira e segunda testemunhas inquiridas.

G.           Em 2016, nas lojas B… eram comercializados telemóveis aos consumidores finais por valores próximos (com diferença de 10 ou 11 euros) do valor de aquisição de telemóveis do mesmo modelo pela Requerente – cf. documento 26.

H.           No ano 2016, o fornecedor C… vendeu à Requerente telemóveis Apple iPhone 6S e 5S a preços similares e em alguns casos superiores aos preços praticados pelos fornecedores D..., E... e E... – cf. documentos 186 a 191.

I.             Operações de compra e revenda sucessivas (rotação) dos mesmos telemóveis entre os diversos intervenientes da cadeia de distribuição são pouco habituais e anómalas – cf. depoimentos da primeira, segunda e terceira testemunhas.

J.             Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018…, os Serviços de Inspeção Tributária realizaram uma ação inspetiva à Requerente, relativa ao ano 2016, iniciada em 10 de dezembro de 2018, de âmbito parcial, IVA, tendo sido alargada para geral e ampliada a sua duração. O procedimento teve origem em divergências entre o IVA suportado decorrente do cruzamento com terceiros e o IVA deduzido nas respetivas declarações periódicas e visou a análise do cumprimento das obrigações tributárias da Requerente – cf. RIT.

K.            Na sequência desta ação inspetiva, a Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção, que conclui, com relevância para a presente ação arbitral, que aquela teve conhecimento e envolvimento num circuito fraudulento (“fraude carrossel”), em que as operações foram simuladas ou manipuladas com o objetivo de lesar o Estado, dado os seus fornecedores lhe terem disponibilizado equipamentos – telemóveis – a preços inferiores aos de mercado, num circuito de comercialização não oficial, sabendo que não iam entregar o IVA dessas transmissões ao Estado. Isto, sem prejuízo do cumprimento das formalidades inerentes ao negócio, com uma aparente legalidade formal. Em consequência, o IVA deduzido nas aquisições desses telemóveis deve ser desconsiderado e corrigido, nos termos do previsto no n.º 3 e no n.º 4 do artigo 19.º do Código do IVA, propondo-se a correção de € 1.170.009,42 – cf. RIT.

L.            A Requerente exerceu o direito de audição, tendo requerido que os Serviços de Inspeção Tributária procedessem à inquirição de duas testemunhas, G... e H..., o que foi indeferido – cf. RIT.

M.          Os argumentos apresentados no direito de audição da Requerente não tiveram acolhimento no Relatório de Inspeção Tributária (definitivo), que manteve as correções preconizadas no Projeto – cf. RIT e Documento 26 junto pela Requerente.

N.           Considera o Relatório de Inspeção Tributária, em relação à matéria em discussão nos presentes autos, os fundamentos de seguida enumerados:

a)            Em 2016, as aquisições de equipamento – telemóveis – efetuadas pela Requerente a fornecedores no mercado nacional representaram 80% do total das compras, sendo os 20% remanescentes do mercado comunitário. Em proporção similar, as vendas tiveram como principal destino o mercado nacional (81%), seguindo-se o mercado comunitário (19%). O mercado extracomunitário não foi materialmente relevante, quer na vertente de compras, quer de vendas;

b)           Os telemóveis comercializados pela Requerente foram adquiridos, na sua grande parte, e no caso de fornecedores nacionais, às seguintes entidades:

Fornecedor

(1)          Montante

(2)          %

(3)

D..., IMPORT EXPORT, LDA. (…)  1.615.197 €        30%

I..., UNIP, LDA. (…)           1.268.591 €        24%

E..., LDA. (…)      801.317 €            15%

J..., UNIP, LDA. (…)          719.172 €            13%

F…, LDA. (…)      544.508 €            10%

K..., UNIP, LDA. (…)         138.232 €            3%

L…, UNIP, LDA. (…)          87.257 €              2%

M…, LDA. (…)     50.856 €               1%

N…,…. …., UNIP, LDA. (…)             32.541 €              1%

O..., LDA. (…)     26.756 €               0,5%

TOTAL   5.284.427 €        98%

 

Circuito comercial “D...”

c)            Da análise do circuito comercial em que interveio a D..., pode concluir-se que aquele fornecedor se comportou como MISSING TRADER e quebrou o preço das mercadorias adquiridas a fornecedores da União Europeia na entrada/venda das mesmas em território nacional, criando uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela D..., no montante global de € 371.490,79;

d)           O referido circuito é ilustrado pelo seguinte fluxograma:

                 

e)           Neste âmbito, em 2016, a D... adquiriu telemóveis à sociedade de direito britânica P... no montante de, pelo menos, € 817.609,00. Os artigos adquiridos à sociedade P... pela D... foram por esta revendidos à Requerente por um valor inferior ao preço de compra (com margem negativa/prejuízo), como ressalta do cruzamento das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 8257, de 14.04.2016, da P... à D..., versus a fatura n.º FAC 013/1054, de 19.04.2016, da D... à Requerente (ex. Apple iPhone 6S 64Gb Gold comprado pela D... por € 614,00 e vendido por € 575,00 à Requerente);

ii)            Fatura n.º 8300, de 21.04.2016, da P... à D..., versus a fatura n.º FAC 013/1062, de 22.04.2016, da D... à Requerente (ex. Samsung J500F DS Black comprado pela D... por € 131,00 e vendido por € 120,00 à Requerente);

iii)           Fatura n.º 8311, de 21.04.2016, da P... à D..., versus a fatura n.º FAC 013/1062, de 22.04.2016, da D... à Requerente (ex. Apple iPhone 6S 64Gb Grey comprado pela D... por € 613,00 e vendido por € 555,00 à Requerente);

iv)           Fatura n.º 8387, de 05.05.2016, da P... à D..., versus a fatura n.º FAC 013/1092, de 06.05.2016, da D... à Requerente (ex. Apple iPhone 6S 16Gb Grey comprado pela D... por € 539,00 e vendido por € 484,00 à Requerente); e

v)            Fatura n.º 8479, de 07.05.2016, da P... à D..., versus a fatura n.º FAC 013/1143, de 18.05.2016, da D... à Requerente (ex. Samsung A310 Black comprado pela D... por € 191,00 e vendido por € 170,00 à Requerente);

f)            A Requerida, reportando-se ao acervo de informação recolhido noutros procedimentos inspetivos que visaram fornecedores diretos da Requerente, bem como fornecedores daqueles, salienta que:

             “A sociedade D... não entregou as DP’s relativas aos períodos 2015-12T, 2016-03T e 2016-06T, nem as correspondentes declarações Modelo 22;

             A sede apesar de localizada na loja n.º 35 do Centro Comercial […] encontrava-se encerrada […];

             Encetadas diligências obteve-se a informação que esta sociedade nunca teve qualquer contrato de arrendamento do referido espaço, (…);

             A D... não comunicou no e-fatura a emissão de quaisquer faturas em 2016, no entanto os seus clientes comunicaram faturas, (…);

             No 4.º trimestre de 2015, e nos dois primeiros trimestres de 2016 existem vários sujeitos passivos comunitários a declararem que efetuaram transmissões intracomunitários de bens para a D..., não tendo esta declarado qualquer aquisição intracomunitária. (…);

