Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 306/2020-T
Data da decisão: 2021-06-03  IRC  
Valor do pedido: € 397.299,94
Tema: IRC – Tributações Autónomas. Art. 88.º, n.º 3 CIRC. Viaturas ligeiras de passageiros. Presunção de não empresarialidade
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Dra. Alexandra Coelho Martins, árbitro presidente, Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo, designado pela Requerente, e Dra. Sofia Ricardo Borges, designada pela Requerida, acordam no seguinte:

 

 

                I.             RELATÓRIO

 

A, doravante “Requerente”, pessoa coletiva identificada sob o número …, com sede no …, …, …, deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.

 

O Requerente visa a anulação dos seguintes atos:

a)            Deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) apresentado em relação ao período de tributação de 2014;

b)           Indeferimento (total) do pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC apresentado com referência ao ano 2015;

c)            Deferimento parcial da Reclamação Graciosa apresentada contra as autoliquidações de IRC dos períodos de 2016 e 2017; e, bem assim, 

d)           Autoliquidações de IRC referentes a 2014, 2015, 2016 e 2017, na parte em que fazem incidir tributação autónoma sobre determinados encargos relativos a veículos ligeiros de passageiros,

perfazendo, na parte impugnada, o valor total de € 397.299,94. 

 

O Requerente pretende ainda a restituição do valor de tributações autónomas pago, acrescido de juros indemnizatórios. Juntou 14 documentos e requereu a produção de prova testemunhal.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

Em 18 de junho de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT em 19 de junho de 2020.

 

O Requerente designou como árbitro o Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo, no uso da prerrogativa prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

 

Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, e dentro do prazo previsto no seu artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, a AT designou como árbitro a Dra. Sofia Ricardo Borges.

 

Na sequência dos requerimentos apresentados pelos árbitros designados pelas Partes para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 21 de agosto de 2020, do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), II parte do RJAT.

 

Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Presidente do CAAD informado as partes dessa designação em 24 de agosto de 2020, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo estas manifestado oposição.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 23 de setembro de 2020.

 

                Em 29 de outubro de 2020, a Requerida apresentou a sua Resposta. Defende-se por exceção, suscitando a intempestividade do direito de ação, e por impugnação, concluindo pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, com as legais consequências. Em 30 de outubro de 2020, juntou o processo administrativo (“PA”).

 

                Em 12 de novembro de 2020, a Requerente exerceu o contraditório sobre a matéria de exceção, tendo, de seguida, o Tribunal Arbitral determinado a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com produção de prova testemunhal, por se julgar útil ao apuramento da verdade material (despacho de 16 de novembro de 2020).

 

Em 8 de janeiro de 2021, realizou-se a referida reunião, na qual foi ouvida a testemunha indicada pela Requerente, B…. O Tribunal indeferiu o pedido de desentranhamento parcial deduzido pela AT relativo à resposta à exceção, atenta a possibilidade de aperfeiçoamento dos articulados prevista nesta fase (artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do RJAT) e, bem assim, o facto de a réplica da Requerente não consubstanciar uma ampliação do pedido e/ou da causa de pedir, mas uma clarificação. As partes foram notificadas para alegações escritas sucessivas e fixada a data limite de prolação da decisão arbitral.

 

                Em 26 de janeiro de 2021, a Requerente apresentou alegações finais. Reitera a sua posição, considerando que o depoimento da testemunha esclareceu e fez prova de que as viaturas ligeiras de passageiros em “pool” estão exclusivamente afetas a uso empresarial.

 

                Em 9 de fevereiro de 2021, a Requerida contra-alegou e remeteu para os argumentos que constam da Resposta. Em relação à prova produzida, salienta que da mesma não resultou que as viaturas ligeiras de passageiros em “pool” fossem unicamente afetas a fins empresariais e que não existisse um uso pessoal por parte dos colaboradores daqueles veículos. Por outro lado, em matéria de direito, sustenta que as normas que estabelecem tributações autónomas, incluindo o artigo 88.º, n.ºs 3 a 6 do Código do IRC, são normas de incidência tributária e não consagram uma presunção cuja prova em contrário seja admissível, pelo que, independentemente da prova produzida, verifica-se a incidência de tributação autónoma.

 

                Por despacho de 18 de março de 2021, foi prorrogado por dois meses o prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, tendo em conta a tramitação processual e a complexidade de análise das questões suscitadas.

 

                Em 26 de março de 2021, a Requerida procedeu à junção do acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo (Pleno da Secção de Contencioso Tributário) em 24 de março de 2021, no Processo n.º 21/20.7BALSB, que conclui que “as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.”

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

Segundo a Requerente, as autoliquidações de IRC (tributações autónomas) enfermam de vício de erro nos pressupostos, com os seguintes fundamentos:

a)            De acordo com o artigo 73.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), com o princípio da igualdade e de tributação pelo rendimento real (artigo 104.º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), não são admitidas presunções inilidíveis em re-lação a normas de incidência tributária (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2003, de 28 de abril de 2003);

b)           O artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC contém uma presunção implícita ilidível da natureza não (exclusivamente) empresarial das despesas com veículos ligeiros de passageiros, ou seja, de que estas despesas são suscetíveis de utilização, no todo ou em parte, na esfera pessoal dos colaboradores (uso privado);

c)            Face à demonstração inequívoca da estreita conexão dos encargos suportados pela Requerente com viaturas ligeiras de passageiros “em pool” com as suas atividades e, por conseguinte, com uma finalidade exclusivamente empresarial, derivada de um procedimento interno que permite o controlo rigoroso da atribuição dos veícu-los, a presunção implícita no citado artigo 88.º, n.º 3 deve considerar-se ilidida, não sendo legítima a sua tributação autónoma em IRC. 

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

                Diversamente, para a Requerida:

a)            A ação é intempestiva por ter sido ultrapassado o prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1 do RJAT, para apresentação do pedido de pronúncia arbitral, em relação aos atos de autoliquidação de IRC, referentes a 2015, 2016, 2017 e 2018. No que se refere aos atos de segundo grau – pedidos de revisão oficiosa [2015 e 2016] e reclamação graciosa [2017 e 2018] – não tendo a Requerente concretizado qualquer pedido de anulação do que nessa sede foi decidido, a Requerida entende que não há apoio para firmar a tempestividade do pedido, ficando o Tribunal impedido de condenar naquilo que não tiver sido pedido;

b)           A tributação autónoma de viaturas ligeiras de passageiros determinada pelo artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC não contém uma presunção, expressa ou implícita, de empresarialidade parcial, nem esta norma cabe na qualificação de cláusula especial anti-abuso;

c)            A interpretação da Requerente de que, feita a demonstração da empresarialidade integral dos encargos suportados com veículos, estes seriam subtraídos à incidência de tributação autónoma, não tem o mínimo respaldo na letra da lei, nem na sua ratio, sendo o artigo 88.º do Código do IRC uma norma de incidência objetiva. O artigo 88.º do Código do IRC não refere o conceito de “empresarialidade” e não é suscetível de integração analógica;

d)           A prova produzida nos autos, designadamente a existência de um manual de procedimentos interno, não é apta a demonstrar que as viaturas ligeiras de passageiros da Requerente apenas concorreram para a manutenção da sua atividade, sem margem para que os colaboradores retirassem benefícios da sua disponibilidade para fins pessoais. Tal demonstração dependeria de um sistema fidedigno e rigoroso de controlo da utilização de viaturas que não existe;

e)           A interpretação da Requerente, no sentido de que o artigo 88.º, n.ºs 3 e 5 do Código do IRC alberga em si uma presunção ilidível, nos termos e para os efeitos do artigo 73.º da LGT, viola o princípio constitucional da legalidade (artigo 103.º, n.º 2 da CRP), nos seus corolários de reserva de lei (artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP) e da tipicidade, e o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança (artigo 103.º, n.º 3 da CRP), pois a delimitação da incidência deve ser somente fixada por lei;

f)            A interpretação da Requerente viola ainda dois princípios subjacentes à redação do artigo 103.º, n.º 1 da CRP, o da eficácia e eficiência fiscais, concretizados na ideia de que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, o que deve ser alcançado da forma mais eficiente possível.

