Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 256/2021-T
Data da decisão: 2022-02-15  IVA  
Valor do pedido: € 20.956,11
Tema: IVA – Prestações de Serviços de Nutrição em Ginásio; Apreciação da legalidade dos atos face à sua fundamentação; fundamentação a posteriori.
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SUMÁRIO:

1-Não pode o tribunal decidir pela manutenção de atos tributários com base em fundamentação diversa da invocada pela administração tributária ao praticá-los, tendo os atos cuja legalidade é questionada de ser apreciados tal como foram praticados.

2-Não tendo a  Requerida, na fundamentação dos atos tributários, invocado a ausência de finalidade terapêutica dos serviços de acompanhamento nutricional da Requerente, mas, ao invés,  aceitado expressamente estarem reunidos os pressupostos da isenção, nos serviços  em causa, desde que mesmos  sejam efetivamente prestados e não meramente disponibilizados, não pode o tribunal decidir pela manutenção  dos atos com fundamento na inexistência da referida finalidade terapêutica, que só veio a ser invocada pela Requerida na resposta apresentada no presente processo.

3-Decorre da jurisprudência do TJUE que, para efeitos de IVA, ocorre a prestação de serviços pela disponibilização dos mesmos pelo prestador, mediante retribuição, independentemente do facto do beneficiário exercer, ou não, o direito à sua execução concreta.

4-Reconhecendo a Requerida, no Relatório de Inspeção,  que a Requente “coloca, também, à disposição dos clientes um serviço  de acompanhamento nutricional”, face à jurisprudência do TJUE, é de concluir que os serviços se consideram prestados com tal disponibilização, independentemente da maior ou menor utilização que cada cliente faça de tal serviço, não se podendo negar o direito à isenção com base na falta de efetivação dos serviços, fundamento no qual a Requerida alicerçou a prática dos atos tributários objeto do processo.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

I – Relatório

 

1. No dia 27.04.2021, a Requerente, A...– Lda.”, sociedade comercial com o numero de identificação fiscal ... e sede na Rua ..., nº ... e ..., ..., requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT)”, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à apreciação da legalidade  dos seguintes atos tributários:

1.            Ato de liquidação de IVA do período 201609T, no valor de 5.354,80 euros (ato de liquidação nº 2020...)

2.            E o correspondente ato de liquidação de juros de IVA do período 201609T, no valor de 711,23 euros.

3.            Ato de liquidação de IVA do período 201703T, no valor de 3.925,95 euros (ato de liquidação nº 2020...)

4.            E o correspondente ato de liquidação de juros de IVA do período 201703T, no valor de 443,57 euros.

5.            Ato de liquidação de IVA do período 201706T, no valor de 3.086,44 euros (ato de liquidação nº 2020...)

6.            E o correspondente ato de liquidação de juros de IVA do período 201706T, no valor de 316,59 euros.

7.            Ato de liquidação de IVA do período 201709T, no valor de 4.261,04 euros (ato de liquidação nº 2020...)

8.            E o correspondente ato de liquidação de juros de IVA do período 201709T, no valor de 395,51 euros.

9.            Ato de liquidação de IVA do período 201712T, no valor de 2.273,51 euros (ato de liquidação nº 2020...)

10.          E o correspondente ato de liquidação de juros de IVA do período 201712T, no valor de 187,47 euros,

11.          E ainda das compensações de IVA aplicadas automaticamente pela AT e que resultaram das correções do procedimento inspetivo, mas que não chegaram a resultar em liquidações adicionais posteriores (201603T; 201606T; e 201612T),

 

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 6.07.2021.