             Realça-se o facto de que as transmissões intracomunitários de bens declaradas por vários sujeitos passivos comunitários no ano de 2016 ascendem, no seu total, a cerca de 1 milhão de euros;

             Importa referir a conclusão da DSIFAE que se atendendo à sua relevância passamos a descrever:

             «(…) a D... tem comportamentos de uma empresa MISSING TRADER;

«É, pois, manifesto que a D... não está a exercer a atividade para a qual se encontra registada, nem possui estrutura empresarial adequada ao exercício dessa mesma atividade.»;

g)            Pelo exposto, o fornecedor D... foi cessado oficiosamente pela AT, em IVA, em 29 de junho de 2016, nos termos do artigo 34.º, n.º 2 do Código do IVA;

Circuito O... – D...

h)           Ainda com referência ao fornecedor D..., foi identificado outro circuito, conforme fluxograma infra:

      

i)             Com base na informação recolhida noutros procedimentos inspetivos que tiveram por objeto fornecedores diretos da Requerente, bem como fornecedores daqueles, a Requerida, apesar de afirmar desconhecer os documentos [faturas] relativos à transmissão dos telemóveis da O... para a D..., considerou não existirem dúvidas de que se trata da transmissão sucessiva dos mesmos telefones;

j)             Partindo desta premissa, conclui da comparação das faturas emitidas pela P... à O..., com as faturas emitidas pela D... à Requerente relativas a telemóveis do mesmo modelo e características, que estes foram vendidos à Requerente por um preço inferior ao da transação entre a P... e a O.... A título de exemplo:

i)             Fatura n.º 9115, de 04.08.2016, da P... à O..., versus a fatura n.º FAC 013/1409, de 04.08.2016, da D... à Requerente (ex. Apple iPhone 5S 16Gb Grey comprado pela O... por € 263,00 e vendido por € 233,00 à Requerente);

ii)            Fatura n.º 9115, de 04.08.2016, da P... à O..., versus a fatura n.º FAC 013/1410, de 04.08.2016, da D... à Requerente (ex. Samsung A310 Black comprado pela O... por € 182,00 e vendido por € 162,00 à Requerente); e

iii)           Fatura n.º 9362, de 08.09.2016, da P... à O..., versus a fatura n.º FAC 013/1463, de 09.09.2016, da D... à Requerente (ex. Samsung J500 DS Black comprado pela O... por € 136,00 e vendido por € 121,00 à Requerente);

k)            A sociedade O... foi cessada oficiosamente, para efeitos de IVA, em 13 de dezembro de 2016, nos termos do artigo 34.º, n.º 2 do Código deste imposto, por não possuir estrutura empresarial adequada à atividade declarada, nem estar a exercer a atividade ou manifestar intenção de o fazer;

Circuito comercial “I...”

l)             Da análise do circuito comercial em que interveio a I..., e tendo em conta a informação obtida noutros procedimentos inspetivos a fornecedores diretos da Requerente e a fornecedores daqueles, pode concluir-se que aquela entidade [I...] se comportou como MISSING TRADER e quebrou o preço das mercadorias adquiridas a entidades terceiras, que por sua vez as adquiriram a fornecedores intracomunitários, para, em seguida, faturar clientes em Portugal, criando uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, a Requerida entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela I..., no valor de € 291.775,94;

m)          O referido circuito é ilustrado pelo seguinte fluxograma:

               

n)           A I..., sociedade constituída em 2016, não entregou nenhuma declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, nem declaração anual / IES e apenas apresentou declarações periódicas de IVA relativas aos períodos de 2016-06T e 2016-09T;

o)           A I... foi cessada oficiosamente pela AT, em IVA, em 2 de agosto de 2016;

p)           A R...não entregou o anexo P da IES referente ao período de 2016, mas dos anexos O dos fornecedores constam compras à S… de € 1.166.424,00. A P... reportou no VIES vendas à R...de € 2.195.971,00 e esta última declarou no e-fatura vendas à I... de € 155.060,00. A R...comporta-se como um “buffer”;

q)           Os telemóveis sucessivamente transmitidos a partir da sociedade britânica P... foram revendidos à Requerente por um valor inferior àquele por que foram transacionados em estádios anteriores da cadeia de distribuição (com margem negativa/prejuízo), como ressalta do cruzamento das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 9580, de 05.10.2016, da P... à R..., versus a fatura n.º FT 16/482, de 06.10.2016, da I...  à Requerente (ex. telemóvel Samsung J5 DS Black comprado pela R...por € 135,00 e vendido pela I... por € 122,00 à Requerente);

ii)            Fatura n.º 9744, de 24.10.2016, da P... à R..., versus a fatura n.º FT 16/528, de 25.10.2016, da I...  à Requerente (ex. telemóvel Samsung J510 Black comprado pela R...por € 167,00 e vendido pela I... por € 150,00 à Requerente);

r)            Os telemóveis adquiridos pela Requerente constantes das faturas mencionadas nas alíneas  i) e ii) que antecedem (no total de 390) foram registados no seu sistema de gestão de stocks como provenientes de W…, cônjuge do sócio e gerente da sociedade aqui Requerente;

Circuito comercial “E...”

s)            Da análise do circuito comercial em que interveio a E..., e tendo em conta a informação recolhida noutros procedimentos inspetivos que visaram fornecedores diretos da Requerente, bem como fornecedores daqueles, pode concluir-se que aquele fornecedor se comportou como MISSING TRADER e quebrou o preço das mercadorias adquiridas a fornecedores da União Europeia na entrada/venda das mesmas em território nacional, criando uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente;

t)            O referido circuito é ilustrado pelo seguinte fluxograma:

   

u)           Em 2016, a Z... FRANCE faturou vendas de telemóveis à E... no montante de, pelo menos, € 203.260,00. No entanto, do sistema VIES não constam vendas declaradas pela Z... FRANCE para a E...;

v)            Os artigos adquiridos à Z... FRANCE pela E... foram por esta revendidos à Requerente por um valor inferior ao preço de compra (com margem negativa/prejuízo), como se constata do cruzamento das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 35, de 02.02.2016, da Z... FRANCE à E..., versus a fatura n.º FT 2016FT1/576, de 02.02.2016, da E... à Requerente (ex. telemóvel Apple iPhone 6S 16Gb Grey comprado pela E... por € 600,00 e vendido à Requerente por € 531,00); e

ii)            Fatura n.º 37, de 04.02.2016, da Z... FRANCE à E..., versus a fatura n.º FT 2016FT1/581, de 04.02.2016, da E... à Requerente (ex. telemóvel Apple iPhone 6S 16Gb Grey comprado pela E... por € 600,00 e vendido à Requerente por € 528,46 );

w)          A E... deduziu mais de 352 mil euros de IVA de aquisições a fornecedores nacionais. No entanto, do e-fatura declarado por estes apenas consta IVA dedutível de 5,2 mil euros;

x)            A E... entregou as declarações periódicas de IVA até ao período mensal de maio de 2016. Em junho de 2016, faturou mais de € 78.000,00 à Requerente, correspondendo a € 18.000,00 de IVA liquidado, sem que tenha pago o imposto ao Estado;

y)            A última declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC e declaração anual/IES da E... referem-se ao ano 2015;

z)            Foram encontradas faturas de telemóveis da E... à Requerente com datas posteriores à da última declaração de IVA entregue pela primeira entidade;

aa)         Em consequência, a Requerida entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela E..., no valor de € 184.302,91;