 

                Por fim, a Requerida pronunciou-se pela desnecessidade de inquirição das testemunhas, pela não verificação de erro imputável aos serviços, não sendo devidos juros indemnizatórios, e conclui pela procedência da exceção, ou, se assim não se entender, pela improcedência do pedido arbitral, com as legais consequências.

 

 

 

               

                II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de autoliquidação de IRC (tributação autónoma) parcialmente impugnados, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A cumulação de pedidos é admissível uma vez que a apreciação dos pedidos, referentes a períodos de tributação distintos, depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, de acordo com o estabelecido no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.

 

A Requerida suscita a exceção de intempestividade da presente ação, para cuja apreciação interessa proceder à fixação da matéria de facto, após o que essa questão será apreciada e decidida por este Tribunal.

 

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

                Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

A.           O A, aqui Requerente, é uma sociedade de direito português constituída por apelo à subscrição pública, que tem por objeto principal a participação nas competições profissionais de futebol, bem como a promoção e organização de espetáculos des-portivos e ainda o fomento de atividades relacionadas com a prática desportiva profissionalizada da modalidade –cf. documentos 1, 3 e 5 juntos pela Requerente.

B.            A Requerente é um sujeito passivo de IRC e tem um período de tributação não coincidente com o ano civil – cf. documentos 6, 7 e 8 juntos pela Requerente.

C.            Quando da submissão da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, relati-vamente aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, a Requerente procedeu à au-toliquidação de tributação autónoma sobre determinados encargos, incluindo os relativos a veículos ligeiros de passageiros – cf. documentos 6, 7, 8 e 9 juntos pela Requerente.

D.           Com referência ao período de 2014, a Requerente procedeu à liquidação de tribu-tação autónoma no montante total de € 141.517,38, sendo € 87.546,89 respeitante a tributação autónoma de veículos ligeiros de passageiros em “pool” – cf. docu-mento 6 junto pela Requerente.

E.            Por referência ao período de 2015, a Requerente procedeu à liquidação de tributa-ção autónoma no montante total de € 194.499,68, correspondendo € 115.776,56 a tributação autónoma de veículos ligeiros de passageiros em “pool” – cf. documen-to 7 junto pela Requerente.

F.            Com referência ao período de 2016, a Requerente procedeu à liquidação de Tribu-tação Autónoma apurada no montante total de € 170.761,95, sendo € 102.739,57 respeitante a tributação autónoma de veículos ligeiros de passageiros em “pool” – cf. documento 8 junto pela Requerente.

G.           Por referência ao período de 2017, a Requerente procedeu à liquidação de tributa-ção autónoma no montante total de € 195.344,95, correspondendo € 91.236,62 a tributação autónoma de veículos ligeiros de passageiros em “pool” – cf. documen-to 9 junto pela Requerente.

H.           A tributação autónoma liquidada pela Requerente em relação a veículos ligeiros de passageiros em “pool” nos exercícios de 2014 a 2017 perfez, assim, a importância total de € 397.299,94 – cf. documentos 6 a 9 juntos pela Requerente.

I.             A Requerente considerou, em sede de procedimentos administrativos, ter sujeita-do indevidamente a tributação autónoma os encargos com veículos ligeiros de pas-sageiros que não se encontravam alocados a um colaborador específico (veículos em “pool”) e que eram utilizados mediante requisição, alegando que tais veículos eram unicamente utilizados na sua atividade, existindo um sistema de controlo in-terno e um “manual de utilização de viatura” que permitia concluir pela sua afeta-ção exclusivamente empresarial – cf. documentos 1, 3 e 5 juntos pela Requerente.

J.             Da organização da Requerente fazem parte várias estruturas localizadas em dife-rentes locais, nomeadamente:

a             O estádio …;

b) A Academia …, localizada em …;

c) O designado Polo …, localizado no …, onde se encontram vários locais de trei-no,

– cf. depoimento da testemunha.

K.            A criação de uma “pool” de veículos ligeiros de passageiros teve por objetivo a ra-cionalização de custos, face às características organizacionais e à atividade da Re-querente – cf. depoimento da testemunha.

L.            A Requerente tem uma zona de estacionamento num parque existente no piso -1 do Estádio ... que está afeta ao estacionamento dos veículos ligeiros de passageiros em “pool”. Se os funcionários pretenderem deixar os veículos estacionados noutro local é necessária autorização, e se chegarem mais tarde por norma não levam o ve-ículo para casa – cf. depoimento da testemunha.

M.          Os referidos veículos ligeiros de passageiros em “pool” não estavam afetos a um colaborador específico, encontrando-se disponíveis para serem utilizados pelos funcionários que os requisitassem, em função de necessidades justificadas na pros-secução de tarefas inseridas na atividade e interesse empresarial da Requerente, como sejam a deslocação aos locais onde decorrem competições, estágios despor-tivos, treinos e conferências de imprensa – cf. documentos 10 a 14 e depoimento da testemunha.

N.           A utilização dos veículos ligeiros de passageiros em “pool” da Requerente era re-gida por um “Manual de Utilização de Viatura” que estabelecia um conjunto de procedimentos a cumprir pelos colaboradores da Requerente e dependia da apro-vação da respetiva requisição pelo responsável indicado para o efeito pela Reque-rente – cf. documentos 10 a 12 e depoimento da testemunha.

O.           Ainda no âmbito da utilização dos veículos ligeiros de passageiros em “pool” da Requerente, os colaboradores desta preenchiam mapas de registo de quilómetros, com a indicação do dia e hora de início e fim de utilização da viatura, o trajeto, o destino e propósito da deslocação, e o Manual de Utilização contempla exceções a este respeito – cf. documentos 11 a 14 e depoimento da testemunha.

P.            Inconformada com a autoliquidação de tributação autónoma nestas situações, a Requerente apresentou dois pedidos de revisão oficiosa e uma reclamação gracio-sa, conforme infra discriminado:

a             Quanto ao período de 2014, apresentou pedido de revisão oficiosa em 02.12.2019 – cf. documento 5 junto pela Requerente;

b             No que se refere a 2015, apresentou pedido de revisão oficiosa em 29.11.2019 – cf. documento 1 junto pela Requerente;

c              Em relação aos exercícios de 2016 e 2017, deduziu reclamação graciosa em 29.11.2019 – cf. documento 3 junto pela Requerente.

Q.           Os pedidos de revisão oficiosa e a reclamação graciosa antes referidos foram con-siderados tempestivos pela Requerida – cf. documentos 1, 3 e 5 juntos pela Re-querente.

R.            O pedido de revisão oficiosa relativo ao período de 2014 foi parcialmente deferi-do, por despacho de 16 de junho de 2020, do Chefe de Divisão da Divisão de Jus-tiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, por subdelegação, acedido por via eletrónica pela Requerente em 17 de junho de 2020. Na matéria relativa ao objeto da presente ação – tributação autónoma incidente sobre os encargos com os veículos ligeiros de passageiros em “pool” da Requerente – recaiu decisão de inde-ferimento  – cf. documento 5 junto pela Requerente.

S.            O pedido de revisão oficiosa relativo ao período de 2015 foi indeferido, por des-pacho de 4 de março de 2020, do Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributá-ria da Unidade dos Grandes Contribuintes, por subdelegação, acedido por via ele-trónica pela Requerente em 5 de março de 2020 – cf. documentos 1 e 2 juntos pela Requerente.

T.            A reclamação graciosa reportada aos períodos de 2016 e 2017 foi parcialmente de-ferida, por despacho de 1 de junho de 2020, do Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, por subdelegação, ace-dido por via eletrónica pela Requerente em 2 de junho de 2020. Na matéria relati-va ao objeto da presente ação – tributação autónoma incidente sobre os encargos com os veículos ligeiros de passageiros em “pool” da Requerente – recaiu decisão de indeferimento  – cf. documentos 3 e 4 juntos pela Requerente.

U.           Os fundamentos para o indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e da recla-mação graciosa acima identificados correspondem aos que a Requerida incluiu no articulado de Resposta, e que se reconduzem ao entendimento de que o artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC não contém uma presunção empresarialidade parcial, expressa ou implícita, que possa ser afastada por prova em contrário, configurando antes uma norma de incidência tributária qua tale. Acresce que, mesmo que assim se entendesse, a Requerente não teria logrado fazer prova da afetação exclusiva da utilização dos veículos à sua atividade, afastando qualquer hipótese de uso pessoal – cf. documentos 1, 3 e 5 juntos pela Requerente.

