Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 38/2019-T
Data da decisão: 2019-09-13  IVA  
Valor do pedido: € 1.205.631,79
Tema: IVA – Renúncia à isenção de IVA.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO A..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, com o número de identificação fiscal ..., representado pela sua sociedade gestora B...– SOCIEDADE GESTORA DE FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO, S.A., com o número de identificação fiscal ... e sede na mesma morada, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto de indeferimento parcial de recurso hierárquico deduzido contra o acto tributário de liquidação adicional de IVA n.º ... M e juros compensatórios com o n.º ... M, com referência ao período de Dezembro 2007, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago, no valor de € 1.205.631,79, e a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

Na sequência do pedido de reembolso do IVA, no valor de € 3.000.000,00 solicitado com referência ao período de Dezembro de 2007, a Requerente foi objecto de uma acção inspectiva que determinou a liquidação adicional de IVA com o fundamento de que não se encontravam reunidas todas as condições necessárias para a aplicação do regime de renúncia à isenção do IVA.

 

A principal divergência entre a Requerente e a Autoridade Tributária radica no diferente entendimento quanto aos requisitos de que depende a renúncia à isenção do IVA, em especial no que respeita à exigência de natureza de fracção autónoma quando os contratos de arrendamento tenham sido celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto.

 

De facto, em relação a um conjunto de fracções arrendadas a sujeitos passivos de imposto em que foi exercido o direito à renúncia à isenção do IVA, não foi admitida a possibilidade de dedução do imposto apesar de se tratar de partes de fracções autónomas ou de partes não identificadas na respectiva matriz como sendo susceptíveis de utilização independente, concretamente no que respeita às fracções P, U, X, AM e AG do empreendimento “...”.

 

A locação financeira de bens imóveis encontra-se isenta de IVA ao abrigo do disposto no n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA, isenção a que os sujeitos passivos poderão renunciar, nos termos do artigo 12.º, n.º 4, por se entender que se trata de uma isenção incompleta que poderá constituir um factor de distorção no funcionamento do imposto.

 

A renúncia à isenção foi regulada pelo Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto, que dispunha no n.º 1 do artigo 4.º que “os sujeitos passivos que renunciarem à isenção terão direito à dedução do imposto suportado para a realização das operações relativas a cada imóvel ou parte autónoma”, terminologia que foi entretanto abandonada pelo Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de Janeiro, que alude expressamente ao conceito de “fracção autónoma”.

 

No entanto, estes conceitos não podem confundir-se, porquanto “fracção autónoma” tem um cariz marcadamente jurídico, estando associado à constituição da propriedade horizontal, enquanto “parte autónoma” tem uma conotação fáctica e prática, e a respectiva integração deverá ser feita por apelo à situação material em que se encontre o espaço, atendendo-se à circunstância de o mesmo ser passível de ser utilizado, em concreto, de forma independente.

 

No caso vertente, a Requerente promoveu a realização do projecto “... Park”, vindo a adquirir até 2007 diversos bens e serviços para a construção do complexo, tendo sido celebrados nesse contexto diversos contratos de locação relativamente a partes do imóvel.

 

No que se refere à fracção U, a Requerente celebrou com a C... um contrato de arrendamento para fins não habitacionais relativamente a uma parte autónoma de futura fracção – provisoriamente denominada por 1, corpo C, a qual, após realização de escritura pública de propriedade horizontal, se viria a designar por “fracção U”.

 

Essa parte da fracção integra uma área de escritório que se encontra dividida em sete partes susceptíveis de utilização independente, sendo possível à arrendatária ocupar apenas a sala 1, com acesso ao exterior.

 

Relativamente à fracção X, provisoriamente designada no projecto por C3, que no projecto inicial tinha uma área de construção de 2.000 m2, a Requerente celebrou um contrato de arrendamento com a D..., Lda., mas que ficou reduzido a metade dessa área (1.000 m2) por se ter constatado que a arrendatária não tinha necessidade de utilizar uma área superior.

 

No que se refere às fracções AG e AM, designada no projecto como fracção 02 do Corpo D, a Requerente celebrou um contrato de arrendamento com a E..., S.A., tendo sido solicitada a renúncia à isenção do imposto relativamente a metade dessa fracção. No projecto de construção, as lojas constantes do Corpo D tinham escritório associado, estando prevista a existência de duas fracções autónomas, contudo, o locatário optou pela não utilização do espaço de escritório, o que determinou a alteração das áreas previstas no projecto, sendo que essa fracção autónoma deu depois lugar a três fracções autónomas aquando da constituição da propriedade horizontal definitiva – AG, AH e AM.