 

3. No essencial e de relevante, refere a Requerente, em suma:

 

a.            Explora um ginásio e desenvolve a sua atividade na área do fitness/ health club e nutrição entendendo que, contrariamente ao que a Requerida considerou, as consultas de nutrição que disponibilizou e faturou aos seus clientes estão isentas de IVA, independentemente de as mesmas  serem ou não utilizadas pelos clientes.

b.            Em relação a esta necessidade de exercício efetivo, sublinha  a AT que  “Mais uma vez reiteramos que na realidade, os pressupostos para a isenção nunca forma postos em causa pela AT, prendendo-se a questão realmente com o facto de parte das prestações de serviços de acompanhamento nutricional não terem sido efetivamente efetuadas.” .

c.            Contudo, estas afirmações resultam da leitura restrita que a própria AT faz dos normativos em questão, sem, em momento algum, explicar ou fundamentar essa mesma leitura na lei.

d.            A decisão proferida pelo TJUE no caso Frenetikexito em nada corrobora a fundamentação apresentada pela AT para proceder às liquidações de IVA já mencionadas,

e.            Nem pode, de forma alguma, ser utilizada para sustentar as pretensões da AT no presente processo, que durante todo este caso não só se baseou noutros pressupostos, como defendeu (a AT) reiteradamente uma posição contrária à do TJUE.

f.             A AT refere-se à “disciplina restrita do nº1, do artigo 9º do CIVA” ao longo do RIT, mas não apresenta nenhum iter lógico ou jurídico que o permita concluir,

g.            A Requerente refere, ainda, ser “ por demais evidente que a base que sustenta todo o RIT peca por falta de fundamentação(…) e é facilmente contraditada pela jurisprudência” (…)”

h.            “O que demonstra uma enorme violação do dever constitucional de fundamentação pela Administração Pública (artigo 268º, nº3, da Constituição da República Portuguesa).”

 

Em sentido diverso, de relevante e no essencial, a Requerida, na resposta, apresentada em 24.09.2021, considera:

a.            Em suma, os SIT entenderam que, serviços como os em apreço não beneficiam da isenção constante da al. 1) do artigo 9.º do CIVA, por serem faturados independentemente de serem efetivamente prestados.

b.            No caso concreto, não alega a Requerente e por consequência não prova, em qual ou quais de entre os milhares de faturas em apreço foram efetivamente prestadas consultas.

c.            Pelo que, tendo esta sido a fundamentação do RIT, é à luz disto que se tem de analisar a legalidade das correções.

 

Todavia, adiante acaba a Requerida também por invocar o ao acórdão do TJUE, proferido no processo C-581/19(caso Frenetikexito), referindo, além do mais, que:

d.            Na interpretação que o TJUE faz da Diretiva, apenas se consideram serviços de saúde humana quando o serviço seja prestado para fins de prevenção, diagnóstico, ou tratamento de uma doença e regeneração da saúde.

e.            Afirmando explicitamente que, na falta de indicação de que o serviço é prestado para fins de prevenção, diagnóstico, tratamento de uma doença e regeneração da saúde, não se verifica a finalidade terapêutica.

f.             Finalidade terapêutica essa (na acepção do TJUE acima referida), cuja verificação é imperativa para a aplicação da isenção.

g.            o TJUE conclui que, se não estivermos perante um fim que seja de diagnóstico, tratamento e na medida da possível cura de uma doença, não se tem por verificada a finalidade terapêutica para efeitos de aplicação da isenção e que, em serviços como os em apreço naqueles autos (idênticos aos dos presentes), por não terem, ou não terem necessariamente aquela finalidade, não podem os serviços beneficiar da isenção, porquanto a isenção é de interpretação restrita.

h.            Face a todo o exposto, importa pois concluir que os SIT, atento o acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-581/19, aplicaram corretamente o Direito da União Europeia, sendo as correções em apreço consentâneas com o quadro jurídico vigente atenta a interpretação do TJUE vertida naquele aresto, com a consequente improcedência do Pedido Arbitral.

i.             Sobre a falta de fundamentação sempre se dirá que, com o devido respeito por entendimento diverso, não tem qualquer sustentação a tese da Requerente relativamente à falta de fundamentação dos atos impugnados.

j.             Em todo o caso, resulta dos artigos 106 e ss. do PPA que a própria Requerente, bem entendeu ter sido esta a fundamentação do RIT.

 

 

4. Em 9.12.2021 a Requerida juntou aos autos o processo administrativo.

Por despacho arbitral de 20.12.2021 foi prorrogado o prazo de decisão arbitral por dois meses nos termos do art. 21º, nº 2, do RJAT.

 

5. Verificando-se a inexistência de  qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, também por despacho de 20.12.2021, foi dispensada  a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.