Circuito comercial “J...”

bb)         A sociedade J... foi constituída em agosto de 2016 e desde o início de atividade que não entregou nenhuma declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, nem declaração anual/IES. Apresentou apenas três declarações periódicas de IVA, referentes aos períodos de 2016-09T, 2016-12T e 2017-03T, das quais não constam quaisquer operações ativas nem IVA liquidado. Não foram de igual modo comunicadas por esta entidade faturas no sistema e-fatura;

cc)          O sistema VIES regista, em 2016, transmissões intracomunitárias de bens para a J... de € 1.143.005,00, não tendo esta declarado as correspondentes aquisições intracomunitárias;

dd)         Porém, em 2016, a J... realizou vendas à Requerente e a outro cliente, concluindo-se que aquela entidade tem um comportamento de MISSING TRADER;

ee)         O referido circuito é ilustrado pelo seguinte fluxograma:

        

ff)           Em 2016, a Requerente adquiriu à J... telemóveis por preços inferiores aos que contratou com outros fornecedores, pelo que, segundo a Requerida, tinha conhecimento de que os preços praticados pela J... estavam bastante abaixo dos preços de mercado, como se constata da comparação das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 1 1600/000013, de 25.10.2016, da J... à Requerente, versus a fatura n.º FT 2355 do fornecedor EE.. S.P.A. à Requerente, ambas referentes ao modelo Samsung Galaxy S7 G-935F 32 Gb, a primeira por € 456,10 e a segunda por € 580,00;

ii)            Fatura n.º 1 1600/000013, de 25.10.2016, da J... à Requerente, versus a fatura n.º 1119306 do fornecedor FF…, LTD. à Requerente, ambas referentes ao modelo Samsung Galaxy S6 G-920F 32 Gb, a primeira por € 300,81 e a segunda por € 380,00; e

iii)           Fatura n.º 1 1600/000041, de 23.12.2016, da J... à Requerente, versus a fatura n.º 7853 do fornecedor GG… LDA à Requerente, ambas referentes ao Apple iPhone 7 128Gb Black, a primeira por € 609,75 e a segunda por € 693,85;

gg)         Nos termos do n.º 3 do artigo 19.º do Código do IVA, não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura. E, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, não pode igualmente deduzir-se o imposto que resulte de operações em que o transmitente dos bens ou prestador dos serviços não entregue nos cofres do Estado o imposto liquidado, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispunha de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada;

hh)         Para a Requerida, a Requerente adquiriu bens a preços inferiores aos de mercado, pelo que o seu gerente tinha consciência de que estava a adquirir mercadorias que não poderiam estar a passar pelos circuitos normais e legais de comercialização, pelo que devia ter conhecimento de que o transmitente dos bens não dispunha de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada. Entende, deste modo, ser de corrigir o IVA deduzido pela Requerente relativo às faturas emitidas pela J..., no valor de 165.409,46;

Circuito comercial “E...”

ii)            A sociedade E... foi constituída em outubro de 2015 e desde o início de atividade que não entregou nenhuma declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, nem declaração anual/IES. Apresentou apenas uma declaração periódica de IVA, referente ao período de 2016-03T, mas sem meio de pagamento do IVA liquidado a favor do Estado;

jj)           O sistema VIES regista, em 2016, aquisições intracomunitárias de bens pela E... no valor de 753.035,00, no entanto, esta entidade apenas declarou € 128.685,00;

kk)         Ainda com referência ao ano 2016, a E... emitiu faturas no valor de € 746.070,82, sendo um dos seus principais clientes a Requerente, sendo identificada como tendo o comportamento de MISSING TRADER;

ll)            Este circuito é ilustrado pelo seguinte fluxograma:

           

mm)      Em 2016, a E... adquiriu à HH... telemóveis na importância de, pelo menos, € 242.511,00 e quebrou o preço, transmitindo-os à Requerente por um preço inferior ao de compra, como se constata da comparação das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 16100269, de 07.06.2016, da HH... à E..., versus a fatura n.º 160070, de 09.06.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Samsung Galaxy Grand Neo Plus DS (Black e White), a primeira pelo preço unitário de € 108,00 e a segunda por € 93,50; e

ii)            Fatura n.º 16100305, de 20.06.2016, da HH... à E..., versus a fatura n.º 160075, de 21.06.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Samsung Galaxy J500 DS (Black, White e Gold), a primeira pelo preço unitário de € 129,00 e a segunda por € 118,00;

nn)         Em 2016, a E... adquiriu à II... telemóveis na importância de, pelo menos, € 145.992,00 e quebrou o preço, transmitindo-os à Requerente por um preço inferior ao de compra, como se constata da comparação das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 7195/2016, de 18.02.2016, da II... à E..., versus as faturas n.º 160006 e n.º 160007, de 22.02.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite (Black e White), a primeira pelo preço unitário de € 144,00 e as segundas por € 130,00;

ii)            Fatura n.º 7203/2016, de 25.02.2016, da II... à E..., versus a fatura n.º 160033, de 18.03.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Apple iPhone 5S (Silver e Grey), a primeira pelo preço unitário de € 319,00 e a segunda por € 290,00; e

iii)           Fatura n.º 7230/2016, de 31.03.2016, da II... à E..., versus a fatura n.º 160037, de 01.04.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite (Black e White), a primeira pelo preço unitário de € 144,50 e a segunda por € 130,00;

oo)         Em 2016, a E... adquiriu também à KK... telemóveis no valor de, pelo menos, € 25.408,00 e quebrou o preço, transmitindo-os à Requerente por um preço inferior ao de compra, como se constata da comparação das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 2566/2016, de 17.06.2016, da KK... à E..., versus a fatura n.º 160079, de 22.06.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P9 Lite Black, a primeira pelo preço unitário de € 207,00 e a segunda por € 180,00; e

ii)            Fatura n.º 2618/2016, de 22.06.2016, da KK... à E..., versus as faturas n.º 160086, de 28.06.2016, em n.º 160100, de 18.07.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P9 Lite (Black, White e Gold), a primeira pelo preço unitário de € 206,00 e as segundas por € 198,50;

pp)         Em 2016, a E... adquiriu à JJ... telemóveis no montante de, pelo menos, € 38.600,00 e quebrou o preço, transmitindo-os à Requerente por um preço inferior ao de compra, como se constata da comparação das seguintes faturas:

i)             Fatura n.º 023/02/16, de 19.02.2016, da JJ... à E..., versus as faturas n.ºs 160006 e 160007, de 22.02.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite DS Black, a primeira pelo preço unitário de € 143,00 e as segundas por € 130,00;

ii)            Fatura n.º 035/02/16, de 25.02.2016, da JJ... à E..., versus as faturas n.ºs 160014, de 02.03.2016, e 160019, de 07.03.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite DS White, a primeira pelo preço unitário de € 143,00 e as segundas por € 130,00;

