Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 377/2020-T
Data da decisão: 2021-07-07  IRC  
Valor do pedido: € 740.796,88
Tema: IRC. Dedutibilidade dos gastos. Variação patrimonial positiva.
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Sumário:

I – Para efeito da dedução de gastos para apuramento do lucro tributável em sede de IRC, a Autoridade Tributária tem o dever procedimental de atender aos elementos complementares que tenham sido fornecidos pelo contribuinte de modo a aferir a fiabilidade dos dados inscritos na contabilidade e das operações comerciais que tenham sido realizadas, mormente quando nas facturas emitidas se verifique uma situação de insuficiência descritiva quanto à natureza dos serviços prestados;

II – Tendo sido efectuada uma correcção tributária com o fundamento na não especificação e a quantificação dos serviços prestados nos documentos justificativos dos gastos, e tendo sido feita prova bastante quanto à materialidade das operações, subsiste fundada dúvida sobre a existência e a quantificação do facto tributário, o que conduz à anulação da liquidação nos termos do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT;

III - A regularização contabilística que não tem qualquer reflexo nos capitais próprios do sujeito passivo não pode ser tida como uma variação patrimonial positiva para efeito do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC.

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A …, LDA, sociedade por quotas com o número de identificação de pessoa colectiva e de identificação fiscal …, e sede na …, n.º …, …, …, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRC relativa ao ano de 2017, no valor total de € 780.832,72, requerendo a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção tributária que originou correcções à matéria colectável no valor global de € 2.892.210,03, relativamente ao período de tributação de 2017, que resultaram da não aceitação como gasto fiscalmente dedutível do valor de € 2.233.503,10, respeitante a facturas por serviços prestados e pagos aos seus fornecedores angolanos B..., Lda. e C..., Lda., no acréscimo ao lucro tributável de € 450.394,99, a título de variação patrimonial positiva, em resultado de lançamentos contabilísticos de redução do saldo passivo de fornecedores sem contrapartida das saídas de dinheiro, e no acréscimo de proveitos, no montante de € 208.311,94, que não estavam lançados na contabilidade.

No que se refere àquele primeiro aspecto, os gastos que vieram a ser desconsiderados respeitam à prestação de serviços de representação comercial e de intermediação por parte de parceiros estratégicos que visavam a exportação de produtos farmacêuticos para o mercado angolano.

Com esse objectivo, em finais de 2012, a Requerente celebrou com a sociedade de direito angolano B..., Lda., um contrato de prestação de serviços para representação comercial da A... em Angola.

Tendo-lhe sido proposto que a representação comercial passasse a ser realizada por uma outra sociedade do mesmo grupo, em novembro de 2016, a Requerente celebrou um novo contrato de prestação de serviços de representação comercial com a C..., Lda., de modo que a B... passou a exercer a actividade de distribuidora de produtos farmacêuticos em Angola enquanto a actividade de representação comercial passou a ser assumida pela C..., ainda que essas entidades mantivessem uma gerência única.

Por intermediação dessas empresas, entre 2013 e 2017, a Requerente comercializou de produtos farmacêuticos, essencialmente, para a D..., Lda., sendo que a actividade das empresas angolanas era remunerada através de comissões sobre as vendas realizadas.

Todas as facturas emitidas pela B... e C... foram sendo pagas e essas entidades passaram quitação das importâncias auferidas, ainda que algumas das transferências bancárias tivessem como beneficiários pessoas individuais desconhecidas da Requerente, mas que eram tidas como credoras da B....

Em 2018, ocorreu uma quebra do volume de negócios por virtude de a B... e a C... terem deixado de prestar serviços de intermediação e representação comercial por, entretanto, terem constituído uma empresa concorrente em Portugal através da qual passaram a comercializar directamente os produtos farmacêuticos para Angola.

Os gastos incorridos pela Requerente, no âmbito dos contratos de prestação de serviços de representação comercial e de intermediação, foram destinados a obter os rendimentos sujeitos a IRC e são dedutíveis para efeitos fiscais.

A correcção tributária feita a título de variação patrimonial positiva é igualmente ilícita.

 Até 2018, a Requerente tinha um programa de facturação e de gestão de contas correntes de clientes e fornecedores, autónomo e sem qualquer ligação com o programa de contabilidade, tendo-se constatado, através do procedimento de conferência de saldos, que relativamente ao exercício de 2017 havia um conjunto de movimentos com clientes e fornecedores que não estavam devidamente registados na contabilidade.

De onde se tornou necessário fazer a reconciliação entre os saldos das contas de clientes e de fornecedores e de pagamentos e recebimentos. Trata-se de rectificações de movimentos que efectivamente ocorreram e que não estavam evidenciados na contabilidade e que não correspondem a variações patrimoniais positivas.

As liquidações adicionais em IRC, com os indicados fundamentos, violam o princípio da repartição do ónus da prova, a que se refere o artigo 74.º da LGT, o princípio da presunção da veracidade das declarações e dos dados inscritos na contabilidade, estabelecido no artigo 75.º dessa Lei, bem como o disposto no artigo 23.º do Código do IRC e os princípios constitucionais da tributação das empresas pelo seu lucro real e da capacidade contributiva e ainda o princípio da prevalência da substância sobre a forma, e, no que se refere às variações patrimoniais positivas, violam o disposto no artigo 21.º do Código do IRC.

Como resulta do artigo 15.º da petição inicial, a Requerente concorda com a correcção tributária referente ao valor de € 208.311,94 por considerar que, de facto, esse valor não se encontrava contabilizado, pelo que, nessa parte, a liquidação de imposto não constitui objecto do pedido arbitral.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que o suporte documental dos gastos são facturas que apenas referem “serviços de consultadoria e prestação de serviços” e que não se encontram devidamente comprovados quanto à natureza e quantificação dos serviços prestados.

 

Por outro lado, esses serviços de consultadoria e prestação de serviços atingem um valor inusual e desproporcionado em relação à dimensão da empresa e à sua estrutura de gastos totais, atingindo o montante de € 2.233.503,10 quando todos os restantes fornecimentos e serviços externos da empresa totalizam apenas € 455.236,39. Além de que os 15 documentos emitidos em nome da B..., Lda. são datados de maio de 2017, enquanto que as dezenas dos documentos emitidos em nome da C..., Lda. são datados de 19 e de 22 de dezembro de 2017.

 

Não havendo indicadores que permitam concluir que tais documentos correspondam a uma realidade económica concreta, sendo que, durante o procedimento inspectivo, a Requerente não especificou nem quantificou os serviços de angariação e intermediação, nem informou quanto aos preços praticados e o espaço temporal em que os serviços foram realizados.

 

Quanto à correção de € 450.394,99, respeitante às variações patrimoniais positivas não refletidas nos resultados, o que está em causa é um lançamento na contabilidade sem documento de suporte, efetuado em dezembro de 2017, em que várias contas de fornecedores e de disponibilidades são debitadas por contrapartida de outras contas de fornecedores e disponibilidades.              

 

No âmbito do procedimento inspectivo, a Requerente não apresentou justificação para  o lançamento nem os  comprovativos dos pagamentos e/ou recebimentos que lhe deram origem, e, compulsados os extractos bancários, concluiu-se que não se encontram evidenciadas quaisquer saídas da conta de depósitos à ordem correspondentes aos montantes do lançamento.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal indicada pelas partes.