 

Em qualquer destes casos, a Autoridade Tributária considera que não se encontram cumpridos os requisitos legais necessários à opção pela tributação em sede do IVA por se tratar de áreas que não são susceptíveis de utilização independente.

 

No entender da Requerente, a Autoridade Tributária limitou-se a fazer uma apreciação formal dos requisitos de que depende a renúncia à isenção, violando o princípio da prevalência da substância sobre a forma. Para além de que o propósito das partes não foi obter uma vantagem fiscal indevida mas exercer uma faculdade, legalmente prevista, de optar pela tributação nas operações imobiliárias, pelo que a solução preconizada pela Administração é também violadora do princípio da proporcionalidade e da justiça material.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que o  artigo  12.º do CIVA, que prevê a renúncia à isenção de IVA, interpretado em conjugação com o disposto no  Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto, que veio desenvolver o regime do exercício desse direito, permite concluir que a renúncia, no que se refere a imóveis, é somente admissível quanto a fracções autónomas, nos casos em que se verifique a constituição de propriedade horizontal, ou quanto a partes autónomas, no caso em que se verifique a constituição de propriedade total, devendo todas as partes serem susceptíveis de utilização independente.

No caso, a Requerente pretendeu deduzir o IVA e obter o reembolso do imposto pago em relação a um conjunto de fracções autónomas e partes autónomas do complexo “... Park", destinado a comércio, escritórios e serviços, relativamente às quais havia requerido a renúncia à isenção.

 

No âmbito do procedimento de inspecção tributária aberto na sequência do pedido de reembolso, constatou-se que foram constituídas fracções autónomas em regime de propriedade horizontal identificadas como fracções A a AO, mas que não era já possível a renúncia à isenção de IVA relativamente às fracções U, X, AG e AM por não constituírem partes susceptíveis de utilização independente.

 

A fracção U constituía uma fracção autónoma, em regime de propriedade horizontal, afecta a armazéns e actividade industrial e avaliada pelo valor único de € 1.398.420,00, que foi dividida num conjunto de salas que se encontram locadas a diferentes entidades e que constituem assim parcelas de fracções autónomas.

 

A fracção X,  afecta a armazéns e actividade industrial e avaliada pelo valor único de € 1.116.410,00, foi objecto de um contrato de locação celebrado com a sociedade D..., Lda. que se refere apenas a metade da fracção, não podendo concluir-se que a parte locada constitua parte autónoma em termos de ser passível de utilização independente.

 

Relativamente às fracções AG e AM foi celebrado um contrato de arrendamento com a E..., S. A., quando o certificado de renúncia à isenção se reporta apenas a metade dessa fracção, o que obsta a que possa considerar-se a renúncia no ponto em que respeita a uma parte da fracção autónoma.

 

Conclui que não se encontram verificados os requisitos da renúncia à isenção no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações por prazo sucessivo.

 

As partes não alegaram. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 27 de Março de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A Requerente apresentou, no dia 5 de Dezembro de 2011, impugnação judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do ..., no âmbito do processo n.º .../11...B..., contra a decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico relativo ao acto tributário de liquidação adicional de IVA com o n.º ... M e juros compensatórios com o n.º ... M, com referência ao período de Dezembro 2007;

B)           Na sequência da publicação do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, que veio permitir, dentro de certo condicionalismo, a “migração” dos processos a correr termos nos tribunais tributários para os tribunais arbitrais, a Requerente, reunindo os requisitos elencados, solicitou que o processo fosse transferido e apreciado pelo Centro de Arbitragem Administrativa, mediante a apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, tendo requerido entretanto a extinção da instância judicial do processo n.º.../11...B...;

C)           O pedido arbitral deu entrada em 18 de Janeiro de 2019;

D)           A Requerente constitui um Fundo de Investimento Imobiliário, cujo funcionamento se rege pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 30 de Março, e que se encontra qualificado como sujeito passivo misto por realizar operações sujeitas a IVA com direito à dedução e operações isentas sem direito à dedução;

