Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 305/2021-T
Data da decisão: 2021-12-14  IRC  
Valor do pedido: € 71.314,68
Tema: IRC - Gastos de financiamento. Dedutibilidade para efeitos fiscais.
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Sumário:

I – As operações de financiamento de sociedades intra-grupo, a título gratuito, não podem ser considerados como efectuados no âmbito da actividade produtiva e do interesse social e escopo lucrativo da sociedade que concede o financiamento, quando esta não tenha no seu objecto social a gestão de participações sociais;

II - Estando em causa a apreciação da legalidade de um acto de liquidação oficiosa, praticado pela Autoridade Tributária, corrigindo liquidação anterior baseada na declaração do contribuinte, é à Administração que incumbe o ónus da prova dos pressupostos legais da correcção que operou.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A... Sgps, S.A., contribuinte n.º..., registada sob o mesmo número na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com sede ..., -... ..., ...-..., Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação de IRC n.º 2020..., bem como dos actos de liquidação de juros compensatórios e de demonstração de acerto de contas, referentes ao exercício de 2016, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade que tem como objecto social a gestão de participações sociais, sendo a sociedade dominante do Grupo B..., que integra a C..., S.A, a D..., S.L.U, a E..., a F... e a G..., Lda..

 

Com vista ao desenvolvimento da sua estratégia de expansão internacional, a C..., S.A. (C...), em 2004 e 2005, veio a captar investidores de capital, que foi afecto ao arranque e financiamento de uma operação em Espanha, onde foi constituída uma sociedade de direito espanhol (D..., S.L. U.). Neste contexto, adquiriu em 2007 uma outra sociedade (E...) com vista ao desenvolvimento de uma plataforma informática conjunta de gestão do negócio de viagens, e, em 2012, criou a sociedade G..., que passou a gerir o desenvolvimento daquela plataforma a partir do parque tecnológico de ... .

 

Em virtude do crescimento exponencial do volume de negócios e, em especial do crédito a clientes, a C... viu-se obrigada a recorrer a financiamento por forma a assegurar a sua actividade operacional, cujos juros ascenderam, no final de 2016, a € 255.333,11.

 

Em 2019, a C... foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, relativamente ao exercício de 2016, que determinou uma correcção tributária no montante de € 286.632,15, com fundamento na não aceitação da dedutibilidade os gastos financeiros, em que se tomou em consideração que o sujeito passivo contrai financiamento e, simultaneamente, concede financiamento a outras empresas, suportando encargos financeiros, que contabilizou como gastos, mas que não se destinam a obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto.

 

Na sequência das conclusões da referida inspecção, foi a Requerente também sujeita a uma acção de inspecção tributária de forma a repercutir na esfera do Grupo a correcção operada no apuramento do resultado fiscal individual da sociedade C..., SA, enquanto sociedade dominada.

 

Considera a Requerente que a C... recorreu efectivamente a financiamento bancário, em parte substancial com o intuito de financiar a sua actividade operacional, no âmbito da prestação de serviços de viagens, designadamente para poder fazer face ao aumento exponencial do crédito a clientes, verificado desde o ano de 2006 e decorrente do crescimento da sua actividade, a qual envolve o recebimento postecipado dos serviços prestados, o que é suficiente para considerar verificados os requisitos de dedutibilidade dos gastos.

 

Por outro lado, não existe qualquer correspondência de valores entre os montantes dos financiamentos contraídos e os empréstimos concedidos.

 

Ao negar a dedutibilidade dos gastos de financiamento, a Administração Tributária viola o disposto no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, como também os princípios da legalidade, imparcialidade e da tributação segundo o lucro real, constantes do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República, e nos artigos 74.º, 81.º e 85.º da Lei Geral Tributária, além de que incorre em vício de falta de fundamentação.

 

Acresce que a argumentação expendida pela Autoridade Tributária não poderia proceder no que respeita aos alegados empréstimos concedidos à entidade G... .