V.           Em discordância com as autoliquidações de tributação autónoma incidentes sobre os encargos com os veículos ligeiros de passageiros em “pool” acima identificadas, a Requerente apresentou no CAAD, em 17 de junho de 2020, o pedido de pro-núncia arbitral (“ppa”) que deu origem ao presente processo – cf. registo de entra-da no SGP do CAAD.

 

1.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não se provou que os veículos ligeiros de passageiros em “pool” da Requerente foram unicamente utilizados na prossecução da sua atividade e insuscetíveis de uso privado e pessoal por parte dos funcionários (v. artigos 30.º, 35.º e 36.º do ppa).

 

Com relevo para a decisão, não foram identificados outros factos que devam conside-rar-se não provados.

 

2.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Pro-cesso Tributário ("CPPT"), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil ("CPC"), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas Partes e apre-sentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crí-tica dos documentos juntos aos autos, nas posições por estas assumidas quanto aos factos e, residualmente, no depoimento da testemunha inquirida, B…, Diretora do Departamento de Contabilidade da Requerente, conforme acima referenciado em relação a cada facto assente.

 

A testemunha demonstrou conhecimento das regras do manual de utilização de viatura, porém, não tratava direta ou indiretamente dos casos de autorização de utilização das viaturas e de gestão da frota, nem é a pessoa responsável por essa área, que funcionalmente dependia da Administração.

 

Teceu afirmações genéricas sobre o uso das viaturas no âmbito da atividade da Requerente, mas não relatou factos que permitam concluir pelo uso exclusivo dos veículos na sua atividade, ou seja, pelo afastamento de concomitante uso privado e a título pessoal pelos funcionários, referindo mesmo que as “linhas vermelhas” que estabelecem o controlo do sistema de quilómetros não estão escritas e que houve casos, que indicou serem excecionais, em que os funcionários não deixaram o carro na zona de estacionamento designada para o efeito, estacionando o carro no domicílio ou numa zona próxima do domicílio.

 

 

                IV.          DO DIREITO

 

                1.            QUESTÕES DECIDENDAS

 

                As questões que cabem a este Tribunal conhecer respeitam à exceção de intempestividade da ação suscitada pela Requerida e, em relação ao mérito, na hipótese de improcedência da exceção, à existência de uma presunção ilidível, subjacente ao artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC, de empresarialidade parcial das despesas com veículos ligeiros de passageiros sujeitas a tributação autónoma. Por último, a concluir-se pela afirmação da presunção, importa aferir se esta foi ilidida mediante prova do contrário.

 

                2.            SOBRE A EXCEÇÃO DE INTEMPESTIVIDADE

 

                A Requerida suscita a questão de estar ultrapassado o prazo legalmente definido para a ação arbitral, na medida em que o pedido não teria por finalidade a anulação dos atos de segundo grau – pedido de revisão oficiosa [2014 e 2015] e reclamação graciosa [2016 e 2017] – deduzidos contra as autoliquidações de tributação autónoma em discussão nestes autos, circunstância em que o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT teria de contar-se por referência aos atos de autoliquidação das tributações autónomas e não da notificação das decisões de indeferimento  da revisão oficiosa e da reclamação graciosa. Para tanto salienta que “a Requerente não formulou/concretizou ao Tribunal qualquer pedido tendente à anulação do que foi decidido em sede de reclamação graciosa/revisão oficiosa e inexistindo qualquer referência a tal procedimento, quer na causa de pedir, quer no pedido pedido, não há pois o apoio que poderia firmar a tempestividade do pedido e, consequentemente, a possibilidade de o Tribunal apreciar o pedido formulado relativamente ao acto de liquidação impugnado.”.

 

                Contudo, não tem razão.

 

Convém começar por assinalar que a Requerente referiu e identificou no pedido de pronúncia arbitral os atos de segundo grau (pedidos de revisão oficiosa e reclamação graciosa). No entanto, contrariamente ao que a Requerida pressupõe, não era indispensável que impugnasse esses atos. Conforme salientado em diversa jurisprudência arbitral, nomeadamente nas decisões dos processos n.ºs 336/2018-T e 359/2018-T, a competência material delimitada no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT respeita à apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação, nestes se incluindo o caso das autoliquidações.

 

Assim, em rigor, a jurisdição arbitral tem competência material para apreciar a ilegalidade da liquidação, não os vícios do indeferimento de reclamações, recursos e, atenta a identidade de razões, pedidos de revisão oficiosa.

 

Que a ação impugnatória tem por objeto o ato de liquidação tem sido, aliás, reiteradamente afirmado pela jurisprudência do STA, como resulta do recente Acórdão de 3 de julho de 2019, no processo n.º 02957/16.0BELRS 070/18, segundo o qual “o objeto real da impugnação é o ato de liquidação e não o ato que decidiu a reclamação graciosa, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise” , entendimento que se aplica ao processo arbitral concebido como alternativa ao meio processual da impugnação judicial.

 

Acresce que a impugnação nos Tribunais Arbitrais das autoliquidações reveste a especificidade de ser obrigatoriamente precedida do recurso à via administrativa, nos termos estabelecidos pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março), em moldes idênticos aos previstos no artigo 131.º do CPPT para a ação de impugnação nos Tribunais Administrativos e Fiscais, norma para a qual a Portaria remete.

 

Deste modo, a Requerente nem sequer dispunha da opção de não reagir administrativamente contra as autoliquidações de tributação autónoma, pois uma impugnação direta destas junto dos Tribunais Arbitrais seria votada ao insucesso, por falta do pressuposto processual de impugnabilidade dos atos tributários.

 

Dado que a reclamação graciosa ou o pedido de revisão oficiosa têm por objeto as autoliquidações controvertidas, a reação à decisão de indeferimento (total ou parcial) daqueles meios de impugnação administrativa toma esta decisão por objeto imediato, mas o objeto mediato é, necessariamente, a própria liquidação. Por isso, mesmo quando isso não seja explícito, “a reação os atos de segundo grau implica que é o ato primário que se pretende impugnar ainda. E, inversamente, a reação ao ato primário, na sequência dos atos de segundo (ou terceiro) grau, implica que estes são igualmente visados e devem ser removidos da ordem jurídica porque os vícios do ato primário, por eles confirmados, os “contaminam” – mesmo quando isso não seja porventura explicitado naquela reação” . Dito de outro modo, as pronúncias constitutivas anulatórias de atos de liquidação de IRC (tributação autónoma) devem produzir efeitos idênticos sobre os atos confirmativos de segundo grau.

 

Interessa assinalar que no pedido arbitral a Requerente requereu expressamente a apreciação dos vícios nas autoliquidações de IRC (tributações autónomas) referentes aos períodos de 2014 a 2017, na sequência dos despachos de indeferimento – total ou parcial – que lhe negaram a pretensão relativa à tributação autónoma incidente sobre os veículos ligeiros de passageiros “em pool”. É percetível que a Requerente não se conformou, nem com aquelas autoliquidações, nem com a decisão que sobre as mesmas recaiu. Posição que reforçou e clarificou em articulado subsequente à Resposta da Requerida.

 

Este entendimento é conforme à aplicação do princípio pro actione, previsto no artigo 7.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, segundo o qual, em caso de dúvida, as normas processuais devem ser interpretadas pelos Tribunais num sentido que favoreça a emissão de uma pretensão sobre o mérito dos pedidos formulados:

 

                “Daí que uma interpretação favorável ao acesso ao Direito (artigo 7.º do CPTA) e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 268.º, n.º 4 da Constituição) – favorável, portanto, à apreciação do mérito das questões e não enredada em formalismos procedimentais e processuais –, deva incluir o indeferimento expresso de uma reclamação graciosa ou de um recurso hierárquico no objeto do processo, como expressão de uma reação tempestiva à ilegalidade do ato primário.”  

 

Conclusão que é, de igual modo, de retirar relativamente ao indeferimento de um pedido de revisão oficiosa.

 

O artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, para o qual remete, determina que o prazo para deduzir a ação arbitral, nas situações em que houve reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa seguidos de decisão expressa, se conta da notificação desta última e não por referência ao (termo do prazo para) pagamento voluntário da autoliquidação.