Foi, ainda, determinada a realização de alegações, que foram apresentadas e nas quais ambas as partes mantiveram as suas posições.

 

6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

7. Cumpre apreciar   a legalidade das liquidações objeto do processo.

 

II – A matéria de facto relevante

 

8. Consideram-se provados os seguintes factos:

8.1. A Requerente foi sujeito a procedimento inspetivo externo, de âmbito parcial, aos exercícios de 2016 e 2017, constando do respetivo relatório final, que constitui fundamento dos atos de liquidação objeto do processo, além do mais, o seguinte:

 

(…).

 

(…)

 

8.2.Na sequência do relatório inspetivo a Requerida efetuou as liquidações objeto do presente processo.

8.3.Em 8.07.2020 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de liquidação em causa.

8.4.A reclamação graciosa foi indeferida por despacho da Senhora Diretora de Finanças Adjunta da Direção de Finanças de Aveiro, por delegação do Diretor de Finanças, decisão notificada ao mandatário da Requerente em 16.04.2021.

8.5.Na informação que serviu de base ao projeto de decisão, que  faz parte da   fundamentação da  decisão de indeferimento, refere-se o seguinte:

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados

 

9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo administrativo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes.

 

-III- O Direito aplicável

 

10. As isenções de interesse geral na área da saúde estão contempladas nas alíneas b) e c) do n.º 1, do artigo 132.º, da Diretiva IVA, nos seguintes termos:

 

1. Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:

a) (…)

b) A hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos;

c) As prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado–Membro em causa;

(…).

 

A redação  do  artigo 9.°, 1), do CIVA,  à data dos factos, era a seguinte:

“Estão isentas do imposto:

1) As prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas;

(…)”

 

Pode ler-se no acórdão do Tribunal de Justiça (terceira secção), de 4 de março de 2021 , processo C 581/19 , o seguinte:

“30      A este respeito, é pacífico que um serviço de acompanhamento nutricional prestado no âmbito de uma instituição desportiva pode, a médio e a longo prazo ou considerado em termos amplos, ser um instrumento de prevenção de certas doenças, como a obesidade. Todavia, cumpre notar que o mesmo se aplica à própria prática desportiva, cujo papel é reconhecido, a título de exemplo, para limitar a ocorrência de doenças cardiovasculares. Tal serviço apresenta, portanto, em princípio, uma finalidade sanitária, mas não, ou não necessariamente, uma finalidade terapêutica.

31      Por conseguinte, na falta de indicação de que é prestado para fins de prevenção, diagnóstico, tratamento de uma doença e regeneração da saúde, e, portanto, com uma finalidade terapêutica, na aceção da jurisprudência referida nos n.os 24 e 26 do presente acórdão, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, um serviço de acompanhamento nutricional, como o prestado no processo principal, não preenche o critério da atividade de interesse geral comum a todas as isenções previstas no artigo 132.° da Diretiva 2006/112 e, por conseguinte, não é abrangido pela isenção prevista no artigo 132.°, n.° 1, alínea c), desta diretiva, de modo que está, em princípio, sujeito a IVA.

50      Tendo em conta estas considerações, há que responder às questões submetidas que a Diretiva 2006/112 deve ser interpretada no sentido de que, sob reserva de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, um serviço de acompanhamento nutricional prestado por um profissional certificado e habilitado em instituições desportivas, e eventualmente no âmbito de planos que incluem igualmente serviços de manutenção e bem estar físico, constitui uma prestação de serviços distinta e independente e não é suscetível de ser abrangida pela isenção prevista no artigo 132.°, n.° 1, alínea c), desta diretiva.”

Na linha deste acórdão, consta, também, do acórdão do Supremo Tribunal administrativo de 20.10.2021, proferido no processo 77/20.2BALSB, o seguinte:

“Ora (cfr. decidido no recente Acórdão do mesmo Tribunal de 4 de março de 2021, Frenetikexito, C-581/19, n.º 30), o serviço de acompanhamento nutricional prestado no âmbito de uma instituição desportiva não é, em princípio, suscetível de ser considerado uma prestação de serviços de assistência na saúde para os efeitos do disposto no artigo 132.º, n.º 1, alínea c), da Diretiva IVA.

