Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 307/2021-T
Data da decisão: 2021-11-18  IRC Outros 
Valor do pedido: € 47.275,17
Tema: IRC; CFI; RFAI; legalidade da administração; legalidade tributária; reserva de lei; prevalência da lei e precedência de lei
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SUMÁRIO:

I.             O artigo 2.º, n.º 3, do CFI e o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014 não padecem de inconstitucionalidade por violação dos princípios da legalidade da administração nas suas dimensões de reserva de lei, prevalência de lei e precedência de lei.

II.            O RFAI não se aplica a atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1             RELATÓRIO

1. A…, S.A. (doravante Requerente), sociedade comercial anónima, NIPC n.º …M, matriculada na Conservatória do registo comercial com o mesmo número de matrícula, com sede no …, …, ...., tendo sido notificada pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Requerida ou AT), serviço de finanças de ...., das demonstrações de liquidação de IRC relativas ao ano de 2017 (liquidação n.º 2021 …, de 03.03.2021) e ao ano de 2018 (liquidação n.º 2021 …, de 04.03.2021), no montante de, respetivamente, € 12.921,73 e € 31.148,20, e correspondentes liquidações de juros compensatórios de 2017 (liquidação n.º 2021 …, de 04.03.2021) e de 2018 (liquidação n.º 2021 …, de 05.03.2021), no montante de, respetivamente, € 1.239,07 e € 1.966,17, tudo num valor global de € 47.275,17, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação), tendo como objeto a declaração de ilegalidade das referidas liquidações e consequente anulação das liquidação adicionais de IRC e correspondentes liquidações adicionais de juros compensatórios.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 18.05.2021.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 08.07.2021.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 27.07.2021.

 

6. A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 30.09.2021, onde, por impugnação, sustentou a improcedência da pretensão da Requerente e, subsidiariamente, o reenvio prejudicial da questão da interpretação do direito da União Europeia parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

 

7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, concedendo um prazo para alegações finais, através de despacho proferido em 01.10.2021.

 

                8. A Requerente apresentou alegações finais em 25.10.2021, reiterando o exposto na petição inicial, tendo a Requerida apresentado alegações em 16.11.2021, mantendo integralmente a sua posição inicial.

 

1.1          Descrição dos factos

9. A Requerente é uma empresa líder no setor Agropecuário, responsável pela distribuição de bens para alimentação animal e produtos para a agricultura, tendo também participação no setor dos combustíveis através de um posto de abastecimento. Durante o exercício de 2018, iniciou uma nova área de negócio, a fabricação de alimentos para animais de criação (CAE 10912), tendo, para o efeito, investido em equipamentos produtivos em estado de novo e essenciais ao desenvolvimento desta nova área.

10. No ano de 2017, o sujeito passivo realizou investimentos na aquisição de equipamentos produtivos para a área de negócios de fabricação de alimentos para animais e na implementação de uma linha de limpeza de cevada. Com referência ao investimento efetuado em 2017, a Requerente usufruiu dos benefícios fiscais RFAI e DLRR, tendo apurado a seguinte dotação e dedução à coleta do período:

                                                

11. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo externo levada a cabo pela AT, serviço de finanças de ...., que decorreu sob as ordens de serviço n.º OI2020… e OI2020…, no âmbito do IRC, com incidência sobre os anos de 2017 e 2018, tendo o Projeto de Correções do Relatório de Inspeção – a respeito dos benefícios do regime fiscal de apoio ao investimento RFAI e deduções por lucros retidos e reinvestidos (DLRR), na base das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014 (RGIC) e do n.º 1 do artigo 22.º do CFI e do artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro – concluído que, sendo a atividade desenvolvida pela Requerente essencialmente de mistura e trituração de cereais e estando as diversas matérias-primas e o produto final (alimentos preparados para animais) enumerados na nomenclatura do Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), as mesmas não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais em virtude de não o serem os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores da produção agrícola primária e da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados nesse Anexo I.

12. No tocante ao benefício de DLRR, embora a AT tenha começado por entender que os investimentos efetuados pela Requerente não seriam elegíveis, nos termos da Portaria n.º 282/2014, das  OAR e do RGIC – por terem como objeto uma série de atividades económicas de  produção agrícola primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE – acabou por concluir, na sequência do exercício do direito de audição, que a atividade desenvolvida pela Requerente, abrangida pelo CAE 10912, se enquadra na definição de «transformação de produtos agrícolas» [apresentada no ponto 10) do art.º 2.º do RGIC], não estando por isso excluída do âmbito de aplicação da DLRR, ao contrário do que sucede com o RFAI, tendo a Requerente sido notificada, através do Ofício n.º …, de 03.02.2021, do relatório de inspeção tributária (RIT) através do qual a AT procedeu a correções, em sede do IRC, no montante global de € 47.275,17, e à emissão das correspondentes liquidações objeto do presente processo.

 

13. A Requerente procedeu à liquidação do valor de € 14 160,80, aos 21.04.2021, e do valor de € 33 114,37, aos 22.04.2021, referentes às liquidações ora impugnadas.

