Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 279/2020-T
Data da decisão: 2020-11-03  Selo  
Valor do pedido: € 700.143,68
Tema: Imposto de selo - Verba 17.1.4; “cash pooling”; utilização do crédito; princípio da territorialidade; liberdade de circulação de capitais
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SUMÁRIO:

As operações de cash pooling estão sujeitas à tributação em imposto de selo nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do selo e da verba 17.1.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente), Jónatas Eduardo Mendes Machado e Rui Ferreira Rodrigues (árbitros vogais), designados, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

I. Relatório

1. A..., LDA., sociedade comercial com sede na Rua ..., n.º..., ...-... ..., contribuinte número ..., abrangida pelo serviço periférico local de ... (doravante, “Requerente”, “A...”  ou “A...”), veio, ao abrigo dos artigos 10.º e 2.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que institui a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária (de ora em diante “RJAT”), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, prescindindo da faculdade de designar árbitro, para pronúncia arbitral  sobre os atos tributários de liquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”), referentes à Verba 17.1.4 da Tabela Geral do IS (“Operações Financeiras”), e identificados com os n.ºs: i) 2019..., de 12.09.2019, referentes ao período de tributação de 2017, no valor de € 646.056,01, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), e de Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019, 2019..., 2019..., no valor total de € 54.087,67, os quais originaram um valor global a pagar de € 700.143,68, que foi objeto da reclamação graciosa n.º ...2020..., de 23.01.2020, e correspondente decisão de indeferimento, com base na sua ilegalidade

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 01.06.2020, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 29.07.2020, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 28.08.2020.

 

6. Na sua Resposta, apresentada a 06.10.2020, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio sustentar a improcedência do presente pedido, por não provado, e, consequentemente, absolvição da Requerida do pedido.

 

7. A 15.10.2020, em aplicação dos princípios da autonomia na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT, e não havendo outros elementos sobre que as partes se devam pronunciar, entendeu o presente tribunal dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime, bem como a apresentação de alegações.

 

1.1.        Apresentação dos factos

8. Dos autos, incluindo os elementos constantes do relatório da inspeção tributária, resulta que, em 23.02.2000, foi celebrada a “Convention d’Omnium” entre a sociedade B... e as entidades aderentes do grupo, a qual se destinava a pôr em prática um acordo de cash pooling, destinado a assegurar a gestão de tesouraria das diferentes entidades do Grupo C... localizadas em diferentes jurisdições.

9. Em 08.06.2009, a sociedade B... sentiu necessidade de otimizar o acordo de cash pooling em vigor, tendo celebrado com a instituição financeira D... S.A., o “D... Cash Centralisation Agreement”, visando a gestão centralizada da tesouraria do Grupo, nivelando os saldos das diferentes contas (principal, secundárias ou intermediárias), tendo a Requerente aderido a este acordo de cash pooling em 20.07.2010.

10. Em 30.12.2010, a Requerente, a B... e a E... celebraram um contrato de cessão de posição contratual/cedência de crédito, tendo a E... e a Requerente assinado um novo contrato de empréstimo com efeitos a 01.01.2011, no qual a Requerente figura como mutuante e a E... como mutuária, no qual a primeira concede um empréstimo à segunda na modalidade de crédito rotativo de um ano, no montante máximo de € 65.000.000,00, tendo sido acordado o pagamento de juros, à taxa média da Euribor a 1 mês, arredondada para 1/16 de 1% adicionada de uma margem de 0,5% ao ano, calculados no fim de cada mês com base na utilização mensal de crédito. A B... transferiu para a E... os direitos e obrigações resultantes da “Convention d’Omnium”.  Através da “Participation Form” de 27.05. 2012, a A... (e cada uma das sociedades do grupo fiscal) aceita as condições descritas naqueles documentos.

11. Este contrato foi objeto de várias alterações posteriores, em particular, em 01.01.2013, a “Amendment 2 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” que visou alargar o período do contrato de 01.01.2013 para 01.01.2015, em 03.12.2013, a “Amendment 3 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alterou o montante máximo do empréstimo de € 65.000.000,00 para € 100.000.000,00, em 01.10.2014, a “Amendment 4 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alterou o montante máximo do empréstimo de € 100.000.000,00 para € 200.000.000,00 e em 31.12.2014, a “Amendment 5 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alargou o período do contrato de 01.01.2015 para 01.01.2017.

12. De forma a concretizar a adesão da Requerente ao contrato de cash pooling do Grupo, foi ainda necessário introduzir alterações ao “D... Cash Centralisation Agreement”, através do “Appendix 2 – Participation form to the D... Cash Concentration Agreement”, celebrado em 15.05.2012, segundo o qual a Requerente foi incluída no acordo celebrado com o D... e o Appendix 1 – Automated Centralization of Cash Management per hierarchy”, celebrado em 23.05.2012.  Mais tarde, em 12.09.2014, o “Appendiz 1.1. – Description of the Hierarchy”, identificou a Master Account no contrato de cash pooling (localizada em França), bem como as Intermediate Accounts, entre elas a da aqui Requerente (localizada em Portugal)

13. No âmbito da execução dos diferentes contratos acima enunciados, os excedentes de tesouraria gerados pelas diferentes entidades do Grupo C... eram transferidos para a conta da Requerente, a qual, por sua vez, os transferia para a E..., a qual recebia e utilizava os mesmos em França. No período de 2017 o saldo inicial do empréstimo ascendia a 158.770.707,69 euros (143.356.073,00 euros em 1 de janeiro de 2016), tendo o montante de envio de fundos, bem como o débito de juros, pela A... à E..., totalizado 810.333.033,80 euros (689.622.458,49 euros em 2016) e ascendendo o recebimento de fundos a 819.100.227,28 euros (674.207.823,80 euros em 2016), fixando-se o saldo final em 150.003.514,21 euros.

