Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 244/2021-T
Data da decisão: 2022-01-21  IRC  
Valor do pedido: € 153.281,72
Tema: IRC – Provisões; Especialização dos exercícios versus princípio da justiça.
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SUMÁRIO:

 

I. O artigo 18.º do Código do IRC estipula que na determinação do lucro tributável é obrigatório observar a periodização económica ou especialização dos exercícios.

Uma componente negativa do lucro tributável, como é o caso dos gastos, só poderá ser imputada a um período de tributação posterior se, à data de encerramento das contas do exercício a que respeita, for manifestamente desconhecida ou imprevisível.

À data do encerramento das contas relativas aos exercícios de 2015 e 2016, tais despesas não podiam ser consideradas pela Requerente como manifestamente desconhecidas ou imprevisíveis, porquanto foram incorridas e suportadas nesses mesmos períodos de tributação.

II. A ação inspetiva ao exercício de 2013 foi encerrada no dia 27 de maio de 2016, em momento anterior ao termo do prazo de entrega das declarações Modelo 22 dos exercícios de 2015 e 2016, que se reporta ao último dia do mês de maio, de acordo com o disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRC.

A Requerente foi notificada, no dia 5 de julgo de 2017, do acórdão arbitral que não aceitou a constituição da provisão em relação ao exercício de 2013, o que significa que, mesmo ultrapassado o prazo para a apresentação das declarações modelo 22 do IRC dos exercícios de 2015 e 2016, sempre teria a possibilidade de apresentar as declarações de substituição, em relação a qualquer dos dois exercícios, declarando os custos suportados e acima mencionados, por via do disposto nos números 2 e 3 do artigo 122º do Código do IRC.

Os encargos associados à deslocalização dos aerogeradores só não foram considerados pela Requente na autoliquidação dos períodos de 2015 e 2016 por opção da Requerente, não ocorrendo nenhuma situação manifestamente desconhecida ou imprevisível suscetível de ser

enquadrada na exceção ao princípio da especialização dos exercícios a que se refere o n.º 2 do artigo 18.º do CIRC.

III. O princípio da justiça não é suscetível de aplicação no sentido pretendido, tendo em conta que a Requerente podia utilizar os procedimentos de apresentação das declarações de substituição, sem prejuízo da possibilidade de utilização da reclamação graciosa ou do pedido de revisão do ato tributário a que se referem, respetivamente, o artigo 68º e seguintes do Código de Procedimento e do Processo Tributário e o artigo 78º da Lei Geral Tributária, um e outro com a possibilidade de abrirem o recurso à via judicial.

IV. Não se verifica a falta de fundamentação, uma vez que são evidentes as razões que levaram a AT a decidir no sentido de não aceitar no exercício de 2017 os gastos referentes aos exercícios de 2015 e 2016, sendo evidente o relatório da inspeção tributária na identificação dos factos e das razões de Direito que sustentam as correções efetuadas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO:

1. A..., LDA, pessoa coletiva n.º ..., com sede na..., ..., ...-... ..., de ora em diante designada por Requerente, apresentou, no dia 26 de abril de 2021, um pedido de pronúncia arbitral, invocando o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º, o n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do art.º 5.º, o n.º 1 do art.º 6.º e a alínea a) do n.º1 do art.º 10º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, de ora em diante apenas designado por RJAT) em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

2. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente optou por não designar árbitro.

3. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou os árbitros o senhor Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros, o senhor Dr. José Rodrigo de Castro e o senhor Dr. Paulo Lourenço, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. No dia 15 de junho de 2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, por aplicação conjugada da alínea a) e b) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT e dos art.º 6º e 7º do Código Deontológico.

5. Em conformidade com o estatuído na alínea c) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT, na redação que lhe foi introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído no dia 5 de julho de 2021.

6. A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste na anulação total do ato de liquidação adicional de IRC, no montante de 153.281,72 €, incluindo juros compensatórios no

valor de 11.627,30 €, referente ao exercício de 2017, por errónea qualificação do ato tributário, na restituição do valor indevidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado, no montante de 153.281,72 € e no pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante pago indevidamente.

7. Fundamentando o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

A Autoridade Tributária (AT) efetuou correções à matéria tributável apurada pela Requerente no montante total de 555.507,53 € (508.654,53 € + 46.853,00 €), relativas aos encargos associados à deslocalização dos aerogeradores incorridos nos exercícios de 2015 e 2016, dado que “não reúnem as condições para a sua dedutibilidade fiscal no exercício de 2017, em conformidade com o artigo 18º, n.º 1 e n.º 2 do CIRC, uma vez que os mesmos, não eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, na data de encerramento das contas dos exercícios a que deviam ser imputados”.

8. Não tem razão a AT ao corrigir, em relação ao ano de 2017, os gastos suportados pela Requerente, no montante de 555.507,53 €, relativos aos anos de 2015 e 2016, uma vez que os mesmos resultam, em parte, da utilização de uma provisão constituída em 2013, no montante de 1.818.324,00 €, a qual foi desconsiderada como gasto fiscal desse exercício, no âmbito de uma ação inspetiva realizada no ano de 2016, a coberto da ordem de serviço n.º OI2015... .

9. A requerente, no exercício de 2013, perante um processo judicial em curso, que envolvia um pedido de indemnização por parte de um terceiro, com eventual remoção e deslocalização dos aerogeradores, considerando o princípio da prudência, constituiu uma provisão que abrangia a totalidade dos gastos previstos, tendo por base os elementos objetivos e as informações idóneas de que dispunha, à data da sua constituição.

10. A referida provisão para processos judiciais em curso, no montante de 1.848.324,00 €, foi utilizada por conta de diversas despesas suportadas pela Requerente, relativas à indemnização, remoção e mudança de local dos aerogeradores, no período compreendido entre os anos de 2014 e 2018, nas quais se incluem os valores corrigidos de 508.654,53 € e 46.853,00, referentes aos exercícios de 2015 e 2016, respetivamente, tendo as mesmas sido devidamente reconhecidas e aceites pela AT.