 

1.2          Argumentos das partes

14. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na questão de saber se os investimentos realizados pela Requerente estão abrangidos pelo benefício do RFAI.

15. A Requerente sustenta a ilegalidade das correções e liquidações acima mencionadas com os argumentos que a seguir se sintetizam:

a)            A não elegibilidade das atividades de produção agrícola primária e transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas no âmbito do RFAI não parte de uma necessidade de exclusão de incentivos para estes setores, nem da ausência de necessidades de incentivos e demais apoios a estes setores para o crescimento nacional e europeu, mas à existência de programas específicos, que apoiam e incentivam o setor da agricultura;

b)           Na Portaria n.º 230/2014, de 11 de novembro, que estabelece o regime de aplicação da ação 3.2, «Investimento na exploração agrícola» e da ação 3.3, «Investimento na transformação e comercialização de produtos agrícolas» no âmbito do PDR 2020 (Programa de Desenvolvimento Rural do Continente), especificamente no Anexo I, enumeram-se as atividades industriais contempladas no programa agrícola específico deste quadro comunitário, no que respeita à transformação e comercialização de produtos agrícolas, verificando-se que o CAE da Requerente, CAE 10912 - Fabricação de alimentos para animais de criação, não se encontra abrangido pelos incentivos específicos existentes;

c)            A recorrência à elegibilidade no PDR não é exclusiva da Requerente, tendo já a AT emitido pareceres (v.g. PIV 14061, PIV 17587, Processo 2018 002452) a respeito da “transformação e comercialização de produtos agrícolas”, fazendo este paralelismo (embora no sentido inverso), tendo-se considerado, por exemplo, que os CAE 10130, 10393, 10130, 10110, 11021, não estando abrangidos pelo RFAI, caiam no âmbito de aplicação do PDR 2020, podendo concluir-se pela existência de uma quase complementaridade entre os programas que apoiam a transformação e comercialização de produtos agrícolas e o RFAI, pelo que, se um investimento não estiver abrangido por aqueles, deve estar abrangido por este;

d)           Decorre da diversidade de matérias envolvidas (v.g. ácidos fordos de óleo de palma, aveia branca e preta, cloreto de sódio) – sendo uma parte dessas matérias já produtos transformados e excluídas do Anexo I do TFUE (v.g. o cloreto de sódio, contemplado no capítulo 25 da Nomenclatura combinada; ou o Bicarbonato de sódio, contemplado na divisão 28; ou o óleo de palma da divisão 15.11) – e do próprio processo industrial (v.g. moagem, mistura, melaçamento, granulação e embalamento), que o produto resultante do processo de transformação efetuado pela Requerente, não obstante o seu enquadramento capítulo 23 da Nomenclatura Combinada (“Resíduos e desperdícios das indústrias alimentares; alimentos preparados para animais”), pode ser enquadrado também na divisão 19 – Preparados de cereais, tendo em conta a sua composição, capítulo este excluído do Anexo 1 do TFUE;

e)           Ainda que a AT entenda que faz sentido a aplicação da restrição prevista no que respeita à transformação e comercialização de produtos agrícolas, os produtos da Requerente não são, na sua totalidade, produtos constantes da lista de produtos agrícolas previstos no Anexo I do TFUE;

f)            O artigo 2.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 44/2014, concedeu autorização ao Governo para aprovar, no âmbito do novo Código Fiscal do Investimento (CFI), um novo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), com o sentido e a extensão enunciados no n.º 3 – onde se incluía “Definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional” – o que o Governo fez através do Decreto-Lei n.º 162/2014, sendo que, por remissão do seu artigo 22.º, o CFI, no artigo 2.º, n.º 1 e 2, elencava as atividades económicas dos projetos de investimento que seriam abrangidas pela concessão de auxílios, respeitando o âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC, e o n.º 3 remetia para portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia a definição dos códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número 2.º;

g)            De acordo com esse enquadramento, o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, para que remetia o artigo 2.º, n.º3, do CFI,  considerava não elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tivessem por objeto, entre outras, as atividades económicas de produção agrícola primária e  transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE, tendo o n.º 2 estabelecido os CAE correspondentes às atividades do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014 – incluindo, na alínea b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 32 – devendo entender-se não ser constitucionalmente admissível a definição do âmbito objetivo de benefícios com base numa portaria, porque se trata de matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo ser regulada por lei formal ou decreto-lei autorizado, como decorre do preceituado nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea i), e 198.º, n.º 1, alínea b) da CRP;

h)           A atividade da Requerente, com o código CAE 10912, incluída na divisão 10, grupo 109, classe 1091, anexo ao Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro, é uma das indicadas na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que abrange «Indústrias transformadoras – divisões 10 a 33, não estando excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC;

i)             No que diz respeito às OAR, o ponto (33) dispõe que, em virtude das especificidades do setor, as mesmas não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários, embora se apliquem à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nestas mesmas orientações, admitindo a secção 1.1.1.4., ponto (168), das OAR relativas ao Setor Agrícola, aplicável por força da nota 11 da § 10 das OAR, que os Estados-Membros possam conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio, a saber o RGIC, as OAR e as condições definidas nessa secção, devendo concluir-se, em face do exposto, que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas (designadamente da fabricação de alimentos para animais de criação) se encontra efetivamente abrangida pelas OAR 2014-2020;