14. A A... debitou à E..., relativamente ao período de 2017, juros no montante de 172.426,52 euros (246.505,90 euros em 2016 e 530.952,61 euros em 2015), juros estes que não deram origem a movimentação de fundos, mas apenas ao registo destes montantes na conta corrente da E... na contabilidade da A... (conta 266105 EMPR CP E...). As transações financeiras ocorridas entre a A... e a E... encontram-se registadas na conta 266105 – EMPR CP E... (Anexo XIV - Extrato da conta 266105 e dos movimentos financeiros no sistema informático).

15. Os fluxos financeiros existentes entre a A... e a E... foram relevados na contabilidade da primeira, da forma que se passa a referir. Pelas transferências dos excedentes de tesouraria para a E...:

 

Conta    Débito  Crédito

266105  EMPR CP E...      X

121104  D... Conta Principal          X

 

Pelos reembolsos da E...:

Conta    Débito  Crédito

266105  EMPR CP E...      X

121104  D... Conta Principal          X

 

Pelo crédito mensal dos juros na conta da E...:

Conta    Débito  Crédito

266105  EMPR CP E...      X

791101  Juros Empréstimos EM  X

 

                Pela especialização em dezembro de 2017 dos juros a receber:

Conta    Débito  Crédito

211122  E...         X

791101  Juros Empréstimos EM  X

 

                16. Conta Débito Crédito 211122 –E... X 791101 – Juros Empréstimos Em X. Os movimentos financeiros entre a A... e a E... (Envio de fundos/Pedido de fundos) são inseridos num ficheiro em formato excel comunicado à A... (anteriormente era comunicado à B..., sociedade entretanto dissolvida com referência a 01.01.2015, e que era a responsável pelo tratamento da gestão de tesouraria do grupo C...). Diariamente os saldos positivos das contas bancárias das empresas do grupo C... (excedentes de tesouraria) são transferidos para a conta da A... e por sua vez, os respetivos excedentes de tesouraria são transferidos da conta à ordem que a A... tem junto do D... para a conta da E... junto dessa entidade bancária (...0132800010832674 EUR –E...). Em caso de necessidade, a A...emite um pedido de fundos, sendo disponibilizados à A..., de acordo com um plafond pré-definido; o montante creditado na conta bancária da A... é, se necessário, encaminhado pela A... para as sociedades do grupo C... em função das necessidades das mesmas.

17. Nesse âmbito, a Requerente foi objeto de uma ação inspetiva de âmbito geral, desencadeada pela Ordem de Serviço n.º OI2019..., de 31.01.2019, que incidiu sobre o exercício de 2017, e a qual originou correções em sede de IS. A Requerente apresentou Reclamação Graciosa das liquidações aqui contestadas a 23.01.2020, tendo sido notificada, em 02.03.2020 através do Ofício n.º..., de 28.02.2020, do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa.

a.            Argumentação das partes

 

18. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos seguintes argumentos:

a)            Os atos impugnados afiguram-se ilegais, por violação das normas de incidência do Código do Imposto de Selo (CIS) e, ainda, por violação dos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecidos nos artigos 18.º, 63.º e 65.º, n.º 3 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante, “TFUE”), aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”);

b)           A concessão de crédito está sujeita a imposto do selo, qualquer que seja a natureza e forma, relevando, contudo, para o efeito, a efetiva utilização do crédito concedido e não o contrato que lhe é subjacente, como decorre do artigo 5.º, n.º 1, alínea g), do CIS;

c)            É a utilização do crédito, e não a sua contratualização, que releva enquanto facto tributário no CIS, pois é nessa utilização, e não na contratualização da operação que a possibilita, que se encontra uma possível manifestação de capacidade contributiva;

d)           A regra geral de incidência territorial, constante do artigo 4.º, n.º 1, do CIS, dispõe que “Sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional”;

e)           No CIS, merece especial relevo a alteração da filosofia de tributação do crédito, que passou a recair sobre a sua utilização e não já sobre a celebração do respetivo negócio jurídico de concessão;

f)            O que se sujeita a IS, ao abrigo da Verba 17.1 da TGIS, é a utilização de crédito, ou seja, o facto tributário considera-se ocorrido/verificado no momento em que o mutuário levanta (utiliza) os fundos colocados à sua disposição através do contrato de mútuo, momento em que se devem verificar os demais requisitos de que depende a incidência tributária, desde logo, no que diz respeito à incidência territorial;

g)            A utilização de fundos ocorre no local onde o seu utilizador recebe o capital mutuado, i.e., no local em que a obrigação do mutuante de entregar o capital ao mutuário é cumprida, sendo que nos termos do artigo 774.º do Código Civil, aplicável por força do n.º 1, do artigo 11.º, da LGT, e, na falta de disposição em contrário, as obrigações pecuniárias devem ser cumpridas no domicílio do credor;

