Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 25/2019-T
Data da decisão: 2019-09-19  IMT  
Valor do pedido: € 39.000,00
Tema: IMT – Isenção; artigo 270.º, n.º 2, do CIRE; insolvência de pessoa singular.
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DECISÃO ARBITRAL

 

                I. RELATÓRIO

1. No dia 14 de janeiro de 2019, A..., NIF..., residente na Rua ..., ..., ..., Coimbra, (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à:

- Declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de IMT n.º..., datada de 02.01.2018, a que corresponde o DUC n.º..., no montante de € 39.000,00;

- Declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018...; e

- Restituição do montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data do pagamento até à data do seu integral reembolso.

 

O Requerente juntou 4 (quatro) documentos e arrolou 3 (três) testemunhas, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

 

2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), o Requerente faz assentar a impugnação dos atos tributários controvertidos, sumariamente, no seguinte:

 

No âmbito do processo de insolvência de duas pessoas singulares (marido e mulher), foi-lhe adjudicado um prédio urbano, composto por uma moradia unifamiliar, destinado a habitação.

Consta do respetivo auto de adjudicação, lavrado pelo Administrador de Insolvência, que a transmissão daquele imóvel “encontra-se abrangida pelo disposto nos artigos 269.º e 270.º, ambos do CIRE, relativamente à isenção do IMT e Selo”; por esse motivo, não foi, então, liquidado Imposto de Selo e IMT.

O Requerente entende que a isenção criada pelo artigo 270.º, n.º 2, do CIRE teve como finalidade facilitar a realização das operações jurídicas e financeiras, por meio da anulação do impacto dos encargos fiscais inerentes a tais tributações, independentemente de se tratar do património de pessoa singular ou coletiva, ativo de uma empresa ou um bem pessoal.  

Ademais, a ratio da norma impõe que a mesma seja interpretada no sentido de abranger as alienações de património no âmbito de insolvência de pessoas singulares, não empresários ou titulares de empresas.

Ainda que assim não se entenda, diz o Requerente que, atenta a vontade do legislador, vertida no preâmbulo do CIRE, no preâmbulo do CPEREF e na lei de autorização legislativa, sempre se imporia a interpretação extensiva do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE no sentido de integrar na previsão da norma as transmissões cedidas a terceiros.

Circunstância que, segundo o Requerente, representa uma contundente violação do princípio da igualdade, na sua vertente de violação do arbítrio, nos termos do artigo 13.º da CRP e do artigo 7.º, n.º 3, da LGT.  

Propugna, ainda, o Requerente que a norma do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, quando interpretada no sentido de não abranger os bens próprios do insolvente, no âmbito de um processo de insolvência, é inconstitucional por violação (além do princípio da igualdade) dos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica.

Mais alega o Requerente que a insolvência de pessoa singular em causa decorre da circunstância de o insolvente prosseguir a sua atividade empresarial e profissional por conta própria, sujeita a um regime especialíssimo no âmbito do CIRE; assim, a atividade desenvolvida pelo insolvente, porquanto com fito empresarial, sempre se integraria na letra e espirito dos artigos 5.º e 6.º do CIRE, pelo que os artigos 269.º e 270.º, n.º 2, do CIRE têm plena aplicabilidade à transmissão do imóvel em apreço. 

Por último, uma vez que pagou o montante de imposto liquidado, o Requerente peticiona o respetivo reembolso, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 21 de janeiro de 2019.

               

4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 06 de março de 2019, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 26 de março de 2019.

 

5. No dia 06 de maio de 2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pelo Requerente e concluiu pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

 

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, tendo apenas procedido à junção aos autos do respetivo processo administrativo (doravante, PA).

 

6. A Requerida alicerçou a sua Resposta, essencialmente, nos seguintes argumentos:

 

A isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, abrange todos os atos integrados no âmbito de planos de insolvência, ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com a reserva de o insolvente ser uma empresa ou estabelecimento.

Segundo a AT, o entendimento jurisprudencial tem sido uniforme no sentido de que terá de tratar-se de bens imóveis que integrem o património de uma empresa e não os bens imóveis de pessoas singulares, com a única justificação de fazerem parte de um processo de insolvência.

A Requerida salienta, aliás, que caso o legislador tivesse pretendido alterar o sentido da lei, poderia tê-lo expressamente concretizado no artigo 234.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que alterou a referida norma do CIRE, o que não fez; tal significa, segundo a AT, que a o legislador não pretendeu atribuir mais isenções do que a que foi incluída na atual redação da norma em apreço.

Por outro lado, a AT afirma que o facto de o insolvente marido ser arquiteto não é suficiente para provar que o referenciado imóvel estava afeto à atividade empresarial, uma vez que o imóvel é destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, pelo que não pertencia a massa insolvente de empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de recuperação de empresas. No caso concreto, sustenta a AT que estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de atividade empresarial alguma, mas que era propriedade de uma pessoa singular com destino a habitação; consequentemente, não estão reunidos os pressupostos legalmente previstos para a isenção de IMT em razão da sua transmissão ter sido efetuada num processo de insolvência de pessoa singular.

A AT defende, assim, que uma interpretação diferente da por ela propugnada, ou seja, no sentido de reconhecer isenção de IMT nas aquisições efetuadas a pessoas singulares insolventes do mesmo modo que nos processos de insolvência de empresas, não tem suporte legal e constitucional.

Por último, a Requerida afirma que, uma vez que não se verifica qualquer erro por parte dos serviços na aplicação da lei aos factos em causa, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

7. Por despacho de 23 de maio de 2019, foram as Partes notificadas da designação da data para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e para a inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente.

8. No dia 02 de julho de 2019, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT – na qual foi tratado o que consta da respetiva ata que aqui se dá por inteiramente reproduzida, tendo sido, então, fixado o dia 26 de setembro de 2019 como data limite para a prolação da decisão arbitral –, a qual prosseguiu no dia 03 de setembro de 2019, com a produção de prova testemunhal, tendo sido inquirida a testemunha B... .

