Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 272/2021-T
Data da decisão: 2021-12-29  IRS  
Valor do pedido: € 1.684,00
Tema: IRS – Bolsa de formação e artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS)
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SUMÁRIO:

1. Os valores atribuídos aos auditores de justiça no âmbito do contrato de formação celebrado com o Centro de Estudos Judiciários enquadram-se no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do CIRS.

2. O contrato integra uma componente prática que lhe confere um caráter profissionalizante na realização de um conjunto de tarefas profissionais junto dos tribunais.

3. O Tribunal Arbitral tem competência material para condenar a AT ao reembolso do IRS, mas não para substituir a AT na quantificação do imposto que seja devido ou a reembolsar.

4. A atividade exercida pelos auditores de justiça justifica que as mesmas sejam tributadas em sede de IRS, independentemente de serem ou não devidas contribuições para a Segurança Social.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro José de Campos Amorim, designado pelo Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), como árbitro singular, para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 12 de julho de 2021, determina o seguinte:

 

I - Relatório

A..., com NIF..., residente na Rua ..., ..., ...-... ... (“Requerente”), veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 e n.º 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”) requerer a constituição de Tribunal Arbitral e submeter um pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista a anulação parcial da liquidação do IRS de 2018, na parte em que foi tributado o valor de 4.791,72 €, relativo ao montante de bolsa de formação auferido pela Requerente em 2018, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na reconstituição da situação que existiria, nos termos do artigo 100.º da LGT, caso este valor de 4.791,72 € não tivesse sido tributado, designadamente no reembolso à Requerente do montante de € 1.684,00. A Requerente pede ainda o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante identificada por “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT a 3 de maio de 2021.

As Partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos do artigo 11, n.º 1 do RJAT e dos artigos 6.º e 7º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído a 12 de julho de 2021, face ao preceituado no n.º 1 do artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 10.º, no n.º 8 do artigo 11 e no artigo 15 do RJAT.

A AT apresentou resposta em 30 de setembro de 2021, tendo sustentado uma defesa por exceção assente na incompetência material do Tribunal Arbitral, em resultado do pedido da Requerente em condenar a Requerida ao reembolso do montante de € 1.684,02, considerando que o Tribunal Arbitral não tem competência material para quantificar o imposto que seja devido ou a reembolsar, bem como uma defesa por impugnação em que sustentou a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

                             

Em sede de alegações, de 15 de novembro de 2021, a AT remeteu para “a defesa apresentada em sede Resposta, seja por exceção, seja por impugnação”, dando “(…) aqui por integralmente reproduzido aquele articulado, bem como o aí peticionado a final”.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

II – Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão, tendo por base a prova documental apresentada pela Requerente e pela Requerida, incluído aqui o processo administrativo.

A Requerente ingressou no 5.º Curso para os Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante identificada por “TAF”) – cfr. Lista de candidatos habilitados em http://www.cej.mj.pt/...

Em 14 de setembro de 2018, a Requerente celebrou com o Centro de Estudos Judiciários (doravante identificado por “CEJ”) o contrato de formação a que se refere o n.º 2 do artigo 31.º da Lei n.º 2/2008, de 14/1.

Durante o período de 15 de setembro de 2018 até final de dezembro de 2018, a Requerente frequentou o 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática.

Foi-lhe atribuída uma bolsa, sujeita a tributação em sede de IRS, mas da qual não foram efetuadas quaisquer contribuições para a Segurança Social por parte do CEJ, conforme se pode verificar no quadro 4A, Anexo A, da declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS.

O CEJ, no ano de 2018, procedeu ao pagamento da quantia de € 4.791,72 à ora Requerente, a título de rendimentos da categoria A, e efetuou a retenção de imposto no valor de € 701.

Em 26 de junho de 2019, a Requerente submeteu por transmissão eletrónica de dados a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2018, com o n.º... .

O Modelo 3 de IRS originou a liquidação n.º 2019..., de 27 de junho de 2019, relativa ao ano de 2018, com apuramento de reembolso de imposto no valor de € 1.469,95, concretizado em 4 de julho de 2019, através de transferência eletrónica interbancária.