E)            A Requerente promoveu a construção do complexo “...”, destinado a comércio, escritórios e serviços, tendo solicitado a renúncia à isenção de IVA relativamente às fracções designadas com as letras U, X, AG e AM;

F)            No período de 2007 12, a Requerente apresentou a declaração periódica de IVA no montante de € 3.481.872,55, correspondente ao valor do imposto a pagar, tendo posteriormente exercido o direito à dedução de imposto com o consequente pedido de reembolso no tocante às fracções relativamente às quais solicitou a renúncia à isenção;

G)           No Relatório de Inspecção Tributária entendeu-se que as fracções U, X, AG e AM não preenchiam os requisitos da renúncia à isenção de IVA com base nas seguintes considerações:

- Fracção U: provisoriamente designada no projecto de arquitectura como  01 do corpo D, destinava-se a constituir uma futura fracção autónoma afecta a armazéns e actividade industrial e avaliada pelo valor único de € 1.398.420,00, que foi dividida num conjunto de salas que se encontram locadas a diferentes entidades e que constituem assim parcelas de fracções autónomas;

- Fracção X: provisoriamente designada 02 do corpo C, destinava-se a constituir uma fracção autónoma, afecta a armazéns e actividade industrial, e avaliada pelo valor único de € 1.116.410,00, e foi objecto de um contrato de locação celebrado com a sociedade D..., Lda., que se refere apenas a metade da fracção, não podendo concluir-se que a parte locada constitua parte autónoma em termos de ser passível de utilização independente;

- Fracções AG e AM: provisoriamente designadas por 02 do corpo D, deu origem a três fracções autónomas, em regime de propriedade horizontal, e foi objecto de contrato de arrendamento com a E..., S. A., constatando-se que o certificado de renúncia à isenção se reporta apenas a metade de cada uma dessas fracções e não tem correspondência com as fracções locadas;

H)           Na sequência do indeferimento de reclamação graciosa deduzido contra as liquidações adicionais n.ºs ... e ..., a Requerente apresentou recurso hierárquico que foi parcialmente indeferido por despacho do subdirector-geral substituto, de 12 de Agosto de 2011, mantendo o entendimento, com os fundamentos constantes do Relatório de Inspecção Tributária, de que não se verificavam os requisitos da renúncia à isenção de IVA em relação às mencionadas fracções imobiliárias;    

I)             O chefe de finanças adjunto do serviço de finanças do ..., em 12 de Outubro de 2005, emitiu certificado de renúncia à isenção de IVA relativamente a parte da futura fracção autónoma a que provisoriamente foi atribuído o n.º 01 do corpo D do Parque Comercial e de Serviços (...);

J)            O chefe de finanças adjunto do serviço de finanças do ..., em 10 de Julho de 2006, emitiu certificado de renúncia à isenção de IVA relativamente a metade da futura fracção autónoma provisoriamente designada pelo n.º 3 do corpo D, com a área de 1000m2, do Parque Comercial e de Serviços (...);

K)           O chefe de finanças adjunto do serviço de finanças do ..., em 8 de Março de 2006, emitiu certificado de renúncia à isenção de IVA relativamente a metade da futura fracção autónoma provisoriamente designada pelo n.º 2 do corpo D do Parque Comercial e de Serviços (...).

 

O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos com a petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e na alegação de factos não questionados.

 

                Matéria de direito

 

Competência do tribunal arbitral para conhecer de pedidos de condenação no reembolso do imposto pago

 

5. A Autoridade Tributária suscitou a excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral relativamente ao pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, por considerar que esse pedido na parte em visa a devolução ainda que possa constituir uma consequência da declaração de ilegalidade de atos de liquidação impugnados, no plano executivo, não se enquadra na competência do tribunal arbitral tal como se encontra definida no artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT.

 

Na petição inicial a Requerente deixa claro que a sua pretensão tem por objecto a liquidação adicional de IVA, bem como a decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado na sequência de anterior reclamação graciosa. No entanto, na formulação do pedido, a impugnante requer não apenas a anulação do acto de liquidação e do despacho de indeferimento, mas também o reembolso no montante de € 1.205.631,79, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

 

Deve começar por dizer-se que embora a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária apenas compreenda as pretensões de reconhecimento que envolvam a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de fixação da matéria colectável e de fixação de valores patrimoniais, nos termos das referidas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, o certo é que constitui um efeito da decisão arbitral de procedência que a Administração Tributária deva praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto impugnado e restabelecer a situação que existiria se esse acto não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).