 

9. As partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.    

***

                II. SANEAMENTO

10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO 

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

11. Consideram-se provados os seguintes factos:

a) Na Comarca de …, …, Instância Central, Secção de Comércio, Juiz ..., foi instaurado em 23.11.2015 e correu termos, sob o n.º .../15...T…, o processo de insolvência de pessoa singular (apresentação) de B..., NIF ..., e mulher C..., NIF..., no qual foi proferida sentença de insolvência, transitada em julgado em 04.01.2016. [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]

b) O Insolvente marido era sócio e gerente de quatro sociedades comerciais, todas com sede em Coimbra, tendo por objeto as atividades de arquitetura, de engenharia, de design de interiores e de promoção imobiliária. [cf. depoimento da testemunha B...] 

c) Os rendimentos do Insolvente marido eram unicamente provenientes da atividade profissional que desenvolvia nas referenciadas sociedades comerciais. [cf. depoimento da testemunha B...]  

d) A situação de insolvência do casal foi motivada, essencialmente, pelo total colapso comercial e financeiro das mencionadas sociedades comerciais. [cf. depoimento da testemunha B...]    

e) Em conformidade com a informação cadastral disponível na plataforma informática da AT, o Insolvente marido encontra-se inscrito pela atividade de arquiteto, enquadrado para efeitos de IRS no regime simplificado de tributação e para efeitos de IVA no regime normal trimestral, e a Insolvente mulher não exerce qualquer atividade económica. [cf. PA]

f) No âmbito do sobredito processo de insolvência, estava integrado na respetiva massa insolvente o seguinte bem imóvel: “moradia unifamiliar de rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiro andares e logradouro, sita na Rua ..., ..., ..., descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob a ficha... da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo ... da dita freguesia”. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]

g) O referido imóvel encontra-se assim descrito na respetiva matriz predial urbana [cf. PA]:

 

h) Aquele imóvel foi projetado pelo Insolvente marido, tendo em vista publicitar o seu estilo arquitetónico, sendo utilizado pelos Insolventes e respetivo agregado familiar como casa de morada da família – isto é, era a sua residência habitual, o centro da sua vida familiar e o local privilegiado de convívio com os demais familiares e amigos –, dispondo ainda de espaço de escritório para trabalhar. [cf. depoimento da testemunha B...]  

i) As sociedades comerciais referenciadas no facto provado b) não tinham sede, nem escritórios no predito imóvel. [cf. depoimento da testemunha B...]   

j) Em 15.12.2016, no âmbito do aludido processo de insolvência, foi adjudicado ao Requerente, pelo preço de € 650.000,00, o sobredito imóvel, tendo ficado consignado no respetivo Auto de Adjudicação que “[a] transmissão a que se refere a presente adjudicação encontra-se abrangida pelo disposto nos artigos 269.º e 270.º, ambos do CIRE, relativamente à isenção do IMT e Selo”. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]      

k) Na sequência da aludida adjudicação, em 03.01.2018 o Requerente adquiriu por escritura pública de compra e venda o referido imóvel. [cf. PA]

l) Tendo em vista essa mesma aquisição, no dia 02.01.2018 foi emitida a liquidação de IMT n.º..., no valor de € 39.000,00, que o Requerente pagou nessa mesma data, através do DUC n.º... . [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA e PA] 

m) Em 28.03.2018, o Requerente deduziu reclamação graciosa contra a referida liquidação de IMT – autuada, sob o n.º ...2018..., no Serviço de Finanças de Coimbra-... e tramitada na Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Coimbra –, nos termos e com os fundamentos constantes do respetivo requerimento inicial que aqui se dá por inteiramente reproduzido. [cf. PA]

n) No âmbito daquele procedimento de reclamação graciosa foi elaborado o respetivo projeto de decisão que aqui se dá por inteiramente reproduzido, no qual foi proposto o indeferimento do pedido com a fundamentação vertida na Informação n.º .../2018, de 02.07.2018, da qual destacamos os seguintes segmentos [cf. PA]:

“III – Análise do Pedido

(…)

Direito Aplicável

O n.º 2 do artigo 270.º do CIRE estabelece um benefício fiscal de isenção de IMT quanto “[a]os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimento desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.

Face ao no entendimento veiculado pela circular 4/2017, de 10 de fevereiro, os atos de venda, permuta ou cessão, de forma isolada, de imóveis da empresa ou de estabelecimento desta integrados no âmbito de planos de insolvência, estão isentos de IMT. 

Analisados os documentos que instruem os autos, aliados à informação disponível na plataforma informática, atendendo à legislação aplicável, estamos perante a aquisição de um imóvel que é um bem próprio dos insolventes, ou seja, embora tenha ocorrido no âmbito de um processo de insolvência não é um ativo de uma empresa mas sim um bem pessoal.

IV – Conclusão

Face ao exposto, não se encontrando reunidos os pressupostos a que se refere o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, afigura-se-nos que não poderá ser atendida a pretensão do reclamante, devendo o pedido ser indeferido.”

o) O Requerente foi notificado, por ofício datado de 27.07.2018, remetido via CTT, daquele projeto de decisão e para, querendo, exercer o respetivo direito de audição, o que o Requerente não fez. [cf. PA]       

p) Em 02.10.2018, o Chefe da Divisão de Justiça Tributária, por delegação do Diretor de Finanças de Coimbra, proferiu despacho tornando definitivo o projeto de decisão e, com a fundamentação referida no facto provado n), indeferiu a reclamação graciosa, tendo o Requerente sido notificado dessa decisão final, por ofício datado de 08.10.2018, remetido via CTT. [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA e PA]

q) Em 14.01.2019, o Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

12. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.

 

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

13. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e no acervo probatório de natureza documental (incluindo o processo administrativo) e testemunhal carreado para os autos, o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz de regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

Relativamente ao depoimento prestado pela testemunha B...– interveniente, enquanto Insolvente, no processo de insolvência referenciado nestes autos, tendo sido a única testemunha inquirida, pois o Requerente prescindiu das demais que arrolou –, importa começar por salientar que depôs de forma clara, objetiva e isenta sobre os factos aos quais foi inquirida, com conhecimento direto dos mesmos, o que resultou revelado e comprovado pela forma circunstanciada como os explicitou, pelo que o seu depoimento mereceu total credibilidade.

 

O depoimento desta testemunha teve, essencialmente, por referência o período que antecedeu a apresentação à insolvência, tendo explicado quer aquela que era a sua atividade profissional e os motivos subjacentes à situação de insolvência – de que resultaram os factos provados b), c) e d) –, quer a utilização que era dada ao imóvel em apreço nestes autos – de que resultaram os factos provados h) e i). 

