Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 314/2021-T
Data da decisão: 2022-01-27  IRS  
Valor do pedido: € 3.522,20
Tema: IRS – Declaração de Substituição de rendimentos; Opção pela tributação conjunta fora do prazo legal.
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DECISÃO ARBITRAL

 

1. Relatório

 

A…, contribuinte fiscal número …, residente na Rua …, VISEU, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei n.º10/2011, de 20 de Janeiro - Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), visando a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2019 …, relativa ao período de tributação de 2019, com valor a reembolsar de € 1.849,22.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

2. Como fundamento do pedido, apresentado em 21-05-2021, a Requerente alega, em síntese, que o ato tributário que constitui o objeto do presente processo se encontra ferido de ilegalidade, porquanto, não foi aceite a declaração de substituição, apresentada em 30-06-2020, com a opção pela tributação conjunta com B…, contribuinte n.º …, com quem vive em união de facto.

 

3. Em resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, considerando dever manter-se na ordem jurídica o ato tributário impugnado e, em conformidade, decidindo-se pela absolvição da entidade requerida, nos seguintes termos:

3.1 Alega, em primeiro lugar, por exceção, a incompetência do Tribunal Arbitral para deferir pedidos de reclamação graciosa, pois considera que a Requerente veio pedir o deferimento da reclamação graciosa.

3.2 Atentos ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, o tribunal é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido da Requerente, o que constitui uma exceção dilatória, nos termos do artigo 576.º e al. a) do artigo 577.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

3.3 Sem proceder, considera a AT que não assiste razão à pretensão da Requerente porque, em primeiro lugar, a Requerente não junta qualquer documento com o pedido de pronúncia arbitral, o que determina que a ação deve ser julgada procedente por não provada.

3.4 Em segundo lugar, invoca-se a doutrina plasmada no Ofício Circulado n.º 20162, de 2012-10-29, da DSIRS, que determina que em sede de reclamação graciosa as opções, no regime de tributação, são passíveis de alteração, mas esta possibilidade aplica-se apenas nas situações em que se pretende alterar a situação familiar do regime opcional (unidos de facto) para o regime regra, o que não é o caso.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral, apresentado em 21-05-2021, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral foi constituído em 27-07-2021.

 

8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

9. As partes, devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

10. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal, considerando que a “posição das partes estar plenamente definida nos Autos e suportada pelos meios de prova documental juntos”, “ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º2 e 29.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária), por despacho de 04-01-2022 decidiu dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do referido Regime, bem como a apresentação de alegações.

 

11. Foi indicada como data-limite para prolação da decisão arbitral o dia 27-01-2022.

 

II. Matéria de facto

 

12. Com relevância para a apreciação da questão suscitada, destacam-se os seguintes elementos factuais, que, com base no acervo documental junto aos autos, mormente o processo administrativo e documentos que o integram, se consideram provados:

 

12.1 Em 07-04-2019, a Requerente submeteu a declaração modelo 3 (ref.ª 2018-…), referente ao período de 2018, com a indicação do estado civil de “Solteiro, divorciado ou separado judicialmente”.

 

12.2 Aquela declaração gerou a liquidação n.º 20019 …, com o reembolso no valor de € 1.849,22.

 

12.3 Em 30-06-2020, submeteu uma declaração de substituição, em conjunto com o contribuinte n.º …, com a indicação de “Unido de facto”.

 

12.4 No dia 13-07-2020, porque a declaração foi registada com o estado de “declaração com anomalias”, apresentou reclamação graciosa, solicitando a liquidação da mesma e a indicação de um valor de reembolso de € 5.371,42, a qual foi indeferida por ofício de 13-11-2020.

 

12.5 Do indeferimento foi apresentado recurso hierárquico em 24-11-2020, também indeferido no dia 08-02-2021.

 

13. A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada, designadamente a constante do processo administrativo junto pela Requerida.

 

14. Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.

 

III. Matéria de direito

 

 

1.            Da exceção de incompetência material do tribunal arbitral

 

A título prévio, a Requerente veio invocar a exceção de incompetência material do tribunal arbitral por ter a Requerida solicitado o deferimento da reclamação graciosa. Invoca, para tal, o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que apenas confere competência ao tribunal arbitral para se pronunciar sobre a legalidade dos atos de liquidação impugnados.