h)           Quando a lei define o facto tributário como a “utilização de crédito” está em causa a obrigação do mutuante de entregar ao mutuário – geralmente mediante um pedido de utilização – uma determinada quantia em dinheiro, pelo que o credor dessa prestação é o mutuário e o devedor dela é o mutuante;

i)             Exceto quando as partes convencionem em sentido contrário, o crédito é utilizado no domicílio do mutuário, pois é ele que é credor do direito a receber os fundos mutuados – e é ele quem beneficia do acréscimo de liquidez relevante que permite “sustentar” o ímpeto tributário do Estado em sede de IS;

j)             Da conjugação da Verba 17.1 da TGIS com a norma de incidência territorial constante do n.º 1 do artigo 4.º do CIS, resulta que há incidência de IS quando o facto tributário – utilização dos fundos – ocorra em território nacional, sendo o crédito utilizado no local em que o capital é recebido pelo mutuário;

k)            Para se evitar a facilidade de contornar um critério meramente formal, as regras de incidência do CIS são completadas por regras de extensão da territorialidade, que, no caso do CIS, constam das várias alíneas do n.º 2, do artigo 4.º, sendo especialmente relevante, no caso, a alínea b), que determina a incidência do IS sobre todas as operações de crédito em que o mutuário – e não o mutuante – é entidade domiciliada em território nacional, independentemente do local da utilização dos fundos, referindo-se a lei expressamente “a quaisquer entidades (…) domiciliadas neste território” (e não “por quaisquer entidades (…) domiciliadas neste território”);

l)             As operações em causa não estão abrangidas pelas normas de incidência do artigo 4.º do CIS, porquanto o único elemento de conexão que apresenta com o território português é a residência do concedente do crédito;

m)          O beneficiário do alegado crédito é residente fora de Portugal, a concessão do crédito ocorre fora de Portugal, os fundos mutuados encontram-se fora de Portugal e são utilizados por esse beneficiário igualmente fora de Portugal;

n)           As operações financeiras aqui em causa não se encontram localizadas em Portugal para efeitos de IS, porque a entidade financiada, a E..., sendo gestora dos excedentes de tesouraria das demais empresas do Grupo C..., tem sede em França;

o)           Considerar que as operações não se encontram isentas porque um dos intervenientes não tem sede em Portugal e a Requerente tem sede em território português é incorreto, por ser manifestamente restritivo da liberdade de circulação de capitais, assim como discriminatório, sendo que este, ademais, representaria um obstáculo real e injustificado à internacionalização das empresas portuguesas;

p)           O artigo 63.º do TFUE (antigo artigo 56.º do TCE, anterior artigo 73.º-B) estabelece que “[N]o âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros (…)”. 135º., conforme expressamente definido pela Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24.06.88, para execução do artigo 67.º do Tratado, os empréstimos, designadamente os de curto prazo, são considerados movimentos de capitais;

q)           Perante uma vantagem fiscal cujo benefício seja recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação, na aceção do TFUE, quando não exista qualquer diferença objetiva de situação suscetível de justificar diferenças de tratamento, quanto a este aspeto, entre as duas categorias de contribuintes;

r)            A exclusão de aplicação da isenção a entidades devedoras residentes na União Europeia constitui uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais e um tratamento discriminatório dos não residentes, devendo por isso tal norma ser considerada ilegal por incompatível com o artigo 63.º do TFUE;

s)            No caso, estaríamos perante um imposto de obrigação única, cobrado sobre o valor de um ato, pelo que se teria de concluir, necessariamente, pela comparabilidade das situações entre residentes e não residentes;

t)            Verificam-se, no caso, os seguintes pressupostos para que à Requerente seja reconhecido o direito a receber juros indemnizatórios: i) erro imputável aos serviços no apuramento do imposto devido; ii) que do referido erro resulte o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido; e iii) que o erro dos serviços, seja analisado em sede de reclamação graciosa ou impugnação judicial.

19. A Requerida respondeu, por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos:

a)            Considerando os elementos tempo, risco, confiança e juro, os fundos cedidos pela Requerente à E... (sedeada na França), no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, preenchem o conceito de crédito, consubstanciando operações financeiras sujeitas e não isentas de IS, para efeitos da Verba 17 da TGIS;

b)           Uma vez que estamos em presença de uma concessão e utilização de crédito, temos a A..., sujeito passivo nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do CIS, com sede em Portugal, como entidade mutuante (concedente) e a E..., com sede em França, como entidade mutuária (utilizadora), pelo que a realização do crédito (disponibilização dos fundos) ocorre em território nacional, tratando-se assim de uma operação sujeita a Imposto do Selo, de acordo com o princípio da territorialidade instituído no referido n.º 1 do artigo 4.º do CIS, tributada pelas taxas previstas na verba 17.1;

c)            As partes não definiram uma data específica do calendário para o reembolso dos empréstimos concedidos, tendo ficado estipulada a renovação automática por períodos de um ano (na ausência de notificação das partes em contrário), podendo o reembolso do crédito utilizado ocorrer em qualquer um dos dias de calendário até ao dia 1 de janeiro de 2017, devendo proceder-se à tributação pela verba 17.1.4;