A C... procedeu, por motivos estratégicos, no ano de 2012, à entrada num negócio referente a uma plataforma tecnológica (denominada E...) que vinha sendo desenvolvida, conjuntamente, por várias entidades do Grupo, sendo que essa operação não pode ser entendida como se se tratasse de uma operação de crédito.

 

Não se tratando de empréstimos, mas antes de entradas para desenvolvimento de um activo em conjunto com outras entidades, resulta claro que os financiamentos obtidos pela C... e que geraram os gastos cuja dedutibilidade está em causa não se destinam (e muito menos na sua totalidade) à concessão de crédito à entidade em causa.

 

E mesmo que se entendesse que os encargos directamente imputáveis à concessão de financiamento não devem ser aceites para efeitos fiscais, quando a estes não estiver associada a cobrança de um juro, um tal argumento nunca seria admissível no quadro da correcção do lucro tributável do grupo.

 

A C... e a Requerente encontram-se abrangidas pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS) e é a própria lei que impõe que, quaisquer correcções ao resultado fiscal de uma das entidades deve conduzir a uma correcção correlativa ao resultado tributável da outra entidade.

 

Desta forma, mesmo que a C... houvesse cobrado um juro à Requerente, reconhecendo o correspondente rendimento, assim preenchendo a aparente condição da dedutibilidade dos juros contraídos nos financiamentos suportados, sempre o efeito fiscal, em termos de apuramento da matéria colectável do Grupo seria exactamente igual ao que foi apurado na declaração Modelo 22 do Grupo, dado que tal rendimento seria compensado com um gasto refletido no lucro tributável da Requerente.

Conclui pela procedência do pedido arbitral.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, refere o seguinte.

A sociedade C... contraiu empréstimos junto de várias instituições bancárias que tiveram como objectivo financiar sociedades do grupo e uma entidade terceira G..., e suportou os encargos financeiros daí decorrentes, contabilizando-os como gastos do exercício, sem ter demonstrado em que medida esses financiamentos serviram para financiar a própria actividade operacional da C... .

 

Segundo o disposto no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, apenas são dedutíveis para efeitos fiscais os gastos e perdas contraídos no âmbito da actividade da empresa e necessários ao processo produtivo. No caso, a C... contraiu empréstimos onerosos perante terceiros e emprestou esses montantes a outras sociedades para o prosseguimento das suas actividades, sem qualquer contrapartida financeira ou remuneração.

 

Concluindo-se que a C... está a incorrer em encargos de natureza financeira que constituem responsabilidade de terceiras entidades a quem os financiamentos foram concedidos e só em relação a essas entidades poderão ser considerados como gastos fiscais.

 

No que se refere aos montantes atribuídos à sociedade G..., eles configuram a natureza de um empréstimo, não tendo sido apresentados quaisquer documentos de suporte dos movimentos contabilísticos que justifiquem a transferência dos meios financeiros, as condições da operação e os prazos para reembolso.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, a Requerente prescindiu da produção de prova testemunhal arrolada e, por despacho de 15 de Outubro de 2021, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e remeteu o processo para alegações escritas por prazo sucessivo de dez dias.

 

Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 23 de Julho de 2021.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção da incompetência do tribunal arbitral que será conhecida de seguida.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. A Requerente é uma sociedade que tem como objecto a gestão de participações sociais que, em 2016, era a sociedade dominante do Grupo B... e encontrava-se inscrita, para efeitos tributários, no Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades ("RETGS");
  2. O Grupo dedicava-se ao sector de turismo na área das viagens de negócios e de lazer e mantinha relações com os mercados de Portugal, Espanha, Moçambique e Angola.
  3. Integravam o Grupo B... as sociedades C..., S.A, D..., S.L.U, E..., SA, F... e G..., Lda.
  4. A C..., S.A. (C...), para desenvolvimento da sua actividade no mercado espanhol, constituiu a sociedade de direito espanhol D..., S.L.U. e, em 2007, adquiriu a sociedade E..., SAL, para desenvolvimento de uma plataforma de informática conjunta de gestão de negócio de viagens.
  5. Em 2012, a sociedade G... passou a gerir o desenvolvimento daquela plataforma de informática a partir do parque tecnológico de ..., concentrando as contribuições das várias sociedades do Grupo para o projecto ao abrigo de um "Contrato de Gestão Conjunta de Activo".
  6. Em 2016, a C... contraiu empréstimos através de instituições bancárias, que foram contabilizados nas diversas subcontas das contas 251 - Financiamentos obtidos - Instituições de crédito, no montante total de € 4.184.506,74, tendo suportado juros no montante de € 255.333,11.
  7. No decurso do mesmo ano, a C... concedeu empréstimos às empresas do Grupo, e, nomeadamente, à A... SGPS, SA., D..., SL. e à G..., no valor global de € 85.734.328,45, que foram contabilizados em subcontas das contas 266 - Empréstimos concedidos/Empresas do grupo, 268 - Outras operações e 278 Outros devedores e credores, os quais apresentam os saldos mensais que constam do quadro seguinte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

       
   
 


Quadro IV

 

 

Data

2781100090 -

A... SGPS

2781100032

D...

, SLU

26621

A... SGPS

 

26841

D..., SLU

2781100157 G...

TOTAL DOS

EMPRÉSTIMOS

CONCEDIDOS

 
 
 

01-00-2016

0,00

0,00

2.790.848,82

2.938.654,08

792.863,99

6.522.366,89

 

31-01-2016

7.571,50

11.102,75

2.790.848,82

2.938.654,08

811.185,56

6.559.362,71

 

29-02-2016

19.071,50

86.602,75

2.790.848,82

2.938.654,08

826.642, 30

6.661.819,45

 

31-03-2016

19.571, 50

86.711,29

2.640.848 82

2.938.654,08

838.743,34

6.524.529 03

 

30-04-2016

28.071,50

90.599,65

2.640.848,82

2.938.654,08

849.310,54

6.547.484,59

 

31-05-2016

56.341,72

96.275,58

2.640.848,82

2.938.654,08

859.884,26

6.592.004 46

 

30-06-2016

0,00

103.223,98

2.640.848,82

2.938.654,08

870.487,68

6.553.214 56

 

31-07-2016

165.776,65

107.313,22

2.640.848,82

2.938.65408

912.830,43

6.765.423,20

 

31-08-2016

165.776 65

108.268,47

2.640.848,82

2.938.654,08

942.477,00

6.796.025,02

 

30-09-2016

130.844,90

109.972,68

2.640.848,82

2.938.654,08

947.927,78

6.768248,26

 

31-10-2016

119.629,94

111.187,85

2.640.848,82

2.938.654,08

958.337,58

6.768.658 27

 

30-11-2016

128.298,09

113.528,36

2.640.848,82

2.938.654,08

788.485,51

6.609.814,86

 

31-12-2016

121.839,97

0,00

2.640.848,82

2.480.519 85

822.168,51

6.065.377,15

 

TOTAL

962.793,92

1.024.786,58

34.781.034,66

37.744.368,81

11.221.344,48

85.734.328,45

 

 