 

O citado artigo 10.º do RJAT não confere aos Tribunais Arbitrais a competência para apreciação direta dos atos de segundo (ou terceiro) grau. É uma norma que, embora mencionando esses atos, respeita exclusivamente ao termo inicial do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral. “A tempestividade afere-se, portanto, em relação a esses atos de segundo (ou terceiro) grau, embora a materialidade do litígio se reporte a uma liquidação que aqueles atos se limitaram a confirmar. Logo, em bom rigor, a Requerente não teria sequer de impugnar separadamente os indeferimentos na reclamação graciosa ou no recurso hierárquico, se não encontrasse neles vícios próprios (já que como meros atos confirmativos eles são irrecorríveis)”  .

 

Desta forma, nem sequer seria necessária a clarificação da Requerente ou o aperfeiçoamento do seu pedido de pronúncia arbitral.

 

Nestes termos, em 17 de junho de 2020, data em que foi submetida a ação arbitral, ainda não tinha sido ultrapassado o prazo de 90 dias mencionado no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, relativamente a nenhuma das decisões de indeferimento, total ou parcial, referentes às autoliquidações de 2014 a 2017, sendo a primeira datada de 4 de março de 2020. De notar que as notificações foram efetuadas para o domicílio postal eletrónico, aplicando-se o disposto no artigo 39.º, n.º 10 do CPPT, pelo que a primeira notificação se deve considerar efetuada no décimo quinto dia posterior ao registo de disponibilização no sistema de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas, ou seja, no dia 19 de março de 2020.

 

Acresce que por força da legislação introduzida pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (artigo 7.º, n.º 3), alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril – legislação COVID 19 –, ocorreu uma suspensão dos prazos de caducidade, a qual cessou apenas com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio. É, pois, inequívoco concluir-se pela tempestividade do pedido, improcedendo a exceção suscitada pela Requerida.

 

                3.            A INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO IMPLÍCITA (DE EMPRESARIALIDADE PARCIAL)

 

A questão colocada nesta ação prende-se com saber se o artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC, que determina a tributação autónoma dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros efetuados ou suportados por sujeitos passivos de IRC , contém uma presunção implícita iuris tantum, suscetível de prova em contrário, conforme previsto no artigo 73.º da LGT. 

 

Na tese da Requerente, esta norma tem subjacente uma presunção implícita, ilidível, de que as viaturas ligeiras de passageiros utilizadas pelos sujeitos passivos de IRC estão, em regra, afetas, parcial ou totalmente, à esfera pessoal dos funcionários, e não estritamente à atividade empresarial e ao interesse social das empresas. Logo, se a presunção for ilidida, i.e., se o sujeito passivo demonstrar que os encargos associados às mencionadas viaturas estão única e estritamente afetos à atividade empresarial, não deve incidir tributação autónoma, por exclusão do facto “presumido” que constituía o seu pressuposto.

 

Relembra-se que as presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (v. artigo 349.º do Código Civil). Como ensina JOÃO BATISTA MACHADO, as presunções legais relacionam-se com o regime do ónus da prova, invertendo o regime geral de repartição que decorre do artigo 342.º do Código Civil, e “cedem perante a prova do contrário, isto é, a prova de que o facto presumido não acompanhou o facto que serve de base à presunção legal”, nos termos que resultam do disposto no artigo 350.º do Código Civil – v. “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 18.ª reimpressão, 2010, pp.111 e 112.

 

Assim, não é de excluir a possibilidade de presunções legais implícitas em normas de incidência tributária, como aquelas, a verificarem-se, têm de ser ilidíveis, pois, além da  proibição, no patamar infraconstitucional, de presunções inilidíveis (v. artigo 73.º da LGT), estas também são rejeitadas pela Lei Fundamental. Neste sentido, o Tribunal Constitucional considera que “uma presunção inilidível, neste domínio [incidência tributária], viola o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva” – v. acórdão n.º 211/2003, de 28 de abril de 2003.

 

Neste contexto, e quanto a se deverem entender abrangidas, no artigo 73.º da LGT, também presunções implícitas, sempre se refira que não deixarão as mesmas de estar relacionadas com a determinação da matéria colectável. “Numa perspectiva, pois, de quantificação - presumida”.

 

Em diversas ocasiões, o Tribunal Constitucional reconhece a figura das presunções implícitas, nomeadamente no acórdão n.º 753/2014, de 12 de novembro de 2014, onde declara que “[a]s presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, quando são reveladas pelo uso da expressão «presume-se» ou de expressão de idêntico significado, mas podem também resultar implicitamente do enunciado linguístico da norma”.

 

Porém, importa notar que o Tribunal Constitucional considerou que não seria esse o caso, por exemplo, das normas que limitam a dedução de custos, como a do artigo 23.º, n.º 7 do Código do IRC. Como salienta SÉRGIO VASQUES, o que o tribunal diz aqui é do maior interesse. “A norma deste artigo 23.º seguramente tem subjacente uma presunção – a presunção de que as operações em causa, porque envolvem entidades em relação especial ou paraísos fiscais, não possuem substância económica nem os custos que geram têm verdadeira «empresarialidade». O que sucede é que essa presunção não se encontra explicitada na norma de incidência, que se limita a desconsiderar «automaticamente» os custos em causa, sem admitir prova em contrário. E porque sabe serem inúmeras as normas de incidência que têm na sua «razão de política legislativa» um juízo presuntivo, o tribunal sente-se obrigado a distinguir – estas não serão presunções em «sentido próprio», normas que o contribuinte possa contraditar através de um procedimento de prova, são algo diferente” (v. “IVA, Direito à Dedução e Presunções Tributárias …”, Cadernos IVA 2017, Almedina, pp. 486-487).

 

Neste sentido, a Requerida defende que a norma do artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC não contém uma presunção, expressa ou implícita, uma vez que não é possível retirar do elemento gramatical, da letra da lei, um pressuposto presuntivo de não empresarialidade (parcial ou total) das despesas em causa. Estamos perante normas de incidência objetiva, sem mais.

 

Para apreciar esta questão, convém atender à teleologia das tributações autónomas que, na expressão do Supremo Tribunal Administrativo, foram introduzidas, inicialmente, “como meio de combater a evasão e fraude fiscais” tendo o seu âmbito sido “progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros”. No caso de tributações autónomas respeitantes a encargos com viaturas, i.e., a despesas dedutíveis, “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários” (v. acórdão de 27 de setembro de 2017, processo n.º 0146/16).

 

 Posição que o Tribunal Constitucional corrobora, sublinhando que a introdução do mecanismo de tributação autónoma “é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407)” (v. acórdão n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016).

 

Complementa ainda o Tribunal Constitucional que “a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”.

 

Atento o exposto, afigura-se claro que as despesas com viaturas ligeiras de passageiros dos sujeitos passivos de IRC (maioritariamente sociedades comerciais) representam, na perspetiva do legislador, um encargo não só atribuível à prossecução da atividade empresarial como também, e por vezes sobretudo, à esfera pessoal dos funcionários, entendendo o legislador que estas viaturas são suscetíveis de serem afetas tanto à esfera empresarial como à esfera pessoal dos funcionários, ou mesmo de serem somente afetas à esfera pessoal destes, provocando a erosão da base tributável.

 

A tributação autónoma surge, assim, como forma de desincentivar dispêndios com viaturas ligeiras de passageiros e, simultaneamente, de arrecadar receita, alcançando uma maior igualdade tributária na repartição dos encargos fiscais ao incidir sobre situações que comportam uma provável margem de erosão fiscal.

 

A questão de direito em exame tem dividido a jurisprudência arbitral, com decisões que afirmam, em relação ao artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC, que existe a mencionada presunção (entre as quais as decisões arbitrais dos processos n.ºs 628/2014–T, 411/2016–T, 497/2016–T, 553/2016–T, 285/2017–T e 189/2018–T), e decisões que determinam que tal norma não contém uma presunção (entre as quais as decisões arbitrais dos processos n.ºs 52/2016–T, 433/2018–T, 448/2018–T, 516/2018-T e 323/2019–T).

 

Tomando como ponto de partida que o objetivo da norma, o artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC, além da arrecadação de receita, é dissuadir os sujeitos passivos de incorrerem nestas despesas (pretendendo evitar-se, quer o abuso que pode ocorrer em IRC, ao nível da dedução fiscal excessiva na esfera das entidades sujeitas a este imposto, quer em IRS, na perspetiva do beneficiário da despesa que não a declara como rendimento em espécie), conclui-se que estamos perante o exercício da margem de liberdade e opção legislativa, sem correspondência com o recorte de uma presunção legal.