d)           O imposto de selo incide sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito, nas quais comummente se incluem a abertura de crédito, empréstimos, cessão de créditos, factoring e operações de tesouraria;

e)           Não obstante, o princípio ser o de que o encargo do imposto (conforme alínea f), do n.º 3, do artigo 3.º do CIS) se reflete sobre a entidade utilizadora daquela concessão, uma vez que é sob esta última que reside o respetivo interesse económico, a regra geral de incidência no que concerne a estas operações é a de que as entidades concedentes de crédito têm a obrigação de promover a liquidação do imposto e respetivo pagamento, conforme resulta da letra da alínea b), do n.º1, do artigo 2.º do CIS;

f)            Caso um dos intervenientes não tenha sede em território nacional, as isenções constantes das alíneas g) e h), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, lidas em conjunto com o n.º 2 deste artigo, só prevalecem caso o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação, sobre o rendimento e o capital, acordada com Portugal;

g)            A isenção constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, referindo que este não é aplicável ao caso em apreço, dado que, não existindo qualquer participação da Requerente na E..., os fundos não têm caráter de suprimentos na medida em que não são efetuados por sócios às sociedades suas participadas;

h)           De acordo com a alínea b), do n.º 1, do artigo 2.º do CIS, são sujeitos passivos do imposto as “entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações”, abrangendo assim a Requerente;

i)             Se na primeira parte do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, o legislador parece ter pretendido circunscrever o âmbito da isenção da alínea g) do n.º 1 às operações financeiras efetuadas com intervenção de sociedades residentes, ao afastar as operações financeiras em que qualquer dos intervenientes – participante ou participada – não tenha a sede ou direção efetiva em território português, essa intenção acaba, a final, por não se concretizar integralmente, porquanto, como essa opção conduziria a um tratamento discriminatório das sociedade não residentes, suscetível se ser posto em causa, quer pelo TFUE, quer pelas convenções para evitar a dupla tributação celebradas por Portugal, o legislador abriu a possibilidade de a isenção subsistir quando o credor tenha a sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia.

II. SANEAMENTO

20. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

21. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. art.s 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

III. Do Mérito

III.1.1. Factos provados

22. Com base nos elementos documentais constantes dos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de produção e comercialização de capas, espumas, estofos e estruturas metálicas para assentos de automóveis (C.A.E. 29320 – R3);

b)           À data dos factos a Requerente era detida pelas E... S.A., sedeada em França (99,99%) e B..., S.A., também sedeada em França (0,01%);

c)            Em 23.02.2000, foi celebrada a “Convention d’Omnium” entre a sociedade B... e as entidades aderentes do grupo, consistindo num acordo de cash pooling; (cfr. Documento n.º 3)

d)           Em 08.06.2009, a sociedade B... celebrou com a instituição financeira D... S.A., o “D… Cash Centralisation Agreement” (Documento n.º 4)

e)           A Requerente aderiu a este acordo de cash pooling do grupo em 20.07.2010, através do “Bulletin d’Adhèsion”; (Documento n.º 5)

f)            Em 30.12.2010, a Requerente, a B... e a E.. celebram um contrato de cessão de posição contratual/cedência de crédito em que a E... e a Requerente assinaram um novo contrato de empréstimo com efeitos a 01.01.2011, no qual a Requerente figura como mutuante e a E... como mutuária – no qual a primeira concede um empréstimo à segunda na modalidade de crédito rotativo de um ano, no montante máximo de € 65.000.000,00, contra o pagamento de juros, à taxa média da Euribor a 1 mês, arredondada para 1/16 de 1% adicionada de uma margem de 0,5% ao ano, calculados no fim de cada mês com base na utilização mensal de crédito –, tendo a B... transferido para a E... os direitos e obrigações resultantes da “Convention d’Omnium”. (cfr. Documentos n.º 6 e n.º 7)

g)            Em 01.01.2013, a “Amendment 2 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” alargou o período do contrato de 01.01.2013 para 01.01.2015; (cfr. Documento n.º 8)

h)           Em 03.12.2013, a “Amendment 3 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” alterou o montante máximo do empréstimo de € 65.000.000,00 para € 100.000.000,00; (cfr. Documento n.º 9)

i)             Em 01.10.2014, a “Amendment 4 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, alterou o montante máximo do empréstimo de € 100.000.000,00 para € 200.000.000,00; (cfr. Documento n.º 10)

j)             Em 31.12.2014, a “Amendment 5 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” largou o período do contrato de 01.01.2015 para 01.01.2017; (cfr. Documento n.º 11)

k)            Em 15.05.2012 foi celebado o “Appendix 2 – Participation form to the D... Cash Concentration Agreement”, segundo o qual a Requerente foi incluída no acordo celebrado com o D...; (cfr. Documento n.º 12),

l)             Em 23.05.2012 foi celebrado o Appendix 1 – Automated Centralization of Cash Management per hierarchy”, (cfr. Documento n.º 13);

m)          Em 12.09.2014, o “Appendiz 1.1. – Description of the Hierarchy”, é identificada a Master Account no contrato de cash pooling (localizada em França), e as Intermediate Accounts, entre elas a da Requerente (localizada em Portugal);

n)           Fluxos financeiros acima referidos (constantes do PA) 

o)           Ato tributário n.º: i) 2019..., de 12.09.2019, referente ao período de tributação de 2017, no valor de € 646.056,01, da autoria AT; (Documento n.º 1)

p)           Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., no valor total de € 54.087,67, as quais originaram um valor global a pagar de € 700.143,68 – (Documento n.º 1)

q)           A Requerente apresentou Reclamação Graciosa das liquidações aqui contestadas a 23.01.2020, tendo sido notificada, em 02.03. 2020 através do Ofício n.º..., de 28.02.2020, do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa.

