Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 296/2020-T
Data da decisão: 2020-12-07  ISV  
Valor do pedido: € 49.872,96
Tema: ISV - Artigo 11.º do Código do ISV – conformidade com o artigo 110.º do TFUE – veículos usados provenientes de outros Estados-membros – componente ambiental.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., Lda., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ...-..., Lisboa (doravante, Requerente), apresentou, em 8 de junho de 2020, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a anulação parcial dos atos de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) consubstanciados na Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2018/... e DAV n.º 2019/...;

(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €49.872,96, suportados, em excesso, pela Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios, devidos nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (doravante, LGT).

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT, em 19 de junho de 2020.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, em 3 de agosto de 2020, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11.º, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 2 de setembro de 2020.

 

7. Em 2 de setembro de 2020, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT). O Despacho foi notificado na mesma data.

 

8. A Requerida veio apresentar resposta, em 2 de outubro de 2020, remetendo o Processo Administrativo. Uma vez que, na Resposta apresentada, a Requerida deduziu exceção por caducidade do direito de ação, foi a Requerente notificada, por Despacho de 8 de outubro de 2020, para se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, sobre a exceção deduzida.

 

9. Assim, por Despacho arbitral de 20 de outubro de 2020 (notificado às partes no dia 21 de outubro de 2020), determinou-se o seguinte:

«(...)

Compulsados os autos, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19º e 29º, n.º 2, do RJAT) e tendo em conta o princípio da limitação de atos inúteis previsto no artigo 130º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no artigo 29º, n.º 1, alínea e) do RJAT, decide-se:

1. Dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT;

2. Prescindir da inquirição da prova testemunhal apresentada pelo Requerente;

3. Determinar que o processo prossiga com alegações escritas facultativas, a apresentar no prazo sucessivo de 10 dias;

4. Designar o dia 7 de dezembro de 2020 para efeitos de prolação da decisão arbitral.

5. Solicitar às partes o envio das peças processuais em formato digital “word” assim que lhes for possível.

Notifique-se.

(...)»

 

10. Assim, em 30 de outubro de 2020, a Requerida veio dar por inteiramente reproduzida, a título de alegações, a resposta oferecida no dia 2 de outubro de 2020. Em 29 de outubro de 2020, a Requerente apresentou as suas alegações.

 

11. Compulsadas as alegações e respostas das partes, afigura-se-nos, em síntese, que:

(a) A Requerente invoca que as liquidações supra referenciadas encontram-se parcialmente feridas de vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental, visto que o legislador, no cálculo do ISV devido pela admissão de veículos – isto é, pela entrada em território nacional de veículos originários ou em livre prática noutros Estado-membros (cf. artigo 5.º, n.º 3, al. a) do CISV) – excluiu qualquer redução na componente ambiental, o que está em desconformidade com o preceituado no artigo 110.º TFUE, tal como este vem sendo interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, Tribunal de Justiça). Concretamente, «viola a citada norma do tratado, pois permite que a Administração Fiscal cobre um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo» (cf. os pontos 48 a 71 da impugnação).

 

(b) Já a Requerida principia a sua Resposta invocando a exceção de caducidade do direito de ação da Requerente – exceção perentória, nos termos do artigo 576.º, n.º 3 do CPC (ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT) – por a abertura da via arbitral ter por base indeferimento de pedido de revisão das liquidações, dirigido ao Diretor da Alfândega do Porto de Leixões e por este considerado extemporâneo. «Considera a requerida que não pode a Requerente pretender justificar a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral com base no indeferimento do pedido de revisão, extemporâneo, pois, deste modo estaria aberto o caminho para continuar a discutir a legalidade de atos tributários relativamente aos quais findaram já os respetivos prazos de contestação» (cf. pontos 4 a 20 da Resposta apresentada pela AT).

Ademais, pugna a Requerida pela improcedência do pedido de anulação parcial das liquidações. Com efeito, a componente ambiental é um «montante que os sujeitos passivos pagam ao Estado destinados a compensar os efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente», na contabilização dos quais de nada releva a maior ou menor antiguidade do veículo. «Em suma, não se trata de criar nenhum obstáculo ao regular funcionamento do mercado único, mas sim de respeitar os compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo Estado português em matéria de defesa do ambiente, bem como pelos Estados-membros, no acordo de Paris sobre as alterações climáticas, designadamente a neutralidade carbónica em 2050» (cf. pontos 21ª 107 da Resposta apresentada pela AT).