 

Também assim foi entendido no recente acórdão do Pleno (da Secção de Contencioso Tributário) do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no recurso para uniformização de jurisprudência n.º 021/20.7BALSB, de 24 de março de 2021, que confirmou a decisão arbitral n.º 323/2019-T.

 

Fundamenta-se aí que “a presunção que se pretende ilidir por prova em contrário não é a natureza não empresarial das despesas mas a própria razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas, levando a discussão para o plano da conformação legislativa que se encontra vedado ao julgador.”

 

Pelo que do artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC não resulta uma presunção de não empresarialidade das despesas, configurando aquele uma “mera” norma de incidência, como preconizado na decisão arbitral n.º 323/2019-T, conforme excertos ilustrativos que se transcrevem:

 

“No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas. A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário - a realização da despesa legalmente prevista -, não se descortinando aí uma qualquer condição de aplicação da norma que se prenda com a demonstração, por inferência, de outro facto. A própria realização da despesa determina a aplicação da norma.

 

A inexistência de uma qualquer presunção legal relacionada com o carácter empresarial das despesas surge também evidenciada pelo contexto verbal das disposições em causa. Excluem-se da tributação autónoma certo tipo de veículos de acordo com critérios de política fiscal e estabelecem-se taxas diferenciadas com base em características atinentes ao custo de aquisição dos bens (artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC) e à tipologia dos veículos (artigo 88.º, n.ºs 17 e 18, cfr. Lei n.º 82-D/2014). Também no que concerne aos encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a que se reporta o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, a incidência da tributação autónoma determina-se em função de certos aspectos relacionados com a específica situação tributária que está em causa.

 

Acresce ainda o facto de as taxas de tributação autónoma serem elevadas em 10 pontos percentuais relativamente aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem os factos tributários competentes relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC (artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC).

 

Em suma, as normas de incidência em apreço não assentam na demonstração, por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, mas operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa. 

 

E basta notar que a razão de ser das tributações autónomas é complexa e múltipla, podendo ter em vista prevenir, por razões de cobrança de receita fiscal, que seja afetada a receita respeitante à tributação do lucro tributável, desincentivar, por razões de política extra-fiscal, certas despesas que são reputadas socialmente como inconvenientes e desincentivar despesas normalmente associadas a comportamentos evasivos ou mesmo fraudulentos (v., entre o mais, o n.º 14 do artigo 88.º).”

 

A este respeito interessa referir que mesmo que a tese da Requerente prevalecesse, o que, como acima se disse, não se entende ser o caso, esta não logrou demonstrar nos presentes autos a causa de pedir invocada: a afetação estrita e exclusivamente empresarial das despesas com viaturas ligeiras de passageiros em “pool”. Assim, mesmo nessa situação, a pretensão da Requerente sempre teria de improceder por não se encontrar satisfeito o alegado requisito da empresarialidade integral das despesas em causa.

 

Em nota final, como consequência da norma aplicada [o artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC] não conter uma presunção, antes constituindo uma norma de incidência tout court, não há que acautelar que a mesma seja ilidível pelo contribuinte.

 

Por outro lado, não se verifica a violação do princípio da igualdade e de tributação (fundamentalmente) pelo rendimento real artigo 104.º, n.º 2 da CRP, que a Requerente convoca sem contudo explicitar e concretizar as respetivas razões, pois não só o recorte da incidência se insere na margem de conformação legislativa, como é precisamente essa delimitação que, de forma acertadamente seletiva, conduz a uma maior igualdade e justiça fiscal, ao fazer incidir sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros tributação que de outra forma seria indevidamente subtraída à base de incidência (de IRC, na esfera da entidade que deduz o gasto, e de IRS, na esfera do beneficiário do “fringe benefit”).

 

                CONCLUSÃO,

 

O artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC é uma norma de incidência tributária e não contém uma presunção implícita de não empresarialidade, parcial ou total, dos encargos suportados por sujeitos passivos de IRC com viaturas ligeiras de passageiros.

                                 

                4.            JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

                Peticionou, por fim, a Requerente que, além do reembolso da quantia paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

 

O direito a juros indemnizatórios é regido pelo artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamen-to de prestação tributária superior à legalmente devida e que, no caso de revisão do ato tributá-rio por iniciativa do contribuinte [aplicável aos períodos de 2014 e 2015], estabelece que aque-les sejam devidos após o decurso do prazo de um ano a contar do pedido de revisão – v. artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.

 

A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indem-nizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados. Havendo decisão a favor do sujeito passivo, postula-se o restabelecimento da situação que existiria se o ato tribu-tário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

Porém, nos presentes autos, tendo-se determinado, que não ocorreu qualquer erro im-putável aos serviços, nem o pagamento de prestação tributária superior à devida, não se encon-tram reunidos os requisitos de que depende a aplicabilidade deste regime, pelo que também improcede o peticionado pela Requerente a este respeito.

 

                5.            QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada ou cuja apreciação seria inútil, designadamente no que se refere aos vícios de inconstitucionalidade material suscitados pela Requerida, por violação dos princípios da legalidade, da proteção jurídica e da confiança, da eficácia e eficiência fiscais (artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), por não ter sido aplicada a norma contida no artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC no sentido propugnado pela Requerente.

 

EM SÍNTESE,

 

Pelos motivos expostos, julga-se não verificado o vício material de erro nos pressupostos de direito alegado pela Requerente, concluindo-se pela manutenção das autoliquidações de IRC (tributação autónoma) reportadas aos períodos de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018.

 

 

V.           DECISÃO

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

a)            Julgar improcedente a exceção de intempestividade suscitada pela Requerida;

b)           Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e de anulação parcial das autoliquidações de IRC (tributações autónomas) relativas aos períodos de 2014, 2015, 2016 e 2017, no valor de € 397.299,94, e dos atos de segundo grau na medida em que confirmaram essas autoliquidações;

c)            Julgar improcedente o pedido de reembolso da referida quantia, acrescida de juros indemnizatórios,

 tudo com as legais consequências.

 

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 397.299,94, indicado pela Requerente e não contraditado pela Requerida, correspondente ao somatório do valor das autoliquidações de IRC cuja anulação (parcial) peticiona – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de junho de 2021

 

 

Os Árbitros,

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

 

Fernando Araújo

(vota vencido, nos termos da declaração que junta)

 

 

 

Sofia Ricardo Borges

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO (PROCESSO Nº 306/2020-T)

 

SUMÁRIO:

 

I. A MATÉRIA DE PROVA

II. SOBRE O MÉRITO: DA PSEUDO-PRESUNÇÃO À INCONSTITUCIONALIDADE

III. SOBRE O ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

IV. DA INCONSTITUCIONALIDADE À INJUSTIÇA

 

Votei vencido pelas razões que seguem.

 

I. A MATÉRIA DE PROVA

 

Discordo do “standard” de prova que remete para “não provados” os dados de “pooling” de veículos ligeiros de passageiros, entendendo que foi feita a prova bastante, em termos de razoabilidade, no que diz respeito aos deveres de revelação e colaboração que impendem sobre os sujeitos passivos da relação tributária.

Além da regra geral de presunção de veracidade das declarações, que releva para a distribuição do ónus da prova em Direito Fiscal, os meios de prova mobilizados são aqueles que, no meu entendimento, são razoavelmente exigíveis – ou seja, aqueles que ficam, e devem permanecer, aquém de fronteiras de devassa, e de interferência com a própria eficiência e normalidade das operações económicas, que o próprio Direito não consentiria que fossem ultrapassadas.

Sem conceder, por ora, que se trate, no caso vertente, de provar deveras um uso “exclusivamente empresarial”, mas admitindo, por mera hipótese, que seja isso que está em questão, não posso deixar de remeter para considerações contidas nos acórdãos proferidos nos processos n.os 649/2016-T e 285/2017-T, ambos do CAAD:

“Insistamos que o conceito de “exclusivamente empresarial” não exige, e decerto não legitima, uma devassa microscópica da utilização das viaturas – e insistamos também que não é razoável assentarmos numa definição de “empresarialidade” que retire, aos utilizadores dos factores de produção de uma empresa, a mais ligeira margem de autonomia no desempenho das suas tarefas.