r)            Foi objeto de decisão de indeferimento com base na sua ilegalidade (Documento n.º 2)

 

III.1.2. Factos não provados

 

23. Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

24. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

25. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art.  29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

26. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, as provas apresentadas, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

                3.2.1. Questão decidenda

 

                27. A questão central no presente processo consiste em saber se se aplica, ou não, a Verba 17.1.4, da TGIS, às operações financeiras em presença, mais concretamente aos saldos médios mensais dos depósitos resultantes de excedentes de tesouraria apurados no âmbito de um contrato denominado de cash pooling celebrado em 08.06.2009 entre a sociedade B... e o Banco D..., SA, a que Requerente aderiu em 20.07.2010, na sequência do qual a Requerente e as sociedades B..., SA e E..., SA, celebraram contrato de cedência de crédito que a final permitia a cada uma das empresas do Grupo C... ver colmatadas as necessidades de tesouraria por via dos excedentes gerados também pelas diferentes entidades daquele Grupo de empresas, sendo gestora desses fluxos monetários a empresa E..., SA.

 

28. Em causa está, especificamente, a decisão de indeferimento, por parte da AT, com fundamento em ilegalidade, da reclamação graciosa n.º ...2020..., de 23.01.2020, apresentada pela Requerente, tendo por objeto os atos tributários de liquidação de IS, referentes à Verba 17.1.4 da TGIS (“Operações Financeiras”), e identificados com os n.ºs: i) 2019..., de 12.09.2019, referentes ao período de tributação de 2017, no valor de € 646.056,01, da autoria da AT, e de Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., 2019..., no valor total de € 54.087,67, os quais originaram um valor global a pagar de € 700.143,68.

 

29. Seguindo posição já por si sustentada , e com base nas razões acima sintetizadas, contende a Requerente que as operações em causa não estão abrangidas pelas normas de incidência do artigo 4.º do CIS, porquanto o único elemento de conexão que apresenta com o território português é a residência do concedente do crédito, pois que o beneficiário do alegado crédito é residente fora de Portugal, a concessão do crédito ocorre fora de Portugal, os fundos mutuados encontram-se fora de Portugal e são utilizados por esse beneficiário igualmente fora de Portugal. Por outras palavras, as operações financeiras aqui em causa não se encontram localizadas em Portugal para efeitos de IS, porque a entidade financiada, a E..., sendo gestora dos excedentes de tesouraria das demais empresas do Grupo C..., tem sede em França.

 

30. Note-se que em causa não está saber se este tipo de transferências de excedentes de tesouraria são operações enquadráveis na verba 17.1. Sobre essa questão há consenso na jurisprudência do STA, que entende que “as operações de cash pooling estão sujeitas à tributação em imposto de selo nos termos do disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS e verba 17.1.4 da TGIS” . Dificilmente se poderia entender doutro modo. Por força dos contratos de cash pooling geram-se fluxos financeiros entre as empresas de um mesmo grupo económico que constituem, indiscutivelmente, movimentos de concessão e obtenção de crédito, permitindo que o grupo opere uma gestão de necessidades de fundos, através de compensação diária com os excedentes, evitando o recurso a métodos de satisfação das necessidades de tesouraria que passam pelo financiamento externo, propiciando uma gestão eficiente das disponibilidades de tesouraria através de um mecanismo de compensação entre excessos e necessidades de tesouraria dentro das empresas do grupo que participem neste sistema, reduzindo assim custos de transação e reforçando a posição negocial na busca de financiamento externo.

 

31. O que verdadeiramente está em causa, no presente processo, é se, tratando-se de excedentes utilizados em França pela E..., fica afastada incidência IS, por força da regra da territorialidade consagrada no artigo 4.º do CIS, ou, caso assim não se entenda, se, no caso de se tratar de operações que se inserem no âmbito de incidência do IS, é aplicável isenção, à face das alíneas g), h) e i) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, em consonância com o Direito da União Europeia.

3.2.2. Cash pooling e territorialidade

 

32. O artigo 1.º, n.º 1, do CIS dispõe que “[o] imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”. Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do CIS, todos os factos mencionados no artigo 1.º do CIS são sujeitos a imposto de selo quando tenham ocorrido em território nacional. O que está em causa, no pleito diante deste tribunal, consiste em saber se a operação de crédito em causa ocorreu, ou não, em território nacional. No caso de resposta positiva, será aplicável a verba 17 da TGIS respeitante às operações financeiras, a menos que ela seja afastada por alguma isenção. No caso de resposta negativa, exclui-se a incidência do imposto.