11. A AT não aceitou a dedução fiscal da provisão constituída no exercício de 2013, pelo que a Requerente deduziu no campo 764 do Quadro 07 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC, referente ao exercício de 2017, o valor correspondente às despesas incorridas nos períodos de 2015, 2016 e 2017, discriminadas como segue (Doc. 4):

 

Anos     Valores Utilizados

2015      508.654,53

2016      46.853,00

2017      37.770,00

Soma    593.277,53

 

12. A AT apenas aceitou para efeitos fiscais o montante de 37.700,00 € (593.277,53 €- 555.507,53 €), relativo a encargos associados com a deslocalização dos aerogeradores, considerando que somente estes podem ser aceites fiscalmente, no exercício de 2017, por força do disposto nos artigos 23º e 18º, ambos, do Código do IRC.

13. No entendimento da AT os encargos incorridos com a deslocalização dos aerogeradores, nos exercícios de 2015 e 2016, no montante de 555.507,53 € (508.654,53 €+46.853,00 €), só “devem ser imputados aos exercícios a que dizem respeito, em cumprimento do artigo 23º do CIRC e atendendo a outro princípio e regra básica de funcionamento do quadro legal do IRC, designadamente, o princípio da especialização dos exercícios consagrado no artigo 18º do CIRC”.

14. Assim, veio a AT invocar o princípio da especialização dos exercícios (Periodização do lucro tributável), previsto no artigo 18º do Código do IRC, para desconsiderar os gastos suportados nos exercícios de 2015 e 2016, com a remoção e mudança dos aerogeradores, dado que à data do encerramento das contas desses períodos de tributação não eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.

15. Ora, dispõe o artigo 18º, n.ºs 1 e 2 do CIRC (Periodização do lucro tributável) que:

“1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 — As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”.

16. Todavia, não podia a AT interpretar o citado princípio da especialização dos exercícios

em sentido estritamente literal quando da imputação dos gastos a um exercício diferente daquele a que respeitavam esses gastos, desde que daí não resultassem prejuízos para o Estado e a correção não se traduzisse num agravamento fiscal para os sujeitos passivos, o que acontece no caso aqui em crise, conforme decidido no acórdão do CAAD – Proc.º n.º 874/2019-T, de 11.09.2020.

17. Ademais, aplicou o referido princípio da periodização do lucro tributável, sem ter levado em linha de conta um dos outros princípios basilares do sistema fiscal português o princípio da justiça, uma vez que o gasto foi efetivamente suportado, ainda que devesse ser reportado a períodos anteriores, e não se verificou, paralelamente, a correção simétrica a favor da requerente pela não relevação desses gastos nos períodos de tributação em que deveriam ter sido imputados (artigo 266º, n.º 2 da CRP e 55º da LGT).

18. Assim, tendo em conta os citados normativos, não poderá a AT “limitar-se a uma aplicação mecânica das leis às suas situações de facto, tendo de ter sempre presente o objetivo que a justifica, que é a prossecução do interesse público”, pelo que deverá “abster-se de atuar em situações em que, embora se preencham formalmente os pressupostos legais abstratos da sua atuação, esta não seja relevante para a prossecução do interesse público” in Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, páginas 452 – Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa.

19. Na obra citada (a páginas 453) aponta-se ainda para uma situação real que ocorre nas correções em causa, uma vez que já não era possível à requerente reagir aos exercícios de 2015 e 2016, por já estar ultrapassado o prazo para o fazer, pelo que “no caso de não poder ser feita já a correção relativamente ao ano anterior, o contribuinte que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efetuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não tinha direito”.

20. Até porque constitui jurisprudência pacífica dos tribunais superiores “que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser colmatada ou temperada com a invocação do princípio da justiça, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado – vide neste sentido, acórdãos da Secção de Contencioso Tributário de 19.11.2008, recurso 325/08, de 02.04.2008, recurso 807/07, de

19.05.2010, recurso 214/07, de 25.06.2008, recurso 291/08, de 09.05.2012, recurso 269/12 e de 02.03.2016, recurso 1204/13” (vide Acórdão STA Processo n.º 0716/13, de 14.03.2018 e

 Processo n.º 588/2015-T, do CAAD).

21. Assim sendo, “a aplicação do princípio da especialização dos períodos não deve ser cega, ou de molde a redundar numa ofensa da justiça material, seja em benefício do sujeito passivo (Acórdão do STA, de 14 de março de 2018 – Procº. n.º 0716/13), seja em benefício do Estado. Será aconselhável aferir se a indevida contabilização num dado período obstou à tributação através de omissões deliberadas, com a transferência de resultados entre períodos. Sopesando o dever de reconstituição da verdade sobre a determinação da matéria coletável dos períodos de tributação através do princípio da especialização face à eventualidade de situações de injustiça, e tendo depermeio a existência ou não de prejuízo causado à Fazenda Pública” in Código do IRC Anotado e Comentado – 2ª Edição - Rui Marques a páginas 173.

22. Acresce que a Requerente nunca, em momento algum, teve qualquer intenção de operar transferências de resultados entre exercícios através de omissões voluntárias e intencionais, uma vez que os gastos só não foram imputados aos respetivos exercícios de 2015 e 2016, porque foram utilizados por contrapartida da provisão constituída no ano de 2013, a qual não foi aceite fiscalmente, embora devidamente constituída pela requerente.

23. Conclui no sentido da anulação das correções, por vício de violação da lei, por conduzirem a situações flagrantemente injustas, dado que a requerente, nos exercícios de 2013 a 2017 sempre apresentou lucros tributáveis.

24. A correção da matéria coletável, por violação do princípio da periodização do lucro tributável, conduz a uma situação de flagrante injustiça e que, assim sendo, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, de conformidade com o artigo 266º, n.º 2 da CRP e artigo 55º da LGT, com vista a obstar à possibilidade de efetuar a correção em causa, sob pena de que o princípio da especialização se possa transformar numa armadilha para que a AT possa arrecadar impostos que não são devidos.

25. Acresce ainda que é por demais evidente que a Autoridade Tributária no âmbito do procedimento tributário “exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”, nos termos do artigo 55º da LGT.

26. Por outro lado, está ainda vinculada no procedimento ao princípio da verdade material, pelo que lhe compete o poder-dever de “realizar todas as diligências necessárias à satisfação

do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”, nos termos do artigo 58º da citada LGT.              