iii)           Faturas n.º 019/03/16, de 09.03.2016, e n.º 023/03/16, de 10.03.2016, da JJ... à E..., versus as faturas n.ºs 160024 e 160026, de 11.03.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite DS (White e Black), a primeira pelo preço unitário de € 143,00 e as segundas por € 130,00;

iv)           Fatura n.º 029/03/16, de 15.03.2016, da JJ... à E..., versus a fatura n.º 160030, de 17.03.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Apple iPhone 6 16Gb Silver, a primeira pelo preço unitário de € 481,00 e a segunda por € 434,00;

v)            Fatura n.º 027/04/16, de 26.04.2016, da JJ... à E..., versus a fatura n.º 160042, de 27.04.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite DS White, a primeira pelo preço unitário de € 142,20 e a segunda por € 130,00;

vi)           Fatura n.º 023/04/16, de 20.04.2016, da JJ... à E..., versus a fatura n.º 160042, de 27.04.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite DS Black, a primeira pelo preço unitário de € 141,00 e a segunda por € 130,00; e

vii)          Fatura n.º 006/06/16, de 02.06.2016, da JJ... à E..., versus a fatura n.º 160069, de 06.06.2016, da E... à Requerente, ambas referentes ao modelo Huawei P8 Lite DS, a primeira pelo preço unitário de € 149,00 (Gold) e € 210,00 (White) e a segunda por € 135,00 (Gold) e € 200,00 (White);

qq)         A E..., através da quebra de preço acima evidenciada, cria uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, a Requerida conclui dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela E..., no valor de € 125.236,88;

Circuito comercial “K...” e rotação de telemóveis

rr)           A sociedade K... foi constituída em setembro de 2015 e entregou a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC e a declaração anual/IES referentes ao ano 2016. Apresentou as declarações periódicas de IVA, referentes aos quatro trimestres de 2016, mas sem meio de pagamento do IVA apurado a favor do Estado. A última declaração, do período 2016-12T foi entregue a zeros, sem quaisquer operações ativas ou passivas;

ss)          A K... foi cessada oficiosamente, para efeitos de IVA, em 30 de junho de 2018, nos termos do artigo 34.º, n.º 1, alínea b) do Código deste imposto;

tt)           O circuito em que intervém a K... é ilustrado pelo seguinte fluxograma:

 

uu)         Constatam-se fluxos dos mesmos telemóveis, com os mesmos IMEI, que circularam entre a E..., que os faturou à Requerente, que os faturou à BB..., aparecem na K..., que os fatura de novo à Requerente, que os volta a faturar à BB..., voltam a aparecer na K..., que os volta a faturar à Requerente, que os fatura à Q..., S.R.O.. Em 27 dias a Requerente adquiriu e alienou por três vezes os mesmos telemóveis;

vv)         De acordo com as bases de dados do VIES, a BB... declarou vendas à K... no último trimestre de 2015 e no primeiro semestre de 2016 no montante de, pelo menos, € 110.000,00;

ww)       De acordo com as bases de dados do VIES, a Q..., S.R.O. declarou vendas à Requerente, em 2016, no montante de € 280.000,00. Declarou ainda vendas à D..., de € 518.000,00, e à K..., no valor de quase € 20.000,00. As autoridades da República Checa consideraram a Q..., S.R.O. uma entidade não confiável;

xx)         Nas análises efetuadas aos registos de stocks da Requerente, foram encontrados movimentos de entradas e saídas, por diversas vezes, dos mesmos telemóveis, sempre com quebra no preço das segundas e terceiras aquisições por parte da Requerente, como se ilustra com o seguinte exemplo:

i)             Pela fatura n.º FT 2016FT1/581, de 04.02.2016, a E..., faturou à Requerente 40 telemóveis Apple iPhone 6 16Gb, por € 445,53 cada;

ii)            Pela fatura n.º FA 2016/276, de 08.02.2016, a Requerente faturou à BB..., 150 telemóveis iPhone 6 16Gb, pelo preço unitário de € 470,00. Entre estes telemóveis incluíam-se 10 dos que haviam sido comprados à E... (com o mesmo IMEI), referidos na alínea anterior;

iii)           A BB... declarou ter efetuado vendas à K... em fevereiro de 2016, no montante de € 66.880,00;

iv)           Pela fatura-recibo n.º 2016FT/33, de 11.02.2016, a K... faturou à Requerente os mesmos 10 telemóveis, com os mesmos IMEI, por € 414,63;

v)            Em 22.02.2016, um daqueles telemóveis iPhone 6 16Gb foi vendido a um cliente final;

vi)           Pela fatura n.º FA 2016/374, de 19.02.2016, a Requerente faturou à BB..., 130 telemóveis iPhone 6 16Gb, entre os quais os restantes 9 daqueles 10, com os mesmos IMEI, por € 470,00;

vii)          Pelas fatura-recibo n.º 2016FT/51 e n.º 2016FT/52, de 24.02.2016, a K... faturou à Requerente 35 telemóveis Apple iPhone 6 16Gb, entre os quais os mesmos 9 telemóveis, com os mesmos IMEI, por € 414,63;

viii)         Em 27.02.2016, um daqueles telemóveis iPhone 6 16Gb foi vendido a um cliente final;

ix)           Pela fatura n.º FA 2016/447, de 01.03.2016, a Requerente faturou à Q..., S.R.O., 270 telemóveis iPhone 6 16Gb, entre os quais estavam os restantes 8 telemóveis, com os mesmos IMEI, por € 472,00;

yy)         Existem três exemplos adicionais, demonstrando-se que a Requerente: - num período de 23 dias, adquiriu e alienou por três vezes os mesmos telemóveis, com consecutiva quebra de preço na segunda e terceira aquisições; - num período de 16 dias, adquiriu e alienou por duas vezes os mesmos telemóveis, com quebra de preço na segunda aquisição; e, - num período de 12 dias, adquiriu e alienou por duas vezes os mesmos telemóveis, com quebra de preço na segunda aquisição;

zz)          Verifica-se uma quebra de preço das mercadorias, entre a venda pela Requerente à BB... e a posterior revenda das mesmas mercadorias pela K... à Requerente, criando-se uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que a K... não entrega ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, a Requerida conclui que a K... se comporta como MISSING TRADER, não entregando ao Estado o IVA liquidado e entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela K..., no valor de € 31.793,44;

aaa)       Em conclusão, refere o RIT que:

“Existe um conjunto de operadores que atuaram em Portugal com o único fim de lesar o Estado em sede de IVA, beneficiando as entidades envolvidas com o imposto que não foi entregue nos cofres do Estado.

Este conjunto de operadores não pode alegar que não existe nada de anormal num negócio em que as mercadorias são comercializadas, no mercado nacional, totalmente à margem do circuito oficial de distribuição das marcas e abaixo do preço porque deram entrada em Portugal.

A A... não podia desconhecer esta fraude organizada, pois:

É membro de diversas plataformas profissionais de comércio eletrónico, nomeadamente da XXX..., (como nos informou o seu sócio-gerente MM...), pelo que tem conhecimento, a qualquer momento, da situação do mercado e dos preços praticados. 