(…)

Com efeito, por mais relevância que o uso “exclusivamente empresarial” possa ter para efeitos da incidência da tributação autónoma, nada se compara ao interesse da própria empresa nesse uso – e, não esqueçamos, é no âmbito mais geral da obtenção do rendimento empresarial que toda esta matéria se enquadra.

Essa é uma razão acrescida para se abandonar a sindicância milimétrica da gestão da frota de veículos, que, ao contrário das aparências, estaria longe de ser a forma mais rigorosa e exigente de prova da empresarialidade da utilização dos veículos – sendo, pelo contrário, mais rigorosa se corresponder a formas normais de monitorização da rotina empresarial por parte do principal interessado no conhecimento da actividade dos seus agentes, que é a própria empresa.

Tudo está em apurar-se, pois, se existiam critérios de aferição, pela própria empresa, de tal uso “exclusivamente empresarial” dos veículos – e, no caso de existirem esses critérios, se está comprovada a observância deles em termos que possam incutir, no julgador, a convicção de que esses critérios eram genuínos, e que existia um interesse proeminente, e inequívoco, da empresa, na adstrição à conduta dos seus agentes a esse uso “exclusivamente empresarial”.

(…)

Se porventura esses critérios não existirem – ou, existindo, não houver comprovação razoável da sua observância em termos do funcionamento tendencialmente optimizador e maximizador da empresa –, então não restará senão admitir-se, não obstante a propriedade empresarial desses activos, a possibilidade de um uso “misto”, tanto particular como empresarial, em concorrência um com o outro na utilização de cada veículo, dadas as aptidões para tal uso que decorrem da sua natureza de viatura ligeira de passageiros “de gama baixa”.

E é nesse caso, e só nesse caso, que se justificará o corte do “nó górdio” da indefinição (com o seu potencial abusivo) através do emprego da espada “ad hoc” da tributação autónoma.”

Nesses processos n.os 649/2016-T e 285/2017-T, ambos do CAAD, a factualidade era muito similar à do caso vertente, pelo que, ainda em matéria de prova, se afiguram pertinentes as seguintes notas extraídas dos respectivos acórdãos:

“Daí decorre, na mais elementar lógica, que o uso particular de viaturas destinadas a um uso exclusivamente empresarial, na medida em que rivalizasse com este, interferisse neste, o limitasse, se traduziria em prejuízos para as próprias empresas que sempre excederiam, em muito, qualquer valor que, com um tal emprego, se procurasse recuperar em termos de “planeamento fiscal”.

Insiste-se que a vantagem fiscal da não-incidência de tributação autónoma, por mais atraente que parecesse, seria sempre, por definição, muitíssimo menor do que a auto-mutilação directa sobre os proventos da empresa que corresponderia a esse desleixo na monitorização, pela própria empresa, da utilização das suas viaturas.

O que nos reconduz, de novo, ao conceito de “utilização exclusiva” e ao correspondente “standard” de prova: não a utilização rígida e mecânica que recusa à confiança qualquer papel no desenvolvimento das relações contratuais; não a prova microscópica que nem a própria interessada é capaz de promover eficientemente.

(…)

Não se afigura curial que, ao invés, se possa exigir a uma empresa um tipo de monitorização que excede os critérios empresariais normais, e menos ainda que se requeira dela um “standard” de prova que, de tão onerosa, converteria tal prova em impossível ou em “diabólica”.

Conclui-se que a Requerente fez a prova possível, e logo a prova exigível dado o próprio escopo normativo “anti-abuso”, quanto ao uso “exclusivamente empresarial” das viaturas em apreço; e que, feita essa prova, daí decorre, de acordo com a linha interpretativa dominante (e, cremos, a única compatível com a legalidade e com a não-inconstitucionalidade das tributações autónomas), a não-sujeição dos correspondentes encargos ao regime das tributações autónomas previstas, à data dos factos, no artigo 88º do CIRC.”

Disse inicialmente, e mantenho, que é até possível que esta questão probatória esteja inadequadamente enquadrada, e que não se trate verdadeiramente, no mérito da causa, de ilidir qualquer presunção, de “não-empresarialidade” ou outra, antes se trate de uma outra questão que deve colocar-se num plano diverso – o da natureza de uma “tributação autónoma” cuja legitimidade possa sobreviver à suspeita da inconstitucionalidade que sobre ela impende, se não forem preservadas as características que evitam que tal tributação autónoma degenere numa crua tributação sobre a despesa, e numa “alcavala” que fere a congruência e justiça do próprio sistema tributário.

 

II. SOBRE O MÉRITO: DA PSEUDO-PRESUNÇÃO À INCONSTITUCIONALIDADE

 

O que acabámos de dizer no final do ponto anterior conduz-nos à questão de saber se o art. 88º, 3 do CIRC, que determina a tributação autónoma dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros efectuados ou suportados por sujeitos passivos de IRC, contém uma presunção implícita iuris tantum, susceptível de prova em contrário, conforme previsto no art. 73º da LGT.

Por um lado, não custaria admitir a existência dessa presunção implícita, e dessa admissão passarmos ao reconhecimento de que ela foi ilidida pela prova produzida, demonstrativa de que a utilização das viaturas ligeiras de passageiros não encobriu “fringe benefits”, os “benefícios marginais”.

Havendo sólida e reiterada jurisprudência arbitral que sustenta essa tese, ela não é propriamente um “unicórnio hermenêutico” que acarretasse consequências bizarras; pelo contrário, leio-a como uma tentativa de salvar da inconstitucionalidade a tributação autónoma em questão.

Eu diria que, se quisermos insistir na ideia de que existe uma presunção, essa presunção não está implícita no enunciado verbal da norma, e só poderá está-lo na sua razão de ser, na “mens legis” – uma posição que não pode ser removida pela mera invocação, por retoricamente poderosa que seja, de que se trata de uma norma de “incidência objectiva”: e isto porque nenhuma invocação de “objectividade” isenta uma norma, qualquer norma, da interpretação jurídica, uma interpretação que abarca, nas sua várias dimensões, a dimensão teleológica – ou seja, a indagação sobre as razões pelas quais uma norma dispõe como dispõe, a indagação sobre a sua “mens legis” e sobre a sua “ratio legis”.

Se assim não fosse, a mera invocação da “objectividade de incidência” teria as virtualidades do argumento “in claris” ou do tropo “é evidente que…”: silenciaria a argumentação; o que, entre outras consequências mais ou menos deletérias, teria a de dispensar o contributo, para a vigência da lei tributária, do próprio Direito Fiscal.

Ora, na “ratio decidendi” do presente acórdão, do qual respeitosamente divirjo nos pontos assinalados nesta declaração, identifica-se a “ratio legis”, a teleologia, do art. 88º, 3 do CIRC – e é indiscutido, que eu saiba, que ele nasceu como uma iniciativa anti-evasão e anti-fraude, que visava abranger “fringe benefits” cuja tributação seria problemática se permanecessem numa zona de indefinição, de penumbra ou opacidade, entre o pessoal e o empresarial, redundando assim numa potencial erosão da base tributável e numa perda de receita fiscal.

Passemos em revista algumas conclusões que se retiram da evolução do regime do art. 88º, 3 do CIRC, e normas adjacentes, aproveitando o que já ficou plasmado nos acórdãos proferidos nos processos n.os 649/2016-T e 285/2017-T, ambos do CAAD:

1.            O uso privado de viaturas na titularidade de uma empresa não é objecto típico da tributa-ção autónoma do artigo 88º, pois esse uso é considerado um rendimento do trabalho de-pendente, tributado em IRS, se ele resulta de um acordo que – subentende-se – atribui uma viatura de forma permanente, ou mesmo exclusiva, a um colaborador da empresa.

2.            No regime em vigor até 2015 (até à Lei nº 82-C/2014, de 31 de Dezembro), essa situação era algo complexa e indefinida, visto que a sujeição principal a IRS da “remuneração aces-sória”, em que o uso dessas viaturas consistia, deixava ainda aparentemente sujeitas ao ar-tigo 88º do CIRC todas as despesas com elas que não fossem as correspondentes à respec-tiva depreciação (artigo 88º, 6, “a contrario”, na redacção então vigente).

