Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 282/2020-T
Data da decisão: 2020-10-30  IRS  
Valor do pedido: € 9.895,42
Tema: IRS – mais-valias imobiliárias; Não residentes.
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SUMÁRIO:

I - O n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, é diretamente aplicável na determinação do rendimento tributável referente às mais-valias realizadas por não residentes na alienação de direitos reais sobre imóveis situados em território nacional, sem que seja necessário o exercício do direito de opção nesse sentido, sob pena de violação do artigo 63.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

II - Por um lado, a não opção pelo regime de tributação aplicável aos sujeitos passivos residentes, de que resulta a tributação da totalidade da mais-valia realizada, à taxa de 28%, traduzir-se-ia numa tributação mais gravosa dos não residentes, comparativamente aos residentes, tributados sobre 50% da mais-valia, às taxas gerais do artigo 68.º, do Código do IRS, a cujo escalão máximo corresponde a taxa de 48%.

III - Por outro lado, a imposição de um dever de opção pelas taxas progressivas, com dispensa de tal dever para os sujeitos passivos residentes, não é suscetível de afastar o efeito discriminatório do regime regra da tributação dos rendimentos de mais-valias obtidos por sujeitos passivos não residentes.

 

DECISÃO ARBITRAL

I.             RELATÓRIO

Em 31 de maio de 2020, A..., com o NIF..., residente em ..., n.º..., ..., CP ... Madrid (adiante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea ) e 10.º e seguintes, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A.           Objeto do pedido:

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, no valor de € 19 657,75, bem como do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 5 de dezembro de 2019, tendo em vista a anulação parcial da referida liquidação.

 

Mais pede a Requerente a condenação da Requerida no reembolso da quantia de € 9 895,42, por si paga em excesso em 10 de setembro de 2019, acrescida de juros indemnizatórios.

 

B. Síntese da posição das Partes

a. Da Requerente:

Como fundamentos do pedido, invoca a Requerente o seguinte:

1.            A Requerente é residente fiscal em Espanha, Estado Membro da União Europeia com o qual existe intercâmbio de informações em matéria fiscal, e alienou, no ano a que respeita o imposto (2018), o direito de propriedade sobre um imóvel sito em Portugal;

2.            Entende, assim, que o valor da mais-valia gerada pela venda do imóvel deveria apenas ter sido considerado em 50%, para efeitos de apuramento do montante de imposto a pagar;

3.            A tributação da totalidade do valor da mais-valia como rendimento coletável, ao qual foi aplicado a taxa fixa de 28%, constitui, alega a Requerente, violação do direito da União Europeia, maxime, do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (correspondente ao artigo 56.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia);

4.            Deste modo, a inclusão da totalidade das mais-valias resultantes da alienação do direito real sobre o imóvel pela Requerente, no rendimento coletável de 2018, enferma de erro de Direito, uma vez que apenas deveria ter sido relevado 50% do valor da mais-valia, por aplicação do previsto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, numa interpretação deste normativo em conformidade com o direito comunitário;

5.            A atuação da AT olvida não só a jurisprudência comunitária, mas também a jurisprudência assente do Supremo Tribunal Administrativo que a acolheu, bem como a jurisprudência assente do Tribunal Arbitral verificando-se, por conseguinte, uma ilegalidade parcial do ato tributário em análise;

6.            De acordo com a jurisprudência, o n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, é discriminatório, ao limitar a incidência do imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal e excluir dessa limitação as mais-valias realizadas por um residente noutro Estado membro;

7.            Reconhece a jurisprudência que as alterações da Lei n.º 67-A/2007 não vieram eliminar o efeito discriminatório, mantendo-se assim a violação das normas comunitárias;

8.            No Acórdão Hollmann, de 11.10.2007 (processo C-443/06), entendeu o TJUE que é incompatível com a norma que assegura a liberdade de circulação de capitais um regime que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel;