 

Por despacho arbitral de 13 de Maio de 2021, a Requerente foi notificada para prestar informações sobre cada uma das facturas de venda emitidas a entidades residentes em Angola por referência aos rendimentos contabilizados em 2017. Em cumprimento do despacho, a Requerente juntou a documentação anexa ao seu requerimento de 25 de Maio de 2021.

Por despacho arbitral de 26 de Maio seguinte, foi determinado o prosseguimento do processo para alegações escritas, por prazo sucessivo.

Em alegações, a Requerente e a Requerida procuraram fixar os factos que consideram como assentes e mantiveram quanto à matéria de direito as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 29 de Outubro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A) A Requerente é uma sociedade comercial, sob a forma de sociedade por quotas, que se dedica ao comércio por grosso de produtos farmacêuticos.

B) No âmbito da sua actividade, a Requerente adquire produtos farmacêuticos a fornecedores nacionais e internacionais, revendendo-os posteriormente, no mercado nacional e em países terceiros.

C) Em 27 de Novembro de 2012, a Requerente celebrou com a sociedade de direito angolano B..., Lda, um contrato de prestação de serviços para representação comercial da A... em Angola.

D) A B..., Lda é uma sociedade comercial por quotas de direito angolano, constituída em 18 de setembro de 2012, por E... e F..., assumindo esta última o cargo de gerente.

E) Nas cláusulas sexta e sétima do contrato de prestação de serviços mencionado na antecedente alínea c), as partes estabeleceram o seguinte:

 

Cláusula sexta

1. Com vista à entrada no mercado angolano, todas as mercadorias encomendadas até 31.12.2015 estão excluídas de qualquer comissão da Representante.

2. Caso a Representante não apresente encomendas de valor igual ou superior a 2,5 milhões de euros até ao final do ano de 2015, perderá de imediato a representação, sendo tal facto motivo de denúncia imediata do presente contrato.

3. A partir de 1.1.2016, a comissão da Representante será variável até 130% sobre o montante global das facturas pagas em cada ano à Empresa, a fixar negócio a negócio.

Cláusula sétima

1. Os pagamentos de comissões referidos na Cláusula anterior são devidos pela primeira à segunda apenas relativamente à mercadoria por aquela faturada e paga em função de notas de encomenda por esta angariadas e por aquela efectivamente executadas e não devolvidas nem anuladas pelo cliente;

2. A primeira fornecerá mensalmente à segunda um resumo de faturação referida no número anterior.

F) Em 23 de novembro de 2016, a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços de representação comercial com a sociedade e direito angolano, C..., Lda, legalmente representada por E....

G) Nas cláusulas sexta e sétima do contrato de prestação de serviços mencionado na antecedente alínea F), as partes estabeleceram o seguinte:

 

Cláusula sexta

1. A comissão da Representante será variável até 130% sobre o montante global das facturas pagas em cada ano à Empresa, o que será negociado pelas partes em cada uma das encomendas efectuadas.

2.            As facturas respeitantes às encomendas serão emitidas no nome da representante ou de quem esta indicar, devendo para tal informar a Empresa de tais actos no ato da encomenda.

Cláusula sétima

1. Os pagamentos de comissões referidos na Cláusula anterior são devidos pela primeira à segunda apenas relativamente ao da mercadoria por aquela faturada e paga em função de notas de encomenda por esta angariadas e por aquela efectivamente executadas e não devolvidas nem anuladas pelo cliente;

      2. A primeira fornecerá mensalmente à segunda um resumo de faturação referida no número anterior.

H) Por intermediação da B... e da C..., no período de 2013 a 2017, a Requerente efectuou exportação de produtos farmacêuticos para Angola e, em especial, para a D..., Lda.

I) Em 23 de Junho de 2017, foi constituída a sociedade por quotas G..., com sede em Benavente, tendo por objecto “comércio, promoções, importações, exportações, representação de medicamentos, produtos de saúde e equipamentos da área da saúde, e que eram sócios H…,  F... e I…. 

J) Em resposta ao despacho arbitral de 13 de Maio de 2021, a Requerente, por requerimento entrado no dia 25 seguinte, juntou um quadro-resumo em ficheiro excel, que aqui se dá reproduzido, com os seguintes elementos de informação: numeração das facturas de venda de produtos para o mercado angolano, data, valor da contraprestação, identificação dos adquirentes dos bens, valor de encargos de transporte relativo a cada factura, valor total das vendas, identificação da entidade a quem é devida comissão pelas vendas, numeração das facturas relativas a comissões, data e valor da comissões, margem comercial das comissões, margem comercial da Requerente.

L) Pelo mesmo requerimento, a Requerente juntou extracto acumulado da conta #7, extracto acumulado da conta #6, extracto total de vendas, extracto de vendas para a B..., extracto de vendas para a D..., extracto total das comissões, extracto das comissões pagas à B... e extracto das comissões pagas à C..., que constituem os documentos anexos n.ºs 2 a 9, que se dão como reproduzidos.

M) Pelo mesmo requerimento, a Requerente juntou grupos de facturas referentes a compras, vendas e comissões relacionadas com a B..., que constituem os documentos anexos n.ºs 10 a 12, que aqui se dão como reproduzidos.

N) Pelo mesmo requerimento, a Requerente juntou grupos de facturas referentes a compras, vendas e comissões relacionadas com a C..., que constituem os documentos anexos n.ºs 14 a 30, que aqui se dão como reproduzidos.

O) A Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, credenciado pelas ordens de serviço n.ºs 0I2019… e 0I2019…, que teve por objecto a análise da sua situação tributária em sede de IVA e IRC nos períodos de 2017 e 2018.

O) Na sequência da acção inspectiva, foram efectuadas correcções à matéria tributável em IRC, relativamente ao período de tributação de 2017, resultantes da não aceitação como gasto fiscalmente dedutível de serviços facturados às sociedades angolanas B..., Lda e C..., Lda, no valor parcelar de € 2.233.503,10, e, a título de variação patrimonial positiva não reflectida no resultado do período, no valor parcelar de € 450.394,99.

P) O Relatório de Inspecção Tributária fundamenta as correcções, na parte relevante, nos seguintes termos:

Fornecimentos e serviços externos – serviços especializados

a) Aspetos de materialidade económica e contabilística das operações.

3.1.1 Pelo que passamos desde logo a analisar as subcontas da conta Fornecimentos e Serviços Externos de 2017, e constatamos que os Serviços Especializados são a principal rúbrica contabilizando uns extraordinários e invulgares 2.355.301,84 € de gastos, o que corresponde a 87,60% dos Fornecimentos e Serviços Externos.

3.1.2 Tendo sido encontrado através do respetivo balancete um grande volume de gastos contabilizados numa conta, a 62214, que o sujeito passivo intitulou "IVA importação" no plano de contas da sua contabilidade, mais concretamente o montante de 2.233.503,10 C.

3.1.3      Tendo passado a analisar os documentos de suporte aos lançamentos contabilizados nesta conta, verificamos que as quantias lançadas nessa conta correspondiam aos montantes constantes de um conjunto de documentos, que apareciam intitulados como Faturas.

3.1.4 Verificamos desde logo que não existe qualquer consistência na natureza desses documentos e o nome que a contabilidade deu a essa conta "IVA importação" que até pode certamente induzir em  erro um observador ou analista externo.