 

33. Esta última orientação é preconizada pela Requerente. A seu favor poderia ser mobilizado o facto de a argumentação da AT, na sua resposta, depois de considerar que a Requerente é, em abstrato, sujeito passivo de IS, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 2.º do CIS, se limitar a afirmar que, no plano objetivo, “a realização do crédito (disponibilização dos fundos) ocorre em território nacional”, falando em “realização do crédito” e “disponibilização dos fundos” e não em “utilização do crédito”. 

 

34. Este aspeto poderia prima facie ter alguma relevância, na medida em que o artigo 3.º, n.º 1, do CIS, estipula que “[o] imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico nas situações referidas no artigo 1.º”, sendo que o n.º 3, alínea e), do mesmo diploma, esclarece que, no caso de concessão do crédito, o titular do interesse económico é o utilizador do crédito, Ou seja, aparentemente o utilizador do crédito, a E..., com sede na França – sociedade gestora ou centralizadora dos fundos excedentes de tesouraria que lhe foram disponibilizados pela Requerente – surgiria colocada fora do território nacional e, consequentemente, fora da incidência do IS.  A isto acresce que a verba 17.1. da TGIS faz incidir o imposto sobre a “utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título”, fazendo a verba 17.1.4.  recair essa incidência sobre o “crédito utilizado”. Também por esta via se ficaria com a impressão, numa primeira leitura, de que o legislador tributário veio colocar o acento tónico na utilização do crédito concedido e não na concessão do crédito utilizado, com implicações em sede de territorialidade .

 

35. Contudo, não o entendeu assim o STA, que sustentou, a este propósito, que com a verba 17.1.4. da TGIS pretende-se tributar as transferências de saldos entre uma empresa nacional e a entidade centralizadora, ainda que sediada noutro Estado-Membro da União Europeia, devendo tais transferências de saldos ser qualificadas como financiamentos concedidos também para efeitos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do CIS. O facto tributário seria assim a concessão do crédito, pressuposto da posterior utilização, sendo o sujeito passivo o concedente do crédito, nos termos dos artigos 2.º, 23.º, n.os 1 e 2, e 41.º do CIS. O elemento de conexão relevante para aferir a incidência territorial do IS é o local da concessão do crédito, que determina o dever de liquidar do concedente. Incumbiria à Requerente a liquidação do IS, na qualidade de concedente do crédito, que seguidamente o deveria debitar à E..., não residente. O STA  entendeu estar-se perante uma tributação que tem previsão legal e um elemento de conexão territorial com Portugal, validando assim a interpretação adotada pela AT.

 

36. A esta luz, deve considerar-se realizadas em território português as operações financeiras relativas à modalidade de cash pooling em causa, aplicando-se a verba 17.1.4, respeitante a “Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30”, a que corresponderia a taxa de 0,04%. Assim, o IS incide sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito, onde se inclui a "abertura de crédito, empréstimos, cessão de créditos, factoring e operações de tesouraria", considerando-se, como nova operação financeira, a prorrogação, automática ou não. 

 

37, Consubstanciando o “cash pooling concentration” ou “zero balancing”, também designado de “real cash pooling”, uma modalidade de concessão/obtenção de financiamento através de operações de tesouraria, por prazo indeterminado e indeterminável, o mesmo seria abrangido pela referida verba 17.1.4. No entendimento da AT, a Requerente coloca os seus excedentes de tesouraria junto de uma entidade do grupo C..., prevalecendo o interesse do mesmo. No caso em apreço, como os fundos cedidos pela Requerente excedem os fundos obtidos por esta a partir da E... esta diferença reveste a forma de crédito a esta concedido pela Requerente.

 

38. Resta agora questionar se a incidência objetiva e subjetiva do imposto é, ou não, afastada pelas isenções previstas no artigo 7.º, n.º 1, alíneas g) e h), do CIS, qualificadas pelo respetivo n.º 2. A este propósito, a AT sustenta as mesmas isenções só subsistem se o prazo da operação financeira não for superior a um ano, se a finalidade do financiamento for exclusivamente a cobertura de carências de tesouraria, se existir uma dada relação entre as sociedades intervenientes e se – no caso de um dos intervenientes não ter sede ou direção efetiva em território nacional – o credor tiver sede ou direção efetiva num Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação (CDT) sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal.

 

39.Deste regime legal resulta a insubsistência da isenção de IS para as situações de cash pooling em que o credor tem sede ou direção efectiva em Portugal e o devedor reside num Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação com Portugal. Ora, no caso concreto, sendo certo que a Requerente e a E... integram o mesmo grupo, a verdade é que a Requerente é a credora (concedente do crédito) nas operações em análise e tem sede em território nacional e não num Estado-Membro da União Europeia ou outro com CDT. Não se vê, por esta via, que a isenção possa beneficiar a Requerente.