 

Conforme referido, de acordo com o disposto no artigo 2º do RJAT, compete aos tribunais arbitrais, no que agora interessa, “a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (…)”

 

No entanto, conforme se diz na Decisão Arbitral relativa ao Proc. 164/2018-T, são ainda incluídas nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, para além da apreciação direta da legalidade de atos de liquidação de tributos, descritos no artigo 2º do RJAT, as competências para apreciar os atos que decidem reclamações graciosas (atos de segundo grau) e recursos hierárquicos das decisões de reclamações graciosas (atos de terceiro grau), em ambos os casos “que apreciem a legalidade desses actos primários [actos de liquidação], designadamente actos de indeferimento de reclamações graciosas e actos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações” (vide Jorge Lopes de Sousa in “Guia da Arbitragem Arbitrária”, Lisboa. 2016, págs. 102/103). conforme se depreende das referências expressas que se fazem no artigo 10º, nº 1, alínea a), do RJAT ao entretanto revogado nº 2 do artigo 102º do CPPT (que se reportava, como acima referido, à impugnação judicial de decisões de reclamações graciosas) e à decisão do recurso hierárquico.

 

Ou seja, a expressão “a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (…)”, utilizada na alínea a), do nº 1 do artigo 2º do RJAT não restringe o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato daquela natureza, mas inclui aqueles em que a ilegalidade do ato de liquidação tenha sido objeto de decisão de um ato de segundo ou terceiro graus (decisão de reclamação graciosa, pedido de revisão oficiosa ou recurso hierárquico) que tenham confirmado o ato de liquidação subjacente.

 

Na interpretação e enquadramento do pedido, devemos, por outro lado, desconsiderar as eventuais incorreções formais que não obstem ao conhecimento do que é efetivamente pretendido pelas partes. Como se refere no Acórdão do STA de 08-01-2014, relativo ao processo n.º 032/13: “(…) os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão.” – disponível em www.dgsi.pt.

 

Ou seja, no pedido apresentado, a Requerente vem, logo no primeiro parágrafo, “...reclamar do valor do reembolso da Liquidação n.º 2019...”, o que nos indica, sem margem para dúvidas, que o objeto do pedido é a anulação daquela liquidação de IRS. Há, também, que enquadrar o sentido da frase “que seja diferida a reclamação graciosa” no contexto em que é dito: pretende-se que seja a AT condenada a proceder à liquidação “da declaração de substituição da Modelo 2 de 2018 n.º …”, com o consequente reembolso do valor de € 3.522,20, que constitui o valor do presente processo.

 

Pelo exposto, não procede a exceção dilatória de incompetência do tribunal invocada pela Requerida.

 

2.            Da falta de prova dos factos impugnados

 

Alega ainda a Requerida que “A Requerente não junta qualquer documento com o pedido de pronúncia arbitral” (que faça prova dos fundamentos do pedido), “com exceção da demonstração de liquidação de IRS de 2018 e de um documento dirigido ao serviço de finanças de … a 13/07/2020 com a epígrafe declaração modelo 3 de 2018 – Reclamação Graciosa.”

 

Não é correta a afirmação da Requerida.

 

Em anexo ao Pedido de Pronúncia Arbitral, a Requerente juntou, com interesse para o pedido, (i) “Atestado” emitido pelo Presidente da Junta de Freguesia de … a confirmar que a Requerente vive em união de facto com o Sr. B…, (ii) declaração de ambos os membros a declarar, sob compromisso de honra, que vivem em união de facto, (iii) certidão de nascimento de ambos os membros e (iv) cópia dos respetivos cartões do cidadão.

 

Ora, os documentos apresentados dão cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 2.º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que, apesar do n.º 1, admitir qualquer meio de prova legalmente admissível, tipifica como um dos meios de prova idóneo a declaração emitida pela Junta de Freguesia, acompanhada de “declaração de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles.”

 

Do exposto, resulta que a Requerente cumpriu com os meios de prova tipificados na lei, dando, assim, cumprimento ao ónus da prova que lhe compete. Com efeito, nos termos do 74.º, n.º 1, da LGT "o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.".

 

Tendo a Requerente invocado, em sede de reclamação graciosa e pedido de pronúncia arbitral a existência de união de facto, competia-lhe provar tal condição, o que consideramos integralmente cumprido.