3.1.5 Esses documentos, intitulados faturas, tinham inscrito como emissor, pela morada que nelas aparece, duas entidades não residentes, em concreto de Angola. Os nomes de tais entidades são "B..., Lda", e "C..., Lda"

3.1.6 Verificamos também que estas facturas titulavam como descrição dos bens ou serviços transacionados, em todos os casos, quer fossem emitidas com o nome de C..., Lda, quer com o nome de B..., Lda o mesmo texto singular: "serviços de consultadoria e prestação de serviços". O que certamente não tem nada a ver com "Iva importação"

3.1.7 Na tabela constante do ponto 3.2.40 deste relatório, abaixo, podemos verificar o resumo com a compilação de tais documentos, e a contabilização dos mesmos, efetuada pela contabilidade:

3.1.8 Como podemos verificar nessa tabela, tais documentos, lançados na contabilidade como gastos do exercício de 2017, a título de serviços especializados, atingem um valor inusual, desproporcionado, quer por si só, como valor absoluto, mas especialmente de olharmos à dimensão da empresa, à sua estrutura de gastos totais, e em especial ao valor dos Fornecimentos e Serviços Externos.

3.1.9 Também pudemos apreciar, da compilação abaixo exibida, que os 15 documentos emitidos em nome da entidade "B..., Lda" apresentam todos como data de emissão o mês de Maio de 2017. Por sua vez, os restantes documentos emitidos em nome da entidade "C..., Lda" apresentam todos como data de emissão o mês de Dezembro, e em duas datas concretas apenas, o dia 19 e o dia 22 de Dezembro de 2017, perto do final do ano.

3.1.10 Sendo estranho um grande volume de "faturas" emitidas num mesmo dia, 19 de Dezembro, e logo após um intervalo de apenas três dias, a 22 de Dezembro, novamente muitas facturas emitidas, todas com o mesmo descritivo, o que merece pouca credibilidade.

3.1.11 Porque se é estranho que um tão grande volume de facturas tenha sido emitido a 19 de Dezembro,  o que parece indicar que as mesmas digam respeito a períodos passados, é ainda mais estranho, que as emitidas no dia 22 de Dezembro, cubram, com tão grande volume, quer de faturas, quer de montantes apenas três dias, se levarmos em conta que as anteriores, foram emitidas com data em 22 de Dezembro inscrita nas mesmas.

3.1.12 Ora, desde logo podemos tecer algumas considerações adicionais sobre estes papéis de suporte dos gastos no montante de 2.233.503,10 € lançados nesta rúbrica.

3.1.13 Desde logo, para além dos valores desproporcionados de "consultadoria" face à atividade da empresa, e face à sua estrutura de gastos, consideramos que tais faturas, à luz da legislação nacional, a que a A... está vinculada para efeitos de apuramento do lucro tributável, não têm  enquadramento dedutível em sede de IRC, na medida em que as mesmas mencionam "serviços de consultadoria e prestações de serviços" como objeto das eventuais transações.

3.1.14 Porque, e em primeiro lugar, para serem aceites em sede de IRC, os gastos contabilizados, devem estar "comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito".

[…]

3.1.18 Porque de facto esses documentos não evidenciam qual o verdadeiro encargo económico-contabilístico que se pretendeu imputar como gasto na contabilidade. Nem se dizem respeito à atividade da empresa. Nem a que período(s) respeita(m).

3.1.19 E dessa forma, dado o seu elevado valor, e a sua elevada relevância nas contas da empresa, nomeadamente, na demonstração de resultados de 2017, não pode deixar de se considerar que esta não representa com transparência e adequadamente as operações da sociedade.

3.1.20 E de tal forma o seu objeto desses documentos é indefinível que a própria empresa, porventura devido a essa incerteza os registou na contabilidade numa conta com um nome "IVA importação", que de facto não caracteriza minimamente que gastos são.

b)           Aspetos de natureza fiscal das operações.

3.1.21 No que diz respeito à matéria tributária, tais documentos também levantam problemas, dado que não cumprem os requisitos de dedutibilidade ao lucro tributável exigidos pelo Código do IRC.

3.1.22 Com efeito, no caso da aquisição de bens ou prestações de serviços, os documentos comprovativos devem conter a especificação e quantificação dos mesmos, de acordo com a alínea do n.º 4 do art.º  23º do CIRC. Ora tal não é verificado neste caso, dado que essas prestações de serviços não estão especificadas.

3.1.23 Por outro lado, também não existe uma quantificação desses eventuais serviços.

3.1.24 Com efeito, e no que diz respeito à especificação, o que consta do descritivo desses documentos, quanto ao seu objeto, é uma descrição de tal forma genérica, que não é possível saber a natureza desses serviços e dessas consultadorias, a sua realidade subjacente, ou seja, a que é que elas verdadeiramente respeitam. Os seus dizeres não transmitem uma realidade concreta que faça compreender o que realmente foram aqueles serviços.

O que é usual, é que se denomine concretamente os serviços, especificando-os.

3.1.25 E também é de tal forma genérico, que também não é possível distingui-los, pelo descritivo inscrito nesses documentos, de outros serviços, ou de outras consultadorias com que se queiram comparar, de que resulta, mais uma vez, que não se sabe o que estaria na verdade a ser transacionado.

3.1.26 Para além disso, tais serviços não estão também quantificados.

De facto, nesses documentos, e relativamente à quantidade, os valores inscritos na coluna de quantidade, nas sucessivas "faturas", é sempre de uma unidade. Contudo o valor total é  sempre diferente em cada uma das faturas, mesmo sendo emitidas essas "faturas" no mesmo dia. De que resulta que essa " (l) unidade" é meramente um escrito formal desapegado da realidade.

3.1.27 Na verdade, esses documentos estão valorados a um valor final, global, por fatura,  independentemente da quantidade consumida, pelo que também não é possível saber sequer o respetivo preço real dos serviços.

3.1.28 Assim, as variáveis quantidade, e preço, são escritas no documento sem qualquer adesão a uma realidade, sendo apenas inscritas no documento como consequência, e ajustadas, em função daquele valor global da transação, e não o contrário, que seria o correto, tanto economicamente, como fiscalmente.

3.1.29 Como fica demonstrado que tais quantidades e preços do serviço não são verdadeiros, tais documentos não estão nem quantificados nem apresentam o preço real por quantidade.

3.1.30 Assim sendo, não estando quantificados, tais documentos de suporte à contabilidade, que se queria que fossem os comprovativos do gasto, infringem novamente, por este motivo adicional, da falta de quantificação, as regras impostas pela alínea c) do no 4 do art. 0 23 0 do Código do IRC, conjugada com o no 3 do mesmo artigo.

3.1.31 E também não sendo possível saber o preço real dos serviços, como acima é demonstrado, é violado também o disposto na alínea d) do no 4 do art.0 23 0 do CIRC.

tais serviços ou consultadorias teriam sido prestados, pelo que tal documentação infringe também a alínea e) do no 4 do artigo 23 0 do CIRC, conjugada com o no 3 do mesmo artigo,

3.1.32 Acresce que tais documentos, essas facturas, não apresentam datas, o espaço temporal, em que tais serviços ou consultadorias teriam sido prestados, pelo que tal documentação infringe também a alínea e) do n.º 4 do artigo 23.º do CIRC conjugada com o n.º 3 do mesmo artigo.