j)             Pretendendo o legislador assegurar que os benefícios fiscais concedidos ao abrigo do RFAI se destinam especificamente aos setores de atividade abrangidos pelas OAR 2014-2020, não pode a AT vedar a aplicação dos mesmos à atividade de fabricação de alimentos para animais de criação, sendo irrelevante que a referida atividade seja abrangida pelo âmbito sectorial das OAR 2014-2020 por via da remissão operada através dos §33 e §168 das Orientações para os Auxílios Estatais no Setor Agrícola, sob pena de tal comportar uma interpretação restritiva do verdadeiro alcance do âmbito de aplicação das OAR 2014-2020, intenção essa que de modo algum pode ser tida como pretendida pelo legislador;

k)            As liquidações enfermam de um erro de direito, quanto à invocação das OAR como obstáculo à aplicação do benefício fiscal, pois era primacialmente com base nas específicas «Orientações para os auxílios estatais no setor agrícolas» que a questão tinha de ser apreciada e só se se concluísse que estas não derrogam, total ou parcialmente as OAR se poderia concluir pela exclusão do benefício fiscal com base nestas, o que não é o caso, pelo que se deve concluir que nem as OAR do setor agrícola nem as OAR em geral afastam a aplicação do RFAI;

l)             No que diz respeito ao RGIC, os considerandos 10 e 11  estabelecem a aplicação do mesmo à maioria dos setores económicos, incluindo o setor agrícola, admitindo regras especiais de limitação no caso de produção agrícola primária e a sujeição a determinadas condições dos auxílios concedidos à transformação e comercialização de produtos agrícolas, sendo que estes integram o âmbito dos auxílios de finalidade regional, não sendo considerados orientados para setores específicos da atividade económica, para efeitos do artigo 13.º, alínea b) do artigo 13.º do RGIC;

m)          O artigo 1.º, nº. 1, alínea a) do RGIC, dispõe que este diploma é aplicável, além do mais, aos auxílios com finalidade regional, como são os previstos no n.º 2 do artigo 2º do CFI, sendo que a exclusão dos auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, apenas se verifica nos casos previstos na alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do referido regulamento, a saber, sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa ou for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários;

n)           Independentemente de os produtos resultantes da atividade da Requerente se tratarem ou não de produtos enumerados no Anexo I do TFUE, deve concluir-se que o RGIC é aplicável aos auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os outros casos cuja exclusão não esteja prevista na mencionada alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC, o que é dizer que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas é abrangida pelo RGIC na medida em que não estejam em causa auxílios fixados com base no preço ou na quantidade dos produtos ou subordinados à condição de serem repercutidos nos produtores primários; 

o)           A atividade da Requerente inclui-se no âmbito de aplicação do RGIC, pelo que a exceção de aplicação do RFAI às atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação do RGIC, que se prevê na parte final do artigo 22.º do CFI, não afasta a aplicação do benefício fiscal do RFAI à mesma, devendo concluir-se que também o RGIC não afasta a aplicação do RFAI à atividade de fabricação de alimentos para animais de criação;

p)           O n.º 3 do artigo 2.º do CFI não pode ser interpretado como permitindo aos membros do Governo a definição do âmbito de aplicação dos benefícios através de diploma regulamentar, não podendo uma portaria excluir um setor de atividade que o legislador fiscal soberano expressamente decidiu dever ser beneficiado e não alterou a sua decisão através de um procedimento legislativo de igual valor (lei ou decreto-lei autorizado), sob pena de estar a derrogar a lei numa matéria central da tipicidade tributária, visto que, nos termos do n.º 5 do artigo 112.º da CRP, «nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos»; 

q)           A AT não poderá vedar a aplicação do RFAI à atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, com fundamento no disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, sendo que o  benefício fiscal deve por princípio ser interpretado nos seus precisos termos e não de forma restritiva, sendo certo que uma interpretação restritiva apenas se justifica quando o intérprete conclua que o legislador adotou um texto que atraiçoa o seu pensamento – acabando por dizer mais do que aquilo que pretendia dizer;

r)            Com base no princípio da legalidade fiscal e a regra da proibição do reenvio normativo, previstos respetivamente, nos artigos 103.º e 165.º n.º 1, alínea i) e 112.º, n.º 5, da CRP, prevendo um Decreto-Lei autorizado – o Decreto-Lei n.º 162/2014 – que um determinado benefício fiscal – o RFAI – é aplicável a sujeitos passivos – como a Impugnante – que exerçam a sua atividade num setor específico – a indústria transformadora – não pode a Administração Tributária, com fundamento numa norma regulamentar, deixar de reconhecer a aplicação do referido benefício fiscal a empresas desse setor que cumpram os requisitos de acesso ao benefício;

s)            O artigo 1.º, da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, é inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, consagrado nos artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, e da proibição do reenvio normativo, consagrada no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, na interpretação de que a AT pode restringir o âmbito de aplicação sectorial do RFAI tal como este se encontra definido pelos artigos 22.º e 2.º do CFI, com fundamento nessa norma regulamentar;

t)            Nos termos dos artigos 43º, nº1, da LGT, e 61.º do CPPT, há lugar à liquidação de juros indemnizatórios quando haja erro imputável aos serviços de que resulte pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, sendo que, no caso, os erros que afetam as liquidações impugnadas são imputáveis à AT, que as efetuou por sua iniciativa, assistindo à Requerente o direito aos referidos juros.