27. Acresce que o artigo 6º do RCPIT estabelece que “o procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo”.

28. Dispondo a AT de todos os elementos da contabilidade da Requerente, sem qualquer limitação ao seu acesso, verificou-se um incumprimento pela AT do seu dever de diligências sem qualquer razão válida para esse efeito, pelo que, tal facto, deve ser enquadrado como omissão de diligências necessárias à descoberta da verdade material, e numa eventual dúvida sobre a aceitação dos gastos aqui em causa, deverá a mesma ser valorada contra a AT.

29. Os órgãos da Administração Pública estão sujeitos ao princípio da colaboração, e, assim sendo, “devem atuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes, designadamente, prestar aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam, apoiar e estimular as suas iniciativas e receber as suas sugestões e informações”, em conformidade com o previsto no n.º 1 do artigo 11º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), bem como no artigo 49º da LGT (Principio da colaboração) e artigo 48º do CPPT (Cooperação da administração tributária e do contribuinte).

30. Estando a AT vinculada ao nível do procedimento, ao princípio da verdade material e cabendo-lhe o poder – dever de realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta dessa verdade material, acabou por não o fazer e, assim, pôr em causa o princípio da justiça que aponta para a necessidade da AT pautar a sua atividade por certos critérios materiais ou de valor e que convocam as ideias centrais de racionalidade, de proporção, de igualdade, de imparcialidade e de boa-fé (Processo n.º 588/2015-T do CAAD).

31. Perante a insensibilidade da máquina fiscal, a AT agiu como se o princípio da especialização dos exercícios se pudesse sobrepor ao princípio da justiça e à própria Constituição da República Portuguesa (artigo 55º da LGT e artigo 266º, n.º 2 da CRP), e, deste modo, afastar outro princípio constitucional segundo o qual a tributação das empresas deve recair fundamentalmente sobre o seu rendimento real, em conformidade com o n.º 2 do artigo 104º da CRP, uma vez que os gastos com a remoção e recolocação dos aerogeradores foram efetivamente incorridos, pelo que devem ser anuladas as correções dos anos de 2015 e 2016.

32. Tudo visto, conclui, devem as correções efetuadas pela AT, no montante de 555.507,53

€, referentes à remoção e mudança de local dos aerogeradores, nos exercícios de 2015 e 2016, com fundamento no princípio da especialização dos exercícios, ser anuladas, por violação do princípio da justiça, uma vez que é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio, sob pena de tal decisão configurar uma tremenda injustiça.

 

33. Na Resposta, sustenta a AT o seguinte:

 

O princípio da periodização do lucro tributável encontra consagração no artigo 18.º do CIRC, nos termos do qual:

«1 - Os rendimentos e os gastos, […] são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo como regime de periodização económica.

2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

3 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1:

 

a) Os réditos relativos a vendas consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data da entrega ou expedição dos bens correspondentes ou, se anterior, na data em que se opera a transferência de propriedade;».

 

34. O normativo contabilístico consagra a obrigação de as entidades elaborarem as suas demonstrações financeiras por respeito ao regime contabilístico do acréscimo (ou da periodização económica), tal com se encontra estabelecido no § 22 da Estrutura Conceptual do SNC;

35. E quanto ao reconhecimento dos rendimentos/réditos, as regras a observar encontram- se vertidas na NCRF Norma Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF) 20, destacando-se o disposto nos §§ 14 e 19.

36. Sendo certo que, face ao disposto pela al. a) do n.º 3 do artigo 17.º do CIRC, os sujeitos passivos se encontram obrigados a cumprir as regras de normalização contabilística que lhes sejam aplicáveis, o próprio legislador fiscal consagrou expressamente, no artigo 18.º do CIRC, que na determinação do lucro tributável é obrigatório observar a periodização económica ou especialização dos exercícios.

37. Resulta, assim, que face ao normativo contabilístico, reforçado pelas normas fiscais, uma componente negativa do lucro tributável - gastos - só poderá ser imputada a um período de tributação posterior se, à data de encerramento das contas do exercício a que respeita fosse manifestamente desconhecida ou imprevisível, como bem entenderam os SIT.

38. Com efeito, à data do fecho das contas relativas aos exercícios de 2015 e 2016, tais despesas não podiam ser consideradas pela Requerente como manifestamente desconhecidas ou imprevisíveis, porquanto foram incorridas e suportadas nesses mesmos períodos de tributação.

39. No âmbito da ação inspetiva externa que incidiu sobre o período de tributação de 2013, credenciada pela ordem de serviço n.º OI2015..., os SIT não aceitaram como gasto fiscal desse exercício a provisão no montante de 1.818.324,00 €, contabilizada na conta 673 (Provisões do período, processo judiciais em curso), constando expressamente repetivo relatório:

«Concluindo, considerando que os encargos associados à deslocalização dos aerogeradores apenas serão dedutíveis, para efeitos fiscais, no período em que esta efetivamente ocorrer e estes forem suportados (por ser nesse momento que os mesmos estão comprovados para efeitos do estabelecido no art.º 23.º do CIRC), e considerando ainda qu ea provisão em causa, reconhecida pelo sujeito passivo como gasto no período de 2013, não se enquadra na al. h) do n.º 1 do art.º 23.º e no art.º 39.º, ambos do IRC, nem se mostra suportada numa estimativa suficientemente fiável, não deverá esta última ser aceite fiscalmente.» (cfr. transcrição da Pág. 15 do RIT).

40. A ação inspetiva ao exercício de 2013 foi encerrada no dia 27- 05-2016, em momento anterior ao termo do prazo de entrega das declarações Modelo 22 dos exercícios de 2015 e 2016, que se reporta ao último dia do mês de maio, de acordo com o disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRC.

41. Acresce que, a Requerente contestou, na ação arbitral n.º 639/2016-T, as correções respeitantes ao exercício de 2013, tendo o acórdão do Tribunal arbitral, consultável em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/, sido notificado ao ilustre mandatário da Requerente no dia 2017-07-05, conforme plataforma do CAAD.

42. O Tribunal arbitral decidiu o seguinte:

 

Da provisão constituída

 

A AT efectuou, no que se refere ao exercício de 2013, correcção resultante da não aceitação de provisão constituída pela Requerente para relocalização dos aerogeradores mandados retirar pelo STJ, em acórdão proferido em 30.05.3013.

No que a esta questão diz respeito, temos de reconhecer que o conceito de provisão tem evoluído

 muito em Portugal ao longo dos últimos 50 anos.