Em 25 de agosto de 2019, a Requerente apresentou a Reclamação Graciosa que correu termos sob o n.º ...2019..., junto do serviço de finanças de ..., contra a liquidação de IRS n.º 2019..., de 27 de junho de 2019, referente ao ano de 2018, pedindo a anulação parcial da liquidação de IRS que derivou da sujeição dos rendimentos obtidos pela bolsa de formação, no montante de € 4.791,72, tendo por base o contrato de formação de auditor celebrado entre a Requerente e o CEJ.

Esta pretensão foi indeferida, por Despacho de Indeferimento da Reclamação Graciosa, proferido em 15 de maio de 2020 pelo Chefe do Serviço de Finanças de ..., ao abrigo de subdelegação de competências, com fundamento que “o pedido carece de enquadramento legal, já que a exclusão de tributação prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 2º-A do CIRS opera para as prestações relacionadas exclusivamente com ações de formação profissional dos trabalhadores”.

Este Despacho foi notificado à Requerente através do Ofício de 4 de junho de 2020, enviado via CTT, o qual foi rececionado em 23 de junho de 2020.

Em 05 de julho de 2020, a Requerente, inconformada com esta decisão, interpôs, com os mesmos fundamentos, um Recurso Hierárquico com o nº ...2020..., junto da Direção de Finanças de Faro, dentro do prazo previsto no n.º 2 do art.º 66.º do CPPT.

A Requerente foi notificada a 16 de dezembro de 2020 da decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado contra a liquidação n.º 2019 ... de 2019/06/27, referente ao ano de 2018.

Atendendo a esta decisão de indeferimento do recurso hierárquico, a Requerente apresentou em 30 de abril de 2021, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, a), do RJAT, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e a respetiva pronúncia arbitral.

Atenta a data de apresentação deste pedido de constituição de Tribunal Arbitral, impõe-se a conclusão de que o mesmo é tempestivo, assistindo legitimidade à Requerente para deduzi-lo.

 

2.2. Factos não provados

 

Inexistem factos não provados com relevo para a apreciação do mérito da causa.

 

III – Matéria de direito

3.1. Do conhecimento da exceção dilatória

A Requerente vem solicitar a anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2019 ... de 27 de junho de 2019, referente ao ano de 2018, com fundamento na ilegalidade da tributação de parte dos rendimentos declarados, no montante de € 4.791,72, resultante de rendimentos auferidos no âmbito do contrato de formação de auditor de justiça celebrado entre a Requerente e o CEJ e, na sequência deste pedido, vem exigir o direito ao reembolso de um montante de € 1.684,00, em resultado desta anulação, bem como dos respetivos juros indemnizatórios.

A AT considera que o Tribunal Arbitral não tem competência material para condenar a AT ao reembolso deste montante de € 1.684,00, devendo ser absolvida parcialmente da instância.

De facto, não releva da competência material do Tribunal Arbitral quantificar o montante do reembolso a efetuar à Requerente, devendo antes o reembolso ser quantificado pela AT, se for esse o caso, em sede de execução de decisão arbitral.

A competência do Tribunal Arbitral encontra-se limitada à mera apreciação da legalidade dos atos praticados (art. 2.º, n.º 1 do RAT), não lhe competindo quantificar o montante do reembolso. Tal cálculo excede a competência da jurisdição arbitral.

O pedido da Requerente apenas pode conduzir, em caso de precedência, à reformulação da liquidação, na qual o montante declarado referente ao rendimento em causa nos autos deixa de integrar o rendimento coletável, procedendo-se ao apuramento do imposto e reembolso que sejam devidos de acordo com as normas legais contempladas no CIRS.

Da competência dos tribunais arbitrais, decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, bem como da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ex vi artigo 4.º do RJAT, não se inclui a quantificação do valor a ser reembolsado, pelo facto de estarmos perante um pedido de anulação parcial de um imposto que resultou da aplicação das taxas gerais progressivas de IRS. Não pode o Tribunal Arbitral proferir condenações de outra natureza que não sejam as decorrentes dos poderes fixados no RJAT.

Contudo, a incompetência do Tribunal Arbitral em apreciar o pedido da Requerente em condenar a Requerida ao reembolso do montante de € 1.684,02 não consubstancia uma exceção dilatória que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça do mérito da causa, conforme determinam os artigos 576.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. Tem assim o Tribunal Arbitral competência para conhecer do mérito da causa, devendo ser julgada improcedente a exceção dilatória invocada.