O que sucede precisamente por lhe faltar a finalidade terapêutica: embora possa ser considerado um meio de prevenção de certas doenças a médio e a longo prazo, não é prestado para fins de prevenção, diagnóstico, tratamento de uma doença e regeneração da saúde.

Só assim não seria se houvesse a indicação de que era prestado para estes fins. O que, no caso nem importaria considerar ou apurar. Porque nunca foi sequer alegado.

Na verdade, a Requerente (ora Recorrente) tinha efetivamente alegado que os serviços de nutrição tinham finalidades terapêuticas, não porque tivessem em vista a prevenção, o diagnóstico ou o tratamento de alguma doença em particular, mas «como forma complementar de proporcionar aos seus utentes um melhor desempenho físico em melhoria das condições de saúde em geral» (artigo 62.º do douto requerimento inicial) e porque a adoção de hábitos alimentares saudáveis promovia a saúde em geral e tinha impacto na prevenção de doenças crónicas.

O que, de alguma forma, até foi confirmado na decisão arbitral recorrida. Cfr. referido no ponto ee) dos factos provados, foi apurado que a disponibilização dos serviços de nutrição não prevenia nem respondia a nenhum problema de saúde dos utentes em particular, mas aos objetivos que os clientes da Requerente tinham ao aderir aos próprios serviços de ginásio, em especial a perda de peso.

Pelo que (seguindo de perto a terminologia do acórdão do Tribunal de Justiça que citamos por último) os serviços de acompanhamento nutricional da Requerente (ora Recorrente) não tinham uma finalidade terapêutica, mas uma finalidade sanitária.

E, assim sendo, não poderiam beneficiar da isenção a que alude o artigo 9.º, alínea 1) do CIVA.”

 

No caso em apreço, a Requerida na fundamentação dos atos tributários, não invocou a ausência de finalidade terapêutica dos serviços de acompanhamento nutricional da Requerente. Diferentemente, aceita expressamente que estão reunidos os pressupostos da isenção em causa, desde que os serviços sejam efetivamente prestados e não meramente disponibilizados. Nesta linha, considerando que a Requerente apenas fez prova da realização efetiva de parte das consultas em causa, aceitou apenas a isenção para os serviços cuja efetiva realização considerou provada, negando-a a serviços que não considerou provados, mas meramente disponibilizados.

 

Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1/06/2015, proferido no proc. 58/11, o seguinte:

“Sob pena de violação do princípio da separação de poderes e assumir-se como órgão de administração activa dos impostos, o tribunal não pode decidir sobre a manutenção de actos que deveriam ser anulados com base em fundamentação diferente da utilizada pela administração tributária.”

 

Na mesma linha, considera-se na decisão arbitral de 23/05/2016, proferida no processo 731/2015-T   :

 

“(…)é irrelevante a fundamentação a posteriori, tendo os actos cuja legalidade é questionada de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos”

 

À luz deste entendimento, que se acompanha, não pode este tribunal decidir sobre a manutenção dos atos tributários objeto do processo com base em fundamentação diferente da invocada  pela administração tributária ao praticá-los. Em concreto, não é possível decidir pela ilegalidade das isenções em causa com base na ausência de finalidade terapêutica dos serviços de nutrição prestados pela Requerente, apenas invocada pela Requerida na resposta apresentada no presente processo, tanto mais que o citado  acórdão do TJUE refere: “A este respeito, é pacífico que um serviço de acompanhamento nutricional prestado no âmbito de uma instituição desportiva (…) apresenta, portanto, em princípio, uma finalidade sanitária, mas não, ou não necessariamente, uma finalidade terapêutica.”, no que é seguido pelo mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que ressalva a hipótese de haver “a indicação de que era prestado para estes fins. O que, no caso nem importaria considerar ou apurar. Porque nunca foi sequer alegado.”

Ora, no caso, não tendo a Requerida no Relatório inspetivo (e até mesmo na decisão da reclamação graciosa), invocado a falta de finalidade terapêutica dos serviços de nutrição prestados pela Requerente para negar o direito à isenção, antes tendo reconhecido o direito à isenção com referência às consultas que considerou realizadas, não cabia à Requerente, no exercício dos seus direitos procedimentais e processuais, considerar tal questão.