3.1.33 Como vimos, destes documentos comprovativos de suporte aos lançamentos contabilísticos efetuados pelo contribuinte na conta intitulada "IVA importação" em Fornecimentos e Serviços Externos, a título de gasto, não resulta ainda qualquer evidência da efetividade desses gastos, da sua existência material, porque nessas facturas não aparece nenhum indício que traga luz a que é que essas consultadorias e serviços prestados digam respeito e a que possam ser na realidade, e que portanto tenham sido efectivamente incorridos pela sociedade.

 

i)             Na realidade esses documentos ao não trazerem qualquer tipo de elemento que permita fazer luz sobre os "serviços de consultadoria e serviços prestados", coisas concretas que definam aquilo que na realidade eram, bem como por exemplo as horas gastas nas consultadorias, ou outra quantificação, e ainda o respetivo preço real, bem como a data em que foram prestados, e se dizem respeito à empresa ou à sua atividade, se realmente foram incorridos, ou qualquer outro elemento relevante, mais não são que meros papeis para constarem nas pastas de contabilidade;

ii)            Porque na realidade eles não dão mais nenhuma informação que o próprio registo informático do lançamento contabilísticos em si: é apenas um valor lançado numa subconta de gastos por contrapartida da dívida criada a uma entidade de um país terceiro.

iii)           De facto esses documentos não acrescentam mais nada em termos de informação do que a que se extrai do próprio registo informático do lançamento contabilístico.

iv)           Por isso nada comprovam, nem podem ser considerados documentos comprovativos de nenhuma realidade.

3.1.34 Não havendo nenhuma evidência da sua materialidade, também não há da sua natureza. O seu objeto, a sua concretização, a realidade do que teria sido prestado, não aparece descrita, pelo que não se pode saber através desses documentos o que realmente sejam, e que tenham sido um fator pela empresa, não se poderá considerar que tais gastos tenham sido, ou não, materialmente relevantes para obter os resultados e rendimentos da empresa, ou seja para a sua atividade.

3.1.35 Assim sendo, transportando esta realidade com que nos deparamos para a legislação tributária, sucede que, por um lado não se pode saber se tais gastos serão reais, e que tenham sido realmente incorridos, numa perspetiva económico-contabilística. Portanto digam respeito, pelo que contabilisticamente não é possível adequar tais documentos lançados na contabilidade ao princípio contabilístico da especialização dos exercícios.

3.1.36 Bem como não é possível saber se dizem respeito ao ano de 2017, porquanto os documentos não referem nem comprovam em que períodos os eventuais serviços tenham sido prestados, ou a que digam respeito, pelo que contabilisticamente não é possível adequar tais documentos lançados na contabilidade ao princípio da especialização dos exercícios. 

3.1.37 De forma independente ao que relatamos no ponto anterior, tais fatos não permitem também à luz da legislação fiscal enquadrar tais serviços num determinado exercício para efeitos fiscais, pelo que a consideração por parte da sociedade de tais documentos de suporte à contabilidade, sem que os mesmos sejam associados ao exercício de 2017 viola as disposições do art.º 18.º do Código do IRC.

3.1.38 Como dos dizeres de tais documentos não é possível extrair evidência alguma da sua substância, e consequentemente comprovação da realidade dos mesmos, não se pode saber que efetivamente digam respeito à atividade da empresa, e nem deveriam ser tidos, numa perspetiva económico contabilística, em consideração.

3.1.39 Finalmente, tais gastos ainda não poderiam ser dedutíveis ao lucro tributável de 2017 porque não se conhecendo acerca dos mesmos, nem que se mostrem necessários para obter o rendimentos sujeitos a imposto, é violado adicionalmente o disposto no art.º  23.º,  n.º 1, do CIRC, pelo que  deveriam os mesmos ser acrescidos ao lucro tributável de 2017 para efeitos de IRC.

3.1.40   Não obstante os elementos evidenciados serem os bastantes para desconsiderar a dedução desses gastos no resultado, e de forma independente, também ao lucro tributável em sede de IRC, tentamos obter do sujeito passivo elementos, ou prova, ou evidência acerca deles, que permitisse demonstrar e assegurar que foram efetivos, ou seja que fosse feita a sua comprovação, quer económica, quer tributária, pelo que em 14.06.2019 solicitamos ao sujeito passivo explicações para este assunto, e para outros, que na altura suscitavam dúvidas e que, no caso em que se tornaram relevantes para este relatório, adiante analisaremos, através de notificação, que juntamos ao processo inspectivo, a qual solicitava que:

            […]

3.1.56 Assim sendo, não nos resta outra alternativa do que concluir que tais documentos foram lançados na contabilidade a título de gastos apenas como um mero artificio para reduzir o lucro tributável sujeito a imposto. Portanto deverá ser acrescido ao lucro tributável de 2017 o montante de 2.233.503,10 € que foram lançados como gasto em 2017 respeitantes a documentos que não cumprem sucessivamente e independentemente com o disposto nos artigos 17.º e 18.º do CIRC, bem como nas alíneas c), d) e c) do n.º 4 do artigo 23.º, bem como no n.º 3 do CIRC, e por fim o disposto no n.º 1 do artigo 23.º do CIRC.

 

3.2          Variações Patrimoniais Positivas:

 

3.2.1 Como referido no capítulo II do presente relatório constatamos que o sujeito passivo efetuou lançamentos na contabilidade, de elevado montante, em diversos movimentos de abertura do ano da contabilidade, quando a abertura de ano deverá acontecer apenas num lançamento. O sujeito passivo chamou a esses lançamentos reversões, nos quais debitou e creditou várias contas de diferentes terceiros, supostamente desfazendo lançamentos de efeito contrário praticados em 2017. Este tinha sido um dos motivos que levaram à extensã0 do procedimento inspectivo ao ano de 2017, como mencionado no capítulo II.

3.2.2 E, no ano de 2017 encontramos o lançamento no 120015, do diário de operações diversas da contabilidade, com data contabilística de Dezembro de 2017, onde várias contas de fornecedores e de disponibilidades são debitadas, por contrapartida de outras contas de fornecedores e disponibilidades, com o montante total global de 520.105,93 €. Na tabela abaixo apresentamos esse lançamento

 

Data Lançamento            Descrição            Linha lanç.          Conta    Débito  Linha lanç.          Conta    Crédito

28-06-2018 16:39             (7) N/ Av Lançamento   1             2211100001        110.638,60€        2             1221       110.638,60€

28-06-2018 16:41             (7) N/ Av Lançamento   4             1221       18.487,33€          3             2211100007        18.487,33€

28-06-2018 16:43             (7) N/ Av Lançamento   6             1221       1.164,16€            5             2211100012        1.164,16€

28-06-2018 16:45             (7) N/ Av Lançamento   8             1221       114,48€                7             2211100031        114,48€

28-06-2018 16:46             (7) N/ Av Lançamento   10           111         1.121,25€            9             2211100032        1.121,25€

28-06-2018 16:47             (7) N/ Av Lançamento   11           2211100035        47.334,78€          12           1221       47.334,78€

28-06-2018 16:49             (7) N/ Av Lançamento   15           2211100022        12.150,98€          16           1221       12.150,98€

28-06-2018 16:51             (7) N/ Av Lançamento   19           2211100025        18.333,99€                                         

28-06-2018 16:52             (7) N/ Av Lançamento   20           1221       5.842,73€                                           