Finalmente, argumenta a Requerida que uma interpretação do artigo 11.º do CISV diferente daquela por si propugnada redundaria numa violação do princípio da legalidade da administração, com consagração constitucional no artigo 226.º, n.º 2 da CRP, e bem assim dos princípios da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica. A interpretação sustentada pela Requerente consubstanciaria, na perspetiva da AT, a concessão de um benefício fiscal ao arrepio do artigo 103.º, n.º 2 da Constituição (cf. pontos 108 a 131 da Resposta apresentada pela AT).

 

II – Saneamento

§ Da incompetência do Tribunal Arbitral por caducidade do direito de ação da Requerente

12. Vem a Requerida defender-se através de exceção por caducidade do direito de ação, isto é, por no seu entender o pedido de constituição do tribunal arbitral ser extemporâneo. Com efeito, entende a Requerida que a impugnação da liquidação pela via arbitral tem por pressuposto o indeferimento do pedido de revisão apresentado pela Requerente, e que esse indeferimento, porque alicerçado na intempestividade do pedido de revisão, não serviria para reabrir a via contenciosa.

13. Alega a Requerida, no ponto 17 da sua resposta, que «não tendo a Requerente invocado especificamente a primeira ou a segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, mas tendo-o referido como um todo, resulta claramente que (...) à luz do n.º 1, 1.ª parte, do artigo 78.º LGT, os pedidos de revisão oficiosa apresentados são manifestamente intempestivos, pois se encontrava há muito ultrapassado o prazo da reclamação graciosa (...)».

 

14. O Exmo. Senhor Diretor da Alfândega do Porto de Leixões proferiu Despacho com o seguinte teor:

«(...)

3 – O pedido de revisão apresentado encontra-se fora do prazo da reclamação administrativa, caso em que não pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, como sucede no caso da reclamação efetuada no prazo de reclamação administrativa, mas apenas o erro imputável aos serviços (cfr. parte final do n.º 1 do artigo 78.º).

4 – Resulta da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT que a revisão dos atos tributários, nele prevista, será promovida pela entidade que os praticou.

5 – Atendendo a que a Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espectro do princípio da legalidade, e não tendo, como referido, a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num “julgamento” de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais), será forçoso concluir pela inexistência de imputabilidade aos serviços de erro que fundamente um procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do art. 78.º da LGT. Com efeito, não pode ser imputado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. artigo 266.º, n.º 2 da CRP e art. 55.º da LGT).

(...)»

 

15. Ou seja, no entender do Exmo. Senhor Diretor da Alfândega do Porto de Leixões, o pedido de revisão do ato tributário de liquidação, por ter sido apresentado depois de esgotado o prazo de reclamação administrativa (artigos 68.º a 77.º do CPPT), só poderia ter como fundamento “erro imputável aos serviços” (artigo 78.º, n.º 1, in fine da LGT). Ora, sendo o vício assacado ao próprio preceito normativo em que se fundou a liquidação, não poderia a administração tributária decidir de modo distinto daquele que decidiu, sob pena de violação do princípio da legalidade da administração.

 

16. Entende este Tribunal que a fundamentação veiculada pelo Exmo. Senhor Diretor da Alfândega do Porto de Leixões é procedente na primeira parte, mas sem acerto na segunda. Vejamos.

De acordo com o artigo 78.º, n.º 1, da LGT, «[A] revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».

Daqui resulta que a revisão do ato tributário constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário) e que, no segmento que agora importa considerar, pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

17. Todavia, tal não significa, conforme entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina, que o contribuinte não possa, naquele prazo alargado de 4 anos, pedir a revisão do ato de liquidação. Essa possibilidade resulta, desde logo, dos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP). Ou seja, «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (Acórdão do STA, 11-05-2005, processo n.º 0319/05, Relator: Conselheiro Brandão de Pinho). O mesmo é dizer, em síntese, que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º, não deixa de ser da iniciativa da administração tributária – e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos – a revisão do ato de liquidação que lhe seja solicitada pelo sujeito passivo.