De referir que o gerente do SP A..., MM..., já está ligado à área da comercialização de telemóveis pelo menos desde 2009, ano em que se tornou sócio e gerente da LL…, LDA., atual A..., ..., LDA., pelo que, pelo menos, desde 2009 que é conhecedor do mercado dos telemóveis em Portugal.

Os bens transacionados (telemóveis topo de gama) não são produzidos pelas empresas que os colocaram no mercado nacional, nem mesmo produzidos em Portugal, pelo que não podia deixar de considerar anormal que empresas com estrutura e dimensão inferior à sua, que estão há menos tempo no negócio dos telemóveis e que operam fora do circuito oficial de distribuição das marcas em causa, fossem capazes de fornecer-lhe mercadoria a preços que ela não conseguia obter no mercado regular.

Concretamente, em algumas das situações já descritas neste relatório, o SP A... sabia que os preços praticados pelos fornecedores estavam relacionados com algum tipo de fraude, já que estava a comprar os mesmos telemóveis por preços inferiores àqueles por que a mesma A... os tinha anteriormente vendido.

Pelo que tirou proveito de negócios que, conforme referimos, não estavam a ser efetuados de acordo com os usos normais do mercado e nem em conformidade com a lei.

Assim:

Estamos perante esquemas organizados de circuitos comerciais em fraude, com intenção de lesar o Estado em sede de IVA.

Os operadores que neles participam conhecem a forma de atuar destas redes, cumprindo com a sua função no circuito, conforme a posição em que participam.             

Existe um objetivo comum em todos os operadores: obter um benefício «à conta do IVA» lesando o Estado.

Todos os operadores participam num negócio, direta ou indiretamente, que não funciona nas condições normais de mercado, dado existir a quebra de preço à custa do IVA, o que inverte totalmente a substância legal subjacente ao mecanismo do IVA que, como o próprio nome indica, deveria incidir sobre o valor acrescentado e não servir de margem num circuito comercial.

Existe um esforço concertado por parte dos operadores em cumprir com todas as formalidades inerentes a um negócio, ou seja, documento suporte (fatura), documento de transporte, meio de pagamento, criando assim uma aparente legalidade formal, conseguida apenas com o esforço e perfeito desempenho de cada um dos intervenientes que partilham o benefício em prejuízo do Estado.

Pelo que:

Ainda que a A... apresente comprovativos de ter sido pago o IVA aos seus fornecedores diretos e se encontre documentado o respetivo montante, a A... não tem direito à dedução do mesmo, já que esse direito surge ou é obtido como consequência do seu conhecimento e envolvimento nestes circuitos fraudulentos.

Esta dedução de imposto tem por base operações que foram simuladas e manipuladas, tendo por objetivo lesar o Estado, participando a A... neste mecanismo fraudulento, tendo sido criados artificialmente os pressupostos exigidos para a dedução do IVA.

Assim, nos termos do previsto no n.º 3 e no n.º 4 do artigo 19.º do Código do IVA, a A... não tem direito à dedução do Imposto suportado nas faturas emitidas pelos seus fornecedores diretos referidos neste relatório.

[…]

IX.3. SOBRE A INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS

Na conclusão da sua exposição no exercício do direito de audição o SP vem requerer:

«B) para prova dos factos supra alegados, e a fim de se proceder a uma justa e correta apreciação dos factos ocorridos, requer que se procedam à inquirição das testemunhas seguidamente identificadas:

«1. G...;

«2. H..., ambos com domicílio profissional na sede da interessada e que a interessada se compromete a apresentar.»

Nada mais refere a propósito da identificação das referidas testemunhas, qual a relação com o próprio contribuinte, nem sobre que factos era pretendida a sua inquirição.

Devendo o exercício do direito de audição consistir na participação útil do contribuinte no procedimento, aquele pode requerer diligências complementares, incluindo a audição de testemunhas.

Por outro lado, a Administração Tributária a Aduaneira deve realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material.           

No entanto, decorre do princípio do inquisitório que deverá inferir-se que é, naturalmente, ao órgão administrativo decisor que cabe o juízo sobre a utilidade ou conveniência das diligências complementares requeridas pelo interessado, ou seja, sobre a relevância para o procedimento.

Cabe à Inspeção Tributária e Aduaneira ajuizar sobre a utilidade ou conveniência das diligências complementares requeridas.

Não estando vinculada à iniciativa do contribuinte, a Administração Tributária e Aduaneira pode rejeitar as diligências probatórias por ele solicitadas no caso de, fundamentadamente, entender elas serem desprovidas de interesse para a resolução do procedimento.

As conclusões do presente relatório assentam em documentos que representam factos objetivos. Assim, verifica-se já existir consistência da comprovação adquirida no procedimento.

Do procedimento já constam todos os elementos de facto e de direito necessários à sua conclusão e à tomada da decisão final.

O testemunho daquelas pessoas — empregados do contribuinte — por ser subjetivo, não iria de nenhuma forma alterar os fundamentos objetivos baseados em documentos e factos, pelo que se trataria de uma diligência inútil para a resolução do procedimento de inspeção.”

O.           Subsequentemente, foram emitidas as liquidações de IVA abaixo identificadas, perfazendo o valor total de € 1.153.096,82, com data de 21 de janeiro de 2020, as quais foram disponibilizadas na caixa postal eletrónica da Requerente, em 24 de janeiro de 2020:

a)            Liquidação n.º 2020 … (período de 01/2016), no valor de € 25.403,68;

b)           Liquidação n.º 2020 … (período de 02/2016), no valor de € 62.698,07;

c)            Liquidação n.º 2020 … (período de 03/2016), no valor de € 71.355,70;

d)           Liquidação n.º 2020 … (período de 04/2016), no valor de € 90.251,52;

e)           Liquidação n.º 2020 … (período de 05/2016), no valor de € 100.442,57;

f)            Liquidação n.º 2020 … (período de 06/2016), no valor de € 119.743,52;

g)            Liquidação n.º 2020 … (período de 07/2016), no valor de € 90.153,06;

h)           Liquidação n.º 2020 … (período de 08/2016), no valor de € 61.595,47;

i)             Liquidação n.º 2020 … (período de 09/2016), no valor de € 90.825,29;

j)             Liquidação n.º 2020 … (período de 10/2016), no valor de € 115.640,99;

k)            Liquidação n.º 2020 … (período de 11/2016), no valor de € 114.898,35;

l)             Liquidação n.º 2020 … (período de 12/2016), no valor de € 210.088,60

– cf. Documentos 1 a 12 juntos pela Requerente.