 

40. Quanto à isenção prevista na alínea i), do n. º1, do artigo 7. ° do CIS, a mesma também não é aplicável visto que os empréstimos não têm caraterísticas de suprimentos. Ou seja, não havendo lugar à aplicação das isenções previstas, subsiste a incidência subjetiva e objetiva da verba 17.1.4. da TGIS. Deste ponto de vista, as liquidações de IS em causa estão em absoluta conformidade com a lei, não ocorrendo qualquer vício que deva ditar a sua anulação. Para o STA, a operação de transferência de capitais por cash pooling tem que ser necessariamente subsumida ao disposto no artigo 4º, n.º 1, do CIS e respetiva verba 17.1.4 da TGIS, devendo ser qualificada como uma operação de crédito com contrapartida, isto é, remunerada por via do pagamento dos juros durante o tempo de cedência do capital. Sempre que haja a utilização desse mesmo capital por parte da entidade mutuária há lugar a tributação ao abrigo das normas respeitantes ao CIS e à TGIS.

 

41. No caso concreto, tanto haveria lugar à tributação a uma taxa de 0,04%, da verba 17.1.4 da TGIS, de uma concessão e utilização de crédito por cash pooling feita a um mutuário residente na França como a um mutuário residente em Portugal, cabendo em ambos os casos à A..., na qualidade de mutuante, liquidar o correspondente imposto de selo e repercuti-lo sobre o mutuário. Porque assim é, não vislumbrou o STA, num caso semelhante , que sejam ofendidas as normas do artigo 63.º do TFUE e 40º do Acordo EEE, que consagram a livre circulação de capitais, uma vez que estas normas relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações económicas legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade ou do território, quando duas empresas operem nas mesmas condições e sujeitas aos mesmos acordos.

 

42. Uma última questão a que há que dar resposta, prende-se, precisamente, com saber se ocorre uma violação do direito da União Europeia, por via da violação do princípio da não discriminação ínsito na liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE e no 40º do Acordo EEE. Importa ter presente que esta liberdade fundamental é considerada clara e incondicional, imediatamente aplicável e justiciável . A primazia do direito da União Europeia é reconhecida pelo artigo 8.º, n.º4, da CRP, sob reserva do respeito pelo princípio do Estado de direito democrático, sendo que este princípio se encontra expressamente consagrado no artigo 2.º do TUE e o respetivo artigo 19.º dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) garante o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados, função pressuposta no reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE.

 

43. O problema suscita-se na medida em que os empréstimos de curto prazo, como os concedidos no âmbito do cash pooling, constituem movimentos de capitais à luz do Diretiva n.º 88/361/CEE, do Conselho de 24.06.88 . Como acima se mencionou, no entender do STA  – num caso em que a empresa mutuante estava sediada em Portugal e a mutuária na Suécia – as transferências de saldos que consubstanciam o cash pooling tanto são tributadas quando ocorrem entre empresas nacionais, entre empresas de Estados-Membros ou até entre empresas de Estados-Membros e de países terceiros, aplicando-se sempre as normas constantes dos artigos 1º. n º 1, 2º, b), 3º, n.º 1, f), 4º, n.º 1, 23º, n.º 1, 41º e 44º do CIS.

 

44. Não obstante, a apontada violação do artigo 63.º do TFUE tem que ver, na perspetiva da Requerente, com o teor literal do n.º 2 do artigo 7.º do CIS – que afasta as isenções das alíneas g) e h) do n.º 1 do mesmo artigo «quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direcção efectiva no território nacional, com excepção das situações em que o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal – caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional».

 

45. A parte problemática desta disposição, e do resultante afastamento da isenção prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS – do ponto de vista do direito da União Europeia – prende-se, no entender da Requerente, com o facto de por esta via se criar uma diferenciação fáctica entre devedores de diferentes Estados-Membros (v.g. França, Portugal), podendo privar os residentes num Estado-Membro da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos fora do território nacional, dissuadindo-os, por essa via, de contraírem mútuos com entidades estabelecidas noutros Estados-Membros, situação que, alegadamente, a jurisprudência do TJUE tem vindo consistentemente considerar incompatível com o artigo 63.º do TFUE .

 

46. De acordo com o douto entendimento manifestado por um tribunal arbitral do CAAD , o afastamento da isenção nas situações em que o devedor tenha sede ou direção efetiva num Estado-Membro constitui, inequivocamente, uma restrição a liberdade de movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, que só pode ser admitida nas situações previstas no artigo 65.º do mesmo diploma. Assim é, neste entendimento, porque o devedor, na qualidade de utilizador do crédito, é o titular do interesse económico, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, e n.º3, alinea f), do CIS, sendo que, além de suportar a repercussão económica do imposto, pode,  no caso de não pagamento do imposto pelo sujeito passivo (credor), vir a ser diretamente demandado pela AT, designadamente nos casos de operações de cash pooling, por se estar diante de uma substituição fiscal imprópria, como foi recentemente sublinhado pelo STA.

 

47. Reconheceu o mencionado acórdão arbitral do CAAD , que, nos termos do artigo 65.º, n.º1, alíneas a) e b) do TFUE, os Estados-Membros podem aplicar «as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido» e tomar «todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal», dispondo o n.º 3 que essas medidas e procedimentos « não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º »

 

48. Invocando a jurisprudência do TJUE , o mencionado acórdão arbitral  entendeu que a liberdade de circulação de capitais, enquanto liberdade fundamental do mercado interno, deve ser objeto de interpretação restritiva, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado-Membro onde invistam os seus capitais será automaticamente compatível com o TFUE. Para que uma restrição possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento que daí resulta respeite a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por uma razão imperativa de interesse geral.  