3.            Mas essas dúvidas seriam dissipadas com a total separação lograda com a redacção intro-duzida em 2015, que excluiu expressamente da tributação autónoma as próprias “viaturas automóveis” – subentendendo-se, portanto, todas as despesas conexas com tais viaturas –: artigo 88º, 6, b) do CIRC.

4.            Significando isso, portanto que, quanto aos típicos “benefícios marginais” consistentes no uso permanente, por particulares, de veículos de empresas, a congruência do regime passou a estar assegurada, dissipando-se inúteis ambiguidades pretéritas:

a.            O uso privado, quando permanente – e documentado – passou a ser tributado nos termos do artigo 2º, 3, b), 9) do CIRS, excluindo-se nesses casos a tributação autó-noma;

b.            Subsistiram sujeitas à tributação autónoma as situações de uso privado não perma-nente, ou não documentado – ou seja, aquelas situações em que o uso privado, sendo possível (o que significa não ser excluído pela natureza das viaturas ou das circunstâncias da sua utilização empresarial), no entanto não foi objecto de uma afectação não-empresarial permanente, ou documentada.

5.            O artigo 88º do CIRC passou a servir, assim, para cortar o “nó górdio” daquelas situações indefinidas, ou não documentadas, em que o uso privado possa ocorrer de forma tão rele-vante que venha a dar origem a situações parcialmente equivalentes a “benefícios margi-nais” de colaboradores da empresa, sem que possa fazer-se prova bastante, seja dessa situ-ação, seja da situação oposta – da situação em que tal uso privado esteja excluído pelas circunstâncias de utilização dos veículos, ou pelas características desses veículos.

6.            E, na redacção anterior a 2015, o artigo 88º também excluía da tributação autónoma certos veículos que, pelas suas características (especificamente por terem um custo de aquisição superior a um montante fixado por Portaria, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º), deixavam de corresponder ao padrão que abstractamente a lei tomava por adequado para admitir que essas viaturas tivessem um uso exclusivamente empresarial:

a.            Mais concretamente, ao impor um limite de valor máximo, a lei, já na redacção em vigor antes de 2015, tornava claro que só admitiria esse uso, em termos genéricos, em veículos ditos “de gama baixa”;

b.            Excluíam-se expressamente dessa triagem por “gamas” duas categorias, por razões diversas: 1) a dos veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica – por razões extra-fiscais de política ambiental – ; 2) a das viaturas ligeiras de passageiros afec-tas à exploração de serviço público de transportes e destinadas a serem alugadas no exercício da atividade normal do sujeito passivo – porque precisamente aí se ilustra a “ratio” da norma, a de excluir de tributação autónoma aquelas despesas relativas a veículos que, pelas suas características ou pelas circunstâncias da sua utilização, não façam nascer o “nó górdio” de indefinição que deva ser resolvido pela espada “ad hoc” desta forma autónoma de tributação –.

7.            Como dissemos, ficava implícito, na redacção em vigor antes de 2015, que os veículos “de gama média” e “de gama alta” (entenda-se, aqueles com custo de aquisição superior a um montante fixado por Portaria, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º) deixavam de corresponder ao padrão que abstractamente a lei tomara por adequado para admitir que es-sas viaturas tivessem um uso exclusivamente empresarial, e por isso também, quanto a es-ses, a tributação autónoma não se aplicava: subentendia-se, nesse momento, que a lógica do regime aplicável remeteria as despesas com essas viaturas para os domínios da tributa-ção dos “benefícios marginais”, ou seja para o IRS dos particulares a quem essas viaturas fossem distribuídas.

8.            Numa evolução bizarra, e não isenta de consequências graves para a legalidade e constitu-cionalidade das tributações autónomas envolvidas, a partir de 2015 o regime do artigo 88º do CIRC (com taxas actualizadas pela Lei nº 2/2020, de 31 de Março) passou a abarcar os veículos “de gama média” (com um custo de aquisição igual ou superior a € 25 000, e infe-rior a € 35 000) e os “de gama alta” (com um custo de aquisição igual ou superior a € 35 000), para além dos “de gama baixa” (com um custo de aquisição inferior a € 25 000), o que, entre outras, tem duas consequências preocupantes:

a.            Destrói a “ratio legis” do regime que, lembremo-lo, era o de resolver com um crité-rio seguro as situações de persistente indefinição de uso (particular ou empresarial) de veículos, contornando as dificuldades de prova e dissuadindo as conexas possi-bilidades de abuso;

b.            Transforma a tributação autónoma num verdadeiro e próprio imposto sobre a des-pesa, na medida em que atende somente ao valor de aquisição das viaturas para, em função desse valor, estabelecer escalões de imposto.

Mas, nessa transformação da tributação autónoma num verdadeiro e próprio imposto sobre a despesa, a norma do art. 88º, 3 do CIRC perde o seu apoio sistemático, legal e constitucional. Com efeito, perguntar-se-á:

A.           Que faz um puro imposto sobre a despesa enxertado no regime de um imposto sobre o rendimento?

B.            Como pode um imposto sobre a despesa sobreviver às especificidades que resultam da sua articulação com os impostos sobre o rendimento – nomeadamente, como pode ele resistir ao facto de estarem isentas de tributação autónoma muitas das despesas daqueles que op-tem pela tributação simplificada (artigos 73º, 2 do CIRS e 88º, 16 do CIRC)?

C.            Como pode ele autonomizar-se como imposto sobre a despesa stricto sensu, se é a própria Lei que o veda (artigos 12º, 23º-A, 1, a) e 88º, 22 do CIRC)?

D.           Como evitar a conclusão de que um tal imposto sobre a despesa padece de inconstituciona-lidade formal, por violar o artigo 165º, 1, i) da Constituição, dado não ter havido uma lei de autorização para a criação de um novo imposto sobre a despesa, mas somente, nos ter-mos do artigo 25º, 3 da Lei nº 101/89, de 29 de Dezembro, uma autorização ao Governo para “tributar autonomamente em IRS e IRC” – o que é, por tudo o que vimos, algo de bem distinto?

Parece claro que esta “deriva legislativa”, consumada pela Lei nº 82-C/2014, de 31 de Dezembro, arrasta a tributação autónoma prevista no art. 88º, 3 do CIRC para os domínios do desvirtuamento sistemático, da incongruência normativa e da inconstitucionalidade.

A essa luz, os esforços de interpretação assentes na “presunção implícita”, ou melhor, na pseudo-presunção que alerta para a “mens legis” e para a “ratio legis” da norma ganham um outro alcance: são, quanto muito, formas de tentar resgatar um regime que, de outra forma, está condenado pela sua própria, e flagrante, inconstitucionalidade.

 

III. SOBRE O ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

 

Alega-se, no recente acórdão do Pleno (da Secção de Contencioso Tributário) do STA, proferido no recurso para uniformização de jurisprudência n.º 021/20.7BALSB, de 24 de Março de 2021, que confirmou a decisão arbitral n.º 323/2019-T, que o que estava em causa era a política legislativa, a “ratio legis” que conduzia à tributação autónoma dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros efectuados ou suportados por sujeitos passivos de IRC, e não qualquer “presunção de empresarialidade” que estivesse ínsita à norma – para se concluir que, não existindo esta última, há a liberdade do legislador para dar largas à sua liberdade de conformação da norma de incidência.

Salvo o devido respeito, que é muito, o argumento e a conclusão são incongruentes: podemos conceder pacificamente, como demonstrámos acima, que a norma não contém qualquer “presunção de não-empresarialidade” implícita.

Mas a ausência de tal “presunção implícita” jamais conferiria, ou conferirá, ao legislador a liberdade de menosprezar a “mens legis” da norma, ou de apagar a respectiva “ratio legis”; a menos que, em jeito arbitrário e à margem de imperativos constitucionais, se reconhecesse ao legislador a possibilidade de converter, forçadamente, uma norma vocacionada para o combate à evasão e à fraude numa norma de incidência (e de incidência sobre a pura despesa); a possibilidade, em suma, de, num passe habilidoso e com um bom pretexto, criar uma nova oneração tributária, sobreposta às já existentes; e, pior do que tudo, indiferente já, na sua fórmula final, a qualquer existência, ou não, de evasão ou fraude, a própria razão de ser inscrita na sua génese.