 

A legalidade das liquidações tem de ser aferida face à sua fundamentação que, no caso, consiste na tese de que os serviços de acompanhamento nutricional da Requerente disponibilizados aos seus clientes, mas não  efetivamente utilizados por estes, não estão isentos de imposto. É esta a questão que cumpre ao tribunal solucionar.

 

Vejamos então.

 

Consta do acórdão do Tribunal de Justiça (quinta secção) de 21 de março de 2002, no processo C-174/00, em 21 de Março de 2002  que:

“3) O artigo 2.°, n.° 1, da Sexta Directiva 77/388 deve ser interpretado no sentido de que as quotizações anuais dos membros de uma associação desportiva, como a que está em causa no processo principal, são susceptíveis de constituir a contrapartida pelos serviços que esta presta, mesmo quando os membros que não utilizam ou não utilizam regularmente as instalações da associação são, ainda assim, obrigados a pagar a sua quotização anual.”

 

Na mesma linha consta do acórdão do Tribunal de Justiça (sexta secção) de 27 de março de 2014, no processo C 151/13, o seguinte:

 

“36      Por último, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando, como no processo principal, a prestação de serviços em causa se caracteriza, designadamente, pela disponibilidade permanente do prestador de serviços em fornecer, no momento oportuno, as prestações de cuidados de saúde de que os residentes precisam, não é necessário, para reconhecer a existência de um nexo direto entre a referida prestação e a contrapartida obtida, demonstrar que um pagamento se refere a uma prestação de cuidados de saúde individualizada e pontual efetuada a pedido de um residente (v., neste sentido, acórdão Kennemer Golf, EU:C:2002:200, n.° 40).”

 

Ainda neste sentido, vai o acórdão do Tribunal De Justiça (Primeira Secção) 23 de dezembro de 2015,  processos apensos C 250/14 e C 289/14, onde se pode ler:

         “28.Por conseguinte, a contraprestação do preço pago quando da compra do bilhete é constituída pelo direito que dele retira o passageiro de beneficiar da execução das obrigações decorrentes do contrato de transporte, independentemente do facto de o passageiro exercer esse direito, sendo que a companhia aérea realiza a prestação a partir do momento em que coloca o passageiro em condições de beneficiar dessas prestações.”

 

Reconhecendo a Requerida, no Relatório de Inspeção, que a Requente “coloca, também, à disposição dos clientes um serviço de acompanhamento nutricional”, face à jurisprudência do TJUE supra referida, é de concluir que os serviços se consideram prestados com tal disponibilização, independentemente da maior ou menor utilização que cada cliente faça de tal serviço.

No caso em apreço, não se pode, pois, negar o direito à isenção com base na falta de efetivação dos serviços, fundamento na qual a Requerida alicerçou a práticas dos atos tributários em causa.

É certo que no relatório a Requerida também refere que a Requerente:

 “(…) pelo valor que atribui às duas componentes do rédito (isento e tributado) pode constatar-se que a atividade do ginásio, tendo por base as declarações, é deficitária, os valores decorrentes das vendas não suportam os gastos. Já a atividade de nutrição é altamente lucrativa.

Este cenário declarativo, não reflete, obviamente, a realidade operacional da empresa, muito menos a verdade material. Ele visa apenas por uma via de mecanismo de formação de preço, a diminuição das bases tributáveis em imposto sobre o valor acrescentado (…)”

Só que, estas afirmações da Requerida, indiciadoras dum juízo sobre a conduta do contribuinte como consubstanciadora de abuso, não são acompanhadas da fundamentação jurídica necessária à eventual aplicação da doutrina do abuso de direito em sede de IVA  que, deste modo, não faz parte da fundamentação. Consequentemente, é questão que o tribunal não pode  considerar para a apreciação da legalidade dos atos em causa.

Assim, os atos de liquidação sub judice,  face à sua fundamentação, não podem deixar de ser anulados por vício de violação de lei.

 

A Requerente refere, ainda, ser “ por demais evidente que a base que sustenta todo o RIT peca por falta de fundamentação(…) e é facilmente contraditada pela jurisprudência (…).