 

3.2. Da formação teórico-prática

Os candidatos habilitados no concurso de ingresso frequentam o curso de formação teórico-prática com o estatuto de auditor de justiça, tal como prescreve o artigo 31.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

A formação inicial de magistrados para os TAF compreende um curso de formação teórico-prática, organizado em dois ciclos sucessivos e um estágio de ingresso, conforme resulta do artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

O 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática tem início, após o concurso de ingresso no CEJ, no dia 15 de setembro subsequente e termina no dia 15 de julho - cfr. artigo 35.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro. Este 1.º ciclo realiza-se na sede do CEJ, sem prejuízo de estágios intercalares de curta duração nos tribunais – cfr. artigo 30.º, n.º 2 do da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

Durante o 1.º ciclo de formação teórico-prática, os auditores realizam um conjunto de atividades formativas na sede do CEJ, sob a orientação de docentes e formadores encarregues de ministrar as diversas componentes formativas. No decorrer deste 1.º ciclo está previsto um “estágio intercalar de duração não superior a quatro semanas, junto dos tribunais, sob a orientação de magistrados formadores”, conforme prescreve o artigo 42.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

No segundo ciclo do curso de formação teórico-prática, o estágio de ingresso decorre nos tribunais, no âmbito da magistratura escolhida - cfr. artigo 30.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

Resulta do exposto que o curso de formação não consiste apenas na aquisição de conhecimentos teóricos, mas integra também uma componente prática que lhe confere um caráter profissionalizante na realização de um conjunto de tarefas profissionais junto dos tribunais, sob o poder de autoridade e direção do CEJ, nomeadamente a elaboração de peças processuais, a intervenção em atos preparatórios do processo e a realização de audiências (art.º 51.º n.º 1 daquela Lei).

Os auditores “frequentam o curso de formação teórico-prática com o estatuto de auditor de justiça e ficam sujeitos ao regime de direitos, deveres e incompatibilidades constantes da presente lei e do regulamento interno do CEJ e, subsidiariamente, ao regime dos funcionários da Administração Pública”, tal como estipula o artigo 31.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

Em qualquer um dos ciclos, o auditor de justiça tem o dever de cumprimento de um conjunto de direitos e deveres no âmbito dos dois ciclos de formação teórico-prática sob a tutela do CEJ, confirmando-se assim uma relação de dependência perante o CEJ.

 

3.3. Do contrato de formação entre o candidato habilitado no concurso e o CEJ

Os candidatos habilitados obtêm o estatuto de auditor de justiça, o qual adquire-se com a celebração de contrato de formação entre estes e o CEJ, nos termos dispostos no artigo 31.º, n.º 2, da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro.

É certo que, no caso em apreço, a Requerente não celebrou com o CEJ um contrato de trabalho ou um contrato equiparado a um contrato de trabalho, nos termos previstos no Código do Trabalho.

Também é verdade que o contrato de formação celebrado entre a Requerente e o CEJ não confere a qualidade de funcionário ou agente, segundo o artigo 31.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, não sendo também aplicáveis as disposições da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.

Este contrato de formação não cria, de facto, uma relação jurídica de emprego público na medida em que “não confere em nenhum caso a qualidade de funcionário ou agente”, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 31.º da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, não sendo aplicáveis as disposições do regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro.

O facto de o contrato de formação não criar uma relação jurídica de emprego público, em que seriam aplicáveis as disposições do regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11 de setembro, não significa que os auditores de justiça devam ser excluídos de tributação.

Nos termos deste contrato, o auditor de justiça fica sujeitos aos direitos, deveres e incompatibilidades constantes da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, e do Regulamento Interno do CEJ e, subsidiariamente ao regime dos funcionários da Administração Pública (artigo 31º, n.os 1 e 2 do referido diploma).

Os auditores de justiça estão sujeitos aos deveres de assiduidade, colaboração, correção, obediência, participação, pontualidade, reserva, sigilo e zelo, sendo incompatível como seu estatuto o exercício de qualquer função pública ou privada de natureza profissional (cfr. art.º 58.º n.º 1 da citada Lei n.º 2/2008).

O auditor é colocado num contexto laboral ou num ambiente de trabalho, junto dos Tribunais, onde lhe compete, tal como já foi referido, elaborar peças processuais, sob a tutela do Magistrado Formador, que o orienta e supervisiona nas diversas tarefas que venha a desenvolver na preparação e instrução dos processos.