Moralmente chamaríamos a isso um “cinismo legiferante”, a criação de um imposto, de uma “alcavala”, sob falsos pretextos – pretextos apresentados inicialmente como “ratio legis”, mas que são oportunamente esquecidos e descartados.

Constitucionalmente isso é um atentado a um conjunto vasto de princípios, que começam na lesão do princípio da legalidade na criação de novas onerações tributárias, passam pela violação da proscrição de enxertos de tributação da despesa na tributação do rendimento, e culminam na lesão da tutela da confiança do cidadão-contribuinte.

Além disso, ao sublinhar que está em causa a “ratio legis” e não uma qualquer “presunção”, o acórdão investe contra um “homem de palha”, isto é, contra um argumento que, bem vistas as coisas, não é fulcral nem decisivo para o mérito da questão: porque, insiste-se, a linha argumentativa que se refere à “presunção implícita” está, na verdade, a remeter para um plano superior ao de qualquer presunção ou pseudo-presunção, e que é o plano da economia do próprio preceito, da sua génese, vocação e razão de ser – procurando resgatá-lo dos efeitos literais de uma “deriva legislativa” que, como vimos, o desvirtuou.

A prová-lo, os acórdãos proferidos nos processos n.os 649/2016-T e 285/2017-T, os quais, apesar de elencados no rol daqueles que alegadamente recorreriam à tal “presunção implícita”, expressamente apontavam noutra direcção, bem diversa:

“Assim sendo, em bom rigor – e ao contrário do que tem sustentado muita da doutrina e da jurisprudência acerca das tributações autónomas do artigo 88º do CIRC – não teve o legislador que lançar mão de qualquer presunção, que não era necessária; mas apenas que estabelecer, na previsão da norma, a restrição da incidência da tributação autónoma às situações que não sejam de uso “exclusivamente particular”, nem de uso “exclusivamente empresarial”, das viaturas ligeiras de passageiros adquiridas pela empresa – com o escopo precípuo de evitar que indefinições, ou difíceis comprovações, pudessem ocultar, de forma abusiva, usos particulares, mormente verdadeiros “benefícios marginais” indocumentados, dos quais resultasse um empolamento de custos em detrimento de um adequado e justo apuramento do rendimento tributável.

A presunção não era necessária, pois. Concordamos, neste ponto, com o voto de vencido formulado no acórdão proferido no Processo nº 628/2014, quando aí se afirma: “Trata-se antes de uma norma que, tendo subjacente um juízo presuntivo da dificuldade de controlo rigoroso de certos casos, opta por tipificar situações de aplicação de tributação autónoma, traduzidas, na prática, na redução do montante dos custos dedutíveis na determinação da matéria colectável.”

A tributação autónoma incidirá assim supletivamente, na ausência de prova, seja de uso “exclusivamente particular”, seja de uso “exclusivamente empresarial” – embora não se possa excluir que o próprio sujeito passivo tome a iniciativa de fazer prova de um uso “misto” ou “não-exclusivo”, convocando directamente a aplicação da tributação autónoma. Mas a possibilidade de uma prova que afaste o regime supletivo é essencial para que uma tributação que, insiste-se, não é – nem podia sê-lo sem lesão ao sistema, sem ilegalidade ou sem inconstitucionalidade – uma tributação sobre a despesa, possa coadunar-se com os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva.”

Novamente ressalvado todo o respeito, o acórdão proferido pelo STA no recurso para uniformização de jurisprudência errou no alvo, e não contribuiu, com isso, para o esforço de preservação da “mens legis”, da “ratio legis” e da não-inconstitucionalidade da tributação autónoma prevista no art. 88º, 3 do CIRC, que alguma jurisprudência arbitral tinha, denodadamente, procurado desenvolver.

 

IV. DA INCONSTITUCIONALIDADE À INJUSTIÇA

 

Não vejo, portanto, qualquer razão para alterar o entendimento que, sobre este assunto, sustentei nos processos arbitrais n.os 649/2016-T e 285/2017-T, que correram no CAAD – e que, no meu modesto parecer, é o único entendimento consentâneo com a preservação do regime do art. 88º, 3 do CIRC dentro das baias da não-inconstitucionalidade.

Mas não posso, em consciência, rematar sem sublinhar de novo a iniquidade que representa a criação de uma verdadeira e própria “alcavala” pela Lei nº 82-C/2014, de 31 de Dezembro, a pretexto de um regime que, concebido para o combate à evasão e à fraude, merecia mais respeito por parte do próprio legislador, sob pena de se agravar o cinismo generalizado, e, com ele, paradoxalmente, aumentarem a evasão e a fraude que acompanham a perda de confiança e de respeito – isto para não falarmos dos já assinalados atentados contra as salvaguardas constitucionais e os princípios do Direito Fiscal.

Fouché um dia disse a Napoleão, a propósito da ordem deste para se raptar o Duque de Enghien, “mais do que um crime, é um erro”.

Também agora diria que, mais do que uma inconstitucionalidade, há uma injustiça, que é a conversão de uma nobre salvaguarda de valores tributários num prosaico instrumento de captação de receitas.

Acho, por isso, que se aplica aqui uma passagem da declaração de voto que inseri no Processo nº 784/2019-T, do CAAD, e com ela remato a presente declaração:

“Que um Estado tenha o poder, a força, de cometer uma iniquidade e perpetuá-la, todos o sabemos; mas também sabemos que é em reacção a isso que, há muitos séculos, muito antes de se regressar a formas de organização republicana ou democrática, os impostos estiveram sujeitos a uma exigência adicional de legitimação popular – “no taxation without representation” – e de justificação da sua existência, caso a caso; ligando-se, a tais exigências, a própria génese do Direito Fiscal como ramo da Ciência Jurídica.

Sem um Direito Fiscal adequado, o aparelho tributário continua, ou continuará, exposto à tentação da multiplicação de “alcavalas” que aumentem a receita tributária por todas as formas oblíquas – incluindo esta da tributação por motivos excepcionais que, uma vez lançada, se converte numa tributação rotineira, numa receita ordinária que, por puro “efeito de catraca”, evolui no sentido da expansão e jamais da retracção (é unilateral, só opera num sentido), defraudando o quadro geral que é apresentado ao contribuinte, e removendo as ponderações e equilíbrios simbióticos dos quais depende a própria sustentabilidade da receita.

Mesmo antes de ponderarmos as questões de constitucionalidade, cabe meditar, mais especificamente, se tributações deste tipo não representam a morte da Reforma Fiscal que instituiu entre nós a tributação sobre o rendimento, e que tinha por objectivo primário terminar com a fragmentação e sobreposição metastáticas de impostos, e com as injustiças e ineficiências que esse sistema causava, substituindo tudo isso por um sistema compacto, simples e único.

Um sistema que não apenas habilitava o contribuinte a entender que oneração tributária correspondia a cada forma de rendimento que gerasse, mas um sistema que sobretudo instituía aquilo que poderia designar-se por uma espécie de “lealdade deontológica”: passavam a ser aquelas as regras do jogo, e proscrevia-se para futuro a “batota tributária” das extravagâncias “ad hoc”, ou seja, a secular, ou milenar, prática das “alcavalas”, dos impostos “complementares”, das tributações “sobrepostas” e outras surpresas fiscais do mesmo tipo – mais ou menos recobertas da legitimação formal da legalidade, como se esta bastasse para sanar os entorses materiais.

Trinta anos volvidos, a Reforma Fiscal está tão distante que as “alcavalas” (…) campeiam de novo no nosso ordenamento, aliás com grande apoio em iniciativas similares no seio da União Europeia – como pululavam em vésperas daquela notável Reforma.

Regressámos à fragmentação e à sobreposição de tributos sobre os mesmos rendimentos, e este exercício cru de poder Estatal não parece encontrar travão idóneo numa argumentação jurídica que – insiste-se – nasceu com a vocação primária de se soerguer contra este tipo de desmandos, precisamente porque tais abusos eram os mais recorrentes e arreigados na já longa tradição tributária.

Pior ainda, aos critérios jurídicos parece querer sobrepor-se, crescentemente, uma lógica político-económica que enaltece os fins e menospreza os meios, naquilo que poderia caracterizar-se como uma “arrecadação maquiavélica”.”

 

 

(Fernando Araújo – 03/06/2021)