O Professor Rogério Fernandes Ferreira, na obra intitulada precisamente Provisões (1970) clarificava o conceito: provisões são custos actuais estimados, ou mais detalhadamente, são custos actuais (de exercício) mas relativos a processamentos futuros de despesas (ou de não receitas), despesas de incerta comprovação futura.

Se atentássemos no que o Código da Contribuição Industrial dispunha acerca de provisões, desde os anos sessenta, o conceito era muito mais amplo (e menos certeiro) porquanto abrangia não só as verdadeiras provisões mas também outras realidades que actualmente são designadas por imparidades (“provisões” para depreciação de certos activos tais como mercadorias, etc.) ou meros passivos contingentes (despesas de montante certo a processar, mas para o que falta documentação vinculativa externa), ou seja meros encargos a pagar por acréscimos (que devem ser registados em contas de Devedores e Credores, tais como subsídios de férias e de Natal a pagar a colaboradores no exercício seguinte – accruals na designação anglo-saxónica).

Mais tarde, já no âmbito do Plano Oficial de Contabilidade (POC, instituído em 1977), essa excessiva latitude manteve-se e apenas mais recentemente, com a entrada em vigor do SNC, inspirado nas normas de contabilidade internacionais, conhecidas por NCRF, se afinou o conceito que hoje em dia vigora, e que contém as seguintes características:

Provisão é um passivo, ou seja, é uma obrigação presente proveniente de acontecimentos passados, cuja liquidação se espera que dê origem a saída de recursos mas que incorpore benefícios económicos (NCRF 21, §8).

No nosso SNC, o legislador define provisão como um passivo de tempestividade ou quantia incerta, que se distingue de outros passivos – tais como contas a pagar e os chamados acréscimos

– pelas suas características peculiares: a incerteza acerca da tempestividade ou da quantia dos dispêndios futuros necessários para a sua liquidação. A noção de provisão passa a ter (apenas) por objecto as obrigações (“responsabilidades”) cuja natureza esteja claramente definida e que, à data do balanço (agora “posição financeira”), sejam de ocorrência provável ou certa, mas incertas quanto ao seu valor ou data de ocorrência.

Assim, as provisões não podem ser excessivas, nem ter por finalidade secundária a criação de reservas ocultas, sob pena de a contabilidade não transmitir a imagem verdadeira e fiel da situação patrimonial da entidade que procura relatar.

Importa ainda apontar que as obrigações a que as provisões se reportam podem ser de dois tipos: obrigações legais (decorrentes de um contrato, legais ou similares) e as obrigações

construtivas (pelas quais uma entidade tenha criado uma expectativa válida de que cumprirá

certas responsabilidades, seja por práticas passadas, seja por resultado de políticas públicas, seja por assunção de determinado compromisso de forma pública e notória).

Em síntese, a legislação contabilística indica que uma provisão deve ser reconhecida no balanço (no relato financeiro) quando estiverem reunidas as seguintes três condições:

a) Exista uma obrigação presente (legal ou construtiva) como resultado de um acontecimento passado; (excluem-se, pois, as tentativas de antecipação de registo de encargos com eventos futuros, ainda que certos);

b) É provável que venha a ser exigida uma saída de recursos que incorporam benefícios económicos para satisfazer essa obrigação; (considera-se provável quando a probabilidade de acontecer é superior à de não acontecer);

c) É possível estimar a quantia de modo fiável (estimativa da quantia que a entidade pagaria para solver o compromisso ou para o transferir para terceiros).

Já do ponto de vista fiscal, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, e com interesse para o assunto em apreço, consagra a aceitação como custo para efeitos do apuramento do imposto, da seguinte provisão:

- Provisão que se destine a fazer face a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso, por factos que determinem a inclusão daqueles (encargos) entre os gastos do período de tributação (gastos do exercício económico).

Então, a decisão da gestão da Requerente, no sentido de constituir, em 2013, uma provisão (encargo do exercício de 2013) para a remoção, transporte e reinstalação das quatro torres eólicas (1, 2, 3 e 4 do Parque Eólico do …), em função de decisão final do STJ de suspensão do funcionamento e de proceder a indemnização dos autores do processo contra a Requerente, pode ser devidamente escrutinada à luz da definição anterior e do enquadramento que o CIRC prevê. Tal provisão deveria ter sido constituída em exercício anterior e não apenas no exercício em que se verifica a decisão final do processo. De facto o disposto no artigo 39º do CIRC refere processos judiciais “em curso”, pelo que se entende que seria possível ter constituído a provisão logo que se verificou o início do processo. Em rigor, com a conclusão do processo em meados do ano de 2013, no momento em que a provisão é constituída – no encerramento das contas de 2013 – ela é já de certa forma extemporânea, porquanto a obrigação passou a ser certa e de montante certoquanto à indemnização de 30.000 Euros, pelo que essa quantia deveria ter sido registada como encargo a pagar e não como já como provisão.

Na Resposta da AT, nos pontos 135º a 196º, refere-se com cristalina clareza que nada consta  no processo e das declarações das testemunhas também nada resulta que indique que a douta decisão do STJ alcance mais do que a suspensão (imediata) e posterior remoção da actividade de 4 torres eólicas. Assim, mais uma vez nos parece extemporânea a constituição da provisão depois de se ter verificado a suspensão e quando é devida já a remoção, devendo ter sido obtidos orçamentos (apesar de a testemunha C ter afirmado não existirem orçamentos alternativos) para esse efeito, ou até terem sido registados, logo em 2013, os encargos com a remoção, mediante orçamento ou factura, ainda que parcelar, dos respectivos serviços.

Mas a questão de fundo é mesmo a da amplitude que se pretende dar à provisão, por a mesma pretender incluir como custo fiscal algo que é eventual acontecimento futuro e que não decorre na decisão judicial: a armazenagem (ao longo de anos como se percebeu através da prova testemunhal, de que resultou estarem as 4 torres ainda armazenadas em 2017, a aguardar a realização de reparações) e sobretudo o encargo com a eventual reinstalação das mesmas em outro local a autorizar para o efeito.