28-06-2018 16:55             (7) N/ Av Lançamento   23           22111000330      3.105,50€                                           

28-06-2018 16:55             (7) N/ Av Lançamento   24           1221       6.557,43€                                           

28-06-2018 16:56             (7) N/ Av Lançamento   25           2211100068        1.242,78€            26           1221       1.242,78€

28-06-2018 17:02             (7) N/ Av Lançamento   28           111         375,25€                27           2211100071        375,25€

28-06-2018 17:04             (7) N/ Av Lançamento   29           2211100083        17.117,52€          30           1221       17.117,52€

28-06-2018 17:10             (7) N/ Av Lançamento   37           2211100102        239.566,44€        38           1221       239.566,44€

28-06-2018 17:11             (7) N/ Av Lançamento   40           111         383,19€                39           2211100107        383,19€

28-06-2018 17:12             (7) N/ Av Lançamento   42           111         417,64€                41           2211100104        417,64€

28-06-2018 17:14             (7) N/ Av Lançamento   44           111         3,29€     43           2211100109        3,29€

28-06-2018 17:28             (7) N/ Av Lançamento   46           1221       13.804,70€          45           2211100115        10.829,22€

28-06-2018 17:46             (7) N/ Av Lançamento   47           2211100133        2.300,40€            48           111         2.300,40€

28-06-2018 18:07             (7) N/ Av Lançamento   49           2211100143        20.004,73€          50           1221       20.004,73€

28-06-2018 18:30             (7) N/ Av Lançamento   51           2211100171        38,76€   52           111         38,76€

                                                                               53           2211300002        36.815,13€

Total do lançamento      520.105,93€                       520.105,93€

Débitos fornecedores   471.834,48€        Créditos fornecedores  69.710,94€

Débitos disponibilizados               48.271,45€          Créditos disponibilizados             450.394,99€

 

3.2.3 Note-se que este lançamento apesar de ter data contabilística de 31/12/2017, na verdade foi executado no programa de contabilidade na data de 28 de Junho de 2018, supostamente muito depois das contas encerradas, e mesmo após a data de envio do modelo 22 de IRC, o que lançou fundadas dúvidas sobre o mesmo.

3.2.4 Também neste caso solicitamos à empresa, conforme podemos verificar, na notificação elencada no ponto 3.2.40, acima, justificação acerca da natureza do lançamento, acompanhada de comprovativos dos pagamentos elou recebimentos elou eventuais acordos de cessão de créditos que deram origem a tal lançamento, bem como comprovativos bancários dos movimentos aí contabilizados na conta de depósitos bancários do J....

3.2.5      Contudo a empresa apenas respondeu que a situação era idêntica à anterior (ponto 3 da resposta à notificação) mas que "A diferença é que neste lançamento o desdobramento acontece com fornecedores. Até 31/12/2017, a gestão das contas correntes de clientes e fornecedores era independente da contabilidade. Não havia qualquer funcionalidade automática de descarga."

3.2.6 Ora não percebemos esta resposta. Por um lado a situação não é de facto idêntica porque neste caso as contrapartidas usadas para os fornecedores são disponibilidades, ao contrário da situação do lançamento 10006 em que os terceiros movimentaram-se por contrapartida de outros terceiros.

3.2.7      Depois a empresa não responde ao solicitado, ou então não tem elementos com que possa responder, porque que não juntou qualquer comprovativo dos pagamentos elou recebimentos elou eventuais acordos de cessão de créditos que deram origem a tal lançamento, tendo tal sido solicitado, bem como também não exibiu e juntou comprovativos bancários dos movimentos supostamente contabilizados na conta de depósitos bancários, de acordo com as linhas do lançamento.

3.2.8      E de facto, não obtendo resposta, mas intrigados com esta situação, fomos examinar os extractos bancários da empresa, e verificamos que, de facto, no mês de Dezembro de 2017, não se encontravam no extrato bancário do J... quaisquer saídas, da conta de depósitos à ordem, correspondentes aos montantes do lançamento acima evidenciado, que a empresa contabilisticamente lançou a crédito da conta 1221 (depósitos bancários J…).

3.2.9      Mais, alargamos a busca no extrato bancário a todo o exercício de 2017 e não pudemos encontrar tais movimentos.

3.2.10    Portanto, a empresa lançou na contabilidade saídas de montantes, das suas contas do J..., por contrapartida de Fornecedores, quando na verdade não existem registos dessas saídas, desses pagamentos no extrato bancário do J.... E como já acima salientamos, a empresa não exibiu documentação comprovativa desses pagamentos, nem de cessões de crédito, uma vez que há fornecedores a serem lançados a débito e outros a crédito (embora predominantemente a débito).

3.2.11    Este procedimento, nos saldos de terceiros, vai contra as regras contabilísticas (não compensação de saldos) e fiscais, e contra as regras constantes da legislação SAF-T, dado que não pode ser movimentado mais de um terceiro em cada movimento contabilístico.

3.2.12    Ora, na prática o que aqui sucede é que com este lançamento, um artifício, a sociedade faz diminuir os seus passivos (fornecedores), sem contudo sair qualquer montante da empresa uma vez que as saídas da conta do J... na contabilidade, na verdade não aconteceram, como se comprova pelo respetivo extrato bancário.

3.1.13    E como tal, esta situação configura um ganho derivado de uma variação patrimonial positiva (diminuição de fornecedores sem eles serem na verdade pagos) e que a empresa não refletiu no resultado líquido.

A mesma não se encontra excecionada em quaisquer das alíneas a) a e) do n.º 1

do art.º 21.º do C.I.R.C.

3.2.14 Assim sendo, de acordo com o disposto no art.º 21.º do CIRC, consideramos que esse lançamento de redução de saldos de fornecedores, sem haver uma saída real de quaisquer montantes do banco, deve ser acrescida e concorrer para a formação do lucro tributável, pelo montante de 450.394,99 €, correspondente aos montantes lançados a crédito na contabilidade na conta 1221, como contrapartida da redução dos passivos dos fornecedores, mas que na verdade não se mostra que tenham sido realmente pagos, uma vez que essas quantias não saíram da conta bancária, conforme o demonstram os extractos bancários.

P) No âmbito do procedimento inspectivo, a Requerente foi notificada para comprovar a realização dos serviços de consultadoria e prestação de serviços, fornecer cópia dos contratos de prestação de serviços e dos meios de pagamento e informar sobre a natureza dos serviços prestados (documento de fls. 25 a 29 do processo administrativo, que aqui se dá como reproduzido).

Q) Em resposta, a Requerente informou que “as consultadorias e prestações de serviços resultam da promoção de produtos comercializados pelo sujeito passivo que tem em conta a especificidade daquele país, o que implica a necessidade de pagar comissões de intermediação anormalmente elevadas, mas que são economicamente sustentáveis, dadas as altas margens de comercialização que permitem praticar nas vendas para aquele país” (documento de fls. 42 a 44 do processo administrativo, que aqui se dá como reproduzido).

R) Com a mesma resposta, a Requerente juntou facturas emitidas pela B..., Lda e movimentos de transferência bancária e os contratos de prestação de serviços celebrados com a B..., Lda. e C..., Lda. (documentos de fls. 42 a 44 e 45 a 74 do processo administrativo, que aqui se dá como reproduzido).

S) O pedido arbitral deu entrada em 20 de Julho de 2020.