 

III.2. DE DIREITO

§1. O THEMA DECIDENDUM

14. A questão de mérito submetida à apreciação deste Tribunal consiste, nuclearmente, em determinar se a aquisição do sobredito imóvel pelo Requerente, no âmbito do mencionado processo de insolvência, está, ou não, abrangida pela isenção de IMT estatuída no artigo 270.º, n.º 2, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE).     

 

O Tribunal é ainda chamado a pronunciar-se sobre os pedidos de reembolso do montante de imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

§2. A ISENÇÃO DE IMT ESTATUÍDA NO ARTIGO 270.º, N.º 2, DO CIRE            

 

§2.1. EVOLUÇÃO DO REGIME

15. Até alcançar os seus atuais contornos, o regime da isenção de IMT em apreço conheceu uma evolução legislativa de que, seguidamente, daremos conta.

 

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril, que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) – compêndio legal que foi objeto de diversas alterações, as últimas das quais introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março –, foi vertido o seguinte:

“10. Além de um tratamento bastante favorecido dos dois processos abrangidos pelo diploma no domínio das custas judiciais, adopta-se ainda neste decreto-lei um conjunto de incentivos de natureza fiscal, através dos quais se procura especialmente evitar penalizações indevidas ou graves inconvenientes para as operações jurídicas, económicas ou financeiras em que pode desdobrar-se o processo de recuperação.

Afastaram-se com essa intenção alguns encargos de carácter fiscal ou parafiscal relacionados com os negócios jurídicos susceptíveis de constituírem o meio de recuperação aprovado pelos credores, tendo nomeadamente em vista o imposto do selo, a contribuição autárquica, o imposto municipal da sisa e os próprios emolumentos devidos pelos actos.

Por outro lado, preveniu-se a hipótese de serem indevidamente qualificados como mais-valias os benefícios patrimoniais auferidos pela empresa devedora no processo de recuperação e assegurou-se a possibilidade de serem registados como perdas efectivas os sacrifícios de carácter patrimonial suportados pelos credores em prol da recuperação da empresa, dentro do mesmo contexto processual.”

 

No que a esta decisão interessa, importa atentar no artigo 121.º do CPEREF que estatuía o seguinte:

Artigo 121.º

Benefício relativo ao imposto municipal da sisa

1 - Estão isentas de imposto municipal da sisa as transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer das providências de recuperação da empresa, que se destinem:

a) À constituição da sociedade, nos termos do artigo 80.º, e à realização do seu capital;

b) À realização do aumento do capital da sociedade nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 88.º e do artigo 90.º, bem como do n.º 1 do artigo 100.º

2 - Estão ainda isentas de imposto municipal da sisa as transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer das providências de recuperação da empresa, que decorram:

a) Da cedência a terceiros ou da alienação de participações representativas do capital da sociedade, previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 88.º e no artigo 91.º, bem como nos n.os 1 e 2 do artigo 100.º;

b) Da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores, previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 88.º e no artigo 93.º, bem como no n.º 1 do artigo 100.º;

c) Da autonomização jurídica de estabelecimentos comerciais ou industriais, da venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como dos arrendamentos a longo prazo, previstos, respectivamente, nas alíneas e), f) e g) do n.º 1 do artigo 101.º

 

A Lei n.º 39/2003, de 22 de agosto, autorizou o Governo a legislar sobre a insolvência de pessoas singulares e coletivas, tendo mais concretamente autorizado o Governo a aprovar o CIRE, revogando o CPEREF (artigo 1.º, n.º 1). No CIRE ficou o Governo autorizado a legislar, além do mais, sobre os benefícios fiscais no âmbito do processo de insolvência (artigo 1.º, n.º 3, alínea h)); a este propósito, foi consignado o seguinte no artigo 9.º do mesmo diploma legal, na parte que aqui importa considerar:

Artigo 9.º

Benefícios fiscais no âmbito do processo de insolvência

(…)

3 - Fica, finalmente, o Governo autorizado a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente:

a) As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital;

b) As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;

c) As que decorram da cedência a terceiros ou da alienação de participações representativas do capital da sociedade, da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores, da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimentos ou elementos dos seus activos, bem como dos arrendamentos a longo prazo.

 

No uso da referenciada autorização legislativa, foi aprovado o CIRE e revogado o CPEREF, através do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em cujo preambulo é, além do mais, referido o seguinte:

“49 - Mantêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais, bem como à indiciação de infracção penal.”

 

16. O CIRE foi objeto de sucessivas alterações, as últimas das quais introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2019, de 28 de junho, sendo que na sua redação primitiva estatuía o seguinte no respetivo artigo 270.º:

Artigo 270.º

Benefício relativo ao imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis

1 - Estão isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos:

a) As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital;

b) As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;

c) As que decorram da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores.

2 - Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

 

À data dos factos e atualmente, fruto da alteração introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, é a seguinte a redação desta norma legal:

Artigo 270.º

Benefício relativo ao imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis

1 - Estão isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação:

a) As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital;

b) As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;

c) As que decorram da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores.

2 - Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

 

 

                §2.2. A INTERPRETAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA ISENÇÃO

                17. A interpretação e delimitação do âmbito de aplicação desta isenção de IMT têm sido objeto de querelas jurisprudenciais, essencialmente em torno de duas questões centrais a que, seguidamente, aludiremos.

 

                18. Uma primeira questão reside em descortinar se esta isenção se aplica apenas na transmissão da própria empresa insolvente ou de um seu estabelecimento, ou se se aplica também na transmissão isolada de ativos imobiliários dessa empresa.

               

A este propósito, o STA, na senda de uma orientação jurisprudencial consolidada, proferiu o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2017, de 29 de março de 2017, no processo n.º 1521/15, no seguinte sentido: “a isenção de IMT prevista pelo n.º 2 do artigo 270.º do CIRE aplica-se, não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas também às vendas e permutas de imóveis, enquanto elementos do seu ativo, desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.”