Ora, em bom rigor, não resulta da decisão de suspensão e subsequente remoção que as 4 torres tenham de ser reinstaladas, podendo ocorrer o seu desmantelamento, a sua venda a terceirosou até a sua desmontagem e actualização de parte substancial das peças suas componentes, o que será até provável face às explicações detalhadas fornecidas pelas testemunhas, uma vez que a tecnologia tem evoluído muito rapidamente e as torres originalmente colocadas em actividade há quase 10 anos poderão ter já perdido parte da sua eficiência económica.

Assim se demonstra que a provisão, pelo menos na parte destinada a reinstalação, por ser um eventual acontecimento futuro, pode ser uma decisão de gestão legítima e acertada, mas tal encargo futuro não cabe definitivamente no conceito abstracto de provisão e, por maioria de razão, também não pode ser aceite para os efeitos da determinação do resultado tributável em sede de IRC.

Recorde-se ainda que uma provisão, para ser enquadrável no disposto no CIRC, deve originar gastos que poderiam ser registados, ainda em 2013, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios e também de acordo com o princípio da prudência, o que não se verifica no caso presente.

Em síntese, a decisão da AT de corrigir o valor da provisão constituída (com excepção da indemnização de 30.000 Euros) adequa-se ao disposto no CIRC em matéria de provisões para processos judiciais em curso com relevância na determinação do resultado tributável da Requerente.

Pelo que improcede o pedido arbitral no que a este ponto se refere.» (negrito nosso).

 

43. Do excerto transcrito da douta decisão arbitral retiram-se duas importantes conclusões:

 

(i) ao contrário do que alega a Requerente, a provisão não foi devidamente constituída;

 

(ii) o Tribunal arbitral validou a correção efetuada pelos SIT, com referência ao exercício de 2013, aceitando a desconsideração fiscal da provisão considerada indevidamente constituída.

44. Assim, a Requerente, com a notificação do acórdão arbitral, datada de 2017-07-05, teve possibilidade de confirmar a legalidade do entendimento da AT, ficando desde logo a saber que as despesas incorridas associadas à deslocalização dos geradores deviam ser deduzidas nos períodos de tributação a que correspondiam.

45. Pelo que, a Requerente deveria ter promovido a imputação dos gastos ocorridos nos exercícios de 2015 e 2016 a esses períodos de tributação, mormente mediante a entrega de declaração de substituição, nos prazos previsto no artigo 122.º do CIRC, o qual dispõe:

«2 — A autoliquidação de que tenha resultado imposto superior ao devido ou prejuízo fiscal inferior ao efectivo pode ser corrigida por meio de declaração de substituição a apresentar no prazo de um ano a contar do termo do prazo legal.

3 — Em caso de decisão administrativa ou sentença superveniente, o prazo previsto no número anterior conta-se a partir da data em que o declarante tome conhecimento da decisão ou sentença.

4 — Sempre que seja aplicado o disposto no número anterior, o prazo de caducidade é alargado até ao termo do prazo aí previsto, acrescido de um ano.».

46. Ou em alternativa, podia ter apresentado reclamação graciosa da autoliquidação, nos termos do artigo 131.º do CPPT.

47. Assim, os encargos associados à deslocalização dos aerogeradores só não foram considerados pela Requente na autoliquidação dos períodos de 2015 e 2016 por opção sua, não ocorrendo nenhuma situação manifestamente desconhecida ou imprevisível suscetível de ser enquadrada na exceção ao princípio da especialização dos exercícios, consagrada no n.º 2 do artigo 18.º do CIRC.

48. No n.º 2 do mesmo artigo 18.º prevê-se uma exceção apenas para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data de encerramento das contas de determinado exercício, fossem imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas, o que revela bem que, nos outros casos, essas componentes positivas ou negativas apuradas à data do encerramento das contas relevam para apuramento da liquidação desse período de tributação.

49. O Tribunal arbitral no âmbito do processo n.º 582/2017-T pronunciou-se assim:

 

«O ponto é que a aplicação do critério de periodização dos rendimentos não pode ficar dependente de decisões de gestão empresarial que a Administração Tributária não pode controlar. A periodização do rendimento tributável permite definir o momento em que o rendimento deve ser efectivamente levado à tributação e destina-se a facilitar a obtenção de informação, não só por parte do Estado, mas também das empresas, que poderão calcular os seus custos e proveitos, numa base anual, para efeitos financeiros e fiscais. Apesar da maior flexibilidade do princípio da periodização no direito contabilístico quanto ao momento do reconhecimento dos réditos (cfr. nomeadamente, parágrafos 18 e 22 da NCRF 20), o certo é que tal não pode justificar, no plano fiscal, o uso de um critério aleatório em que a imputação dos gastos ou dos proveitos a um certo ano económico é determinada com base em meras opções de gestão do empresário.

Como antes se anotou, o princípio da periodização dos rendimentos, em IRC, pode ser flexibilizado, em certas circunstâncias, por razões de justiça material. Mas não é essa a situação do caso. Se o sujeito passivo entende que deverá prescindir da cobrança dos juros de mora debitados a certos clientes, os montantes correspondentes poderão ser levados a custos no ano económico em que perdeu a vantagem patrimonial. Não há aí um qualquer agravamento fiscal ou a desconsideração de proveitos de que o contribuinte deixou de beneficiar. O que sucede é que os rendimentos e os custos são imputados aos anos económicos em que contabilisticamente foram obtidos ou suportados.». (negrito nosso).

50. O princípio da justiça deve ser compatibilizado com outros, como o sejam desde logo os princípios da igualdade e da legalidade e com os princípios da certeza e segurança das situações jurídicas consolidadas.

51. Perante o invocado o princípio da justiça não pode deixar de relevar o facto – determinante -, de a Requerente ter ao seu dispor os meios graciosos de apresentação de declarações substituição ou, alternativamente, interposição de reclamação graciosa do ato de autoliquidação.

52. Pela sua relevância, transcrevemos da decisão arbitral proferida em 2012-09-28, proc. n.º25/2012-T, as partes mais relevantes:

«[t]odavia, não decorre deste princípio um dever jurídico de colmatar ou corrigir atos ou omissões dos contribuintes salvo se tal ocorrer de forma involuntária ou não intencional. Doutro modo, estaria sempre encontrada a forma de, à luz de tal princípio, tudo ser permitido, designadamentee v. g., atos processuais fora de prazo, recursos ainda que a Lei os não permita, etc.

Naturalmente que tal não pode ser porquanto e além do mais, razões e princípios se sobrepõem como os da segurança e certeza jurídicas.