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

Motivação da decisão de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e a solicitação do tribunal no âmbito da instrução do processo, no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, na produção de prova testemunhal em audiência.

 

                Matéria de direito

 

Desconsideração de gastos fiscais incorridos com comissões pagas a entidades de direito angolano

 

5. Em debate está, num primeiro momento, a desconsideração como gasto fiscal, relativamente ao período de tributação de 2017, de facturas emitidas pelas sociedades angolanas B..., Lda. e C..., Lda., no valor global de € 2.233.503,10, a título de prestação de serviços, e que determinaram, na sequência de um procedimento inspectivo, um acréscimo ao lucro tributável nesse mesmo montante.

A Autoridade Tributária justificou a correcção aritmética com diversas considerações acerca da materialidade económica e contabilística das operações, que poderão sintetizar-se nos seguintes termos: (a) os gastos em fornecimentos e serviços externos tiveram um acréscimo significativo entre 2015 e 2017, passando de € 248.802,69, em 2015, para € 1.354.287,07, em 2016, e € 2.688.739,49, em 2017, e baixaram abruptamente, em 2018, para € 268.731,27; (b) as facturas que titulavam os lançamentos contabilísticos, emitidas pelas sociedades angolanas, tinham o descritivo genérico de "serviços de consultadoria e prestação de serviços"; (c) os valores constantes das facturas atingem um valor inusual e desproporcionado, tendo em conta a dimensão da empresa e a sua estrutura de gastos totais (d); os documentos emitidos pela B..., Lda. são todos datados de Maio de 2017 e os provenientes da C..., Lda. de Dezembro desse ano, mais concretamente dos dias 19 e 22 desse mês.

À luz destes considerandos, a Autoridade Tributária conclui que os documentos justificativos dos gastos não preenchem os requisitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIRC, na medida em que não contêm a especificação e a quantificação dos serviços prestados, nem a data ou o período temporal a que respeitam, pelo que terão sido lançados na contabilidade do sujeito passivo de modo artificioso para efeito de reduzir o lucro tributável sujeito a imposto.

Em contraposição, a Requerente sustenta que os gastos respeitam à prestação de serviços de representação comercial por parte de parceiros estratégicos que visavam a exportação de produtos farmacêuticos para o mercado angolano, que começaram por ser contratualizados com a B..., Lda. e, por conveniência comercial desta entidade, transitaram para a C..., Lda. Por intermediação dessas empresas, comercializou produtos farmacêuticos para Angola, entre 2013 e 2017, remunerando a actividade das suas representantes através de comissões sobre as vendas realizadas, relativamente às quais eram emitidas facturas, que foram pagas por transferência bancária. Acrescenta a Requerente que a quebra do volume de negócios ocorrida em 2018 se ficou a dever à circunstância de a B... e a C... terem deixado de prestar serviços de representação comercial a favor da Requerente por virtude de, entretanto, terem constituído uma empresa concorrente em Portugal através da qual passaram a comercializar directamente os produtos farmacêuticos para Angola.

Para a análise da questão, interessa começar por ter presente a disposição do artigo 23.º do Código de IRC, que define os gastos e perdas dedutíveis para a determinação do lucro tributável.

Como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IRC, os gastos dedutíveis “devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito”. E no caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo deve conter, pelo menos, os seguintes elementos: a) nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário; b) números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional; c) quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados; d) valor da contraprestação, designadamente o preço; e) data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados” (cfr. n.º 4).

 

Tratando-se, no caso, de aquisição de bens ou serviços, a documentação exigível seria a constante do n.º 4, que, na redacção resultante da reforma de IRC de 2014, consagrou o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência no sentido de considerar como bastantes, para a dedutibilidade do gasto, os elementos que identifiquem a operação realizada (sujeitos, objecto, data e preço). E que afasta, por conseguinte, os requisitos mais exigentes do artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA quanto às formalidades das facturas para efeito do direito de dedução do imposto (cfr. GUSTAVO LOPES COURINHA, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 2019, Coimbra, págs. 105-106).

 

Da referida disposição, conclui-se que são dedutíveis, para a determinação do lucro tributável, todos os gastos e perdas que tenham conexão com a actividade empresarial, com exclusão das despesas tidas como não dedutíveis a que se refere o artigo 23.º-A, n.º 1, entre as quais se inclui, as despesas não documentadas, ou seja, aquelas que não têm por base qualquer documento justificativo ou de suporte documental a nível contabilístico, e, como tal, não especificam a sua natureza, origem ou finalidade (acórdão do TCA Sul de 7 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 04690/11). alínea b)). 

 

E, por outro lado, para efeito do controlo do lucro tributável, sobre o sujeito passivo incidem obrigações acessórias que não se cingem às obrigações declarativas, como a referente à declaração periódica de rendimentos (artigo 120.º), mas incluem obrigações contabilísticas, como as mencionadas nas disposições dos artigos 17.º, n.º 3, e 123.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), que pressupõem que o lucro tributável seja determinado com base na contabilidade. Ou seja, o ponto de partida da quantificação da base tributável é o resultado líquido do exercício, o qual se apura através dos registos contabilísticos.

 

Quanto à prova documental dos gastos, e mesmo que se considere exigível que do documento justificativo constem os elementos que identifiquem ou operação ou a transacção realizada, não poderá perder-se de vista a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no acórdão Barlis proferido no Processo n.º C 516/14, quanto às formalidades das facturas para efeitos de IVA. O TJUE tem salientado que as especiais exigências quanto ao teor das facturas não podem ser entendidas de modo absoluto e mesmo nos casos em que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais que sejam exigidos a respeito das facturas emitidas, nem por isso se deverá negar o direito de deduzir o montante de imposto por estes suportado a montante, conquanto estejam verificados os respectivos requisitos materiais. Para o efeito, esclarece o Tribunal de Justiça que a Administração não deverá apenas ter em conta as facturas em si consideradas, mas também as informações complementares prestadas pelo sujeito passivo. No fundo, o TJUE admite a prevalência da substância sobre a forma com intuito de garantir que os eventuais vícios formais das facturas não obstam ao direito de o sujeito passivo deduzir o montante de imposto que tenha suportado a montante para a prática das operações sujeitas a IVA.

 

Transpondo esta orientação para a dedutibilidade de gastos para efeitos fiscais para determinação do lucro tributável em IRC, não pode deixar de reconhecer-se que a Administração Tributária deverá atender aos elementos complementares que tenham sido fornecidos pelo contribuinte de modo a aferir a fiabilidade dos dados inscritos na contabilidade e das operações comerciais que tenham sido realizadas (cfr., neste sentido, o acórdão proferido no Processo n.º 773/2019-T).

 

6. Revertendo ao caso concreto importa reter o seguinte.

 

Em 27 de Novembro de 2012, a Requerente celebrou com a sociedade de direito angolano B..., Lda., um contrato de prestação de serviços para sua representação comercial, em vista à comercialização de produtos farmacêuticos em Angola. Mais tarde, em 23 de novembro de 2016, celebrou um contrato de prestação de serviços de representação comercial com a sociedade e direito angolano C..., Lda. constituída por sócios da B..., Lda. e com gerência comum com a desta última entidade.

 

Nos termos dos contratos de prestação de serviços, a actividade de representação comercial era remunerada através de comissões de valor variável até 130% sobre o montante global das facturas pagas em cada ano à empresa, negociado casuisticamente em função de cada uma das encomendas que tenham sido realizadas.