 

16. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

a)            Os benefícios fiscais são, de acordo com a definição legal, medidas de carácter excecional, seguindo várias modalidades técnicas, instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem. (n.º 1 do art.º 2 do EBF), constituindo derrogações à «tributação–regra», consubstanciando uma vantagem (desagravamento) em favor de certas entidades ou atividades e sendo sempre instrumentos de política que visam alcançar objetivos extrafiscais, de natureza económica, social ou outra, com relevante interesse público;

b)           É o objetivo constitucional relevante prosseguido pelos benefícios fiscais que justifica a derrogação ao princípio da igualdade, [art.º 6.º do EBF], numa ótica de ponderação entre princípios de idêntico valor na hierarquia constitucional, em que o legislador fiscal, na sua liberdade de conformação, desagrava, por razões técnicas ou de política fiscal, certas manifestações de riqueza ou capacidade contributiva, que pretende afastar da tributação normal de forma genérica;

c)            Os benefícios fiscais, são despesa fiscal passiva, incidindo sobre situações sujeitas a tributação, equivalendo, em termos quantitativos, a receita fiscal não arrecadada, sendo considerados, pela Organização Mundial do Comércio (cf. Acordo sobre Subvenções e Medidas de Compensação) e pela União Europeia – UE (cf. art.ºs 107.º e 108.º do TFUE), auxílios de Estado sujeitos a escrutínio no âmbito do direito da concorrência (cf. artigos 2.º e 6.º do EBF);

d)           As normas que estabeleçam benefícios fiscais não são suscetíveis de integração analógica, dada a sua natureza excecional (art.º 10.º do EBF e n.º 4 do art.º 11.º, da LGT);

e)           A atividade económica em que se encontra compreendido o objeto dos investimentos realizados, é afastada do âmbito de aplicação do RFAI, à luz do disposto, quer nos normativos relevantes do quadro legislativo nacional - artigo 2.º, números 2 e 3 e artigo 22.º, n.º 1 do CFI, e Portaria n.º 282/2014, de 31 de Dezembro –, quer no quadro legislativo europeu, nas OAR e no RGIC;

f)            Embora o objeto dos investimentos efetuados pela Requerente no exercício de 2017 se insira na atividade económica identificada pelo Código 010912 da CAE-Rev3, respeitante à fabricação de alimentos para animais de criação, e esteja abrangida pelo artigo 2.º, n.º 2, alínea b) da Portaria n.º 282/2014 - “Indústrias Transformadoras – códigos 10 a 33”, a mesma não é elegível para a concessão do benefício fiscal pelo efeito negativo decorrente da parte inicial do corpo do n.º 2 “Sem prejuízo das restrições previstas no número anterior”, dado que o artigo 1.º da Portaria afasta os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE;

g)            Apesar de o sujeito passivo cumprir com a condição da criação e manutenção da criação de um posto de trabalho e da manutenção dos bens, prevista na alínea f) do n.º 4 do artigo 22º do CFI, tal atividade não é elegível para a concessão do benefício fiscal do RFAI, na medida em que está enquadrada na "transformação e comercialização de produtos agrícolas", envolvendo cereais (produto agrícola incluído no capítulo 10 - "cereais" do Anexo I do TFUE), melaço (produto agrícola incluído no capítulo 17.03 - “melaços, mesmos descorados” do anexo I do TFUE) e outros desperdícios (produtos agrícolas incluídos no capitulo 23 – “resíduos e desperdícios das indústrias alimentares (…) ”, do Anexo I do TFUE), donde resulta um produto final que se destina a alimentação animal (produtos agrícolas incluídos no capitulo 23 – “(…) ; alimentos preparados para animais” do anexo I do TFUE);

h)           A ideia, sustentada pela Requerente, de que a possibilidade de beneficiar dos apoios financeiros do PDR por constar da lista do Anexo I da Portaria n.º 230/2014, de 11 de Novembro, determinaria e inelegibilidade para a concessão do benefício fiscal, deixou de ter qualquer base de sustentação, com a publicação da Portaria n.º 301-B/2016, de 30 de novembro, que revogou o artigo 6.º, n.º 3, alínea a) da Portaria n.º 230/2014, o que implicou a eliminação do Anexo I que continha a lista dos sectores elegíveis, pelo que, à data dos factos em presença, o argumento “de que o CAE sendo enquadrável no PDR, seria um indício para não ser elegível para efeitos do benefício fiscal RFAI, algo que não acontece com a Requerente” não pode ser invocado; 

i)             O âmbito de aplicação das OAR compreende os auxílios à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas (parágrafo 10) mas exclui os auxílios dirigidos, quer para a produção agrícola primária, quer para a comercialização e transformação dos produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado, que são remetidos para as regras estabelecidas nas OAR do Setor Agrícola 2014-2020 ((cfr. nota de rodapé (11) do parágrafo 10);