 

Essa é, por outro lado, a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (artigo 179.º do CPTA), que se torna extensivo, nos mesmos exactos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da Administração ou a requerimento do particular (artigo 172.º do CPA).

 

No caso, a Requerente veio deduzir um pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, mas esse é um pedido meramente acessório e condicionado à declaração de ilegalidade dos actos tributários impugnados, não assumindo a natureza de um pedido autónomo de condenação na prática de acto devido ou de reconhecimento de direitos legalmente protegidos que extravase o âmbito de competência material do tribunal arbitral. 

 

Nesse sentido aponta ainda o facto de nada obstar a que o tribunal profira condenação, se for o caso, no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito. Sendo que o pagamento de juros indemnizatórios se torna exigível sempre que a prestação tributária indevida resulte de erro imputável aos serviços verificável quer em impugnação administrativa quer em impugnação judicial.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de imposto, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

E, por conseguinte, o tribunal arbitral não está impedido de incluir no dispositivo as cominações meramente consequenciais da declaração de ilegalidade do acto tributário.

 

Questão de fundo

6. A única questão em debate respeita a saber se a renúncia à isenção de IVA relativamente a locação de imóveis ou fracções autónomas, a que se refere o artigo 12.º, n.º 4, do Código do IVA, e regulada à data dos factos pelo Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto, se reporta apenas a fracções autónomas legalmente constituídas em regime de propriedade horizontal ou pode abranger ainda as partes autónomas que possam ser objecto de utilização independente.

A Requerente defende que o conceito de fracção autónoma tem um cariz marcadamente jurídico, estando associado à constituição da propriedade horizontal, enquanto o conceito de parte autónoma tem uma conotação fáctica e prática, pelo que a respectiva integração deverá ser efectuada por referência à situação material que está em causa, relevando que se trate de um espaço que possa ser utilizado de forma independente.

                               Em contraposição, a Autoridade Tributária alega que a renúncia à isenção de IVA apenas é admissível em relação à totalidade do imóvel ou a fracções autónomas, não sendo possível que esse direito possa ser exercido, como no caso em análise, em relação a parcelas de fracções autónomas ou a metade de fracções autónomas.

 

                               Na redacção originária, o artigo 12.º, n.º 4, do Código do IVA permitia que pudessem também “renunciar à isenção referida no n.º 30 do artigo 9.º os sujeitos passivos do imposto que arrendem bens imóveis ou partes autónomas destes a outros sujeitos do imposto”. O subsequente n.º 6 fazia entretanto depender o exercício da renúncia à isenção da prévia apresentação, pelo locador ou o alienante, de declaração, de modelo aprovado, de que conste o nome do locatário ou do adquirente, a renda ou preço e demais condições do contrato, sendo consequentemente emitido pela administração fiscal um certificado, quando se encontrassem comprovados os pressupostos da renúncia, que se destinava a ser exibido aquando da celebração do contrato ou da escritura de transmissão.

 

                               O regime de renúncia à isenção de IVA foi depois desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto, que, no seu artigo 1.º, dispunha o seguinte:

 

1 - Os sujeitos passivos que nos termos dos n.ºs 4 a 6 do artigo 12.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, pretendam renunciar às isenções referidas nos n.ºs 30 e 31 do artigo 9.º do mesmo Código deverão entregar, em triplicado, na repartição de finanças competente, uma declaração conforme modelo aprovado.

2 - Sempre que se encontrem preenchidos os pressupostos previstos nos n.ºs 4 e 5 do artigo 12.º do Código do IVA, a repartição de finanças emitirá o certificado a que se refere o n.º 6 do mesmo artigo no prazo máximo de 30 dias a contar da data de entrega da declaração mencionada no número anterior.

O artigo 4.º desse diploma veio ainda especificar os termos em que há lugar à dedução do IVA em caso de renúncia à isenção, estabelecendo o seguinte:

1. Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, os sujeitos passivos que renunciarem à isenção nos termos do artigo 1.º terão direito à dedução do imposto suportado para a realização das operações relativas a cada imóvel ou parte autónoma, segundo as regras definidas nos artigos 19.º e seguintes do Código do IVA.