9.            Conclui-se que impedir a Requerente de aceder ao regime tributário previsto para residentes representa uma discriminação negativa para com os contribuintes ‘não residentes’ donde resulta uma violação do Direito da União Europeia, sendo a atuação da AT, por isso, ilegal;

10.          A discriminação da norma nacional não é justificável pelo objetivo de evitar penalizar os residentes, na medida em que a tributação efetiva dos residentes é mais reduzida que a dos não residentes e não existe diferença que justifique esta desigualdade de tratamento no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos, o que torna a Liquidação parcialmente NULA por violação do Direito dos Tratados, violação da Jurisprudência do TJUE e dos princípios comunitários, violação do texto constitucional e, por fim, violação do próprio Código do IRS;

11.          A liquidação que se impugna padece ainda de falta de fundamentação, pois não explicita o motivo pelo qual foi aplicada a taxa de 28% a 100% do valor do saldo da mais-valia, não se clarifica sequer a base legal, divergências que foram consideradas como a base para a correção e, quando questionada, a AT não clarificou essa questão;

12.          Conclui a Requerente com o pedido de declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato tributário identificado, com reembolso do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde o dia 10 de setembro de 2019.

 

b. Da Requerida

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), em que veio defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

1.            Não se verifica o alegado vício de falta de fundamentação do ato tributário, como se pode concluir face ao articulado pela Requerente, dada a longa argumentação apresentada a propósito da tributação das mais valias dos não residentes;

2.            Recorda-se que a fundamentação dos atos tributários e administrativos visa dar a conhecer ao particular o iter cognoscitivo do decisor, para que aquele, caso assim o entenda, possa, em tempo, lançar mão do meio processual indicado para defesa dos seus direitos e interesses, como se verifica nos autos;

3.            Se, na fundamentação de cada ato, deve a administração fiscal ter em conta a necessidade de esclarecimento do seu destinatário, é evidente, face ao pedido de pronúncia formulado e à extensa argumentação expendida, que a Requerente percebeu, e bem, o que esteve na base da liquidação impugnada, apesar de não se conformar com as normas legais que regulam a tributação dos não residentes;

4.            No que respeita à tributação das mais-valias geradas pela venda do imóvel, a posição perfilhada pela Requerente padece de erro sobre os pressupostos de facto e de direito;

5.            Se é certo que no Acórdão do TJCE, de 11/10/2007, entendimento igualmente sufragado pelo STA, foi decidida a contrariedade com o Direito Comunitário do regime da tributação das mais-valias imobiliárias de não residentes resultante dos artigos 72.º, n.º 1 e 43.º, n.º 2 ,do CIRS, por “o artigo 56.º CE dever ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel”, igualmente se assinala que o quadro normativo atual e aplicável à situação objeto dos autos é distinto;

6.            No sentido de adaptar a legislação nacional à decisão do TJCE, foram aditados os n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 9 e 10) ao artigo 72.º, do CIRS, estabelecendo a opção pela tributação dos rendimentos de mais-valias pelas taxas do artigo 68.º, sendo tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora do território nacional, nas mesmas condições aplicáveis aos residentes, passando as declarações de rendimentos de IRS respeitantes aos anos fiscais de 2008 e seguintes têm um campo para que possa ser exercida a opção pela taxa consagrada no artigo 68.º do CIRS;

7.            No Quadro 8 do Rosto da declaração de IRS apresentada pela Requerente para o ano de 2018, foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes);

8.            Para efeitos de tributação pela taxa do artigo 68.º, ou seja, como residente, era necessário ter preenchido os campos 9, opção pelas taxas do artigo 68.º do CIRS, e 11, total dos rendimentos obtidos no estrangeiro;

9.            Não pode ser imputado à Requerida o erro declarativo da Requerente;

10.          A norma estabelecida no n.º 2 do artigo 43.º, e cuja aplicação a Requerente defende, encontra-se no capítulo II do CIRS que tem como epígrafe “Determinação do rendimento coletável”, não é aplicável ao caso em análise;