Da efetividade da relação contratual resulta a existência de um vínculo jurídico-laboral e deste um conjunto de direitos e obrigações jurídicas. Tal como vem afirmado no Parecer do Conselho Superior de Magistratura de 15 de fevereiro de 2013, o auditor de justiça “encarna um feixe de direitos e deveres funcionais que permitem configurar tal fase formativa numa ótica de continuidade com a nomeação em regime de estágio e, posteriormente, em efetividade de funções”.

Este contrato de formação não permite, aliás, aos auditores de justiça agir de forma independente, mas sob orientação de magistrados formadores. Este dever de subordinação e disciplina por parte dos auditores é em tudo semelhante a um contrato de trabalho, o que faz com que se possa enquadrar no âmbito do artigo 2.º, n.º 1, a), do CIRS, mesmo que o CEJ não tenha a qualidade de entidade empregadora.

As bolsas de formação pagas pela frequência do curso teórico-prática estão sujeitas à disciplina de um contrato, em que os bolseiros atuam sob autoridade e direção de uma entidade, o CEJ.

Encontram-se assim preenchidos os pressupostos da relação de dependência, caracterizados no poder de autoridade que o CEJ detém na relação contratual estabelecida com os auditores de justiça.

Esta relação jurídica enquadra-se nos princípios gerais que regem a tributação dos rendimentos do trabalho dependente. Os valores atribuídos à Requerente a título de bolsa de formação devem ser tributados enquanto rendimento do trabalho dependente por serem provenientes de um contrato de formação, subordinado à autoridade e direção de uma pessoa coletiva que ocupa a posição de sujeito ativo na relação jurídica.

 

3.4. Da natureza da bolsa de formação

A frequência do curso de formação teórico-prática confere ao auditor de justiça, segundo o artigo 31.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, o direito a receber uma bolsa de formação de valor mensal correspondente a 50 % do índice 100 da escala indiciária para as magistraturas nos tribunais judiciais.

De acordo com a mesma alínea deste artigo, esta formação é “paga segundo o regime aplicável aos magistrados em efetividade de funções, ou, em caso de comissão de serviço e por opção do auditor, à remuneração da categoria ou cargo de origem, excluídos suplementos devidos pelo exercício efetivo das respetivas funções”.

O pagamento da bolsa aos formandos rege-se pelo regime dos magistrados em efetividade de funções, em tudo semelhante ao regime de pagamento dos magistrados dos tribunais judiciais. 

No âmbito deste contrato, o auditor de justiça tem direito a receber, durante toda a formação, uma bolsa, paga em 14 mensalidades, de valor mensal correspondente a 50% do índice 100 da escala indiciária para as magistraturas nos tribunais judiciais (cfr. artigo 31.º, n.º 5 da referida lei).

Deste contrato de formação com o CEJ resulta a obtenção do estatuto de auditor de justiça e o direito a uma bolsa paga em 14 mensalidades, tal como foi anteriormente referido, à semelhança dos magistrados dos tribunais judiciais.

Esta bolsa de formação não integra o conceito normativo de bolsa de formação, numa interpretação restritiva do termo, isto é, no sentido de uma compensação nas despesas inerentes à formação profissional em que a bolsa de formação seria mais um incentivo pecuniário para fazer face às despesas inerentes à participação na ação formativa, mas corresponde a uma remuneração em consequência do exercício de uma determinada função, a de auditor de justiça.

A obtenção da bolsa de formação é aqui função do cumprimento das obrigações resultantes da atividade de auditor de justiça por um período de tempo necessário à profissionalização do mesmo no âmbito da relação entre uma pessoa singular e uma pessoa coletiva e não no sentido de compensar o auditor pelas despesas resultantes do período de formação em Lisboa.

 

3.5. Da natureza da remuneração

Importa aqui analisar se os valores recebidos pelo auditor de justiça durante o período de formação especializada têm natureza remuneratória para efeitos de tributação em sede de IRS.

Não resulta do artigo 2.º, n.º 1 do CIRS que a tributação dos rendimentos do trabalho dependente em sede de IRS tenha que ter por base um contrato de trabalho subordinado ou equiparado.

Sucede que, no caso em concreto, o auditor está mesmo sob a autoridade ou direção efetiva de uma determinada entidade (sujeito ativo), sendo um dos pressupostos para que se verifique a incidência de IRS relativamente aos rendimentos obtidos.