  1. As sociedades C..., S.A, D..., S.L.U. e E..., SA celebraram, em 5 de Janeiro de 2009, um contrato de gestão conjunta de activo, destinado a desenvolver uma plataforma informática denominada E..., nos termos do qual as contraentes se obrigam a efectuar as contribuições definidas na tabela I anexa ao contrato (anexo 8 ao documento n.º 5 junto ao pedido que aqui se dá como reproduzido);
  2. Em 5 de dezembro de 2012, as mesmas sociedades contraentes acordaram com a sociedade G..., Lda., mediante uma adenda ao contrato de gestão conjunta de activo, na adesão desta última entidade a esse contrato (anexo 8 ao documento n.º 5 junto ao pedido);
  3. A C... foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2019..., referente ao exercício de 2016.
  4. No âmbito da acção inspectiva foi efectuada uma correcção tributária em sede de IRC, no montante de € 286.632,15, tendo como fundamento a não aceitação da dedutibilidade dos gastos financeiros suportados com os empréstimos obtidos, e que originou os actos tributários de liquidação em IRC, de juros compensatórios e de demonstração de acerto de contas, que constituem os documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos ao pedido.
  5. O Relatório de Inspecção Tributária que constitui o documento n.º 5 junto ao pedido e aqui se dá como reproduzido, justifica a correcção, na parte que mais releva, nos seguintes termos.

 

 

 

Enquadramento Fiscal

 

Perante o facto de o sujeito passivo se encontrar a suportar encargos financeiros, resultantes

de financiamentos que o mesmo contraiu e de, simultaneamente, estar a conceder financiamentos   a outras empresas, importa avaliar se estes encargos são ou não aceites fiscalmente, face ao disposto no artigo 23.º do CIRC.

Nestes termos, dispõe o artigo 23.º do CIRC o seguinte:

“Artigo 23.º

Gastos e perdas

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

2 - Consideram-se   abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

(…)”

E segue-se igualmente uma enumeração exemplificativa de várias naturezas de gastos, contemplando a alínea c) aqueles que são:

“De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e as resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado.”

Importa ainda referir a condição estabelecida no n.º 3 da mesma disposição legal, que prevê:

“Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.”

Da análise ao normativo fiscal anteriormente mencionado, resulta que são necessários três requisitos essenciais para que os encargos financeiros suportados sejam valorados e aceites fiscalmente como gasto:  a comprovação documental, o caráter de indispensabilidade e o da ligação aos rendimentos sujeitos a imposto.

O primeiro requisito reporta à efetividade da realização dos gastos o qual consiste em várias formas de apoio escritural aos lançamentos contabilísticos, ou seja, a sua prova documental.

O segundo faz depender a   dedutibilidade fiscal do gasto e uma relação justificada com a   actividade produtiva do sujeito passivo e esta indispensabilidade ocorre quando esses gastos se relacionem com a obtenção de lucro.

Quanto ao terceiro requisito, que compõe a cláusula geral de dedutibilidade em matéria de gastos, na formulação legal introduzida pelo Código do IRC, é o da exigência de ligação aos rendimentos sujeitos a imposto, de forma a obter ou garantir os mesmos. Os gastos têm de estar relacionados com a actividade da empresa e têm de contribuir para a obtenção de ganhos.

Ou seja, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º daquele normativo, são dedutíveis os gastos e perdas que foram contraídos no âmbito da actividade da empresa, isto e, todos aqueles que potenciem o bom desenvolvimento da empresa e claro, o seu objetivo último, o lucro.

Efetivamente, o gasto tem que garantir rendimentos sujeitos a IRC, o que revela um   reforço da congruência económica entre o gasto suportado no âmbito da actividade da empresa e o rendimento conexo, com vista a potenciar o seu desenvolvimento e a assegurar os rendimentos sujeitos a IRC.

Com efeito e conforme se viu, o gasto tem de estar devidamente comprovado e tem de se  encontrar adstrito à obtenção de rendimentos sujeitos a IRC, ou garantir,  de forma clara,  a obtenção desses mesmos rendimentos, em conjugação com as obrigações contabilísticas formais do artigo  123.º do CIRC, por forma a  assegurar a  legitimidade  e consistência  dos gastos da actividade  empresarial e a sua  congruência com a actividade da empresa, com o seu escopo social e, com o seu fim último que é o lucro.