 

49. Para aquele douto tribunal arbitral , nenhum dos requisitos mencionados se encontra preenchido no caso concreto. Por um lado, entendeu, está-se diante de situações comparáveis – «os intervenientes num contrato de cash pooling encontram-se em situações idênticas, independentemente do local da sua residência ou do local onde o capital é investido, havendo mesmo possibilidade de frequentes inversões das posições de credor e devedor no âmbito do mesmo contrato, em função das disponibilidades e necessidades de tesouraria de cada um dos intervenientes» - sendo que a atribuição de uma vantagem fiscal aos devedores residentes em Portugal que é recusada aos devedores não residentes constitui, como defende a Requerente, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes. Por outro lado, sustentou, «não existe qualquer razão de interesse geral que possa justificar a referida discriminação, o que nem sequer é aventado pela Administração Tributária». Baseado neste entendimento, que considerou suficientemente claro (claire) e esclarecido (éclairé) pela lei e pela jurisprudência do TJUE, o tribunal absteve-se de proceder ao reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE.

 

50. Não entende, contudo, o presente tribunal que se deva considerar que o n.º 2 do artigo 7.º do CIS – ao limitar a subsistência das isenções previstas nas alíneas h) e g) do n.º1 desse artigo aos casos em que o credor (e não o devedor) tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal –  se traduz numa violação da liberdade de circulação de capitais. Com efeito, a jurisprudência do TJUE reconhece o direito de os Estados-Membros tributarem, nomeadamente através de imposto de selo, as operações de concessão de crédito, incluindo as ocorridas noutro Estado-Membro, desde que não o façam de uma forma arbitrária e discriminatória .

 

51. Importa atentar, em primeiro lugar, como sublinhou o STA , que nos casos de cash pooling o facto tributário é a concessão de crédito (e não a posterior utilização) e o sujeito passivo é o credor (mutuante) com sede e direção efetiva no território nacional, nos termos dos artigos 2.º, 4.º, n.º 1, 23.º, n.os 1 e 2, e 41.º do CIS. Ora, e este é o segundo ponto, os sujeitos passivos (credores, mutuantes) residentes em Portugal não são objeto de qualquer tratamento fiscal diferenciado, pelas normas de IS em análise, em função da nacionalidade ou residência dos seus mutuários. Em qualquer dos casos aplica-se ao credor residente o imposto previsto na verba 17.1.4.

 

52. Em terceiro lugar, tão pouco são os mutuários de um credor ou mutuante residente em território nacional tratados de forma diferente, enquanto titulares do interesse económico na qualidade de utilizadores do crédito concedido , em função da sua concreta nacionalidade ou residência. Em ambos os casos, os mesmos podem ser demandados no caso de incumprimento do sujeito passivo mutuante, por via da substituição fiscal imprópria.

 

53. Finalmente, também os devedores residentes em Portugal não são tributados de forma mais agravada, em IS, se decidirem celebrar contratos de mútuo com credores sediados noutro Estado-Membro da União Europeia, em termos que os impeçam ou dissuadam de celebrar esses contratos . Por outras palavras, em momento algum são os devedores residentes em Portugal penalizados em IS pelo simples facto contraírem um crédito junto de um mutuante não residente e não junto de um mutuante residente. Recorde-se, mais uma vez, que o IS em análise, nos contratos de cash pooling recai diretamente sobre os credores, e não sobre os devedores, não estando uns e outros em situação objetivamente comparável, nem havendo lugar à aplicação de normas idênticas a situações diferentes ou de normas diferentes a situações idênticas.          

 

54. Deve ser, assim, acolhida a orientação do STA, já mencionada , ao considerar que as transferências de saldos, tanto são tributadas quando ocorrem entre empresas nacionais, entre empresas de Estados-Membros ou até entre empresas de Estados-Membros e de países terceiros, aplicando-se sempre as normas constantes dos artigos 1º. n º 1, 2º, b), 3º, n.º 1, f), 4º, n.º 1, 23º, n.º 1, 41º e 44º, todos do CIS, e ao não vislumbrar que sejam ofendidas as normas do artigo 63.º do TFUE e 40.º do Acordo EEE, que consagram a livre circulação de capitais, uma vez que estas normas relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações económicas legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade ou do território, quando duas empresas operem nas mesmas condições e sujeitas aos mesmos acordos.

 

55. Por este motivo, entende o presente Tribunal Arbitral que a conformidade da liquidação aqui em causa com o Direito da União Europeia é suficientemente clara e esclarecida à luz da na jurisprudência do TJUE, não se justificando o reenvio prejudicial que, de resto, não foi solicitado foi pelo STA quando se pronunciou sobre idêntica questão, julgando-se assim prejudicado o conhecimento do pedido de condenação em juros indemnizatórios face à solução de improcedência do pedido arbitral.

 

IV. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, decide-se neste Tribunal Coletivo julgar inprocedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.

 

V. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 700.143,68 nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 10.404,00 a cargo da Requerente, conformemente ao disposto nos art.s 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e art. 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de novembro de 2020.

 

Árbitro Presidente

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha)

 

Árbitro Vogal

(Jónatas E. M. Machado)

 

Árbitro Vogal

(Rui Ferreira Rodrigues)