               

Como se dá conta neste aresto, esta questão havia já sido “exaustiva e repetidamente tratada pelo Supremo Tribunal Administrativo em inúmeros acórdãos, como se pode ver pela leitura, entre outros, dos arestos da Secção de Contencioso Tributário proferidos nos seguintes processos: n.º 01508/12, de 05-11-2014, n.º 01085/13, de 17-12-2014, n.º 0575/15, de 18-11-2015, n.º 0968/13, de 11-11-2015, n.º 01345/15, de 16-12-2015, n.º 01067/15, de 18-11-2015, n.º 01350/15, de 20-01-2016, n.º 0788/14, de 16-03-2016, n.º 0788/14, de 25-01-2017, 01159/16, de 01-02-2017, recurso n.º 0724/16, de 15-02-2017, no n.º 0793/16, todos no sentido de que a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE se aplica não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas, também, às vendas e permutas de imóveis, enquanto elementos do ativo de sociedade insolvente, desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

O que levou a Administração Tributária, numa louvável e importante iniciativa inaugural de dar cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 68.º -A da Lei Geral Tributária, a publicar, em 10/02/2017, a Circular n.º 4/2017, através da qual reviu a sua anterior interpretação no que toca a esta isenção de IMT, adotando uma nova interpretação que reflete a jurisprudência reiterada e uniforme do Supremo Tribunal Administrativo.

Com efeito, é o seguinte o teor da Circular n.º 4/2017, emitida em face do Despacho do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais n.º 14/2017 -XXI, de 26/01/2017:

«1 - Pelo Despacho n.º 14/2017 -XXI, de 26 de janeiro, do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, com fundamento na recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA), bem como no disposto no n.º 4 do artigo 68.º -A, da lei geral tributária (LGT), que prevê que a administração tributária deve rever as suas posições face à jurisprudência dos tribunais superiores, foi determinado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) que procedesse à revisão da interpretação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, expresso no ponto III do anexo à Circular n.º 10/2015, na parte relativa à isenção de IMT na aquisição de imóveis.

2 - Deste modo, os dois primeiros parágrafos do ponto III do “GUIA PARA O CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES FISCAIS DE PESSOAS COLECTIVAS EM SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA”, anexo à Circular n.º 10/2015, de 9 de setembro, são substituídos pelo seguinte entendimento:

«A aplicação dos benefícios fiscais previstos no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não depende da coisa vendida, permutada ou cedida abranger a universalidade da empresa insolvente ou um seu estabelecimento.

Assim, os atos de venda, permuta ou cessão, de forma isolada, de imóveis da empresa ou de estabelecimentos desta estão isentos de IMT, desde que integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.»”

               

Como é ainda referido neste aresto, a fundamentação jurídica que sustenta a posição que, reiterada e uniformemente, vinha sendo sufragada pelo STA é a seguinte (reprodução do acórdão do STA de 16/03/2016, proferido no processo n.º 0788/14):

                “«A sentença do TAF de Aveiro, perante a questão que lhe era proposta e que se prendia com a interpretação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, no que respeita ao âmbito da isenção aí consignada, concluiu, sufragando a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo — Acórdão de 30.05.2012, no processo n.º 0949/11 (in www.dgsi.pt) – que «ao contrário da interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE defendido pela Administração Tributária, no sentido do benefício fiscal desta norma apenas abranger a transmissão onerosa de bens que integram a universalidade de empresa ou estabelecimento vendido, permutado ou cedido no âmbito do plano de insolvência, conclui-se, como no acórdão supra transcrito, que o mais adequado ao sentido e alcance da lei de autorização legislativa para aprovação do CIRE que integram o património da empresa insolvente».

No prosseguimento deste discurso argumentativo concluiu que «deverá entender -se estarem isentas de IMT as vendas de elementos do activo da empresa, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamento ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente e não apenas as vendas da empresa ou estabelecimento desta, enquanto universalidades de bens».

Não conformada a Fazenda Pública argumenta que o CIRE não manteve, apesar da lei de autorização legislativa assim o permitir, a isenção do IMT à transmissão dos elementos do activo de empresa falida, tal como previa o CPEREF (artigos 120.º e 121.º), mas restringe essa isenção à transmissão da empresa ou de estabelecimento desta (artigos 269.º e 270.º do CIRE).

[...]

7 - Apreciando e decidindo:

Este Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou por várias vezes sobre a questão da interpretação deste normativo e no sentido propugnado pela decisão recorrida.

Assim constitui já jurisprudência consolidada desta secção que, não sendo clara a redacção do n.º 2 do art. 270.º do CIRE, deverá entender-se estarem isentas de IMT «não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente» (cf., entre outros, para além do já citado Acórdão 949/11, os Acs. de 03 -07 -2013, recurso 0765/13, de 17.12.2014, recurso 01085/13, de 11.11.2015, recurso 968/13, de 18.11.2015, recursos 01067/15 e 0575/15, respectivamente, de 16 de Dezembro de 2015, recurso 1345/15, e de 20 de janeiro de 2016, recurso 1350/15, todos in www.dgsi.pt).

Concordamos com esta jurisprudência cuja fundamentação jurídica tem plena aplicação também no caso vertente e, pese embora o esforço argumentativo da recorrente, não vemos razões para a alterar.

Com efeito a questão suscitada é, sobretudo, uma questão de interpretação da lei fiscal, havendo que fazer apelo à ratio legis e tendo sempre presente que a captação do sentido de uma norma não pode fazer-se de uma forma isolada.

Ora, como se evidenciou no já referido acórdão 1085/13, haverá que ter em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, — «fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador», dando incentivos fiscais a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente e que serão vendidos em fase de liquidação.

                Não havendo que diferenciar, para tal fim, as situações em que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, das situações em que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, ou em que se estejam a vender bens imóveis que integravam o seu activo.

O objectivo que preside à teleologia da norma será igualmente prosseguido quando a aquisição tem por objecto elementos do activo da empresa, não se tomando necessário que o objecto seja a empresa ou estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência.

Por isso mesmo não procede também a argumentação da recorrente quando invoca o exemplo da isenção de Imposto de Selo a que alude o artigo 269.º alínea e) do CIRE.

Não há qualquer razão válida para proceder a uma interpretação mais restritiva no que se refere à isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE.