Acerca desta matéria, os Acórdãos de 2007/02/07 - processo 1046/05 e de 2009/05/20 -   processo n.º 1077/08)  do  Supremo  Tribunal  Administrativo  (STA)  apontam   no  sentido  da  não  dedutibilidade  dos encargos financeiros,  por se considerar que,  nos termos  do artigo 23.º do CIRC apenas são dedutíveis os gastos  que respeitem a actividade desenvolvida pelo sujeito passivo, sustentando o tribunal que, mesmo quando exista  uma  relação  de  dependência  ou  domínio entre empresas, cada uma delas possui personalidade e capacidade tributárias  distintas, sendo que os respetivos gastos “têm de respeitar desde logo a própria sociedade contribuinte,  isto é, para que determinada  verba seja  considerada custo daquela é necessário que a actividade respetiva seja por ela própria desenvolvida,  que não por outras sociedades.”

No caso em análise, verifica-se que o sujeito passivo contrai financiamento e, simultaneamente, concede financiamento a outras empresas, suportando encargos financeiros, que contabilizou como gastos, não existindo a obtenção do equivalente ganho financeiro destes empréstimos efetuados, designadamente juros.

Do exposto, não emerge da situação em apreço, que o montante contabilizado a título de juros e Imposto do Selo de empréstimos bancários, possui o caráter qualitativo de comprovadamente ser indispensável para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto, pelo que não será de aceitar fiscalmente as importâncias contabilizadas pelo sujeito passivo, por não se encontrar cumprido o princípio basilar da dedutibilidade de gastos ou perdas que preside ao artigo 23.º   do CIRC.

  1. A Requerente foi objecto de uma acção de inspecção tributária, titulada pela Ordem de Serviço n.º OI2020..., destinada a fazer repercutir na esfera do Grupo a correcção operada no apuramento do resultado fiscal individual da sociedade C..., SA, enquanto sociedade dominada.
  2.  O prazo para pagamento voluntário das liquidações terminou em 15 de Fevereiro de 2021.
  3. O pedido arbitral deu entrada em 17 de Maio de 2021.

 

Factos não provados

Não se encontra provada a correspondência entre os empréstimos contraídos pela C... junto de instituições bancárias e os empréstimos concedidos por essa entidade a outras sociedades do grupo.

 

Não existem quaisquer outros factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

 

            Matéria de direito

 

5. A Autoridade Tributária, no âmbito de um procedimento inspectivo desencadeado contra a C..., S. A., entidade que integrava o grupo de sociedades dominada pela ora Requerente, procedeu a uma correcção tributária por considerar que o sujeito passivo contraiu financiamento e, simultaneamente, concedeu financiamento a outras empresas, suportando encargos financeiros, que contabilizou como gastos, apesar de não ter cobrado juros nem obtido qualquer ganho financeiro com esses empréstimos. Concluindo que não se verifica o requisito de indispensabilidade dos gastos para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto.

 

A Requerente contrapõe, em resumo, que a Administração se bastou com a existência de financiamentos e empréstimos contabilisticamente reconhecidos, sem estabelecer a necessária correspondência entre os financiamentos obtidos e os empréstimos concedidos, considerando, por outro lado, que os empréstimos e os investimentos efectuados pela C..., S. A. nas sociedades que compõem o Grupo têm como objectivo e resultado a obtenção de rendimentos, pelo que os gastos de financiamento preenchem os pressupostos da dedutibilidade para efeitos fiscais nos termos do disposto no artigo 23.º do CIRC.

 

Estando em causa a dedutibilidade dos encargos financeiros como custos fiscais, interessa ter presente, num primeiro momento, a referida disposição do artigo 23.º do Código de IRC.

Na redação resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, com efeitos desde 1 de Janeiro de 2014, e aplicável aos períodos de tributação em análise, o n.º 1 desse preceito passou a dispor que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, especificando o n.º 2, a título exemplificativo, os gastos e perdas que se encontram abrangidos por essa cláusula geral, e entre os quais se contam os “gastos de natureza financeira, tais como juros de capitais alheio aplicados na exploração”, a que se refere agora à alínea c) do n.º 2.