A bolsa recebida durante o período da formação representa uma contraprestação pecuniária. Tem uma periodicidade mensal, com os pagamentos dos 13º e 14º mês, à semelhança de qualquer trabalhador, o que faz com que esteja sob a alçada do artigo 2.º do CIRS e não na previsão do artigo 2º-A, do mesmo diploma.

Estando os auditores a desempenhar funções nos termos daquele regime jurídico, a bolsa de formação tem natureza de remuneração pecuniária, não tendo por finalidade compensar o auditor das despesas inerentes à formação mas de o remunerar para função desempenhada. 

A quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo está em conexão com o exercício da atividade profissional. Trata-se de uma atividade remunerada pela contrapartida do serviço prestado.

Aliás, “o tempo de duração do curso de formação teórico-prática dos auditores de justiça a que se reporta o artigo 35° da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, deverá continuar a ser tido em consideração, uma vez ingressados na magistratura Judicial, para efeitos da progressão remuneratória” (cfr. Parecer do Conselho Superior de Magistratura de 15 de fevereiro de 2013). Esta bolsa acaba por entrar em linha de conta para efeitos da progressão remuneratória.

A bolsa de formação tem o seu enquadramento jurídico-tributário no conceito de remuneração, em tudo semelhante a outras situações que ocorrem na Administração Pública. A exclusão deste bolsa do conceito de remuneração teria por efeito de criar uma discriminação negativa em que estaríamos a tratar de forma diferente o que é igual, violando assim um dos princípios basilares do sistema jurídico-tributário, o princípio da igualdade, elencado no artigo 5.º, n.º 2 da LGT.

Enquanto prestação de trabalho, a quantia atribuída não está fora da incidência objetiva da norma de tributação das remunerações referidas no nº. 2 do artigo 2.º do CIRS. De referir também que esta bolsa de formação não constitui uma remuneração acessória de uma qualquer remuneração principal. Mas, se assim fosse, estaria, na mesma, fora da incidência objetiva da norma de exclusão da tributação, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 3 al. b) do CIRS.

Estão assim verificados os pressupostos da relação jurídica entre o CEJ e o auditor, consubstanciados no dever de realização de um conjunto de tarefas e no poder de autoridade e direção do CEJ, bem como estão confirmados os pressupostos de subordinação tributária no conceito de remuneração.

Verificados estes pressupostos, não restam dúvidas de que o sujeito passivo e o sujeito ativo se devem enquadrar na relação jurídica tributária. Esta posição é aliás confirmada pelo próprio CEJ que, ao efetuar as retenções na fonte dos valores pagos à Requerente, reconhece a tributação em IRS da bolsa de formação, por ter enquadramento legal no n.º 1 do art.º 2.º do CIRS. A retenção na fonte efetuada pelo CEJ vai assim no sentido da confirmação da existência de um vínculo jurídico-laboral, da qual resulta a consequente liquidação de IRS.

O facto de a Segurança Social não confirmar a existência de uma relação jurídica contributiva e não atribuir a qualidade de beneficiários aos auditores não revela nenhuma contradição entre as posições da Administração Tributária e da Segurança Social. É sabido que os regimes legais aplicáveis pelas duas entidades são distintos, por um lado, o CIRS e, por outro lado, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

Há situações em que o contribuinte é sujeito passivo de imposto e, no entanto, está isento do pagamento das contribuições para a Segurança Social, como sucede com o trabalhador independente quando acumule atividade independente com atividade profissional por conta de outrem.

O facto de não se enquadrar no regime da Segurança Social, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos da relação jurídica contributiva, não significa que auditores de justiça não sejam tributados em sede de IRS. A atividade exercida pelos auditores de justiça justifica que os rendimentos daí resultantes sejam tributados em sede de IRS, independentemente de serem ou não devidas contribuições para a Segurança Social.

 

3.6. Do seu não enquadramento na norma de delimitação negativa do artigo 2.º-A, n.º 1, alínea c) do CIRS

O rendimento obtido encontra-se abrangido pela norma de incidência objetiva da categoria A do IRS.

As importâncias pagas a título de bolsa de formação enquadram-se no n.º 2 do art.º 2.º do CIRS, que abrange todo um conjunto de rendimentos, “designadamente, ordenados, salários, vencimentos, gratificações, percentagens, comissões, participações, subsídios ou prémios, senhas de presença, emolumentos, participações em coimas ou multas e outras remunerações acessórias, ainda que periódicas, fixas ou variáveis, de natureza contratual ou não.»