Acresce que, como também se deixou dito no supra citado Acórdão 949/11, o n.º 3 do artigo 9.º da Lei de autorização legislativa n.º 39/2003, dispunha, no que se refere às isenções de Sisa (hoje IMT) que: «Fica, finalmente, o Governo autorizado a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente: c) [...] da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus activos [...]».

Ora a sentença não considerou inconstitucional a interpretação que a AT fez do art. 270.º, n.º 2, do CIRE, mas antes considerou, de acordo com a jurisprudência que citou, que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio – pelo menos mínimo – na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que melhor se compatibilize com o texto constitucional (interpretação conforme à Constituição).

Acresce ainda que, como explicitado no acórdão de 25-01-2017, no proc. n.º 01159/16, «da eventual não utilização pelo legislador ordinário da lei de autorização legislativa na sua plenitude não resulta inconstitucionalidade alguma, ou seja, nada obriga o legislador ordinário a esgotar o conteúdo da autorização, podendo, sem que incorra em invalidade normativa, decidir não fazer uso integral da mesma e ficar aquém da autorização legislativa, desde que dentro do sentido e conteúdo desta (alicerçando essa alegação na jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 556/2003, proferido no processo n.º 188/2003, de 12/11/2003 [...].

                Na tese que subscrevemos (por remissão para o acórdão proferido no processo n.º 1345/15 acima citado e contrariamente ao que foi inicialmente decidido no acórdão proferido no processo n.º 949/11), não se sustenta a inconstitucionalidade da interpretação defendida pela Fazenda Pública, mas apenas que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio mínimo na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que melhor se adequa ao sentido e extensão da autorização legislativa ao abrigo da qual a norma foi emanada pelo Governo em matéria reservada à Assembleia da República. Sobretudo, quando é esse o que melhor serve a teleologia (ratio legis) da norma, tal como acima a entendemos e quando colhe também o apoio do elemento histórico, como bem se refere no acórdão proferido no processo com o n.º 949/11.».”

               

Nesta conformidade, constitui nosso entendimento que a isenção de IMT estatuída no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE abrange não apenas os atos de venda, permuta ou cessão de empresas ou estabelecimentos destas, enquanto universalidades de bens, mas também os atos de venda, permuta ou cessão de bens imóveis do seu ativo, desde que integrados no âmbito de um plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente. 

 

No âmbito dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, foi este o entendimento seguido, entre outras, nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 81/2016-T, 368/2016-T, 512/2016-T, 15/2017-T e 20/2018-T.      

 

A finalizar, neste conspecto, importa salientar que, apesar de a questão em apreço não relevar diretamente para a decisão do caso sub judice, a mesma afigura-se-nos pertinente – e, por isso, decidimos abordá-la – na perspetiva da cabal compreensão do âmbito de aplicação da isenção de IMT estatuída no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE.

 

                19. A outra questão que se tem colocado em torno da interpretação e delimitação do âmbito de aplicação desta isenção de IMT consiste em saber se esta opera, indistintamente, quer se trate de bens imóveis que integram o património de uma empresa insolvente, quer se trate de bens imóveis integrados na massa insolvente de pessoas singulares. Por outras palavras, importa descortinar se a intenção do legislador foi a de isentar de tributação em sede de IMT apenas os atos de venda, permuta ou cessão de imóveis integrantes da massa insolvente de empresas ou, também, os atos de venda, permuta ou cessão de imóveis integrantes da massa insolvente de pessoas singulares.            

               

O STA pronunciou-se sobre esta questão no acórdão proferido em 03/07/2013, no processo n.º 0765/13, nos termos assim sumariados:

                “I - O n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, cuja redacção não é clara no que respeita ao âmbito da isenção de IMT aí consignada, poderá, quando muito, interpretar-se como abrangendo não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

II - Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação, que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de actos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, independentemente da mesma pertencer a pessoa singular ou colectiva (entidade empresarial).”

 

O STA sufragou igual entendimento no acórdão, datado de 25/09/2013, proferido no processo n.º 0866/13, a propósito da isenção de Imposto do Selo consignada no artigo 269.º, alínea e), do CIRE, assim sumariado:

“I – De acordo com o disposto no art. 269.º, alínea e), do CIRE, ficam isentas de IS as vendas de «elementos do activo da empresa».

II – Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de actos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o activo de uma empresa.”   

 

Este mesmo entendimento tem vindo a ser reiteradamente perfilhado pelos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, sendo disso exemplo, entre outras, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 649/2015-T, 368/2016-T, 512/2016-T, 517/2016-T, 518/2016-T, 519/2016-T, 12/2017-T, 13/2017-T, 15/2017-T, 16/2017-T, 23/2017-T e 27/2017-T.

 

Adiantamos, desde já, que não descortinamos qualquer motivo para divergir deste entendimento que, por isso, acompanhamos, pelas razões que passamos a expor.

 

Nos casos em que o Supremo Tribunal Administrativo foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicação da isenção de IMT consagrada no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, estava sempre em causa a venda de bens imóveis integrados no património de uma sociedade comercial, no âmbito de um processo de insolvência, sendo disso exemplo os arestos acima citados. Como é consabido, apesar de as empresas poderem ser juridicamente tituladas através de várias formas jurídicas, relativamente às sociedades comerciais não se questiona que se tratam sempre de empresas; por isso, naqueles casos apreciados pelo STA, o que estava em causa eram imóveis integrados no património de empresas. Com efeito, compulsados os sobreditos arestos, constatamos que o STA deixa claro que estão em causa bens imóveis que são elementos do ativo de empresas.

 

Não discutimos que as empresas podem ser tituladas por comerciantes em nome individual e que, portanto, o empresário em nome individual tem uma empresa e possui bens que estão afetos a essa empresa; tais bens constituem o património da empresa do empresário em nome individual, por contraposição ao seu património pessoal.

 

Contudo, tal não significa que seja legítimo concluir pela aplicação da isenção de IMT em apreço a alienações de imóveis integrantes da massa insolvente de pessoas singulares, com a única justificação de fazerem parte de um processo de insolvência.     