2. Não será, todavia, permitido aos sujeitos passivos efectivar a dedução relativa a cada imóvel ou parte autónoma no imposto apurado em outros imóveis ou partes autónomas ou quaisquer outras operações, nem solicitar o respectivo reembolso nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 22.º do Código do IVA, antes da celebração da escritura de transmissão ou do contrato de locação dos imóveis.

Essa disposição, como diversas outras do mesmo diploma – como é o caso dos artigos 3.º, n.º 2, 4.º, n.ºs 1 e 2, 5.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 8.º - reportavam-se a operações de locação de imóveis ou partes autónomas, o que se encontrava em consonância com a redacção originária do artigo 12.º, n.º 4, do Código do IVA que igualmente utilizava essa terminologia.

Entretanto, por efeito das alterações introduzidas no Código do IVA pelo Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de Janeiro, o citado artigo 12.º, n.º 4, passou a ostentar a seguinte redacção:

Os sujeitos passivos que procedam à locação de prédios urbanos ou fracções autónomas destes a outros sujeitos passivos, que os utilizem, total ou predominantemente, em actividades que conferem direito à dedução, podem renunciar à isenção prevista no n.º 29) do artigo 9.º

Nessa sequência, o Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de Janeiro, tendo em vista introduzir na legislação do IVA um conjunto de medidas destinadas a combater situações de fraude, evasão e abuso no âmbito da realização das operações imobiliárias sujeitas a tributação – como se depreende da respectiva nota preambular –, revogando o anterior diploma que regulava essa matéria, veio definir, como condições objectivas para a renúncia à isenção em operações relativas a bens imóveis, que se trate de um prédio urbano ou de uma fracção autónoma deste ou, no caso de transmissão, de um terreno para construção, ou ainda que o contrato tenha por objecto a transmissão do direito de propriedade do imóvel ou a sua locação e diga respeito à totalidade do bem imóvel (artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e c)). E, no tocante às formalidades para a renúncia à isenção, manteve a exigência do pedido de emissão de certificado para efeitos de renúncia, do qual conste o nome ou designação social do sujeito passivo transmitente ou locador e do sujeito passivo adquirente ou locatário do imóvel, bem como a identificação do imóvel, a indicação do objecto da operação (transmissão do direito de propriedade ou locação), a actividade a exercer no imóvel e o valor da venda do imóvel ou o valor mensal da renda e a declaração de que se encontram reunidas todas as condições para a renúncia à isenção (artigo 4.º, n.º 1).

Como a doutrina tem vindo a assinalar, o Decreto-Lei n.º 21/2007, pelas mencionadas razões de combate à fraude, evasão e abuso fiscais que se verificavam na vigência do anterior regime, restringiu de forma substancial as situações em que é possível renunciar à isenção de IVA na locação e venda de imóveis e, entre outras medidas, passou a excluir da renúncia à isenção a locação ou transmissão de partes de imóveis, designadamente os direitos reais menores, tais como a nua propriedade, o usufruto, o direito de solo e o direito de superfície (ANGELINA TIBÚRCIO, Código do IVA e RITI - Notas e Comentários, coordenação Clotilde Celorico Palma/António Carlos Santos, Coimbra, 2014, págs. 168 e 170; ANTÓNIO BEJA SANTOS/AFONSO ARNALDO, “O sector imobiliário e o IVA. Perspectivas de uma relação conturbada”, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, n.º 2, págs. 103-105).

 

Como também tem sido referido, a isenção de IVA relativamente a locação de bens imóveis, a que se refere o artigo 9.º, alínea 29), do Código do IVA, é uma isenção incompleta, na medida em que não permite a dedução do IVA suportado a montante. “Daí que esse montante de imposto, sendo repercutido no valor da renda ou no preço da venda do imóvel, de forma oculta, tem como consequência a duplicação do IVA, nos casos em que os imóveis sejam arrendados ou adquiridos por sujeitos passivos que os destinem à realização de operações tributáveis”.