j)             O § 168 das OAR do Setor Agrícola admite que os Estados-Membros possam conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio, a saber, o RGIC, as OAR, e as OAR do Setor Agrícola, verificando-se que, no que concerne aos benefícios fiscais, o legislador nacional não utilizou a faculdade consagrada no citado § 168, pois que o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, em conformidade com as OAR e com o RGIC, considera não elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE;

k)            A opção do legislador nacional de excluir da concessão dos benefícios fiscais os projetos de investimento que têm por objeto atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, ou seja, atividades de que resulte um “produto agrícola” enumerado no anexo I do TFUE, tem como respaldo as OAR que, como já referido, remetem os auxílios a estas atividades para as Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014- 2020;

l)             Salvaguardadas as limitações inscritas no quadro legislativo europeu em matéria de auxílios estatais de finalidade regional, não emanam da Lei n.º 44/2014 quaisquer orientações ou diretivas precisas sobre as concretas atividades económicas que poderiam beneficiar dos incentivos fiscais ao investimento, tendo sido remetida para o Governo, através de lei de autorização, a tarefa de definição do elenco dos sectores de atividades, cujos investimentos seriam elegíveis para os incentivos fiscais do RFAI, em articulação com as prioridades estabelecidas nas opções estratégicas de política económica, de consolidação da competitividade da economia portuguesa e de política de desenvolvimento regional;

m)          O CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31.10, enuncia genericamente, no artigo 2.º, n.º 2, que as atividades económicas em que são realizados os investimentos têm de respeitar as OAR e o RGIC, e de seguida exemplifica, numa lista, as atividades visadas, sendo reduzido o sentido útil deste elenco, porquanto ressaltam logo atividades que são taxativamente excluídas das OAR e do RGIC, como são, entre outros, os casos das fibras sintéticas, atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais e sector da energia;

n)           Consciente destas limitações, o legislador remete, no n.º 3 do artigo 2.º do CFI, a explicitação dos códigos das atividades económicas para as quais se dirigem os benefícios fiscais, para uma portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia, aludindo o artigo 22.º, n.º 1 do CFI, à lista de atividades económicas que figura no artigo 2.º, n.º 2, aos códigos das atividades económicas a definir por portaria e às restrições das OAR e do RGIC;

o)           Não tem fundamento a acusação da Requerente de inconstitucionalidade do artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, por violação do princípio da legalidade fiscal, consagrado nos artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, e da proibição do reenvio normativo, consagrada no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, por restringir o âmbito de aplicação sectorial do RFAI tal como este se encontra definido pelos artigos 22.º e 2.º do CFI, pois a lista de atividades do n.º 2 deste último normativo tem uma função meramente indicativa, já que está condicionada pelas exclusões sectoriais das OAR e pelo RGIC e pela definição dos códigos de atividade da CAE;

p)           A Portaria n.º 282/2014 não invade o campo de incidência do benefício do RFAI, porque as normas habilitantes – artigo 2.º, n.º 3 e artigo 22.º, n.º 1, do CFI – são normas de aplicação condicionada criadas por Decreto-lei que executa uma autorização legislativa que não especifica os sectores de atividade elegíveis, subordinando-os apenas à legislação europeia relevante, em matéria de auxílios de Estado, devendo o primado do legislador e a liberdade de conformação legislativa quanto às opções político-normativas deixar uma ampla margem de discricionariedade (respeitando a Lei Fundamental) sobre as medidas que se julgam necessárias e apropriadas para realizar os objetivos de política económica e fiscal assumidos;

q)           Em atenção à matéria europeia dos auxílios de Estado, tanto o CFI, como o RFAI, nele contido, como a Portaria n.º 282/2014, devem ser considerados, acima de tudo, como instrumentos de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nas OAR, no RGIC e nos art.º 107.º a 109.º do TFUE, todavia no que em concreto respeita à delimitação do âmbito de aplicação sectorial dos benefícios fiscais, respeitadas as restrições sectoriais do quadro legislativo europeu, o legislador nacional tem liberdade para selecionar as atividades económicas a incentivar que se revelem mais eficazes para a consecução dos objetivos de desenvolvimento económico equilibrado e sustentável do país, na linha do que se afirma no ponto 5 das OAR: “Os auxílios com finalidade regional só podem desempenhar um papel eficaz se forem empregues com parcimónia e de forma proporcionada e se concentrarem nas regiões mais desfavorecidas da União Europeia”;

r)            Apesar de se ter demostrado que a interpretação da AT cumpre escrupulosamente o direito comunitário, inexistindo fundamento, atento às normas constantes do RGIC, desconhece-se jurisprudência comunitária que se debruce sobre tal matéria, pelo que se requer o reenvio do processo a título prejudicial para o TJUE, ao abrigo do artigo 267º do TFUE;

s)            Não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios.