 

Entretanto, em 24 de Novembro de 2018, foi constituída a sociedade de direito português G..., Lda, de que eram titulares sócios da B..., Lda e da C..., Lda., que poderá ter justificado a quebra do volume de negócios da Requerente nesse ano, por essa entidade ter passado a comercializar directamente produtos farmacêuticos para Angola.

 

No decurso do processo arbitral, a Requerente juntou um quadro-resumo em ficheiro excel com os seguintes elementos de informação: numeração das facturas de venda de produtos para o mercado angolano, data, valor da contraprestação, identificação dos adquirentes dos bens, valor de encargos de transporte relativo a cada factura, valor total das vendas, identificação da entidade a quem é devida comissão pelas vendas, numeração das facturas relativas a comissões, data e valor das comissões, margem comercial das comissões, margem comercial da Requerente.

 

Encontra-se ainda junta a documentação relativa a cada um desses elementos de informação, incluindo os extractos de contas correntes do ano de 2017, das contas onde se encontram contabilizadas a vendas, as comissões e os movimentos nas contas de terceiros relacionadas com a D... e as sociedades B..., Lda. e C..., Lda.

 

Por amostragem, a Requerente juntou ainda conjuntos de facturas de compras de produtos farmacêuticos e de vendas para o mercado angolano e de comissões pagas às sociedades B..., Lda. e C..., Lda., que constituem os documentos 10 a 12 e 14 a 30 anexos ao requerimento de 25 de Maio de 2021.

 

À luz de todos estes elementos, haverá de entender-se que a prova produzida no processo aponta com verosimilhança para a materialidade das operações.

 

A Requerente apresentou documentação atinente à actividade desenvolvida com os seus parceiros angolanos, incluindo no tocante ao valor total da facturação e aos valores das comissões pagas, sendo que o pagamento das comissões se encontra justificado através dos contratos de prestações de serviços de representação comercial celebrados com a B..., Lda. e C..., Lda., e que se encontram igualmente documentados nos autos.

 

Como resulta da prova testemunhal produzida, com apoio na documentação junta, a colocação de produtos farmacêuticos em Angola foi efectuada essencialmente através da D... por intermediação da sociedade B... e esta passou a ser também adquirente de produtos quando a representação comercial da Requerente transitou para a C.... Essa intermediação era necessária por virtude do custo elevado que a instalação da empresa em Angola, para efeito da gestão directa das vendas e clientes, poderia acarretar.

 

Ficou ainda demonstrado que o valor da venda dos produtos no mercado angolano resultava da aplicação de uma comissão, acrescida ao preço de venda dos produtos, que incluía a margem de comercialização da Requerente, comissão essa acordada caso a caso, na medida em que dependia do preço de colocação no mercado angolano. E a circunstância de a emissão de facturas referentes a comissões se centrar no mês de Maio de 2017, no caso da B..., e no mês de Dezembro, no caso da C..., encontra explicação na necessidade de apurar o volume de vendas mediante um acerto de contas, quer porque aquela entidade era simultaneamente intermediária e adquirente dos produtos, quer por virtude de vicissitudes relacionadas com o transporte das mercadorias que geravam algum grau de incerteza quanto à efectividade das vendas.  

 

A quebra na faturação e das comissões associadas ocorrida em 2018 é, por outro lado, justificada pela constituição, por parte dos representantes legais da B... e da C..., de uma sociedade de direito português, a G..., que veio permitir que a comercialização dos produtos para o mercado angolano por essas entidades pudesse ser feita directamente através dessa empresa concorrente.

 

Realidade esta que se apresenta como forte evidência da efectiva actividade das sociedades B... e C... a favor dos negócios da Requerente, em especial junto da D..., garantindo o acompanhamento e angariando as respectivas encomendas.

 

Vindo a demonstrar que a D..., ao contrário do alegado pela Autoridade Tributária, era cliente das sociedades angolanas B... e C..., uma vez que, com o fim da parceria com estas sociedades a Requerente deixou de receber encomendas daquela entidade, daí resultando o forte declínio do volume de vendas para Angola.

 

Certo é que a Requerente, através dos documentos n.ºs 10 a 12 e 14 a 30 anexos ao requerimento de 25 de maio de 2021, se limitou a juntar grupos de facturas por amostragem, o que impede que se possa estabelecer uma directa e precisa correlação entre as comissões consideradas como gastos e os rendimentos com elas relacionados.

 

No entanto, a amostra permite verificar, na generalidade, a correspondência entre as compras e as vendas e as comissões, e, por lado, como se esclarece no requerimento da Requerente de 25 de Maio de 2021, há facturas que não têm qualquer comissão por respeitarem a produtos novos de venda incerta e há outras que não contemplam qualquer margem de comercialização por se tratar de produtos de promoção que são vendidos ao preço de custo.

 

Por outro lado, como se constata pelo descritivo, as facturas relativas a pagamentos de comissões apenas qualificam os serviços prestados como sendo de “serviços de consultadoria e prestação de serviços” o que constitui uma menção genérica que não permite evidenciar, pelo próprio exame do documento, a natureza dos serviços efectivamente realizados.

Esse foi também um factor determinante para os serviços inspectivos desconsiderarem as despesas para efeitos fiscais, entendendo que a descrição não permite concretizar a natureza do gasto nem relacioná-lo com a actividade da empresa.

No entanto, a Requerente, a solicitação da Autoridade Tributária, no âmbito do procedimento inspectivo, juntou os contratos de prestação de serviços que constituem os documentos n.ºs 2 e 4 anexos ao pedido arbitral e facturas exemplificativas da venda de produtos para o mercado angolano, e informou que as consultadorias e prestações de serviços resultam da promoção de produtos comercializados para o mercado angolano.

E esses elementos de informação seriam suficientes para a Administração qualificar os gastos como respeitantes à actividade empresarial do sujeito passivo, no quadro dos contratos de representação comercial celebrados com as entidades angolanas.

7.  Como se deixou entrever, para desconsiderar os gastos com comissões incorridos pela Requerente por efeito da intermediação da B... e C... na venda de produtos farmacêuticos para o mercado angolano, a Autoridade Tributária assenta essencialmente em juízos presuntivos, a que acima se fez já referência: acréscimo significativo dos gastos em fornecimentos e serviços externos entre 2015 e 2017 e  redução acentuada em 2018; valor inusual e desproporcionado das facturas; descrição genérica dos serviços prestados; datação dos  documentos justificativos em certos períodos temporais.

 

Todas essas condicionantes encontram, no entanto, na prova produzida no processo arbitral e já antes no procedimento tributário, uma explicação plausível.

 

Em primeiro lugar, não pode deixar de reconhecer-se, tal como se concluiu no acórdão Barlis, em situação similar, que embora a menção “serviços de consultadoria e prestação de serviços” não respeite, em princípio, as exigências previstas no n.º 4 do artigo 23.º do CIRC, as autoridades tributárias não podem recusar o direito a dedução dos gastos para efeitos fiscais quando, através de documentos contratuais e outros dados fornecidos pelo contribuinte, podem obter a informação complementar sobre a natureza e o carácter empresarial dos serviços prestados.