Nesta norma enquadra-se qualquer remuneração paga ou colocada à disposição do trabalhador proveniente de relação laboral, independentemente da natureza e frequência, sendo aqui de incluir o exercício de função, serviço ou cargo públicos (cfr. al. c) do n.º 1 do art.º 2.º do CIRS).

A bolsa atribuída ao auditor de justiça não se compara com outro tipo de bolsa de formação, como é o caso, por exemplo, das bolsas de formação do IEFP na parte destinada ao trabalhador. Contrariamente às bolsas de formação do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), previstas no Decreto-Lei n.º 46-A/2020, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 90/2020, que configuram uma prestação destinada a compensar o formando, a bolsa atribuída ao auditor de justiça não se destina apenas à formação do auditor de justiça, mas ao desempenho profissional de um conjunto de tarefas profissionais junto dos tribunais, sob a autoridade de magistrados formadores.

A bolsa de formação do auditor de justiça não se reconduz a «prestações relacionadas exclusivamente com ações de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes», nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 2.º-A do CIRS. Os respetivos montantes enquadram-se nos rendimentos da categoria A em sede de CIRS e não no artigo 2.º-A, n.º 1, al. c) do CIRS.

Comparando estas bolsas de formação com as bolsas de formação desportiva, o legislador entendeu excluir parcialmente de tributação em sede de IRS os beneficiários das bolsas desportivas, excluindo parcialmente da base de incidência do imposto as bolsas de formação desportiva, conforme previstas no art.º 12.º, n.º 5, al. b) do CIRS, considerando que as bolsas de formação desportiva atribuídas pelas federações desportivas a agentes desportivos pelo desempenho não profissional das funções de juízes e árbitros podem ser parcialmente tributadas. 

Não se verificando uma isenção total daquelas bolsas, que antes existia, optou-se por uma restrição do âmbito da exclusão, admitindo que uma parte das bolsas de formação desportiva seja tributável.

Analisando agora o caso das bolsas atribuídas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) no âmbito dos contratos ao abrigo do Estatuto do Bolseiro de Investigação, aprovado pela Lei n.º 40/2004, de 18 de agosto, resulta que estas importâncias não constituem rendimentos de trabalho dependente, salvo se constituírem uma prestação de trabalho para a entidade de acolhimento, caso em que são tributadas nos termos da segunda parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRS. A lei admite, no caso de prestação de trabalho a uma determinada entidade, que as bolsas atribuídas pela FCT possam ser tributadas sem sede de IRS.

Estas bolsas passam a ser tributadas se se verificar a existência de vantagens económicas proporcionadas pelo bolseiro à entidade de acolhimento e se o bolseiro atuar sob autoridade e direção da entidade de acolhimento.

O certo é que se fosse a intenção do legislador excluir de tributação as bolsas de formação dos auditores, elas estariam elencadas no artigo 12.º do CIRS, concluindo-se assim que as importâncias pagas a título de bolsa de formação prevista no n.º 5 do artigo 31.º da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, e constante da cláusula 3ª do respetivo contrato, enquadram-se no artigo 2.º do CIRS

 

Em síntese, a bolsa de formação do auditor de justiça configura uma retribuição e, por conseguinte, deve ser enquadrada no regime legal previsto no art.º 2.º, n.º 1 do CIRS e não no regime de delimitação negativa previsto no artigo art.º 2.º-A n.º 1 al. c) do CIRS. 

 

3.7. Do direito a juros indemnizatórios

Não se encontram reunidos os pressupostos elencados no artigo 43.º da LGT, isto é, a existência de um erro, de facto ou de direito, que tenha levado a AT a uma ilegal definição da relação jurídica tributária do contribuinte, imputável aos serviços, e de que tenha resultado o pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que no caso sub judice não são devidos quaisquer juros indemnizatórios

 

IV – Decisão

Em face do supra exposto, decide-se:

A) Julgar improcedente a exceção dilatória;

B) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

C) Julgar improcedente o pedido de reembolso e absolver a AT deste pedido; 

            D) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios e absolver a AT deste pedido.

 

V – Valor do processo

           

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 4.791,72, valor indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VI – Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 306,00 (trezentos e seis euros), a pagar pela Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4 do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do RCPAT.

 

  • Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de dezembro de 2021.

 

O Árbitro

(José de Campos Amorim)