 

 

 

1.3. Saneamento  

 

17. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

18. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

19. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2             FUNDAMENTAÇÃO

2.1          Factos dados como provados

20. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)            A Requerente é uma empresa líder no setor Agropecuário, responsável pela distribuição de bens para alimentação animal e produtos para a agricultura, tendo também participação no setor dos combustíveis através de um posto de abastecimento.

b)           Durante o exercício de 2018, iniciou uma nova área de negócio, a fabricação de alimentos para animais de criação (CAE 10912), tendo, para o efeito, investido, a partir de 2017, em equipamentos produtivos em estado de novo e essenciais ao desenvolvimento desta nova área.

c)            No ano de 2017, o sujeito passivo realizou investimentos na aquisição de equipamentos produtivos para a área de negócios de fabricação de alimentos para animais e na implementação de uma linha de limpeza de cevada.

d)           Com referência ao investimento efetuado em 2017, a Requerente usufruiu dos benefícios fiscais RFAI e DLRR, nos termos anteriormente expostos.

 

2.2          Factos não provados

 

21. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

 

2.3          Motivação

22. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

23. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

24. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

2.4          Questão decidenda

 

25. O artigo 2.º do CFI , na redação vigente à data dos factos, admitia, dentro de determinados parâmetros, a concessão de benefícios fiscais, em regime contratual, com um período de vigência até 10 anos a contar da conclusão do projeto de investimentos de montante igual ou superior a 3 milhões de euros. Os mesmos deveriam ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas atividades económicas elencadas n.º 2 do referido artigo – onde se incluíam, nas alíneas a) a d), entre outras, a indústria transformadora e as atividades agrícola e agropecuária – respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, (OAR)  e do RGIC.  O n.º 3 do referido artigo dispunha que aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia incumbiria definir, por portaria, os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número 2.º.

 

26. Nos termos do artigo 22.º, n.º 1, do CFI, o RFAI aplica-se aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º do CFI, tendo em consideração os CAE definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

 

27. Ao abrigo do n.º 3 do artigo 2.º do CFI e nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 2.º do mesmo Código, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, veio determinar, artigo 1.º, não serem elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto, entre outras, as atividades económicas dos setores da produção agrícola primária e da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE, sem prejuízo identificar os códigos CAE-Rev3, divisões 10 a 33 para as indústrias transformadoras. A questão decidenda prende-se com saber se, em face do quadro normativo referido nestas disposições, o Requerente pode usufruir do benefício fiscal do RFAI para os investimentos por si realizados no âmbito da fabricação de alimentos para animais de criação (CAE 10912). Em causa esta saber se os investimentos do Requerente são excluídos pela Portaria e se essa exclusão é legítima.

 

28. Começando pelo RGIC, observa-se que os seus considerandos 10 e 11 estabelecem a aplicação do mesmo à maioria dos setores económicos, incluindo o setor agrícola, admitindo regras especiais de limitação no caso de produção agrícola primária e a sujeição a determinadas condições dos auxílios concedidos à transformação e comercialização de produtos agrícolas, integrando estes o âmbito dos auxílios de finalidade regional, não sendo considerados orientados para setores específicos da atividade económica, para efeitos do artigo 13.º, alínea b) do artigo 13.º do RGIC. O artigo 1.º, nº. 1, alínea a) do RGIC, dispõe que este diploma é aplicável, além do mais, aos auxílios com finalidade regional, como são os previstos no n.º 2 do artigo 2º do CFI, sendo que a exclusão dos auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, apenas se verifica nos casos previstos na alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do referido regulamento, a saber, sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa ou for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.

 

29. Independentemente de os produtos resultantes da atividade da Requerente estarem, ou não, enumerados no Anexo I do TFUE, o RGIC é aplicável aos auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os outros casos cuja exclusão não esteja prevista na mencionada alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC, o que é dizer que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas é abrangida pelo RGIC na medida em que não estejam em causa auxílios fixados com base no preço ou na quantidade dos produtos ou subordinados à condição de serem repercutidos nos produtores primários. A atividade da Requerente inclui-se no âmbito de aplicação do RGIC, pelo que a exceção de aplicação do RFAI às atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação do RGIC, que se prevê na parte final do artigo 22.º do CFI, não afasta a aplicação do benefício fiscal do RFAI à mesma, devendo concluir-se que também o RGIC não afasta, em abstrato, a aplicação do RFAI à atividade de fabricação de alimentos para animais de criação.

 

30. No que diz respeito às OAR, tendo como base o artigo 107.º, n.º3, alíneas a) e c), do TFUE, as mesmas esclarecem em que condições e sob que critérios a Comissão pode considerar compatíveis com o mercado interno os auxílios estatais destinados a facilitar o desenvolvimento económico de certas regiões desfavorecidas da União Europeia. O § 10 das OAR afirma que, apesar de a agricultura estar sujeita a um regime especial previsto num instrumento jurídico específico, as respetivas orientações são aplicáveis à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. A nota (11) do § 10 das OAR dispõe que “os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola.”