 

18. Esclarecido este ponto, cumpre analisar o conceito de erro imputável aos serviços de que partiu o Exmo. Senhor Diretor da Alfândega do Porto de Leixões. Sublinhe-se que não existem diferenças de monta entre o fundamento da revisão realizada no prazo da reclamação administrativa – que pode ter por objeto “qualquer ilegalidade” – e o erro imputável aos serviços, que, como se viu, é o fundamento subjacente à revisão por iniciativa da administração tributária naquele prazo alargado de 4 anos. Com efeito, explica Casalta Nabais que «atendendo ao entendimento amplo que o erro imputável aos serviços vem suportando, que (...) tanto pode ser erro de facto como erro de direito, bem podemos concluir que, ao fim e ao cabo, a revisão em causa pode ter por base a generalidade das ilegalidades mais importantes que afectem os actos tributários». 

 

19. Importa perceber a extensão do que se considera ser erro de direito. Reitere-se que, nos presente processo, o que se assaca à Administração Tributária é a circunstância de esta ter aplicado norma – o artigo 11.º do CISV – contrária ao direito da União Europeia, em desrespeito, portanto, do princípio do primado, nos termos e com a amplitude que lhe vem sendo dada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (cf. artigo 8.º, n.º 4 da CRP).

 

20. Ora, a subsunção de uma situação com esta modelação no conceito de erro imputável aos serviços não é nova na jurisprudência nacional. Como se lê no Acórdão do STA de 12-12-2001, recuperado recentemente no Acórdão do STA de 03-06-2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. Acórdão do STA, 03-06-2020, processo n.º 018/10, Relator: Conselheiro José Gomes Ferreira).

E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias a parâmetro de validade do direito infraconstitucional, como é o direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto, como é o caso do artigo 110.º do TFUE (Acórdão do Tribunal de Justiça de 22-06-1987, Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, ponto 31, disponível em http://curia.europa.eu/).

 

21. Isto mesmo é explicado no Acórdão do STA, de 18-01-2017, quando aí se dá conta que «o facto de a ilegalidade determinante da procedência da impugnação se concretizar em violação de norma comunitária, também não implica tratamento similar àquele que equaciona a aplicação de normas que venham a ser declaradas inconstitucionais, enquanto que, no caso dos preceitos de direito comunitário do que se trata é da aplicação de normas que vigoram diretamente na ordem jurídica interna e, mais do que isso, prevalecem sobre as normas do direito interno, não podendo os Estados-membros aplicar qualquer regra de direito interno que colida com as regras do direito da UE» (Acórdão do STA, 18-01-2017, processo n.º 0890/16, Relator: Casimiro Gonçalves – o sublinhado é nosso).

 

22. É hoje, portanto, jurisprudência consolidada que o indeferimento, expresso ou tácito, do pedido de revisão oficiosa, mesmo que formulado para lá do prazo da reclamação administrativa, mas dentro dos limites em que a administração pode rever o ato – como ocorreu in casu – reabre a via contenciosa, desde que tal pedido se afigure tempestivo ao abrigo do preceituado na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. Ora, afigura-se-nos que, tendo havido erro imputável aos serviços, o pedido de revisão do ato de liquidação, porque apresentado no prazo de 4 anos a que se reporta a parte final daquele n.º 1, seria tempestivo, e que, por conseguinte, não deve dar-se por verificada a exceção de caducidade do direito de ação peticionada pela Requerida (cf., neste sentido, Acórdão do STA, 04-05-2016, processo n.º 0407/15, Relator: Conselheiro Francisco Rothes).

 

23. A alegação da Requerida, no sentido que de que o sujeito passivo não especificara o segmento do n.º 1 do artigo 78.º da LGT ao abrigo do qual apresentava o pedido revisão, não tem mérito. Com efeito, atento o teor do Despacho do Diretor da Alfândega do Porto de Leixões, de 19-05-2020, é evidente que o indeferimento do pedido de revisão, por intempestividade, foi precedido de uma apreciação sobre se estaria em causa um erro imputável aos serviços, nos termos da parte final daquele preceito.

 

24. Nestes termos, face ao acima exposto, entende este Tribunal Arbitral que não procede a exceção da intempestividade do pedido arbitral, suscitada pela Requerida, com base na extemporaneidade do pedido de revisão.