Ou seja: o princípio da justiça será (ou poderá ser) a válvula de escape para o exercíciode um direito ou reposição da justiça duma concreta situação tão só e apenas quando na sua invocação não esteja um ato ou omissão voluntários e se considere intolerável vedar, por razões formais ou processuais, o exercício do direito.

[…]

 

E tal omissão não foi evidentemente decorrente de qualquer circunstância ou razão impeditiva ou de desconhecimento mas tão só e apenas porque não quis fazê-lo, quiçá por razões de estratégia comercial, de gestão ou outras.

Assim e se não usou do direito (e dever) no tempo e modo devidos, sibi imputat.[…]

Não é certamente para colmatar e dar resposta a omissões deliberadas dos contribuintes que existe a mencionada norma constitucional.

Ou seja: também nesta perspetiva se coloca a questão da divergência de posições consoante as omissões ou incorreções declarativas resultem de atos ou omissões desculpáveis dos contribuintes passíveis de correção à luz dos princípios da justiça e da verdade fiscal ou, pelo contrário, tais omissões ou incorreções resultem de estratégias deliberadas (comerciais, de gestãoou outras), fruto assim da vontade do contribuinte ou mesmo de lapso indesculpável.».

53. Veja-se também a decisão arbitral proferida no processo n.º 442/2017-T, que, a propósito da prevalência do princípio da justiça, bem como quanto ao invocado princípio da tributação pelo lucro real, consigna o seguinte:

«[d]e facto, em bom rigor, em face do princípio da especialização, no entender deste Tribunal, o gasto já devia ter sido imputado e deduzido ou, pelo menos, provisionado no ano de 2013; não o tendo feito nesse ano, a Requerente podia ainda ter apresentado, no prazo legal, reclamação graciosa da respetiva autoliquidação. Mas não! Vem reportá-lo ao exercício de 2015 […] Entendemos que, ao contrário do alegado pela Requerente, a resolução da questão decidenda não pode ser encarada acentuando apenas o relevo que nos merecem os princípios da justiça e da capacidade contributiva, antes exige uma ponderação global dos interesses em presença mediada pelo princípio da proporcionalidade.

Com efeito, não podemos deixar de ter em conta as exigências legais de natureza formal e de especialização dos exercícios e que estas têm subjacentes objetivos como o controlo da atividade do contribuinte, a promoção da realidade e a proteção do interesse público no combate à fuga e à evasão fiscal. Por essa razão se compreende o estabelecimento pela lei da sanção da não dedutibilidade dos custos para a violação das obrigações acessórias e formais por parte do contribuinte: o princípio da tributação segundo o lucro real deve ceder perante os fins de prevenção geral da lei fiscal. Em suma, se por um lado, os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real não são absolutos antes tendo como limites outros valores constitucionalmente protegidos, por outro, o princípio da justiça não pode dar cobertura a situações como a dos autos, numa ponderação global dos interesses em presença, mediada pelo princípio da proporcionalidade: deve, no entendimento deste Tribunal, dar-se prevalência ao interesse público de prevenção e combate à fraude fiscal, sendo que neste juízo de ponderação deve ser tido igualmente em conta o princípio da justiça na perspetiva dos contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais, que de outra forma seriam discriminados face aos que sistematicamente não as cumprem. No caso em concreto, decidir no sentido do pretendido pela Requerente, corresponderia também a ignorar a obrigação que sobre ela impende quanto às exigências de contabilidade organizada.

O reconhecer, neste concreto caso e pelos motivos expostos, a prevalência do princípio da especialização dos exercícios não pode ser interpretado como “violação do princípio da proporcionalidade (proibição de excesso) que resulta da consagração do princípio do Estado de direito democrático inscrito no artigo 2.º da Constituição, com concretização particular nos artigos18.º, n.º 2, e 266.º n.º 2, da Constituição, 52º e por violação dos princípios da iniciativa privada, da propriedade privada, incluindo dos meios de produção, e da liberdade de gestão e organização empresarial, que se retiram ou deduzem dos artigos 62.º (direito de propriedade privada), 80.º, alínea c) (liberdade de iniciativa e de organização empresarial), 81,º alínea f) (liberdade de gestão empresarial, que tem por contraponto um Estado que promove a neutralidade por oposição a criar distorções) 82.º, nºs 1 e 3 (garantia de existência do sector privado) e 86.º, n.º 2 (proibição de intervenção por parte do Estado na gestão das empresas privadas), todos da Constituição”, como pretende a Requerente.» (negrito nosso).

54. Tal como assinalado no Acórdão do STA de 09/10/2019), processo n.º 01278/12.2BELRS 0574/18:

“Por outro lado, o princípio da justiça deve ser interpretado e aplicado como elemento integrador da norma da periodização do lucro tributável, no sentido de garantir a sua efectividade, impedindo, ao mesmo tempo, que essa regra possa ser interpretada e aplicada como uma barreira fictícia, legitimadora de situações de duplicação de uma qualificação tributária desfavorável quando estão em causa elementos integrantes da completude normativa do facto tributário comunicável inter-exercícios (em última instância, um elemento de um único facto tributário).

Questão diferente seria, como pretende a recorrida, que o Supremo Tribunal Administrativo mobilizasse aquele princípio fundamental para, neste caso concreto, “corrigir”, anulando-a, uma liquidação efectuada de acordo com a lei, fundamentando essa anulação na alegada interpretação normativa contraditória da Administração Fiscal em exercícios fiscais distintos e relativamente a elementos determinantes do facto tributário (a qualificação das variações cambiais) que se repetem entre exercícios (são tomadas em conta em ambos), mas que não são comunicáveis inter-exercícios (o apuramento em um exercício não corresponde simetricamente ao valor a apurar e a integrar no outro).

Ora, tal não é juridicamente possível, a não ser que o Tribunal entendesse que o princípio da justiça deveria, neste caso, operar como critério normativo autónomo e alternativo ao princípio da legalidade, o que redundaria numa aplicação ad hoc de critérios não previstos pelo legislador no âmbito das operações de liquidação dos tributos (…)»(negrito nosso).

55. De igual forma, sustenta ainda a AT, não se vislumbra de que forma terá ocorrido o alegado vício de falta de fundamentação, pois a Requerente nada concretiza quanto à sua ocorrência.