 

31. Apesar de as OAR abrangerem apenas a transformação de produtos agrícolas em produtos não agrícolas e sua comercialização, afigura-se a este Tribunal que as mesmas excluem a sua aplicação à atividade desenvolvida pela Requerente. Embora se afigure que os produtos daí resultantes não são, na sua totalidade, produtos constantes da lista de produtos agrícolas previstos no Anexo I do TFUE – e nessa remetidos pela nota (11) do § 10 para as OAR do setor agrícola –, a verdade é a adoção de um critério de preponderância obriga a que se conclua que a sua atividade deve ser enquadrada na transformação e comercialização de produtos agrícolas, tendo em vista um produto final de alimentação animal incluído no capítulo 23 do Anexo I do TFUE.

 

32. Com efeito, embora se possa dizer, com alguma plausibilidade, que a diversidade de matérias envolvidas (v.g. ácidos fordos de óleo de palma, aveia branca e preta, cloreto de sódio) – uma parte das quais já produtos transformados e excluídos do Anexo I do TFUE (v.g. o cloreto de sódio, contemplado no capítulo 25 da Nomenclatura combinada, ou o Bicarbonato de sódio, contemplado na divisão 28; ou o óleo de palma da divisão 15.11) – e o processo industrial adotado (v.g. moagem, mistura, melaçamento, granulação e embalamento), conduzem a que o produto resultante do processo de transformação efetuado pela Requerente, não obstante o seu enquadramento capítulo 23 da Nomenclatura Combinada (“Resíduos e desperdícios das indústrias alimentares; alimentos preparados para animais”), possa ser enquadrado também na divisão 19 – Preparados de cereais, tendo em conta a sua composição, capítulo este excluído do Anexo 1 do TFUE, a verdade é que a mesma deve ser materialmente enquadrada na "transformação e comercialização de produtos agrícolas", envolvendo cereais (produto agrícola incluído no capítulo 10 - "cereais" do Anexo I do TFUE), melaço (produto agrícola incluído no capítulo 17.03 - “melaços, mesmos descorados” do anexo I do TFUE) e outros desperdícios (produtos agrícolas incluídos no capitulo 23 – “resíduos e desperdícios das indústrias alimentares (…) ”, do Anexo I do TFUE), donde resulta um produto final que se destina a alimentação animal (produtos agrícolas incluídos no capitulo 23 – “(…) ; alimentos preparados para animais” do anexo I do TFUE). Daqui resulta, nos termos da nota (11) do § 10 das OAR, a remissão para as OAR do Setor Agrícola.

 

33. Ora, o § 168 das OAR do Setor Agrícola admite que os Estados-Membros possam conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio, a saber, o RGIC, as OAR, e as OAR do Setor Agrícola. A atividade da Requerente, com o código CAE 10912, está incluída na divisão 10, grupo 109, classe 1091, anexo ao Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro, sendo uma das indicadas na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que abrange «Indústrias transformadoras – divisões 10 a 33, não estando excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR Setor Agrícola e do RGIC. Do mesmo modo, resulta dos autos que o Requerente cumpre com a condição da criação e manutenção da criação de um posto de trabalho e da manutenção dos bens, prevista na alínea f) do n.º 4 do artigo 22º do CFI. Porém, no que concerne aos benefícios fiscais do RFAI, o legislador nacional não utilizou a faculdade consagrada no citado § 168 das OAR do Setor Agrícola, tendo o artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, em conformidade com as OAR e com o RGIC, considerado não elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE.

 

34. Coloca-se, aqui, a questão de saber se a solução legislativa e regulamentar adotada no âmbito do RFAI e do problema em análise é compatível com o princípio da legalidade tributária, tal como consagrado na CRP, corolário dos princípios constitucionais da primazia democrático-parlamentar e da auto-tributação. De acordo com o artigo 103.º, n.º 2, da CRP, os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. Dispõe o 165º, n.º 1, alínea i) da CRP que a lei sobre a criação de impostos e o sistema fiscal integra a reserva relativa de competência da Assembleia da República, podendo ser uma Lei formal ou um Decreto-Lei autorizado por Lei. Por seu lado, o 112.º, n.º 5, da CRP afirma que nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. O mesmo estabelece um princípio geral de paralelismo de formas e equivalência normativa. Concretizando estas disposições constitucionais, o artigo 8, n.º 1, da LGT, afirma que estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais e o regime geral das contraordenações fiscais, alargando o leque de matérias para o artigo 2.º.

 

35. A Lei n.º 44/2014 de 11 de julho autorizou o Governo a aprovar um novo CFI, que, além do mais, haveria de conter o regime de benefícios contratuais ao investimento produtivo e um novo RFAI, devidamente adaptado às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020 (v.g. RGIC) e às regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional, que viria a ser aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro.  Nos termos do artigo 22.º, n.º, “o RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.” O RFAI é um regime de benefícios fiscais legalmente caracterizado, nomeadamente nos planos subjetivo e objetivo, operando dentro dos parâmetros normativos do mercado interno da União Europeia, no que diz respeito ao direito da concorrência e aos auxílios de Estado.