 

25. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

 

26. O processo não enferma de nulidades.

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

 

III – Factos provados e fundamentação da matéria de facto

27. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.º - A Requerente introduziu em Portugal, em 31.02.2018 e 04.04.2018, dois veículos com origem na Alemanha, a saber: a) marca ..., modelo ..., movido a gasolina, a que foi atribuída a matrícula ...; b) marca ..., modelo 221, movido a gasóleo, a que foi atribuída a matrícula ... .

2.º - O veículo de marca ... foi matriculado pela primeira vez, no país de procedência (Alemanha), em 26-05-1992 e percorrera, antes de entrar em território português, 147.305Km.

3.º - O veículo de marca ... foi matriculado pela primeira vez, no país de procedência (Alemanha), em 13-07-2017 e percorrera, antes de entrar em território português, 12.063Km.

4.º - A Requerente apresentou as declarações aduaneiras dos referidos veículos (DAV 2018/... e DAV 2019/..., respetivamente), tendo a AT procedido às seguintes liquidações de ISV: a) pelo veículo ... liquidou €63.621, 27; b) pelo veículo ... liquidou ISV no valor de €12.583,93.

5.º - A Requerente procedeu ao pagamento integral do ISV apurado nas DAV. 

6.º - Do montante total de ISV liquidado pelo veículo de marca ... (€63.621,27), €12.616 são relativos à componente de cilindrada e €61.098,07 são relativos à componente ambiental.

7.º - Do montante total de ISV liquidado pelo veículo de marca ... (€12.583,93), €9.154,22 são relativos à componente de cilindrada e €4972,55 são relativos à componente ambiental.

8.º - No que diz respeito à componente ambiental, não foi deduzida qualquer quantia correspondente ao tempo de uso.

9.º - No que diz respeito à componente cilindrada, foi aplicada uma redução resultante do número de anos de uso do veículo, que foi de 80%, no caso do ..., e 20%, no caso do ... .

10.º - Em 2 de abril de 2020, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação, dirigido ao Diretor da Alfândega do Porto de Leixões (processo de revisão oficiosa n.º ...2020...).

11.º - O pedido de revisão do ato de liquidação foi indeferido por despacho datado de 19.05.2020, notificado à Requerente pelo ofício n.º 2020..., de 28 de maio de 2020, recebido em 29 de maio de 2020.

12.º - A Requerente apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral em 8 junho de 2020, pedido esse aceite e validado na mesma data.

 

28. O Tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados com base na apreciação da prova documental junta aos autos pelas partes. Não existem, com relevo para a decisão, factos não provados. 

 

IV – Fundamentação de direito

 

29. Os efeitos dos impostos sobre veículos no funcionamento do mercado interno, em especial na liberdade de circulação de mercadorias (artigos 28.º a 37.º e 110.º TFUE), é tema recorrente na jurisprudência do Tribunal de Justiça. As questões que vêm sendo tratadas estão associadas a uma eventual desrespeito, por aquelas disposições tributárias, do disposto no artigo 110.º TFUE, onde se dispõe: «Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares». O regime português de ISV, numa versão anterior à que se encontra em liça nos presentes autos, já foi inclusivamente objeto de análise pelo Tribunal de Justiça em sede de ação de incumprimento intentada pela Comissão europeia contra a República portuguesa (Acórdão do Tribunal de Justiça de 16-06-2016, Comissão vs. República Portuguesa, processo C-200/15, disponível em http://curia.europa.eu/).

 

30. O Tribunal de Justiça interpreta aquele normativo da seguinte forma.

(a) O artigo 110.º TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados-membros, em condições normais de concorrência, através da proscrição de quaisquer imposições tributárias internas das quais possa resultar favorecimento ou proteção dos produtos nacionais em detrimento dos produtos originários de outros Estados-membros. Ou seja, o Tribunal de Justiça compreende aquele dispositivo como um complemento às disposições relativas à supressão de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente no âmbito do mercado interno, procurando garantir a «perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência dos produtos que já se encontram no mercado nacional e os produtos “importados”» (cf., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal de Justiça de 05-10-2006, Akos Nádasdi, processo C-290/05 e C-333/05).

(b) Este normativo é violado, portanto, sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente ou segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 16-06-2016, Comissão vs. República Portuguesa, processo C-200/15, disponível em http://curia.europa.eu/).