 

Em segundo lugar, quer a redução de fornecimentos e serviços em 2018, quer o elevado valor das comissões pagas, quer ainda a concentração temporal da emissão de facturas encontram-se explicados, perante a prova produzida, pelas circunstâncias específicas do negócio, e, em especial, pelos seguintes considerandos: (a) a criação, em Portugal, pelos sócios das empresas angolanas intermediárias, de uma empresa concorrente destinada a comercializar directamente os produtos farmacêuticos para Angola; (b) o elevado preço da venda dos produtos no mercado angolano sobre que incidia o pagamento da comissão; (c) as condições de  apuramento dos valores a pagar, que dependiam de acerto de contas e do volume de vendas efectivas que tenham ocorrido num dado período.

 

Resta acrescentar que não pode servir de argumento para a desconsideração dos gastos suportados com comissões pagas a entidades de direito angolano a circunstância, alegada pela Autoridade Tributária, de não ter havido lugar à retenção na fonte relativamente aos rendimentos provenientes da actividade de intermediação, nos termos do artigo 94.º, n.º 1, alínea g), do CIRC.

 

O incumprimento da referida disposição legal não permite inferir que o sujeito passivo não chegou a incorrer nos custos ou que estes não têm relação com a actividade empresarial, e  apenas poderia determinar, como consequência, que a Administração devesse proceder à correspondente correcção tributária, tributando os rendimentos por via do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido.

 

Por tudo, face à prova produzida, subsiste fundada dúvida sobre a existência e a quantificação do acto tributário, o que é suficiente, em atenção ao disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, para anular a liquidação.

 

Variação patrimonial positiva

 

8. Uma segunda questão em análise refere-se à correcção aritmética, no valor de € 450.394,99, correspondente aos montantes lançados a crédito na contabilidade na conta 1221, como contrapartida da redução dos passivos dos fornecedores, mas que não tem correspondência nos extractos bancários através de saídas de dinheiro, e que a Autoridade Tributária entendeu constituir um ganho derivado de uma variação patrimonial positiva a que é aplicável o disposto no proémio do artigo 21.º do CIRC.

 

A Requerente sustenta que tinha um programa de facturação e de gestão de contas correntes de clientes e fornecedores autónomo em relação ao programa de contabilidade, e tendo constatado, relativamente ao exercício de 2017, que havia um conjunto de movimentos que não estavam devidamente registados na contabilidade, procedeu à reconciliação entre os saldos das contas de clientes e de fornecedores e de pagamentos e recebimentos. Vindo a concluir que, tratando-se de rectificações de movimentos que ocorreram efectivamente e não estavam evidenciados na contabilidade, não se verifica um qualquer acréscimo do património que deva reflectir-se no aumento do lucro tributável a título de variação patrimonial positiva.

 

Analisando esta questão, importa ter presente que uma variação patrimonial, na terminologia do Código do IRC, corresponde a uma alteração de valor nos capitais próprios de uma entidade, e, tratando-se de uma variação patrimonial positiva, deverá traduzir-se num aumento dos capitais próprios, ou seja, num rendimento obtido ou numa anulação de um gasto, que é contabilizado numa conta dos capitais próprios, e não numa conta de rendimentos (classe 7 do SNC) ou numa conta de redução de gastos (classe 6 do SNC).

 

Dito de outro modo, podem considerar-se variações patrimoniais positivas as ocorrências que fazem aumentar o património líquido de uma empresa sem que esse aumento tenha passado a integrar os capitais próprios pela via do resultado líquido do período.

 

As variações no capital próprio (positivas ou negativas), apesar de não influírem no resultado contabilístico, implicam um acréscimo ou uma diminuição do património da empresa e, por isso, se compreende que constituam uma componente do lucro tributável, a par dos rendimentos e dos gastos. É esse o princípio-regra que resulta das disposições conjugadas dos artigos 17.º, n.º 1, 21.º, n.º 1, e 24.º, n.º 1, do CIRC, segundo o qual as variações patrimoniais positivas ou negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas no resultado contabilístico do exercício concorrem para a formação do lucro tributável.

 

E, deste modo, e sem prejuízo das exclusões que se encontram especialmente previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 21.º e do n.º 1 do artigo 24.º, pretende-se fazer relevar a parte do acréscimo ou da diminuição patrimonial que não resulta directamente da actividade empresarial,

 

Ora, na situação do caso, a Autoridade Tributária não põe propriamente em causa que os lançamentos contabilísticos tivessem em vista a regularização de saldos e apenas discute que a redução do passivo de fornecedores não tivesse sido acompanhada dos correspondentes lançamentos a crédito.

 

No entanto, a Requerente efectuou prova consistente, designadamente através dos documentos n.ºs 16 a 27 juntos ao pedido arbitral e da prova produzia em audiência (testemunha K…) que a reconciliação dos saldos das contas de clientes e fornecedores teve em vista a rectificação de movimentos que não estavam registados na contabilidade mas se encontravam devidamente documentados.

 

Tratando-se, nestes termos, de uma regularização contabilística que não tem qualquer reflexo nos capitais próprios da Requerente, não pode ser tida como uma variação patrimonial positiva para efeito do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, ocorrendo com  a referida correcção a violação desta disposição legal.

 

Vícios de conhecimento prejudicado

 

9. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada pela Requerente.

 

Anulação parcial

 

10. A Requerente manifestou concordância com o Relatório de Inspeção Tributária  relativamente à correcção tributária por acréscimo de proveitos que não estavam lançados na contabilidade, no montante de € 208.311,94, delimitando desse modo o objecto do processo.

 

Nestes termos, a liquidação impugnada é apenas anulada parcialmente, não abrangendo a correcção, por expressa declaração da Requerente, que se encontra excluída do âmbito pedido arbitral.

 

 

Indemnização por prestação indevida de garantia

 

11. A Requerente veio ainda requerer o ressarcimento dos gastos em que venha a incorrer por prestação de garantia indevida, alegando que não procedeu ao pagamento voluntário da liquidação de imposto, o que deverá originar a instauração do competente processo de execução fiscal e a consequente prestação de garantia para suspender a execução.

 

Sem dúvida que o artigo 171.º do CPPT garante a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada, que poderá ser requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, havendo de entender-se que o processo arbitral é também o meio processual próprio para deduzir esse pedido.

 

O artigo 53.º da LGT admite ainda que o devedor que ofereça garantia bancária ou equivalente para suspender a execução fiscal será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior  a três anos, salvo quando se verifique na impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, caso em que a indemnização não está dependente do prazo pelo qual vigorou a garantia.  

 

Em qualquer caso, a indemnização está dependente da prestação de garantia, tendo em vista o ressarcimento das despesas em que o interessado, a esse título, tenha incorrido.

 

Não tendo sido ainda instaurado o processo executivo nem prestada a garantia destinada a obter a sua suspensão, como refere a Requerente, não se verificam os pressupostos de que depende a atribuição da pretendida indemnização, que assim é improcedente.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido arbitral e anular as liquidações adicionais em IRC n.ºs 2020 … e 2020 …, no que respeita à não aceitação do valor de € 2.233.503,10 como gasto fiscalmente dedutível e à correcção no montante de € 450.394,99, a título de variação patrimonial positiva;

b)           Julgar improcedente o pedido de indemnização por prestação indevida de garantia.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 740.796,88, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Notifique.

 

Lisboa, 7 de Julho de 2021,

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Manuel Lopes Faustino

 

O Árbitro vogal

Henrique Fiúza