 

A aprovação do CPEREF introduziu uma mutação profunda no processo de falência, tendo o respetivo epicentro deixado de ser a defesa do direito do credor de garantir o seu crédito para passar a ser um meio de recuperação das empresas . Este novo paradigma resultou evidenciado pelas alterações ao CPEREF introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de outubro, que reconheceram, para além da falência e insolvência, “um tertuim genus, um novo pressuposto do processo, ou seja, uma situação económica difícil evidenciada por ponderáveis dificuldades económicas ou financeiras que embaracem o normal funcionamento da empresa ou a prossecução do seu objecto social” .

 

Por seu turno, o CIRE, embora tenha alargado a aplicação de processos de recuperação a devedores pessoas singulares, mantém fundamentalmente o seu carácter de compêndio legal dirigido à resolução de situações de incumprimento na atividade empresarial. Ademais, apesar de se manter a preocupação com a recuperação das empresas, o acento tónico é colocado na necessidade de satisfazer os créditos dos que se encontram na atividade empresarial, realçando que o interesse público na viabilização das empresas insolventes deve ser alvo de decisão pelos mesmos credores .      

 

Acresce referir que o grosso da regulamentação é inequivocamente dirigida a sujeitos da atividade empresarial , sendo identificadas as normas inovadoras atinentes às pessoas singulares não comerciantes .    

 

                Por outro lado, como muito bem se afirma no discurso fundamentador da decisão arbitral prolatada no processo n.º 517/2016-T, a (correta) exegese hermenêutica do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE conduz-nos no seguinte sentido:

                “Principiando pelo elemento literal, verifica-se que do citado preceito não consta qualquer referência a bens integrantes da massa insolvente de pessoas singulares, apenas se referindo a lei aos atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta.

Como está bom de ver, uma pessoa singular que não exerça qualquer atividade industrial, comercial ou agrícola não pode considerar-se nem uma empresa nem detentor de um estabelecimento integrado numa empresa.

Pelo que, partindo do princípio – que se tem como certo – de que o legislador se soube expressar em termos adequados, não poderá defender-se, através da análise da letra da lei, ser a isenção de IMT aplicável à alienação de um imóvel integrante da massa insolvente de pessoas singulares.

No que diz respeito ao elemento racional, não se poderá olvidar que o CIRE, conforme se referiu na decisão proferida no processo arbitral n.º 649/2015-T, “embora tenha alargado a aplicação de processos de recuperação a pessoas singulares, mantém-se fundamentalmente como um Código dirigido à solução de situações de incumprimento na atividade empresarial”.

Todo o regime jurídico previsto no CIRE foi desenhado em torno da recuperação e da manutenção da atividade empresarial das empresas, enquanto agentes económicos cuja solidez financeira e manutenção na vida económica importa garantir, não se surpreendendo neste código quaisquer normas de relevo dirigidas à recuperação das pessoas singulares.

Quanto ao elemento sistemático, importa realçar que, para além da isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, o CIRE consagra outros benefícios aplicáveis às transmissões onerosas de imóveis realizadas no âmbito do processo de insolvência, como é o caso da isenção de imposto do selo prevista no artigo 269.º d) e e) e da isenção de IMT a que alude o artigo 270.º, n.º 1.

Qualquer uma destas disposições apenas prevê, no que diz respeito a atos de venda, a isenção do respetivo imposto para atos de venda de elementos do ativo da empresa e não para toda e qualquer venda, designadamente para a venda de imóveis integrantes da massa insolvente de pessoas singulares.

Assim como sucede quanto à isenção do imposto do selo, a isenção do IMT não será aplicável quando em causa estejam atos de venda de imóveis que não constituam parte integrante da empresa ou de estabelecimentos desta.

Se dúvidas houvesse sobre a interpretação mais correta do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, estas dissipar-se-iam pela análise do elemento histórico.

Com efeito, importa referir que o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, diploma que antecedeu o CIRE e que privilegiava o recurso às providências de recuperação da empresa em detrimento da declaração de falência, previa no seu artigo 121.º a isenção de SISA para as transmissões de imóveis integradas em qualquer das providências de recuperação da empresa que decorram “da autonomização jurídica de estabelecimentos comerciais ou industriais, da venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa”.

Não previa este preceito, pois, a isenção de SISA para a transmissão de imóveis integrados na massa insolvente de pessoas singulares, em relação às quais nunca seria possível a isenção de IMT ao abrigo deste preceito, por não se enquadrarem tais transmissões em qualquer providência de recuperação da empresa.

Por seu turno, a Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, que autorizou o Governo a aprovar o CIRE, revogando o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, em matéria de benefícios fiscais, autorizou o Governo a isentar de SISA as transmissões de bens imóveis integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente, que decorram da “venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimentos ou elementos dos seus ativos” – cfr. artigo 9.º, n.º 3, c).

Mais uma vez, e muito embora o CIRE passasse a ter um título exclusivamente dedicado à insolvência de pessoas singulares, não se previu a isenção de SISA ou IMT para a transmissão de bens imóveis integrados na massa insolvente de pessoas singulares.

Dúvidas não restam, pois, que a intenção do legislador foi isentar de tributação em sede de IMT os atos de venda de imóveis integrantes da massa insolvente de empresas e não todos e quaisquer atos de venda de imóveis, designadamente a venda de imóveis integrantes da massa insolvente de pessoas singulares (…).

                Sobre esta questão (…), já diversa jurisprudência, incluindo arbitral, se pronunciou no sentido de que o identificado preceito “não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação, que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de atos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, independentemente da mesma pertencer a pessoa singular ou coletiva (entidade empresarial)”, não vislumbrando este tribunal quaisquer razões para infletir o sentido firmado nesta jurisprudência, que acompanhamos.

Da mesma forma, e embora no âmbito da isenção relativa a imposto do selo prevista no artigo 269.º do CIRE mas inteiramente aplicável à isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2 do mesmo código, também diversa jurisprudência, com os mesmíssimos fundamentos, se pronunciou no sentido de que esta isenção não se aplica a atos relativos a bens integrantes da massa insolvente de pessoas singulares.

É esta, segundo cremos, a melhor interpretação do comando do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, não se vislumbrando em tal interpretação, (…), qualquer inconstitucionalidade ou qualquer violação de princípios do direito.”