(c) No que concerne aos critérios que podem ser utilizados para o cálculo do imposto, o Tribunal de Justiça recorda que o direito da União não limita a liberdade de cada Estado-membro estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos em função de critérios objetivos, como, por ex., a natureza das matérias primas utilizadas ou os processos de produção aplicados. Ponto é que o imposto automóvel não onere mais os produtos provenientes de outros Estados-membros do que os produtos nacionais similares (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 05-10-2006, Ákos Nádasdi, processo C-333/05, disponível em http://curia.europa.eu/).

(d) Um veículo novo relativamente ao qual o imposto sobre veículos foi pago no país de origem ou fabrico perde, com o decurso do tempo, uma parte do seu valor de mercado, de tal forma que, quando for transacionado, será menor, também, o montante de imposto sobre veículos compreendido no seu valor residual (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 19-12-2013, X, processo C-437/12, e Acórdão do Tribunal de Justiça de 05-10-2006, Ákos Nádasdi, processo C-333/05, disponíveis em http://curia.europa.eu/).

(e) Logo, se o montante de imposto liquidado sobre veículos usados provenientes de outros Estados-membros excede o montante residual de imposto incorporado no valor do veículo similar no mercado nacional (montante esse que, como se disse em d), vai diminuindo em função da utilização do veículo e da progressiva depreciação do seu valor de mercado), daí resulta um favorecimento dos veículos usados nacionais por comparação com os veículos usados provenientes de outros Estados-membros e uma quebra da neutralidade que o artigo 110.º TFUE pretende, sem exceções, alcançar (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 19-12-2013, X, processo C-437/12, disponíveis em http://curia.europa.eu/).

(f) Já não será assim se o facto tributável sobre o qual incide o imposto sobre veículos for tanto a admissão de veículos usados provenientes de outros Estados-membros como a primeira transcrição do direito de propriedade sobre veículos usados nacionais, e o imposto for calculado, para ambos, de acordo com as mesmas regras, porquanto aí não haverá quebra da neutralidade (cf., neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça de 09-06-2016, Vasile Budisan, processo C-586/14, sobre o “selo ambiental”, versão romena do imposto sobre veículos, disponível em http://curia.europa.eu/, em especial o ponto 32: «a carga fiscal decorrente do DUG n.° 9/2013 é a mesma para os sujeitos passivos que compraram um veículo automóvel usado proveniente de um Estado‑Membro diferente da Roménia e que o matricularam neste último Estado‑Membro e para os sujeitos passivos que compraram na Roménia um veículo automóvel usado já matriculado nesse Estado‑Membro, para o qual há que proceder à primeira transcrição do direito de propriedade, sem beneficiar da isenção referida no n.° 22 do presente acórdão, dado que este último veículo, no momento da cobrança do selo ambiental, era do mesmo tipo, tinha as mesmas características e o mesmo desgaste que o veículo proveniente de outro Estado‑Membro»).

31. Percebido o modo como o Tribunal de Justiça interpreta o artigo 110.º TFUE e os termos absolutos como compreende a proibição nele contida, cumpre olhar para o regime português e, em particular, para o artigo 11.º do CISV.

 

32. Assim, nos termos do artigo 1.º do CISV, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29.06, na redação da Lei n.º 71/2018, de 31.12 (redação vigente ao tempo do ato de liquidação), «[O] imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária». O artigo 2.º define a incidência objetiva do imposto. De acordo com o preceituado no artigo 5.º, constituem factos geradores do imposto sobre veículos o fabrico, a montagem, a admissão ou a importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. O termo admissão significa a entrada de um veículo originário de outro Estado-membro ou em livre prática neste último, ao passo que o termo importação remete para a entrada de um veículo originário de país terceiro em território nacional. Esclarece o artigo 6.º, por seu turno, que o imposto se torna exigível, nomeadamente, no momento da apresentação do pedido de introdução no consumo pelos operadores registados e reconhecidos ou no momento da apresentação da declaração aduaneira de veículos ou da declaração complementar de veículos pelos particulares.