Tem-se como assente e constitui entendimento jurisprudencial firme que da noção legal de custo fornecida pelo artigo 23.º do Código de IRC não resulta que a Administração Tributária possa pôr em causa o princípio da liberdade de gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram diretamente proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa (cfr. acórdão do TCA Sul de 6 de outubro de 2009, Processo 03022/09 e, em idêntico sentido, acórdão do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2012, Processo 00624/05).

            Em síntese conclusiva, deve entender-se que a actividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a actividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando actividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de actividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou actos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos (cfr. neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).

É nesse âmbito compreensivo que se enquadra a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de junho de 2013).

No caso vertente, o que está em causa, de acordo com o entendimento expresso pela Autoridade Tributária no âmbito do procedimento inspectivo, são os gastos de financiamento suportados pela C..., S.A. com empréstimos realizados, a título gratuito, a favor de outras sociedades que integravam o grupo de sociedades dominado pela Requerente.

Nesta perspectiva, a questão a dirimir seria a de saber se uma sociedade ao obter fundos e pagar juros para os entregar a outras sociedades do grupo sem qualquer remuneração causal e directa está ainda a exercer adequadamente a sua actividade com um ânimo lucrativo.

A jurisprudência do STA tem vindo a considerar como fiscalmente irrelevantes, e como tal não dedutíveis, os encargos financeiros incorridos com vista a fazer face a necessidades financeiras de sociedades do mesmo Grupo, que não sejam debitados às entidades beneficiárias, excepto quando estejam em causa empréstimos de sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) às sociedades por si participadas, atendendo que esse constitui o seu objeto social específico.

 

Nesse sentido, num caso em que estava em causa a realização de prestações suplementares a uma sociedade participada, por parte de uma entidade que não possuía a natureza de sociedade gestora de participações sociais, o acórdão do STA de 28 de Fevereiro de 2018 (Processo n.º 01206/17) refere o seguinte.

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que, quando está em causa uma SGPS, serão aceites como custo fiscal os encargos financeiros referentes a crédito obtido para, com ele, a SGPS realizar empréstimos gratuitos às participadas. O objecto social de gestão de participações sociais significa que uma empresa adquire ou aliena participações sociais de uma outra empresa e exerce actividade comercial, utilizando única e exclusivamente o poder de decisão sobre «a vida da empresa participada» que o valor das acções de que é titular lhe possam conferir. Isto é, se a empresa participada deve adquirir acções de outra sociedade, se deve contrair empréstimos para realizar tais aquisições, a SGPS tem o poder de concordar, votando favoravelmente tais decisões. Isto insere-se no objecto social de uma SGPS.

Vindo a concluir, que o reforço do capital da sociedade participada através de prestações suplementares não constitui o exercício da actividade empresarial da sociedade que suportou esse encargo quando ela não tem por objecto a gestão de participações, pelo que os custos em que incorra não são custos dedutíveis à luz do disposto no artigo 23.º do Código do IRC.

E como se reconhece no mesmo aresto, não se trata, nessa circunstância, de aferir da adequação dos actos de gestão que tenham sido realizados, mas de verificar que sejam quais forem as operações financeiras que se realizem, encontrando-se elas fora do objecto social da sociedade, não podem ser tidos como inerentes à sua actividade empresarial  (no mesmo sentido, entre outros, o acórdão do STA de 21.02.2018, proferido no processo n.º 0473/13).

 

E na mesma linha de orientação, se posicionaram os acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 80/2013-T e 264/2016-T.

 

6. Este entendimento jurisprudencial teria plena aplicação ao caso quando pudesse concluir-se que a C..., S.A., não sendo uma sociedade gestora de participações sociais e confirmando-se que não teria, tão pouco, no seu objecto social a gestão de participações sociais efectuou financiamentos a título gratuito a outras sociedades do grupo, visto que nessa situação tais financiamentos não poderiam ser considerados como realizados no âmbito da actividade produtiva e do interesse social e escopo lucrativo da sociedade que os concedeu.