 

“O que demonstra uma enorme violação do dever constitucional de fundamentação pela Administração Pública (artigo 268º, nº3, da Constituição da República Portuguesa).”

 

Mas acaba por concluir que “Com base em tudo o exposto, estamos perante erro de pressupostos de direito, uma vez que a Autoridade Tributária fez uma errada interpretação e aplicação das normas legais, nomeadamente na questão de isentar, ou não, o serviço da nutrição prestado em ginásio, logo errando na qualificação e quantificação de rendimentos tributáveis.”

 

E referindo expressamente no pedido que “requer a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade dos atos identificados, com base em erros de pressupostos de direito dos atos de liquidação, com a consequente declaração da ilegalidade dos atos sindicados”.

 

Atenta a conclusão a que a Requerente chegou e ao que consta do pedido é, no mínimo, duvidoso, que a Requerente tenha invocado validamente o vício de falta de fundamentação.

 

Ainda assim, sempre se dirá que não se verifica este vício.

 

Com efeito, como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-09-2011, processo 0494/11 :

“O facto de, porventura, a valia substancial dos fundamentos aduzidos nesse discurso fundamentador não ser suficiente para retirar a conclusão que aí se retirou, isto é, ser insuficiente ou inapta, do ponto de vista legal, para suportar a correcção efectuada, é matéria que não contende com a fundamentação formal do acto, mas sim com a fundamentação substancial, que pode levar à procedência da impugnação por força dos vícios de violação de lei que foram invocados.

 

Com efeito, não deve confundir-se a suficiência da fundamentação com a exactidão ou a validade substancial dos fundamentos invocados. É que, como adverte SÉRVULO CORREIA (In “Noções de Direito Administrativo”, I, pág. 403.), «a fundamentação pode ser inexacta e ser suficiente, por permitir entender quais os pressupostos de facto e de direito considerados pelo autor do acto. Deste modo, a inexactidão dos fundamentos não conduz ao vício de forma por falta de fundamentação. Ela pode sim revelar a existência de outros vícios, como o vício de violação de lei por erro de interpretação ou aplicação de norma, ou (...) por erro nos pressupostos de facto».”

 

 

Ora, são bem   percetíveis os motivos que levaram a Requerida a não aceitar as isenções em causa e a praticar as liquidações objeto do processo, resultando, também, claramente do pedido de pronuncia arbitral que as razões da Requerida foram perfeitamente entendidas pela Requerente.

A questão da improcedência da argumentação consubstanciada na fundamentação do ato não afeta a validade formal da fundamentação mas a valia substancial da mesma, o que implica a anulação do ato por vício de violação de lei, conforme supra exposto.

Assim sendo, sempre improcederá o vício de falta de fundamentação.

 

11.A Requerente inclui no intróito da petição, relativamente aos atos cuja apreciação da legalidade pretende, o seguinte: “E ainda das compensações de IVA aplicadas automaticamente pela AT e que resultaram das correções do procedimento inspetivo, mas que não chegaram a resultar em liquidações adicionais posteriores (201603T; 201606T; e 201612T)”

Acontece que, todas as correções que emergem do relatório de inspeção tributária estão refletidas nas liquidações cuja anulação se peticiona (e cujo montante global corresponde ao valor da ação indicado pela Requerente), como se constata do confronto das liquidações  com as correções propostas no relatório de inspeção tributária.

Nesta medida,  nada se determina relativamente a tais atos,  sem prejuízo do dever que para a Requerida emerge, em função dos efeitos da decisão arbitral de, se for caso disso,  “Rever os atos tributário que se encontrem numa relação de (…) dependência  com os atos tributários objeto da decisão arbitral (…) alterando-os ou substituindo-os, total ou parcialmente” (art. 24º, nº 1, al. c), do RJAT).

 

 

-IV- Decisão

 

 

Assim, decide o Tribunal arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação impugnados, por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito.

 

Valor da ação: € 20.956,11 euros (vinte mil novecentos e cinquenta e seis euros e onze cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas pela Requerida, no valor de 1 224.00 €, nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 15.02.2022.

 

O Árbitro

Marcolino Pisão Pedreiro