56. É incontroverso, atenta a jurisprudência maioritária, que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do ato a decidir daquela maneira e não outra.

57. O RIT indica os concretos factos e fundamentos que sustentam as correções, constando do mesmo, de forma coerente e devidamente sustentada, de facto e de direito, a desconsideração dos gastos declarados.

58. Do RIT não resulta qualquer falta de fundamentação, sendo dado a conhecer o itinerário seguido pelo autor da decisão, em conformidade com o dever consagrado no n.º 3 do artigo 268.º da CRP, no artigo 77.º da LGT e nos artigos 124.º e 125.º do CPA, dele constando todos

os elementos de que a Requerente poderia necessitar para compreender e apreender as correções que lhe foram efetuadas.

59. Por último, sustenta ainda a AT, que não ocorreu a invocada violação do princípio do inquisitório, plasmado no artigo 58.º da LGT.

60. Quanto à questão do ónus da prova e do princípio inquisitório transcreve-se, com a devida vénia, o Acórdão do TCA Norte, de 12-01-2012, proferido no Proc. n.º 00624/05.0BEPRT:

«O princípio do inquisitório encontra, como se sabe, a sua justificação na prossecução do interesse público imposto à Administração Tributária e no dever de imparcialidade que norteia toda a actividade administrativa (artigos 266º, nº 1, da CRP e 55º da LGT). Como é evidente, esta obrigação da Administração de averiguar a verdade material não retira aos contribuintes o seu dever de colaboração na produção de provas, como resulta do artigo 59º da LGT. No entanto, como tem vindo a ser entendido, a não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, pode ser fundamento de ilegalidade do acto tributário ou em matéria tributária. Porém, sem prejuízo daquilo que ficou dito, deve ter-se presente o seguinte, por forma a evitar cair num erro que pode ser fatal na apreciação destas questões: o princípio do inquisitório não obriga a Administração a investigar, nos casos em que caiba ao contribuinte o ónus da prova, pretensões sem o mínimo de suporte probatório. Por outras palavras, e no que toca ao alcance de tal princípio, “a previsão desta obrigação da administração tributária de averiguar os factos relevantes para a decisão não significa que ela tenha o ónus da prova desses factos, pois apenas a insuficiência probatória de factos constitutivos dos direitos invocados pela Administração é valorada processualmente contra ela (art. 74.º, n.º 1, da L.G.T.)”Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 1999, Vislis Editores, pág. 192.» (negrito nosso).

61. Ora, “in casu”, os SIT atuaram no estrito cumprimento do princípio invocado, tendo diligenciadono sentido de carrear para o procedimento inspetivo os elementos necessários ao apuramento da situação tributária da Requerente.

 

II. THEMA DECIDENDUM:

 

62. A questão de fundo a apreciar no presente processo é a de saber se, tendo presente os princípios da especialização dos exercícios e da justiça, a Requerente pode ou não considerar no exercício de 2017 os gastos suportados nos exercícios de 2015 e 2016.

 

63. Cumpre, pois, proferir a decisão.

 

III. SANEAMENTO:

 

64. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos tributários de liquidação adicional de IRC e JC, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

65. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram- se regularmente representadas (Cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

66. A ação é tempestiva, porque apresentada no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

67. O processo não enferma de nulidades e não existem exceções a apreciar.

 

 

IV. DECISÃO:

 

IV.A)     FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS:

 

68. Antes de entrarmos na apreciação do mérito, cumpre fixar a matéria factual que é relevante para a respetiva decisão:

69. Requerente é uma sociedade comercial que exerce a atividade no domínio da produção de eletricidade eólica, com o CAE principal 35113 – PROD. ELECTRIC. ORIGEM EÓLICA, GEOTÉRMICA, SOLAR e N.E. e encontra-se tributada em IRC pelo regime geral e em sede de IVA enquadrada no regime normal.

69. A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva de natureza interna e âmbito parcial (IRC e IVA), de acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 14º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

70. No dia 24 de abril de 2020, a Requerente foi notificada, pelo ofício n.º DF LISBOA..., datado de 21 de agosto de 2020, para no prazo de 25 dias, querendo, exercer o direito de audição sobre o Projeto de Relatório de Inspeção, nos termos previstos no artigo 60º da LGT e artigo 60.º do RCPITA, relativo à ação inspetiva ao período de 2017.

71. A Requerente não exerceu o respetivo direito de audição prévia, tendo a inspeção tributária concluído no sentido da manutenção das correções propostas no projeto de relatório.

72. Pelo ofício n.º DFLISBOA..., datado de 30 de setembro de 2020, a Requerente foi notificada das correções de análise interna resultantes da ação de inspeção, de natureza meramente aritméticas, em sede de IRC, referentes ao período de 2017, tendo a referida notificação sido efetuada, nos termos do artigo 62º do RCPITA.

73. A AT não aceita como gasto para efeitos fiscais o montante de € 555 507,53, inscrito no campo 764 do quadro 7 da declaração modelo 22 do exercício de 2017, por entender não estarem verificados os requisitos legais previstos nos artigos 23º, nº 1 e 18º, números 1 e 2, ambos do Código do IRC.

74. No dia 29 de outubro de 2020, a Requerente foi notificada para efetuar o pagamento, até ao dia 14 de dezembro de 2020, da liquidação adicional do IRC, referente ao exercício de 2017 (Liquidação 2020..., de 2020-10-22 e Demonstração de Acerto de Contas (Compensação) n.º 2020..., de 2020-10-26), no montante total de € 153.281,72, sendo o valor € 141.654,42 respeitante a IRC e o quantitativo de € 11.627,30 correspondente a Juros Compensatórios.

75. A Requerente efetuou o pagamento da liquidação adicional do IRC do exercício de 2017, bem como dos juros compensatórios, no montante total de € 153.281,72 (N.º Referência DUC: ... de 27-11-2020, efetuado através da “ B...).

 

IV.B)      FACTOS NÃO PROVADOS:

76. Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.

 

IV.C)      FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:

 

 

77. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

78. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados

em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. art.º 596.º do CPC).

79. A convicção sobre os factos assim dados como provados fundou-se nas posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados, na prova documental e no Processo administrativo juntos aos autos, no depoimento da testemunha arrolada e ainda nas alegações aduzidas pelas partes, Requerente e Requerida, que não foram impugnadas pela parte contrária.