 

Não procede, por isso, a invocação da Requerida de que não foi feita prova dos factos alegados no pedido.

 

3.            Da alteração do regime de tributação separada para o regime opcional de tributação conjunta

 

Nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na dita lei têm direito à aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

 

Em conformidade, o artigo 59.º do CIRS estabelece que:

1 - Na tributação separada cada um dos cônjuges ou dos unidos de facto, caso não esteja de tal dispensado, apresenta uma declaração da qual constam os rendimentos de que é titular e 50 % dos rendimentos dos dependentes que integram o agregado.

2 - Na tributação conjunta:

a) Os cônjuges ou os unidos de facto apresentam uma declaração da qual consta a totalidade dos rendimentos obtidos por todos os membros que integram o agregado familiar;

b) Ambos os cônjuges ou unidos de facto devem exercer a opção na declaração de rendimentos;

c) A opção é válida apenas para o ano em questão; (Redação da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro).

 

Não há na atual versão do artigo 59.º – redação em vigor à data dos factos - qualquer limitação à alteração do enquadramento tributário ao contrário do que sucedia na al. d) do n.º 2 do artigo 59.º na redação em vigor até 31 de dezembro de 2016 que não admitia que os contribuintes pudessem alterar a aplicação do regime de tributação regra – tributação separada – pelo regime opcional – tributação conjunta, a não ser que tivessem feito essa opção dentro do prazo legal de entrega da declaração.

 

Não existindo limitação legal especificamente prevista para o caso, é aplicável à entrega da declaração de substituição o disposto no n.º 3 do artigo 59.º do CPPT que regula a substituição das declarações.

 

Assim, em caso de erro de facto ou de direito, as declarações dos contribuintes podem ser substituídas, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber, quando desta resultar imposto superior ou reembolso inferior ao anteriormente apurado, até ao termo do prazo legal de reclamação graciosa ou impugnação judicial da liquidação de que resulte imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração apresentada (ponto II da alínea b) do n.º 3 do artigo 59.º do CPPT).

 

Tendo a Requerente comprovado a situação de união de facto, nos termos do artigo 14.º da CIRS, e encontrando-se dentro do prazo artigo 59. n.º 3 al. b) ponto II do CPPT para entrega da declaração de substituição, não existe nenhum impedimento legal para que não seja alterado o regime de tributação.

 

A invocação pela Requerida do disposto no ofício-circulado n.º 20162, de 29 de outubro de 2012, apenas vincula os serviços dado que os ofícios-circulados e demais circulares administrativas constituem orientações genéricas emanada pela AT e não atos legislativos, conforme jurisprudência consolidada.

 

Segue-se, por isso, a jurisprudência citada no Acórdão do CAAD, relativo ao Proc. 418/2018-T: Neste sentido, refere o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29 de novembro de 2017, no processo 1292/16 que: “sendo certo que o princípio da legalidade em matéria tributária exige que a incidência dos impostos, respetivas taxas, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes sejam determinados apenas por atos de natureza legislativa (não regulamentar) — cfr. o nº 2 do art. 103° da CRP e o nº 1 do art. 8° da LGT —, então não poderá relevar, na parte em que contende com este princípio, a orientação a este propósito constante da referida Circular […]” (no mesmo sentido, vide também o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23 de abril de 2008, proferido no processo n.º 2312/08, acessível em www.dgsi.pt).

 

Em conclusão, por erro sobre os pressupostos de direito, é anulável o despacho que ditou o indeferimento do recurso hierárquico, na parte em que determinou a inadmissibilidade da apresentação da declaração de substituição com opção pela tributação conjunta, e, bem assim, a anulação da liquidação oficiosa de IRS 2019 … nos mesmos termos.

 

IV. Decisão

 

Nos termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o despacho de indeferimento do recurso hierárquico e o ato tributário de liquidação de IRS 2019 …, que constitui seu objeto, por vício de violação de lei por erro nos pressupostos, com as legais consequências.

 

Valor do processo:

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) fixa-se ao processo o valor de € 3.522,20, nos termos apresentados pela Requerente e não contestado pela Requerida.

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 612,00, a cargo da Requerida (AT).

 

Lisboa, 27 de janeiro de 2022

 

O Árbitro

(Amândio Silva)