 

33. O artigo 7.º prevê um sistema de tributação em que as taxas a aplicar não incidem sobre o valor do veículo, antes têm por base os centímetros cúbicos por cilindrada (a designada componente de cilindrada) e os gramas de CO2 por Km (a designada componente ambiental). O artigo 11.º versa sobre o modo aquele sistema opera quando estejam em causa veículos usados provenientes de outros Estados-membros, estatuindo que esses veículos, à exceção do cálculo da componente de cilindrada, à qual é aplicável a tabela D,  são tributados nos mesmos termos dos demais veículos, isto é, nos termos do artigo 7.º.

 

34. A articulação destes preceitos permite extrair um conjunto de conclusões sobre o modelo português de ISV:

(a) a de que o imposto é exigível, no caso de veículos usados importados, aquando da apresentação da declaração aduaneira e, no caso de veículos não importados, no momento do pedido de introdução no consumo;

(b) a de que os únicos veículos usados sujeitos a liquidação de ISV no sistema português são os veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia.

(c) a de que o montante de imposto a pagar por parte de veículos usados provenientes de outros Estados-membros é o que resulta da componente ambiental, nos mesmos termos em que esta é calculada para os veículos novos introduzidos no consumo, e da componente de cilindrada, com as reduções previstas na tabela D do artigo 11.º CISV.

35. Portanto, como se sublinhou no Acórdão do CAAD, processo n.º 660/2019, de 15-06-2020, a propósito de questão idêntica, «ao conferir a percentagem de redução apenas sobre a componente de cilindrada, o legislador português está a tratar os veículos usados provenientes de outro Estado-membro como veículos novos na parte relativa à tributação da componente ambiental, não refletindo o respetivo tempo de uso». Ou seja, na linguagem do Tribunal de Justiça, o regime português faz com que o montante residual de imposto incorporado no valor de um veículo usado nacional fique aquém do montante de imposto devido aquando da admissão de veículo similar (com as mesmas características e utilização) proveniente de outro Estado-membro, favorecendo os veículos usados nacionais e desencorajando a importação de veículos dentro do mercado interno.

 

36. Os argumentos esgrimidos pela Requerida em defesa do regime português não procedem. Argumenta a Requerida que a componente ambiental do ISV deve ser entendida como um montante que os sujeitos passivos pagam ao Estado destinado a compensar os efeitos nefastos que o veículo causa ao ambiente. Como esses efeitos não diminuem em função da depreciação comercial do veículo ou dos anos de uso do automóvel, não há razão para estender a redução prevista no artigo 11.º do CISV à componente ambiental. A interpretação do artigo 110.º do TFUE não poderá deixar de ter em consideração, do ponto de vista sistemático e teleológico, os objetivos ambientais acolhidos no artigo 191.º TFUE, e bem assim as obrigações internacionais assumidas pela República Portuguesa no quadro, primeiro, do Protocolo de Quito e, depois, do Acordo de Paris. 

A extensão da redução prevista para a componente de cilindrada à componente ambiental redundaria, no entender da Requerida, numa interpretação inconstitucional, por violação do princípio da legalidade da administração (artigo 266.º, n.º 2 CRP), do princípio da legalidade fiscal (artigo 103.º, n.º 2 CRP) e das normas constitucionais em matéria de ambiente (artigo 66.º CRP). 

 

Apreciando:

 

37. Como se disse supra, para o Tribunal de Justiça, a proibição contida no artigo 110.º TFUE serve de complemento às disposições relativas à supressão de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente no âmbito do mercado interno. Muito embora os Tratados admitam compressões à proibição de restrições quantitativas à importação e exportação inscrita nos artigos 34.º e 35.º do TFUE (cf. artigo 36.º), idêntica possibilidade não procede em matéria de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente, onde vale uma proibição absoluta, entenda-se, uma proibição não mediada por razões imperativas de interesse geral ou pelos interesses públicos expressamente elencados no artigo 36.º (cf., por ex., o Acórdão do Tribunal de Justiça de 11-03-1992, Sociétés Compagnie commerciale de l'Ouest, processos apensos C-78/90, C-79/90, C-80/90, C-81/90, C-82/90 e C-83/90, pontos 24 ss., disponível em http://curia.europa.eu/).