P.            Foram emitidas as liquidações de juros compensatórios abaixo identificadas, perfazendo o valor total de € 151.191,84, com data de 21 de janeiro de 2020, as quais também foram disponibilizadas na caixa postal eletrónica da Requerente, em 24 de janeiro de 2020:

a)            Liquidação n.º 2020 … (período de 01/2016), no valor de € 3.900,33;

b)           Liquidação n.º 2020 … (período de 02/2016), no valor de € 9.406,42;

c)            Liquidação n.º 2020 … (período de 03/2016), no valor de € 10.478,53;

d)           Liquidação n.º 2020 … (período de 04/2016), no valor de € 12.917,09;

e)           Liquidação n.º 2020 … (período de 05/2016), no valor de € 14.067,46;

f)            Liquidação n.º 2020 … (período de 06/2016), no valor de € 16.376,97;

g)            Liquidação n.º 2020 … (período de 07/2016), no valor de € 12.003,94;

h)           Liquidação n.º 2020 … (período de 08/2016), no valor de € 8.012,47;

i)             Liquidação n.º 2020 … (período de 09/2016), no valor de € 11.506,19;

j)             Liquidação n.º 2020 … (período de 10/2016), no valor de € 14.244,43;

k)            Liquidação n.º 2020 … (período de 11/2016), no valor de € 13.787,80;

l)             Liquidação n.º 2020 … (período de 12/2016), no valor de € 24.490,21

– cf. Documentos 13 a 24 juntos pela Requerente.

Q.           Inconformada com as liquidações de IVA e de juros compensatórios acima identificadas, a Requerente apresentou no CAAD, em 29 de julho de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do ppa no SGP do CAAD.

2.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se, essencialmente, na análise crítica da prova documental junta aos autos e, sempre que aplicável, conforme referenciado em relação aos respetivos factos assentes, nos depoimentos das testemunhas inquiridas, G... (primeira testemunha), diretor comercial da Requerente, H... (segunda testemunha), vendedor da Requerente e irmão do sócio-gerente desta, NN… (terceira testemunha), lojista de telecomunicações (venda ao público) cliente da Requerente, e OO…, lojista de telecomunicações, também cliente da Requerente.

Os depoimentos das testemunhas foram objetivos e, no caso dos colaboradores da Requerente, revelaram conhecimento direto dos factos relatados. No entanto, em relação às aquisições realizadas aos fornecedores faltosos, que não entregaram o IVA liquidado nas transmissões de telemóveis ao Estado, estes colaboradores afirmaram não terem qualquer contacto com os mesmos, uma vez que todas as compras eram realizadas pelo sócio-gerente, sendo este que tinha conhecimento direto e pessoal dos factos relativos aos fornecedores. De igual modo, os clientes da Requerente não manifestaram conhecimento direto das operações entre a Requerente e os seus fornecedores. 

 

Por fim, no tocante à aquisição e venda sucessivas (rotação) de telemóveis entre a Requerente e os seus fornecedores, as primeiras três testemunhas afirmaram tratar-se de uma situação anómala. Sobre este ponto a última testemunha ensaiou algumas explicações de natureza especulativa não convincentes.

 

3.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não se demonstrou que:

             As pessoas cuja inquirição foi requerida no procedimento inspetivo negociaram e compraram vários destes equipamentos aos seus fornecedores e poderiam contribuir para a descoberta de factos relativos a estes últimos (artigo 20 do ppa). Ao contrário, ficou demonstrado que as duas testemunhas indicadas para inquirição na fase do direito de audição (aqui primeira e segunda testemunhas) não tinham qualquer intervenção no processo de aquisição de telemóveis, que era exclusivamente assegurado pelo sócio-gerente da Requerente, e não tiveram qualquer contacto com os ditos fornecedores;

             A Requerente tivesse conhecimento de que os fornecedores faltosos não dispunham de adequada estrutura empresarial, suscetível de exercer a atividade por si declarada, ou de, sobre essa matéria, lhe ser exigível um especial conhecimento.

 

Não existem outros factos alegados com relevo para a decisão que devam considerar-se não provados.

 

4.            DE DIREITO

 

4.1. DOS VÍCIOS PROCEDIMENTAIS

 

                Segundo a Requerente, o procedimento inspetivo que conduziu às liquidações de IVA impugnadas é inválido por não ter sido admitida, pela Requerida, no direito de audição, a inquirição de testemunhas imprescindíveis para a descoberta da verdade material.

 

A decisão sobre a audição de testemunhas na fase procedimental cabe, naturalmente, ao órgão administrativo com competência para o efeito, que terá de ajuizar sobre a utilidade ou conveniência das diligências complementares requeridas pelo interessado, poder que comporta alguma margem de discricionariedade, sem prejuízo do seu balizamento pelos princípios gerais que regem a atividade administrativa (v. artigos 55.º da LGT, 3.º a 12.º do CPA e 266.º da CRP).

 

Assim, tal decisão é apenas suscetível de controlo jurisprudencial negativo, não podendo o Tribunal substituir-se à Requerida para julgar da racionalidade das valorações efetuadas a não ser através de um juízo negativo de proporcionalidade.

 

Na situação sub iudice, a Requerida fundamentou de forma adequada a posição que adotou e as razões invocadas para decidir como decidiu. A irrelevância da audição das duas testemunhas arroladas na etapa procedimental resultou, aliás, inteiramente confirmada nos presentes autos, afirmando aquelas não terem quaisquer contactos com os fornecedores, os quais eram conduzidos apenas pelo sócio-gerente, pessoa com conhecimento direto dos factos, cuja audição, porém, não foi requerida.

 

Assim, conforme a Requerida fundamentou e concluiu, a audição das testemunhas em causa não era pertinente, pelo que não se verificou a alegada violação dos princípios da verdade material, do inquisitório, da audiência dos interessados e do contraditório, tendo sido concedida à Requerente a possibilidade de participar na fase decisória, direito que esta exerceu.

 

4.2. DA QUESTÃO DECIDENDA

 

                A questão de fundo a decidir nos presentes autos passa, em suma, por aferir se nos termos do previsto no n.º 3 e no n.º 4 do artigo 19.º do Código do IVA, a A... não tem direito à dedução do imposto suportado nas faturas emitidas pelos seus fornecedores diretos referidos neste relatório.

 

Ora, sendo o IVA um imposto de matriz comunitária, impõe-se tecer algumas considerações prévias relativamente à natureza e amplitude do direito à dedução, considerando nesta análise as regras que regem este imposto de acordo com o Direito da União Europeia, com a respetiva transposição a nível interno e com a interpretação administrativa e judicial que sobre as mesmas tem vindo a ser levada a cabo, especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

 

Nos relatórios das inspeções tributárias referidos na matéria de facto, a Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu, em suma, no âmbito do mercado de telecomunicações:

 

a)            que os telemóveis eram adquiridos às empresas identificadas de missing traders, com “quebra de preço” na entrada no mercado nacional em 7 circuitos que foram detalhados:

i)             Circuito comercial “D...”;

ii)            Circuito “O... – D...”;

iii)           Circuito comercial “I...”;

iv)           Circuito comercial “E...”;

v)            Circuito comercial “J...”;

vi)           Circuito comercial “E...”;

vii)          Circuito comercial “K...”. Neste último circuito, foram identificados adicionalmente diversos casos de rotação de telemóveis.

b)           que “estamos perante esquemas organizados de circuitos comerciais em fraude, com intenção de lesar o Estado em sede de IVA.

Os operadores que neles participam conhecem a forma de atuar destas redes, cumprindo com a sua função no circuito, conforme a posição em que participam.

Existe um objetivo comum em todos os operadores: obter um benefício «à conta do IVA» lesando o Estado.