11.          É jurisprudência assente do STA que “(…) o uso da residência como elemento de conexão, bem como a diferenciação fiscal entre sujeitos passivos residentes e não residentes, tanto na legislação interna dos Estados como nas Convenções sobre Dupla Tributação, é aceitável e não contraria as liberdades de circulação, nem consubstancia uma discriminação contrária aos Tratados Europeus”;

12.          Não havendo qualquer erro da AT na emissão da liquidação objeto do PPA, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, devendo a ação arbitral ser julgada improcedente, absolvendo-se a Requerida dos pedidos.

 

Pelo despacho arbitral 17.09.2020 foi dispensada a realização da reunião a que se refere

o artigo 18.º, do RJAT, determinando-se que o processo prosseguisse com alegações escritas, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, indicando-se a data de 30 de outubro de 2020 para prolação da decisão arbitral e advertindo-se a Requerente de que deveria, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Ambas as Partes apresentaram Alegações escritas no prazo designado, nas quais vieram reiterar as respetivas posições iniciais.

 

II. SANEAMENTO

1.            O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 28 de agosto de 2020, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;

2.            As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

3.            O processo não padece de vícios que o invalidem;

4.            Não foram invocadas exceções que ao tribunal arbitral cumpra apreciar e decidir.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as

suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral

tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e ao processo administrativo (PA), fixa-se como segue:

 

1.            A Requerente apresentou a declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2018, em 31.07.2019, registada sob o n.º..., constituída pelo respetivo rosto e por um anexo G – Mais-Valias e Outros Incrementos Patrimoniais (cfr. Doc. 4 junto ao PPA, que se dá como integralmente reproduzido, e junto ao PA);

2.            No rosto da declaração antes mencionada, a Requerente indicou, no quadro 8, ser não residente, com residência em “país da UE ou EEE” com o código 724 (Espanha) e a opção pelo regime geral de tributação dos rendimentos declarados (cfr. Doc. 4 junto ao PPA e PA);

3.            No anexo G da declaração referida nos pontos precedentes, a Requerente inscreveu no quadro 4 – Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis [art.º 10.º, n.º 1, al. a), do CIRS] a alienação, em janeiro de 2018, pelo valor de € 180 000,00, de 50% da fração autónoma “E” do prédio urbano 110726, que havia adquirido em fevereiro de 2015, pelo valor de € 95 000,00, bem como encargos suportados da quantia de € 13 131,40 (cfr. Doc. 4 junto ao PPA e PA);

4.            Com base na declaração apresentada pela Requerente, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2019..., de 31.07.2009, incidente sobre o rendimento coletável de € 69 968,60, sujeito a tributação autónoma, de que resultou apuramento do imposto da quantia de € 19 591,20, acrescida de juros compensatórios de € 66,55, no valor global de € 19 657,75, com data limite de pagamento em 11.09.2019 (cfr. Doc. 1 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);

5.            A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de IRS n.º 2019 ... em 10.09.2019 (cfr. Doc. 1 junto ao PPA);

6.            Em 5.12.2019, a Requerente apresentou, no Serviço de Finanças de Lisboa ..., reclamação graciosa tendo em vista a anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2019..., que deu origem ao procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019... (cfr. Doc.s 2 e 3 juntos ao PPA, que se dão por reproduzidos, e PA);

7.            À data da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral (31.05.2020), não tinha sido proferida decisão sobre a reclamação graciosa apresentada pela Requerente, tendo sido determinado o seu arquivamento e apensação ao presente processo arbitral, conforme o despacho de 02.07.2020, da Senhora Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa (cfr. PPA).

 

B – Factos não provados:

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C – Fundamentação da matéria de facto provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, do processo administrativo e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.

 

III.2 DO DIREITO

1.            Ordem de apreciação dos vícios

Nos termos do n.º 1 do artigo 124.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, deve o tribunal apreciar prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato tributário e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação, segundo a ordem estabelecida no n.º 2 do mesmo artigo.