 

38. Acresce que a última palavra sobre a interpretação do direito primário e derivado da União pertence ao Tribunal de Justiça. Nisso consiste, aliás, o princípio da autonomia da ordem jurídica da União (cf., sobre este princípio, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal de Justiça de 03-09-2008, Kadi, processos apensos C-402/05 e C-415/05 P, e na doutrina, Tobias Lock, «Walking on a tightrope: the draft ECHR accession agreement and the autonomy of the EU legal order», Common Market Law Review, 48, 2011, pp. 1025-1054). Assim sendo, não pode a Requerida interpretar o artigo 110.º do TFUE à revelia daquilo que, sobre o mesmo preceito, vem sendo dito pelo Tribunal de Justiça.

 

39. Tenha-se presente, em todo o caso, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o artigo 110.º TFUE não desconsidera o interesse geral de proteção do ambiente. Pelo contrário, como se fez referência, admite-se que os Estados-membros estabeleçam um sistema de tributação diferenciado para certos produtos em função de critérios objetivos, como, por ex., a natureza das matérias primas utilizadas ou os processos de produção aplicados. O que o direito da União não permite é que aquela tributação resulte em desfavor para os produtos provenientes de outros Estados-membros. 

 

40. Depois, o que o Requerente veio ao processo peticionar é – tão-só – o funcionamento dos princípios do primado e do efeito direto, ou seja, a desaplicação das normas nacionais contrárias ao direito da União, a correspondente anulação parcial do ato de liquidação e a prática do ato legalmente devido à luz da norma de direito da União dotada de efeito direto – o artigo 110.º TFUE. Daqui não resulta entorse para o princípio da legalidade da administração nem para o princípio da legalidade fiscal, antes um reforço dessa mesma legalidade, à luz de um princípio de preferência de aplicação.

 

41. Finalmente, a Requerida faz uma incorreta interpretação das normas do artigo 66.º CRP (als. f) e h) do n.º 2) e das convenções internacionais em matéria ambiental de que Portugal é signatário. O artigo 66.º, n.º 2, nas alíneas que agora importa apreciar, dispõe o seguinte: «2- Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com envolvimento e a participação dos cidadãos: (...) f) Promover a integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito setorial (...); h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida» (o itálico é nosso). É certo que o direito ao ambiente e qualidade de vida, apesar de consagrado no catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais possui, em algumas das suas dimensões, suficientemente determinidade para constituir um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º CRP) – neste sentido, cf. M. Glória Dias Garcia / Gonçalo Matias, “Artigo 66.º”, in Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda/Rui Medeiros), vol. 1, 2.ª edição revista, UCE, Lisboa, 2017, p. 974.

Não é o caso, todavia, dos segmentos destacados pela Requerida, porquanto aí estarão em causa normas programáticas, isto é, normas constitucionais impositivas de legislação, na determinação do conteúdo das quais goza o legislador, por via de legitimação democrática, de margem de conformação não negligenciável. Por sua vez, o Acordo de Paris,  do qual – aliás – a União Europeia é subscritora, juntamente com os seus Estados-membros  - contém um conjunto de compromissos vinculativos em matéria ambiental, mas não inclui nenhuma obrigação específica em matéria de tributação automóvel, que esteja apta a reduzir drasticamente a margem de conformação de que o legislador parlamentar dispõe nesta matéria.

 

42. Isto para dizer que, ao manter-se fiel ao princípio do primado no que respeita à interpretação do artigo 110.º TFUE – o que in casu significa estender a redução prevista no artigo 11.º CISV à componente ambiental – o Estado Português não estará, certamente, a “desaplicar” nem tampouco a violar as obrigações internacionais subscritas com o Acordo de Paris, ou as normas constitucionais impositivas de legislação em matéria ambiental, vertidas nas alíneas f) e h) do n.º 2 do artigo 66.º. O que sucede é que o empenho na construção e aprofundamento da União Europeia (artigo 7.º, n.º 6 CRP), do qual o princípio do primado é reflexo, constitui um interesse constitucionalmente relevante e que tem de ser tido em conta no momento da definição da política ambiental do Estado Português.

 

43. Dito de outro modo, Portugal não tem uma política ambiental – nacional ou internacional – desgarrada ou à revelia do projeto europeu, dos Tratados (TUE e TFUE) e da própria política da União em matéria de ambiente (artigo 191.º TFUE), que como se sabe é uma matéria de competência partilhada entre a União e os Estados-membros (cf. artigo 4.º, n.º 2, al. e) do TFUE). É isso que resulta, no fundo, da autocontenção soberana presente no artigo 7.º, n.º 6 e no artigo 8.º, n.º 4 CRP.