Todos os operadores participam num negócio, direta ou indiretamente, que não funciona nas condições normais de mercado, dado existir a quebra de preço à custa do IVA, o que inverte totalmente a substância legal subjacente ao mecanismo do IVA que, como o próprio nome indica, deveria incidir sobre o valor acrescentado e não servir de margem num circuito comercial.

Existe um esforço concertado por parte dos operadores em cumprir com todas as formalidades inerentes a um negócio, ou seja, documento suporte (fatura), documento de transporte, meio de pagamento, criando assim uma aparente legalidade formal, conseguida apenas com o esforço e perfeito desempenho de cada um dos intervenientes que partilham o benefício em prejuízo do Estado.”

 

Sendo assim, no entender da Requerida, esta dedução de imposto tem por base operações que foram simuladas e manipuladas, tendo por objetivo lesar o Estado, participando a Requerente neste mecanismo fraudulento, criando artificialmente os pressupostos exigidos para a dedução do IVA e a obtenção dos reembolsos.

 

Na sequência desse entendimento, a Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu que, por força do preceituado no n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, a Requerente não tem direito à dedução do imposto suportado nas seguintes faturas emitidas, por considerar que as mesmas titulam operações simuladas e manipuladas, tendo em vista lesar o Estado, a saber:

 

a)            Da análise do circuito comercial em que interveio a D..., pode concluir-se que aquele fornecedor se comportou como MISSING TRADER e quebrou o preço das mercadorias adquiridas a fornecedores da União Europeia na entrada/venda das mesmas em território nacional, criando uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela D..., no montante global de € 371.490,79;

b)           Da deteção de um outro MISSING TRADER na transmissão dos telemóveis da O... para a D..., sem que a Requerida apresente faturas que documentem os negócios;

c)            Da análise do circuito comercial em que interveio a I..., e tendo em conta a informação obtida noutros procedimentos inspetivos a fornecedores diretos da Requerente e a fornecedores daqueles, pode concluir-se que aquela entidade [I...] se comportou como MISSING TRADER e quebrou o preço das mercadorias adquiridas a entidades terceiras, que por sua vez as adquiriram a fornecedores intracomunitários, para, em seguida, faturar clientes em Portugal, criando uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, a Requerida entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela I..., no valor de € 291.775,94;

d)           Da análise da correção do IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela E..., no valor de € 184.302,91;

e)           Da aquisição pela Requerente de bens a preços inferiores aos de mercado, pelo que o seu gerente tinha consciência de que estava a adquirir mercadorias que não poderiam estar a passar pelos circuitos normais e legais de comercialização, pelo que devia ter conhecimento de que o transmitente dos bens não dispunha de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada. Entende, deste modo, ser de corrigir o IVA deduzido pela Requerente relativo às faturas emitidas pela J..., no valor de 165.409,46;

f)            Da análise na E..., através da quebra de preço que cria uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que não entregou ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, a Requerida conclui dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela E..., no valor de € 125.236,88;

g)            Pela verificação da quebra de preço das mercadorias, entre a venda pela Requerente à BB... e a posterior revenda das mesmas mercadorias pela K... à Requerente, criando-se uma margem de comercialização, a distribuir pela rede/circuito, à custa do IVA que a K... não entrega ao Estado, beneficiando os operadores a jusante, neste caso, a Requerente. Em consequência, a Requerida conclui que a K... se comporta como MISSING TRADER, não entregando ao Estado o IVA liquidado e entende dever ser corrigido o IVA deduzido pela Requerente referente às faturas emitidas pela K..., no valor de € 31.793,44.

 

A prova produzida e os elementos consultados não confirmam, porém, as conclusões a que chegou a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Desde logo, o fundamento do n.º 3 artigo 19.º do Código do IVA é inaplicável à factualidade descrita. Com efeito, esta norma impede a dedução do imposto em operações simuladas ou em que seja simulado o preço constante da fatura. Contudo, na situação em exame, ficou demonstrado e é consensual, que os telemóveis foram efetivamente adquiridos pela Requerente àqueles fornecedores pelo preço declarado. Inexiste, portanto, qualquer operação simulada ou simulação de preço.

 

A questão que se suscita é distinta e prende-se com o conhecimento que a Requerente tinha, ou devia ter, da fraude ao IVA que os seus fornecedores perpetraram, ou dito de outro modo, da sua conivência com o esquema fraudulento ou, pelo menos, do conhecimento de factos que tornassem suspeitos os ditos negócios. A confirmar-se esse pressuposto, seria aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 19.º acima citado, segundo o qual: “quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada” não pode deduzir o imposto que lhe foi faturado.

 

Na verdade e de acordo com os depoimentos das testemunhas, por um lado, provou-se inequivocamente que os preços dos telemóveis transacionados por grosso sofrem frequentes oscilações de preços , por várias causas, como variações cambiais, desatualização de equipamentos, a quantidade que está em causa em cada transação, a circunstância de os telemóveis serem bloqueados ou livres, a sua cor, o número de acessórios que trazem, terem ou não logotipos dos operadores móveis, existirem ou não campanhas promocionais, ser ou não fornecido suporte financeiro pelos fabricantes para os distribuidores escoarem stocks.

 

Por isso, não foi demonstrado pela AT existir  no comércio por grosso de telemóveis um preço a que entram no mercado nacional, uniforme para todas as transações verificadas em determinado período, que possa servir de padrão para concluir que os preços praticados por aquelas sete empresas, eram significativamente mais reduzidos do que os praticados por outras empresas de comércio por grosso.

 

Na verdade, apontando manifestamente em sentido inverso à conclusão retirada pela Autoridade Tributária e Aduaneira de haver preços especialmente reduzidos praticados por aquelas sete empresas, constata-se que a Requerente, nos mesmos períodos:

 

a)            Não só adquiriu os equipamentos em causa, pagou às entidades emitentes das faturas, sendo que tais equipamentos foram transportados para as instalações da Requerente (facto reconhecido no RIT pela própria Autoridade Tributária e Aduaneira) – o que, como acima referido, afasta de todo a existência de operações simuladas;

 

b)           Como também adquiriu telemóveis dos mesmos modelos e a preços idênticos a empresas cuja idoneidade não é questionada pela Autoridade Tributária e Aduaneira ou, pelo menos, a quem esta não imputa conivência em negócios simulados e participação na «fraude organizada».

 

A própria Requerente demonstra que a dita quebra de preços não é algo que seja determinado pelas partes envolvidas no negócio, mas pelas condições de mercado que, algo que foi inclusive mencionado e documentado na audição prévia:

 

“Quanto à Fatura n.º FAC 013/1054 de 2016-04-19 referente à aquisição, pela A... à D..., de 5 telemóveis Apple iPhone 6S 64GB Gold e 5 telemóveis Apple iPhone 6S 64GB Gold pelo preço unitário de € 575,00, valor esse a que acresce o IVA, consultados os preços de mercado, verifica-se que, os que preços desse tipo de equipamentos, desde a data da sua saída para o mercado (Setembro de 2015), variaram muito no mercado europeu, pelo que, era habitual que empresas que trabalhavam com importação conseguissem praticar preços substancialmente mais baixos do que em Portugal, isto porque, como é do conhecimento geral, Portugal é um dos países a nível europeu onde os equipamentos Apple são comercializados por mais altos, tendo mesmo existido, no passado, diferenças nos valores de venda ao público que atingiram os 29 %.