 

1.1. Da falta de fundamentação da liquidação impugnada

A Requerente imputa à liquidação de IRS do ano de 2018 o vício de falta de fundamentação, considerando que tal vício afeta o núcleo essencial do direito fundamental consagrado no n.º 3 do artigo 268.º, da CRP, devendo, por isso, serem aquele ato cominado com o desvalor de nulidade, nos termos do (alínea d) do n.º 2 do artigo 161.º, do CPA).

 

O n.º 1 do artigo 161.º, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), prevê expressamente que “São nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”, contendo o seu n.º 2 uma enumeração exemplificativa das situações em que a desconformidade jurídica dos atos acarreta a sua nulidade, entre as quais a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, vício que, já anteriormente à reforma de 2015, determinava a nulidade do ato administrativo, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 133.º, do CPA de 1991.

 

No âmbito do anterior CPA e sobre o vício do ato tributário não fundamentado, escreveu Jorge Lopes de Sousa que “A falta de fundamentação constitui, em regra, vício do ato gerador de mera anulabilidade, uma vez que é essa a sanção prevista para violações da lei para as quais não se prevê outra sanção (art. 135.º do CPA).

Nomeadamente, em matéria tributária, a falta de fundamentação não se enquadra em qualquer das situações de nulidade, previstas no art. 133.º, n.ºs 1 e 2 d CPA, não estando em causa o conteúdo essencial do direito fundamental de acesso aos tribunais ou um elemento essencial do ato administrativo.” .

 

Sufragando o entendimento transcrito e, levando em conta que o invocado vício não é suscetível de produzir a nulidade da liquidação de IRS objeto dos autos, importa saber se, sendo o mesmo determinante da sua anulabilidade, confere uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

Tratando-se, porém, de uma irregularidade meramente formal atinente a um ato de “natureza estritamente vinculada” e de “caráter massivo”, assente em factos “declarados pelo contribuinte” e com “indicação do valor tributável” e “respetiva taxa”, como é a liquidação em causa, deve aquele ato ter-se por suficientemente fundamentado .

Conclui-se, pois, pela não existência do vício de falta de fundamentação da liquidação impugnada.

 

1.2. Do vício de violação de lei

A questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se a liquidação de IRS emitida em nome da Requerente, residente em outro Estado Membro da União Europeia, para o ano de 2018, padece de vício de violação de lei, designadamente por violação do direito comunitário, por ter incidido sobre a totalidade das mais-valias resultantes da alienação, naquele ano, do direito de propriedade sobre um imóvel sito em território nacional, à taxa especial de 28%, prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

 

Consiste, portanto, em saber se a norma do n.º 2 do artigo 43.º, é aplicável na determinação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos por não residentes, apesar do seu teor literal fazer referência expressa às transmissões efetuadas por residentes.

 

O regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por sujeitos passivos residentes e por sujeitos passivos não residentes em território nacional foi inicialmente tratado, da perspetiva do direito comunitário, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Acórdão Hollmann (processo C-443/06, de 11/10/2007), que teve por objeto uma situação tributária ocorrida em data anterior à das alterações introduzidas ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, e no qual se decidiu que “O artigo 56.° CE  [atual artigo 63.º, TFUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais‑valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado‑Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado‑Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais‑valias realizadas por um residente do Estado onde está situado

esse bem imóvel.” (disponível em https://eurlex. europa.eu/legal-

content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62006CJ0443&from=PT).

 

A Requerida defende que com o novo regime aplicável à tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos pelos sujeitos passivos não residentes, decorrente do aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 14 e 15) ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, na sequência do já citado Acórdão Hollmann, ficou sanada a desconformidade entre a legislação nacional e o direito comunitário.