 

20. O Requerente alega que a norma do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, interpretada nos exatos termos acima enunciados, ou seja, no sentido de não “abranger as alienações de património no âmbito de insolvência de pessoas singulares, não empresários ou titulares de empresas” ou, dito de outra forma, no sentido de não ser aplicável “independentemente de se tratar do património de pessoa singular ou coletiva, ativo de uma empresa ou um bem pessoal”, é inconstitucional por violadora dos princípios da igualdade, designadamente na sua vertente de proibição do arbítrio, da proteção da confiança e da segurança jurídica. O Requerente não concretiza em que se traduz a violação de cada um dos invocados princípios constitucionais, limitando-se à sua singela e conclusiva enunciação; porém, não deixaremos de nos pronunciarmos sobre esta temática.

 

Começando pelo princípio da igualdade, afirma Sérgio Vasques (Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina, 208, pp. 289 e 290) que a “igualdade representa o mais importante princípio da nossa Constituição Fiscal”, sendo que “o princípio da igualdade tributária pode resumir-se na fórmula segundo a qual se deve “tratar de modo igual o que é igual e de modo diferente o que é diferente”, sendo esta uma fórmula que se decompõe em dois elementos essenciais: (a) a igualdade ou diferença das realidades a tratar e; (b) a igualdade ou diferença do tratamento que lhes é dispensado. O segundo elemento, o da igualdade de tratamento, possui conteúdo apenas descritivo e é mais fácil de concretizar, podendo dizer-se que há igualdade de tratamento quando duas situações ficam sujeitas à mesma estatuição legal. O primeiro elemento, o da igualdade de situações, possui já conteúdo normativo e mostra-se sempre difícil de concretizar, porque a relação de igualdade entre duas situações exige um juízo de comparação e a escolha de um critério distintivo relevante para o efeito. (…)

Tudo isto deixa ver que o problema central ao princípio da igualdade tributária está na escolha e justificação do critério distintivo ou tertium comparationis que há-de servir de base à comparação das pessoas ou situações a tratar pela lei.”    

 

No entanto, como salienta Jorge Reis Novais (Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra, Almedina, 2019, p. 77), “a cláusula da igualdade não garante a cada indivíduo (…) o mesmo tratamento ou benefício que é concedido a outros, mas garante-lhe apenas que no processo de formação da vontade política e na concessão de benefícios ou imposição de sacrifícios por parte do Estado ele deverá ser tratado com a igual consideração e respeito que são devidos aos demais. Ou seja, o princípio da igualdade não lhe garante o mesmo tratamento, não é esse o último sentido normativo do comando constitucional, mas antes lhe assegura ser tratado como igual e, nesse sentido, com justiça”. 

 

Nesta perspetiva, “igualdade identifica-se com um princípio de proibição do arbítrio” (Jorge Reis Novais, ob. cit., pp. 79 e 80); segundo “a doutrina da proibição do arbítrio, é legítimo que o legislador tributário escolha os critérios distintivos que entenda mais convenientes no tratamento dos contribuintes, só lhe ficando vedado o uso do critério distintivo manifestamente irracional, isto é, para o qual não se encontra fundamento objetivo evidente. Visto deste modo, o princípio da igualdade tributária é concebido como um mero limite negativo à liberdade de conformação do legislador, vedando-lhe o critério distintivo que negue radicalmente a justiça sem, por isso, lhe impor um qualquer critério justo” (Sérgio Vasques, ob. cit., p. 291).  

 

Neste mesmo sentido se tem pronunciado o Tribunal Constitucional, afirmando reiteradamente que o princípio da igualdade, como limite à discricionariedade legislativa, não exige o tratamento igual de todas as situações, mas, antes, implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante; é disso exemplo, entre outros, o acórdão n.º 695/2014, de 15.10.2014, no qual é dito que “o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional”.

 

Destarte, o princípio da igualdade não proíbe que se estabeleçam distinções, mas sim, distinções arbitrárias, desprovidas de justificação objetiva e racional, sendo que indagar “da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das circunstâncias e fatores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores jurídicos, em sede de controlo da constitucionalidade, como um princípio negativo (…) – como proibição do arbítrio” (acórdão n.º 711/2006, de 29.12.2006, do Tribunal Constitucional).

 

Volvendo ao caso concreto e tendo presente que existe uma ampla liberdade de conformação do legislador no caso dos benefícios fiscais (ver, neste sentido, o acórdão n.º 1057/96, de 16.10.1996, do Tribunal Constitucional), temos que a norma do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, interpretada no sentido acima enunciado, mostra-se legitimada pelo fim que o legislador pretendeu alcançar com a concessão de tal isenção, o qual se consubstanciou em “fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador” (cf. acórdão do STA, de 17.12.2014, proferido no processo n.º 01085/13); por isso, não há motivo para entender que o legislador, ao excluir do âmbito de aplicação da isenção de IMT em apreço as alienações de imóveis integrantes da massa insolvente de pessoas singulares, nos sobreditos termos, está a tratar desigualmente duas situações essencialmente iguais, violando assim o princípio da igualdade, designadamente na vertente da proibição do arbítrio.        

 

No concernente aos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica, Jorge Reis Novais (ob. cit., pp. 149) começa por explicitar que “a tutela da confiança dos particulares abrange toda a actuação do Estado, incluindo a actuação legítima do legislador na prossecução geral e abstracta do interesse público” e, “considerando agora as afinidades com o princípio da segurança jurídica, não apenas a violação de expectativas constitui uma afronta directa à segurança, mas também, quando a tutela da confiança apela à continuidade e estabilidade dos regimes jurídicos vigentes, o princípio evoca igualmente o fim de segurança jurídica próprio de Estado de Direito.

Assim, mesmo que a Constituição não consagre referências expressas à segurança jurídica e à protecção da confiança, esses são princípios essenciais da Constituição material do Estado de Direito, enquanto factores imprescindíveis a uma estruturação da vida social em paz jurídica e, na perspetiva dos particulares, tais princípios são condição da previsibilidade da actuação estatal enquanto pressuposto de autonomia individual na conformação de planos de vida próprios.”  

O mesmo constitucionalista afirma, ainda, que esta “tutela da confiança dos particulares relativamente à continuidade das garantias e limites que a ordem jurídica estabelece, bem como à prática de actos em conformidade aos precedentes estabelecidos pela actividade estatal pretérita é (…) o lado subjectivo da garantia mais geral de segurança jurídica inerente ao Estado de Direito.