 

No entanto, na situação do caso, não há nenhuma demonstração cabal, no âmbito do procedimento inspectivo, de que os financiamentos obtidos pela C..., S.A. e pelos quais esta entidade suportou os correspondentes juros, tivessem sido contraídos para a concessão de empréstimos a outras sociedades do grupo e, designadamente, à A... SGPS, SA., T D..., SL. e à G... .

 

No âmbito do procedimento, os serviços inspectivos limitaram-se a considerar que a C... contraiu empréstimos através de instituições bancárias, no montante total de € 4.184.506,74, tendo suportado juros no montante de € 255.333,11. E acrescenta que, para além dos financiamentos que obteve, o sujeito passivo concedeu determinadas importâncias a empresas do Grupo e, entre as quais, àquelas referidas sociedades.

 

Os financiamentos obtidos e os juros suportados com esses financiamentos constam dos quadros I e II, a fls. 18 e 19 do Relatório de Inspecção Tributária, onde se encontram evidenciados os saldos credores em 31 de Dezembro de 2016. Os empréstimos concedidos, no valor global de € 85.734.328,45, encontram-se descritos no quadro IV, a fls 20 do mesmo Relatório, com menção, em relação a cada uma das entidades beneficiárias, dos saldos devedores mensais.

 

A partir desses elementos contabilísticos, não é possível estabelecer qualquer correlação directa, seja entre os financiamentos obtidos e os encargos financeiros, seja entre os financiamentos e os empréstimos concedidos, bastando fazer notar que o total dos financiamentos ascende a € 4.184.506,74 enquanto o total dos empréstimos concedidos atinge  € 85.734.328,45.

 

O Relatório de Inspecção Tributária faz ainda alusão às conclusões extraídas no âmbito do procedimento inspectivo incidente sobre o exercício de 2014, fazendo referência a contratos de concessão de crédito firmados entre a C... e a empresa mãe para suprir dificuldades de tesouraria, a acordos de prestações acessórias a favor da D..., SL. e ao contrato de gestão conjunta de activo a que veio a aderir a sociedade G... .

 

Tratando-se de situações distintas das que originaram a correcção tributária referente ao exercício de 2016, e agora impugnada, não se vê qual é o relevo que possam ter para a conclusão da não dedutibilidade dos gastos fiscais, quando estes se relacionam com encargos financeiros referentes a supostas operações de financiamento intra-grupo. E sendo aquele procedimento inspectivo relativo a 2014, também se não descortina em que termos é que os resultados aí alcançados podem justificar a correcção fiscal no período de tributação de 2016.

 

Por outro lado, tendo em conta o critério que resulta do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo qual o “ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária e dos contribuinte recai sobre quem os invoque”, e estando em causa a apreciação da legalidade de um acto de liquidação oficiosa, praticado pela Autoridade Tributária, corrigindo liquidação anterior baseada na declaração do contribuinte, é à Administração que incumbe o ónus da prova dos pressupostos legais da correcção que operou.

 

Não tendo sido feita a prova da correspondência entre os empréstimos contraídos pela C... junto de instituições bancárias e os empréstimos concedidos por essa entidade a outras sociedades do grupo, subsiste fundada dúvida sobre a existência e a quantificação do acto tributário, o que é suficiente, em atenção ao disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, para anular a liquidação quando esta tem por base a inobservância dos requisitos de dedutibilidade dos gastos.

 

Vícios de conhecimento prejudicado.

 

Face ao sentido da decisão, fica prejudicado o conhecimento de quaisquer outros vícios que tenham sido invocados.

 

             Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

7. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral e anular o acto de liquidação de IRC n.º 2020..., bem como os actos de liquidação de juros compensatórios;
  2. Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 71.314,68, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 14 de Dezembro de 2021

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

Vasco Valdez

 

A Árbitro vogal

 

 

Maria Antónia Torres