 

Considera ainda a Requerida que, tendo a Requerente assinalado na declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2018 o campo 4 do quadro 8 B (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (opção pelo regime geral de tributação aplicável aos não residentes), as suas alegações são destituídas de fundamento, pois, caso a Requerente pretendesse beneficiar do regime de tributação aplicável aos residentes, pelas taxas do artigo 68.º, era necessário ter preenchido os campos 9 (opção pelas taxas do artigo 68.º do CIRS) e 11 (total dos rendimentos obtidos no estrangeiro), como se prevê no n.º 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, na redação à data dos factos.

 

Por seu turno, argumenta a Requerente que a possibilidade de opção pelo regime de tributação aplicável aos residentes não é, por si só, suficiente para afastar o tratamento discriminatório dos sujeitos passivos não residentes, no que respeita à tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias, citando, a título exemplificativo, a decisão proferida pelo TJUE no processo C-440/08 (Acórdão Gielen, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62008CJ0440&from=PT).

 

Se bem que no Acórdão Gielen estivesse em causa a liberdade de estabelecimento (artigo 49.º, do TFUE), não deixa de ali ser abordada a questão da possibilidade de a opção por um regime de equiparação a residentes ser ainda incompatível com o direito da UE, tendo o TJUE decidido que tal incompatibilidade “(…) não é posta em causa pelo argumento de que a opção de equiparação é suscetível de excluir a discriminação em causa (…) [se] essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório (…)”.

 

No ano a que respeitam os rendimentos que originaram a liquidação ora impugnada, era a seguinte a redação dos n.ºs 1, alínea a), 9 e 10, do artigo 72.º, do Código do IRS:

 

“Artigo 72.º - Taxas especiais

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:

a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;

(…)

9 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.

(…)”.

 

Não obstante a existência deste novo quando normativo, a jurisprudência emanada do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e do CAAD sobre situações ocorridas em momento posterior ao das alterações introduzidas ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, continua a validar a jurisprudência fixada pelo já citado Acórdão Hollmann.

 

A tal propósito cabe citar, em primeiro lugar, o Acórdão proferido pelo STA em 20.02.2019, no processo n.º 0901/11.0BEALM 0692/17, disponível em http://www.dgsi.pt/.

Versou este Acórdão sobre recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial de uma liquidação de IRS do ano de 2010, determinando a sua anulação em 50%.

 

Consta do respetivo sumário:

                “I - Por imperativo constitucional as disposições do Tratado que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos de direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Nos termos do art. 8.º, n.º 4, da CRP «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

II - Tendo Portugal competência para legislar quanto ao imposto sobre o rendimento, por tal não ser matéria de competência exclusiva da UE, não pode incluir nessa regulamentação normas que, em concreto, sejam violadoras dos Tratados, na interpretação que deles faça, como fez, o Tribunal de Justiça da UE.

III - O acto impugnado, que aplicou o referido art. 43.º, n.º 2 do CIRS, incompatível com o referido art. 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, enferma de vício de violação deste último normativo, o que consubstancia ilegalidade, que justifica a sua anulação (artº 135.º do Código de Procedimento Administrativo).”.

 

Cabe igualmente referir, entre outras, a decisão arbitral proferida em 08.04.2019, no processo n.º 600/2018-T, referente a mais-valias imobiliárias auferidas por não residente, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes, em cuja fundamentação, para além do mais, se lê o seguinte:

“Assim, o que essencialmente releva para este efeito é saber se existe ou não uma discriminação negativa na aplicação aos Requerentes do regime que lhes foi aplicado. O regime previsto por defeito (na falta de opção) no n.º 1 do artigo 72.º é mais oneroso para os não residentes do que para os residentes, pois enquanto a taxa máxima aplicável às mais-valias realizadas por residentes é de 24% do seu valor (taxa máxima de 48% prevista no artigo 68.º, aplicável a 50% do saldo das mais-valias), a taxa prevista no n.º 1 do artigo 72.º do CIRS é de 28%, aplicável à totalidade do saldo. (…) Assim, é seguro que o regime de tributação a taxa liberatória previsto no artigo 72.º do CIRS, na redacção vigente em 2017, é incompatível com o referido artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, pois torna a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado. (…) O facto de actualmente este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos, se manifestarem uma opção, não afasta a discriminação negativa, pois é nele imposta uma obrigação de opção que não é extensiva aos residentes.”.