 

36. O n.º 2 do artigo 2.º do CFI, afirma que os projetos de investimento referidos no n.º 1 devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas atividades mencionadas nas várias alíneas do n.º2, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC. O artigo 2.º, n.º 3, do CFI, estabelece que “por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.” Esta remissão, por Decreto-Lei autorizado, para portaria dos membros do Governo responsáveis pela economia e pelas finanças, deve começar por ser interpretada em conformidade com a Constituição, de acordo com o princípio da conformidade funcional, que deve nortear a hermenêutica e a metódica das normas constitucionais sobre competências, funções e atos normativos a elas ligados. Em causa está saber se esta remissão subverte o esquema constitucional de repartição de competências e funções.

 

                37. O objeto, o sentido e a extensão da disciplina jurídica do CFI e do RFAI foram definidos pela Assembleia da República através de Lei de autorização, de acordo com os parâmetros estabelecidos no artigo 165.º, n.º2, da CTP. O Decreto-Lei autorizado – o Decreto-Lei n.º 162/2014 – concretizou materialmente o regime dos benefícios fiscais e clarificou os termos subjetivos e objetivos da respetiva aplicação. Estes dois degraus de produção normativa satisfazem as exigências democráticas e de Estado de direito do princípio da legalidade tributária, lembrando que tanto o CFI, como o RFAI, nele contido, como a Portaria n.º 282/2014, devem ser considerados, acima de tudo, como instrumentos de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nas OAR, no RGIC e nos art.º 107.º a 109.º do TFUE. Com efeito, a remissão para um juízo definitivo e específico a efetuar por Portaria, constante do n.º 3, do artigo 2.º, do CFI, deve ser entendida no quadro da interligação institucional, funcional e normativa que necessariamente tem de existir entre o direito nacional e o direito da União Europeia.

 

38. Longe de se tratar aqui ou da apropriação indevida e hierarquicamente subversiva de funções legislativas pela administração, ou de uma auto-desresponsabilização do legislador através da delegação intencional, na Administração,  de funções normativas a ele reservadas (deslegalização) – ambas as situações contrárias à teleologia do artigo 115.º, n.º 5, da CRP – trata-se aqui de uma remissão do Governo para dois dos seus ministérios, da Economia e das Finanças, justamente aqueles que, pela sua participação no Conselho da União Europeia nas formações respeitantes às áreas do mercado interno e da concorrência, e pela sua proximidade à realidade económica nacional, se encontram numa posição de maior adequação institucional e funcional para concretizarem, de maneira mais informada, racional e eficaz, as necessárias ponderações regulatórias e de política económica e fiscal, envolvendo opções conformadoras numa linha situada entre a prossecução dos objetivos nacionais e europeus de tributação do rendimento e de preservação da livre concorrência não falseada, por um lado, e, por outro lado, o incentivo ao investimento, ao crescimento, ao emprego, ao desenvolvimento equilibrado e sustentável e à coesão regional territorial.

 

39. No tocante a essas ponderações, por contenderem com aspetos específicos, executivos e complementares da regulação, de natureza político-económica – tendo sempre como pano de fundo a regra da concorrência e da tributação e da excecionalidade dos auxílios de Estado e dos benefícios fiscais –, dificilmente se poderá sustentar que tenham necessariamente que ser concretizadas e pormenorizadas através de ato legislativo. Admite-se que, depois da densificação e tipificação legislativa dos aspetos subjetivos, objetivos e substantivos considerados basilares do regime jurídico tributário, de modo suficientemente claro, preciso e determinado, e mediante autorização legislativa expressa, possa haver lugar, em segunda linha, a ulteriores particularizações do quadro fiscal por via regulamentar, por quem melhor satisfaça os critérios de proximidade material, competência técnica, adequação institucional e conformidade funcional. Sendo esta uma interpretação inteiramente compatível com as normas substantivas e organizatórias da Constituição – de modo algum frustrando a teleologia subjacente à repartição de competências e funções – não existe, no entender deste Tribunal, qualquer inconstitucionalidade que justifique a desaplicação, com fundamento em invalidade, do artigo 2.º, n.º 3, do CFI ou do artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014 .

 

40. É assim que, com base no n.º 2 do artigo 2.º do CFI, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro – no uso da margem de manobra reconhecida aos Estados-Membros pelo § 168 das OAR do Setor Agrícola – , ao mesmo tempo que reitera que o regime de benefícios fiscais aprovado pelo CFI se aplica a projetos de investimento produtivo cujo objeto esteja compreendido nas atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º, identifica-se as atividades económicas e os setores cujos projetos de investimento que não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais, entre os quais se contam a produção agrícola primária, a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE. Em face do exposto, considera este Tribunal que não se verifica a alegada inconstitucionalidade por violação dos princípios da legalidade da administração nas suas dimensões de reserva de lei, prevalência de lei e precedência de lei. Assim, a solução da questão controvertida apela a uma interpretação e aplicação do artigo 2.º, n.º 2, do CFI e a da Portaria n.º 282/2014 em termos sistemicamente adequados, em conformidade com a Constituição e com o direito da União Europeia.

 

3. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar o pedido de pronúncia arbitral ser improcedente por não provado;

b)           Absolver a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.

4             VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 47.275,17, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

5             CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2 142.00, a cargo da Requente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

Notifique-se.

Lisboa, 18 de novembro de 2021

 

O Árbitro

 

 

Jónatas E. M. Machado