Na sua dimensão objectiva, o princípio da segurança jurídica vale para todas as áreas da actuação estatal, desdobrando-se por exigências especialmente dirigidas à Administração (veja-se a relevância do chamado caso decidido), ao poder judicial (a estabilidade assegurada ao caso julgado ou a importância dos acórdãos de uniformização da jurisprudência), mas também ao legislador democrático” (ob. cit., p. 150).   

 

Nesta senda, como sublinha Sérgio Vasques (ob. cit., p. 340), “se este princípio da segurança jurídica, radicado no artigo 2.º da Constituição da República, se dirige a todas as áreas da intervenção legislativa e da prática da administração, é evidente que no domínio tributário ele reveste redobrada importância, desde logo porque os tributos representam uma ablação coactiva do património. (…) A previsibilidade e a constância da lei, que se dirão sempre aconselháveis em qualquer área do ordenamento jurídico, tornam-se de superlativa importância quando lidamos com taxas, contribuições e impostos.”

 

Neste conspecto, importa acrescentar que o “quadro típico de intervenção do princípio da protecção da confiança é caracterizado pela confluência dos dois factores seguintes que, podem, todavia, (…), assumir no caso concreto presença, modalidades e intensidade substancialmente diferenciadas.

Há, em primeiro lugar, a necessária existência de uma base que tenha gerado a confiança dos particulares, ou seja, um dado, um facto ou um acto da responsabilidade ou sob controlo dos poderes públicos com potencialidade objectiva para gerar no particular interessado uma esperança convicta de que no futuro se verificarão determinadas consequências jurídicas. Essa confiança traduz-se normalmente numa expectativa quanto à simples continuação em vigor do enquadramento jurídico que confere estabilidade a uma posição jurídica já constituída ou a constituir, mas pode também respeitar à prática futura de um acto ou à subsistência de uma omissão por parte de poderes públicos de que resultem vantagens para o particular.

Em segundo lugar, essa confiança deve ter sido frustrada por força de uma actuação comissiva ou omissiva inesperada dos poderes públicos com um sentido contrário às expectativas anteriormente geradas e que provoca um sacrifício ou prejuízo sensíveis na esfera do particular.” (Jorge Reis Novais, ob. cit., p. 152).    

 

O Tribunal Constitucional já se pronunciou múltiplas vezes sobre os princípios constitucionais em apreço, sendo disso exemplo o acórdão n.º 862/2013, de 07.01.2014, no qual se aduziu o seguinte:

“A proteção da confiança é uma norma com natureza principiológica que deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.º da CRP. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão subjetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes.

Sustentado no princípio do “Estado de direito democrático”, o seu conteúdo tem sido construído pela jurisprudência, em avaliações e ponderações que têm em conta as circunstâncias do caso concreto. Quando aplicado ao poder legislativo, o Tribunal Constitucional densificou o princípio através de uma fórmula que, desde o já referido Acórdão n.º 287/90, tem vindo ser aplicada em sucessiva jurisprudência.

Entre inúmera jurisprudência, explicita-se a referida fórmula no Acórdão n.º 128/2009, nos seguintes termos:

“De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:

a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons¬tantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da propor¬¬cionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção”.

A metodologia a seguir na aplicação deste critério implica sempre uma ponderação de interesses contrapostos: de um lado, as expectativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente; do outro, as razões de interesse público que justificam a não continuidade das soluções legislativas. Os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas, a fim de organizarem os seus planos de vida e de evitar o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; mas a esse interesse contrapõe-se o interesse público na transformação da ordem jurídica e na sua adaptação às novas ideias de ordenação social. Caso os dois grupos de interesses e valores são reconhecidos na Constituição em condições de igualdade, impõe-se em relação a eles o necessário exercício de confronto e ponderação para concluir, com base no peso variável de cada um, qual o que deve prevalecer.

O método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos. Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdão n.º 287/90).”

 

Neste enquadramento, revertendo ao caso concreto e atento o que acima se disse quer quanto à evolução do regime jurídico conducente à atual solução legal consagrada no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE – a respetiva redação à data dos factos e atualmente em vigor é decorrente da alteração introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, ou seja, muito anterior à instauração do processo de insolvência referenciado nestes autos [23.11.2015 (cf. facto provado a)] –, quer quanto à (correta) exegese hermenêutica desta mesma norma legal, não vislumbramos que esta, quando interpretada no sentido acima enunciado, padeça de inconstitucionalidade por violação dos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica. 

               

 

                §3. O CASO CONCRETO: SUBSUNÇÃO AO ARTIGO 270.º, N.º 2, DO CIRE

                21. No caso sub judice está em causa saber se a venda de um bem imóvel, que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de atividade empresarial alguma, mas que era propriedade de uma pessoa singular e com destino a habitação, não havendo notícia da sua afetação a atividade empresarial alguma – cf. factos provados b), c), g), h) e i) –, pode beneficiar de isenção de IMT estatuída no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, em razão de ter sido efetuada num processo de insolvência.

 

A resposta, face ao acima exposto, não pode ser senão negativa, pois a aquisição do mencionado imóvel pelo Requerente, apesar de ter sido efetuada no âmbito de um processo de insolvência, não é manifestamente subsumível à previsão do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE.

 

22. Destarte, os atos tributários controvertidos – liquidação de IMT n.º..., datada de 02.01.2018, a que corresponde o DUC n.º..., no montante de € 39.000,00 e decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... – não padecem dos apontados vícios invalidantes, pelo que devem ser integralmente mantidos. 

 

§4. REEMBOLSO DO MONTANTE DE IMPOSTO PAGO, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS

23. Uma vez que é de manter a liquidação de IMT controvertida, pelos motivos acima expendidos, os pedidos de reembolso do montante de imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios, sobre esse mesmo valor, têm necessariamente de improceder, por carecerem de qualquer fundamento quer de facto, quer de direito. 

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24. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal Arbitral, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras. 

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IV. DECISÃO

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos;

b)           Condenar o Requerente no pagamento das custas do presente processo.

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VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 39.000,00 (trinta e nove mil euros).

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CUSTAS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), a cargo do Requerente.

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Notifique.

 

Lisboa, 19 de setembro de 2019.

 

O Árbitro,

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)