 

Face à jurisprudência citada, à qual se adere, haverá de concluir-se que o n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, é diretamente aplicável na determinação do rendimento tributável referente às mais-valias realizadas por não residentes na alienação de direitos reais sobre imóveis situados em território nacional, sem que seja necessário o exercício do direito de opção nesse sentido, sob pena de violação do artigo 63.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

 

Por um lado, a não opção pelo regime de tributação aplicável aos sujeitos passivos residentes, de que resulta a tributação da totalidade da mais-valia realizada, à taxa de 28%, traduz-se numa tributação mais gravosa dos não residentes, comparativamente aos residentes, tributados sobre 50% da mais-valia, às taxas gerais do artigo 68.º, do Código do IRS, a cujo escalão máximo corresponde a taxa de 48%.

 

Por outro lado, a imposição de um dever de opção pelas taxas progressivas, com dispensa de tal dever para os sujeitos passivos residentes, não é suscetível de afastar o efeito discriminatório do regime regra da tributação dos rendimentos de mais-valias obtidos por sujeitos passivos não residentes.

 

Assim, ainda que a Requerente não tenha optado pelo regime de tributação a que se referem os n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, a liquidação de IRS emitida em seu nome para o ano de 2018 é ilegal, na medida em que incidiu sobre totalidade da mais-valia apurada no ano em causa, e não de apenas de 50% do seu valor, nos termos do n.º 2 do artigo 43.º, do referido Código, justificando-se a sua anulação.

 

Questão diversa é a de saber se tal ilegalidade determina a anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2019..., conforme peticionado, ou se a mesma deve ser anulada na sua totalidade.

 

A este respeito, tanto a doutrina como a jurisprudência apontam no sentido de que o ato tributário é um ato divisível, quer por natureza, dado que impõe a obrigação de pagamento de uma quantia pecuniária, quer por determinação legal (cfr. o artigo 100.º, da LGT), podendo ser parcialmente anulado, se o tipo de ilegalidade de que padece o afetar apenas em parte.

 

No caso dos autos, a ilegalidade da liquidação impugnada resulta, em exclusivo, da não aplicação do n.º 2 do artigo 43.º, do Código do IRS, que determinaria a tributação de apenas 50% das mais-valias realizadas pelo Requerente.

 

Estando em causa a mera redução da base de incidência do imposto e sendo a taxa aplicável uma taxa fixa (28%), justifica-se, face ao princípio da economia processual, a sua anulação parcial (cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do STA, de 12.07.2017, no processo 0636/17, disponível em http://www.dgsi.pt/).

 

1.3. Do pedido de juros indemnizatórios

O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, como é o de apreciar o erro imputável aos serviços.

Por outro lado, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, fica a AT vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.

 

De igual modo, o artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.

 

O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º da LGT, de acordo com cujo n.º 1 estes são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Padecendo a liquidação de IRS n.º 2019... de vício de violação de lei, por violação do artigo 63.º do TFUE, que consubstancia erro sobre os pressupostos de direito, imputável aos serviços, há que reconhecer o direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:

a.            Declarar a ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, determinando a sua anulação parcial, pela quantia de € 9 828,88;

b.            Condenar a AT na restituição à Requerente do imposto e juros compensatórios por esta pago em excesso;

c.            Reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios sobre o valor do imposto e juros compensatórios a restituir, calculados desde a data do pagamento indevido até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 9 828,88 (nove mil, oitocentos e vinte e oito euros e oitenta e oito cêntimos), correspondente a 50% do valor global da liquidação emitida.

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de outubro de 2020.

 

O Árbitro,

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990