Na verdade, tendo por referência apenas o mercado europeu à data, era possível adquirir este tipo de produto (pelo consumidor final e não no âmbito do comércio a retalho) no Reino Unido pelo valor de € 505,16, na Alemanha pelo valor de € 510,53 e na França pelo valor de € 510,79, valores estes acrescidos de IVA às taxas legais.”

Assim, não se pode considerar demonstrado que as transações efetuadas pela Requerente com as empresas identificadas nos sete circuitos sejam simuladas, quer na sua totalidade quer quanto ao preço, nem que a Requerente tenha envolvimento na fraude organizada em que a Autoridade Tributária e Aduaneira afirma estar envolvida, nem que nas transações com estas empresas a Requerente obtenha uma margem de lucro anormal «à conta do IVA».

 

Para além disso e havendo grandes variações de preços no comércio por grosso de telemóveis, não se encontram fundamentos objetivos para afirmar que a Requerente deveria aperceber-se da existência de fraude ao efetuar aquisições àquelas primeiras empresas.

 

Acresce que a rotação constatada no circuito da K..., em que a Requerente recomprou alguns telemóveis que tinha vendido, voltando a revendê-los, não sendo usual, não indicia ou demonstra qualquer vantagem na esfera da Requerente e refere-se a um número insignificante de aparelhos.

 

Neste âmbito, conclui-se em linha com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (“TCAN”), de 18 de maio de 2017, no processo 00377/04.9BEPRT, que não foram carreados pela AT elementos “que permitam concluir que houve um «esforço concertado» dos diversos operadores envolvidos nas transações e qual o benefício que no caso concreto a sociedade Recorrente obteve com o referido negócio e que doutro modo não obteria, pois que não se deteta qualquer elemento que estabeleça a necessária conexão entre a cadeia mencionada e a ora Recorrente”.

 

No mínimo, face à prova produzida, que aponta em sentido contrário ao afirmado pela Autoridade Tributária e Aduaneira no relatório de inspeção, terá de se ficar numa situação de dúvida sobre a alegada natureza simulada das transações, dúvida essa que, por força do disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, tem de ser valorada a favor da Requerente.

 

No sentido preconizado se pronuncia, de igual modo, a jurisprudência consolidada do TJUE que se opõe a que seja “seja recusado a um sujeito passivo o direito de deduzir o imposto sobre o valor acrescentado relativo a uma entrega de bens pelo facto de, tendo em conta as fraudes ou as irregularidades cometidas a montante ou a jusante desta entrega, se considerar que esta entrega não foi efetivamente efetuada, sem que esteja demonstrado, à luz de elementos objetivos, que esse sujeito passivo sabia ou deveria saber que a operação invocada para fundamentar o direito a dedução fazia parte de uma fraude ao imposto sobre o valor acrescentado cometida a montante ou a jusante na cadeia de fornecimento, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.” (sublinhado nosso) – acórdão Bonik, C-285/11, de 6 de dezembro de 2012. No mesmo sentido, e a título ilustrativo, v. ainda os acórdãos Optigen, C-354/03, de 12 de janeiro de 2006, e Axel Kittel, C-439/04, de 6 de julho de 2006.

 

Nesta matéria, o Direito Europeu, encontra-se estabilizado e clarificado pela jurisprudência do TJUE acima referenciada, pelo que não se suscitam dúvidas interpretativas passíveis de originar um reenvio prejudicial nos termos previstos no acórdão Cilfit .

 

Pelo exposto, conclui-se que as liquidações impugnadas , que assentam nas correções referidas nos relatórios das inspeções tributárias, enfermam de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a sua anulação (artigo 163.º do CPA, subsidiariamente aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT).

 

4.3.  QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

Devendo os atos impugnados ser anulados com fundamento em vício de erro sobre os pressupostos de facto, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, a apreciação das restantes questões colocadas pela Requerente, relativamente à legalidade daqueles atos, incluindo os juros compensatórios pela alegada preterição do direito de audição.

 

V.           DECISÃO

 

À face do exposto, acordam os árbitros deste tribunal arbitral em:

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Anular as seguintes liquidações:

i.             Liquidação n.º 2020 … (período de 01/2016), no valor de € 25.403,68;

ii.            Liquidação n.º 2020 … (período de 02/2016), no valor de € 62.698,07;

iii.           Liquidação n.º 2020 … (período de 03/2016), no valor de € 71.355,70;

iv.           Liquidação n.º 2020 … (período de 04/2016), no valor de € 90.251,52;

v.            Liquidação n.º 2020 … (período de 05/2016), no valor de € 100.442,57;

vi.           Liquidação n.º 2020 … (período de 06/2016), no valor de € 119.743,52;

vii.          Liquidação n.º 2020 … (período de 07/2016), no valor de € 90.153,06;

viii.         Liquidação n.º 2020 … (período de 08/2016), no valor de € 61.595,47;

ix.           Liquidação n.º 2020 … (período de 09/2016), no valor de € 90.825,29;

x.            Liquidação n.º 2020 … (período de 10/2016), no valor de € 115.640,99;

xi.           Liquidação n.º 2020 … (período de 11/2016), no valor de € 114.898,35;

xii.          Liquidação n.º 2020 … (período de 12/2016), no valor de € 210.088,60;

xiii.         Liquidação n.º 2020 … (período de 01/2016), no valor de € 3.900,33;

xiv.         Liquidação n.º 2020 … (período de 02/2016), no valor de € 9.406,42;

xv.          Liquidação n.º 2020 … (período de 03/2016), no valor de € 10.478,53;

xvi.         Liquidação n.º 2020 … (período de 04/2016), no valor de € 12.917,09;

xvii.        Liquidação n.º 2020 … (período de 05/2016), no valor de € 14.067,46;

xviii.       Liquidação n.º 2020 … (período de 06/2016), no valor de € 16.376,97;

xix.         Liquidação n.º 2020 … (período de 07/2016), no valor de € 12.003,94;

xx.          Liquidação n.º 2020 … (período de 08/2016), no valor de € 8.012,47;

xxi.         Liquidação n.º 2020 … (período de 09/2016), no valor de € 11.506,19;

xxii.        Liquidação n.º 2020 … (período de 10/2016), no valor de € 14.244,43;

xxiii.       Liquidação n.º 2020 … (período de 11/2016), no valor de € 13.787,80;

xxiv.      Liquidação n.º 2020 … (período de 12/2016), no valor de € 24.490,21.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

                Fixa-se o valor do processo em € 1.304.288,66 correspondente ao valor das liquidações de IVA e juros compensatórios que se pretende anulado, fixado nos termos acima referidos – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Atento o valor da causa supra fixado, de € 1.304.288,66, as custas cifram-se no montante de € 17.748,00, sendo totalmente a cargo da Requerida, em conformidade com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT; 4.º, n.º 5 do RCPAT e respetiva Tabela I, e 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de junho de 2021

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Joaquim Miranda Sarmento

Guilherme d’Oliveira Martins