 

44. Uma vez que o thema decidendum levanta uma questão de interpretação do direito da União, cumpre indagar se este Tribunal Arbitral não estaria, enquanto tribunal que decide em última instância (cf. artigo 267.º TFUE),  obrigado a colocar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial com o propósito de dilucidar a compatibilidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º TFUE.  Porém, como resulta da denominada jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o “ato clarificado” (cf. acórdão do Tribunal de Justiça de 27-03-1963, Da Costa en Schaake NV, processos apensos 28/62, 29/62 e 30/62) não existe obrigação de reenvio prejudicial, nos termos do artigo 267.º do TFUE, quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a questão que já tenha sido objeto anteriormente de uma decisão com caráter prejudicial. Em face da jurisprudência de que supra mencionada, parece a este Tribunal indiscutível que, apesar de o Tribunal de Justiça ainda não ter tido ensejo de se debruçar, em sede de reenvio prejudicial ou noutra, sobre a atual configuração do artigo 11.º do CISV, aquele acervo jurisprudencial, tendo por objeto questões materialmente idênticas, constitui suporte bastante para a conclusão alcançada.

 

45. Em consequência, entende-se que a atual legislação portuguesa vertida no artigo 11.º do Código do ISV não está em conformidade com o direito da União, designadamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE. Por conseguinte, determina este Tribunal Arbitral a anulação parcial do ato de liquidação de ISV objeto do pedido, por o mesmo padecer de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a redução de ISV relativa à componente ambiental, em conformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

V – Juros indemnizatórios

46. A par da anulação parcial do ato de liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente cobrada, a Requerente solicita ainda que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

 

47. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que «[S]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito pode ler o seguinte: «3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».

 

48. Importa saber se, tendo o sujeito passivo pedido a revisão oficiosa do ato de liquidação agora parcialmente anulado pela presente decisão arbitral, os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento da dívida tributária, nos termos do preceituado n.º 1 do artigo 43.º da LGT, ou desde a data em que se se tenha completado um ano sobre a formulação do pedido, de acordo com o disposto na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito.

 

49. Esta é uma questão com jurisprudência firmada (cf., entre outros, o Acórdãos do STA de 20-05-2020, processo 05/19.8BALSB, prolatado pelo pleno da Secção de contencioso tributário, Relator: Nuno Bastos; e de 03-06-2020, processo 018/10.5BELRS 095/18, Relator: José Gomes Teixeira), tendo o STA decidido que, nestes casos, os juros indemnizatórios são devidos apenas a partir de um ano após o pedido de revisão formulado. Alicerça aquela alta instância este arrazoado na circunstância de o contribuinte, podendo ter obtido anteriormente a anulação do ato de liquidação, se ter temporariamente desinteressado da recuperação do que foi liquidado em excesso pela administração tributária, até à apresentação do pedido de revisão oficiosa [«(...) A reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não desenvolveu, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente após o desembolso da quantia em questão, nomeadamente nos três meses seguintes ao termo do prazo de pagamento voluntário usando o processo de impugnação do acto de liquidação» - cf. Acórdão do STA de 11-12-2019, processo 058/19.9BALSB, Relator: Ascensão Lopes].

 

50. Neste conspecto, uma vez que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 02-04-2020, conclui-se não serem devidos juros indemnizatórios pela AT. Tais juros só serão devidos a partir de 02-04-2021.

 

VI – Decisão

Termos em que se decide julgar procedente o pedido de anulação parcial das liquidações de ISV impugnadas, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante do facto de a redução prevista na tabela D do artigo 11.º do CISV incidir apenas sobre a componente de cilindrada, e não sobre a componente ambiental, no valor de € 49.872,96 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e dois euros e noventa e seis cêntimos), com o consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas.

 

VII – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em € 49.872,96 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e dois euros e noventa e seis cêntimos).

 

VIII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, no artigo 4.º, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 2.142 (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

Porto, 7 de dezembro de 2020.

 

Marta de Sousa Nunes Vicente

(Árbitro singular)