 

Assim, “a principal vantagem inerente à renúncia à isenção do IVA consiste na possibilidade de o vendedor/locador poder recuperar, pela via da dedução, o IVA suportado na construção ou na aquisição dos imóveis e, portanto, apresentar-se no mercado com um preço mais competitivo. Por outro lado, o arrendatário ou adquirente pode proceder à dedução do IVA liquidado sobre a renda ou preço de compra do imóvel, limpando deste modo o IVA que, no caso de a operação ser isenta, estaria oculto, o que representa uma poupança nos custos de exploração” (ANGELINA TIBÚRCIO, ob. cit., págs. 166-168).

 

7. Ora, no caso vertente, interessa reter que a renúncia à isenção de IVA ocorreu ainda no domínio do Decreto-Lei n.º 241/86, que, em consonância com a redacção então vigente do artigo 12.º, n.º 4, do Código do IVA, se referia a imóveis ou partes autónomas. O conceito de partes autónomas é necessariamente distinto do conceito de fracções autónomas, que tem um sentido técnico jurídico preciso que remete para o regime de propriedade horizontal. Fracções autónomas são aquelas que, “além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública” (artigo 1415.º do Código Civil).

 

Parte autónoma tem indiscutivelmente um sentido mais lato, correspondendo a uma parte do imóvel que funcione autonomamente e que não tem de preencher os requisitos legais exigidos para a constituição da propriedade horizontal. Pode consistir em escritórios instalados separadamente numa parte de um imóvel ou de uma fracção autónoma (cfr. ANTÓNIO BEJA SANTOS/AFONSO ARNALDO, ob. cit., pág. 104).

 

Acresce que, como ficou dito, a renúncia à isenção está dependente da emissão de um certificado de isenção emitido pela Administração Tributária e é no procedimento destinado à emissão desse documento que cabe à Administração verificar se se encontram preenchidos os pressupostos da renúncia à isenção, e, especialmente, se o imóvel ou parte do imóvel que é objecto de locação pode entender-se como uma unidade de utilização independente. E, como tem sido reconhecido pela jurisprudência administrativa, o certificado de renúncia tem natureza constitutiva do direito à renúncia e subsequente dedução ou reembolso de IVA (acórdão do STA de 7 de Outubro de 2015, Processo n.º 01455/12).

 

Ora, no caso em presença, a Autoridade Tributária emitiu certificados de renúncia à isenção relativamente às fracções U, X e AM e AG, que constituem os documentos n.ºs 11, 12 e 14 juntos à petição inicial, e neles a Administração expressamente refere que a renúncia à isenção diz respeito a uma “parte da futura fracção autónoma” (fracção U) ou a metade da futura fracção autónoma (fracções X e AM e AG), o que significa que a Administração, emitindo o certificado, não pôs em causa que se tratasse de partes autónomas para efeito do disposto no artigo 12.º, n.º 4, do Código do IVA.

 

Certo é que na decisão de indeferimento do recurso hierárquico, repetindo o que constava do Relatório de Inspecção Tributária, se declara que, no tocante à fracções AG e AM, existe uma discrepância entre o objecto de contrato de arrendamento e o teor do certificado de renúncia à isenção já que este se refere a metade de cada uma dessas fracções ao passo que a locação abrangeu  o conjunto das  fracções locadas. No entanto, nada permite concluir, face aos elementos dos autos, que o certificado não corresponda ao negócio efectivamente realizado, sendo que é à Administração Tributária que cabe o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 74.º, n.º 1, da LGT).

 

A Requerente faz ainda menção à ilegalidade da não admissão do direito à dedução de IVA quanto à fracção P (artigo 56.º), mas não alega quaisquer factos que permitam precisar em que termos é que foi deduzido o pedido de renúncia à isenção quanto a essa fracção, pelo que o pedido se mostra ser inconcludente nessa parte.

 

Juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IMT, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

A Autoridade Tributária alega, na resposta, que os juros indemnizatórios são devidos não desde da data do pagamento indevido do imposto, mas da data da notificação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico porquanto só a partir dessa decisão é que a Administração pode tomar posição sobre a pretensão do sujeito passivo. Mas essa dilação não está prevista no artigo 43.º da LGT, que apenas se refere às situações em que “a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária (n.º 2, alínea c)), o que manifestamente não é o caso.

 

 III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido arbitral deduzido contra o acto tributário na parte referente às fracções U, X, AM e AG;

b)           Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.205.631,79, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 16.524,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 13 de Setembro de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Leonardo Marques dos Santos

 

O Árbitro vogal

A. Sérgio de Matos