 

IV.D)     DO DIREITO:

IV. D1) DA LEGALIDADE DA ACEITAÇÃO COMO GASTO DO EXERCÍCIO DE 2017 DOS CUSTOS SUPORTADOS NOS EXERCÍCIOS DE 2015 E 2016:

80. Com a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, o POC sofreu diversas alterações até à aprovação do DL n.º 158/2009, de 13 de julho, que aprovou o Sistema de Normalização Contabilística (SNC), revogando o POC.

81. O SNC entrou em vigor em Portugal em 1 de janeiro de 2010 e, em 2 de junho de 2015, foi publicado o DL nº 98/2015, de 2 de junho, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2016, e transpôs para o ordenamento jurídico português a Diretiva n.º 2013/34/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, relativa às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações consolidadas e aos relatórios conexos de certas formas de empresas.

82. Em consonância com o disposto no CIRC, a EC do Sistema de Normalização Contabilística, publicada no Aviso n.º 8254/2015, de 29 de Julho, no seu § 22, diz: “A fim de satisfazerem os seus objetivos, as demonstrações financeiras são preparadas de acordo com o regime contabilístico do acréscimo. Através deste regime, os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos) sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. As demonstrações financeiras preparadas de acordo com o regime de acréscimo informam os utentes não somente das transações passadas envolvendo o pagamento e o recebimento de caixa mas também das obrigações de pagamento no futuro e de recursos que representem caixa a ser recebida no futuro. Deste modo, proporciona -se informação acerca das transações passadas e outros acontecimentos que seja mais útil aos utentes na tomada de decisões económicas.”

84. A estrutura conceptual do SNC determina para as entidades a obrigatoriedade de elaborarem as suas demonstrações financeiras em obediência ao regime contabilístico do acréscimo ou da periodização económica, tal com se encontra estabelecido no respetivo parágrafo 22.

85. Do ponto de vista do Código do IRC, dispõe o respetivo artigo 17º, nº 3, alínea a) que os sujeitos passivos se encontram obrigados a cumprir as regras de normalização contabilística que lhes sejam aplicáveis.

86. Por outro lado, o legislador fiscal consagrou ainda expressamente, no artigo 18.º do referido Código, que na determinação do lucro tributável é obrigatório observar a periodização económica ou especialização dos exercícios.

87. Resulta assim que, face ao normativo contabilístico, reforçado pelas normas fiscais, uma componente negativa do lucro tributável, como é o caso dos gastos, só poderá ser imputada a um período de tributação posterior se, à data de encerramento das contas do exercício a que respeita, for manifestamente desconhecida ou imprevisível.

88. Com efeito, como bem salienta a entidade Requerida, à data do encerramento das contas relativas aos exercícios de 2015 e 2016, tais despesas não podiam ser consideradas pela Requerente como manifestamente desconhecidas ou imprevisíveis, porquanto foram incorridas e suportadas nesses mesmos períodos de tributação.

89. Na verdade, conforme consta do relatório da inspeção tributária que incidiu sobre o período de tributação de 2013, a AT não aceitou como gasto fiscal desse exercício a provisão no montante de 1.818.324,00 €, uma vez que considerou que “…os encargos associados à deslocalização dos aerogeradores apenas serão dedutíveis, para efeitos fiscais, no período em que esta efetivamente ocorrer e estes forem suportados (por ser nesse momento que os mesmos estão comprovados para efeitos do estabelecido no art.º 23.º do CIRC), considerando ainda que “…a provisão em causa, reconhecida pelo sujeito passivo como gasto no período de 2013, não se enquadra na al. h) do n.º 1 do art.º 23.º e no art.º 39.º, ambos do CIRC, nem se mostra suportada numa estimativa suficientemente fiável, não deverá esta última ser aceite fiscalmente.».

90. Acontece que a Requerente se conformou com a não aceitação da provisão em relação ao exercício de 2013, razão pela qual imputou ao exercício de 2017 os custos suportados nos exercícios de 2015 e 2016 com a deslocalização e restantes operações relacionadas com os aerogeradores.

91. Deve, no entanto, ter-se presente que, como refere a entidade Requerida, a ação inspetiva ao exercício de 2013 foi encerrada no dia 27 de maio de 2016, em momento anterior ao termo do prazo de entrega das declarações Modelo 22 dos exercícios de 2015 e 2016, que se reporta ao último dia do mês de maio, de acordo com o disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRC.

92. Acresce ainda que a Requerente foi notificada no dia 5 de julgo de 2017 do acórdão arbitral que não aceitou a constituição da provisão em relação ao exercício de 2013, o que significa que, mesmo ultrapassado o prazo para a apresentação das declarações modelo 22 do IRC dos exercícios de 2015 e 2016, sempre teria a possibilidade de apresentar as declarações de substituição, em relação a qualquer dos dois exercícios, declarando os custos suportados e acima mencionados, por via do disposto nos números 2 e 3 do artigo 122º do Código do IRC.

93. Nesta conformidade, acompanha-se a posição sustentada pela Requerida, que aponta no sentido de que os encargos associados à deslocalização dos aerogeradores só não foram considerados pela Requente na autoliquidação dos períodos de 2015 e 2016 por opção sua, não ocorrendo nenhuma situação manifestamente desconhecida ou imprevisível suscetível de ser enquadrada na exceção ao princípio da especialização dos exercícios a que se refere o n.º 2 do artigo 18.º do CIRC e que prevê uma exceção apenas nos casos em que as componentes positivas ou negativas do lucro tributável sejam, à data de encerramento das contas de determinado exercício, imprevisíveis ou manifestamente desconhecida.

94. Este entendimento é, de resto, o que tem vindo a ser seguido pela jurisprudência do CAAD, conforme se pode verificar pelo conteúdo do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 582/2017-T e que de seguida se evidencia:

 

«O ponto é que a aplicação do critério de periodização dos rendimentos não pode ficar dependente de decisões de gestão empresarial que a Administração Tributária não pode controlar. A periodização do rendimento tributável permite definir o momento em que o rendimento deve ser efectivamente levado à tributação e destina-se a facilitar a obtenção de informação, não só por parte do Estado, mas também das empresas, que poderão calcular os seus custos e proveitos, numa base anual, para efeitos financeiros e fiscais. Apesar da maior flexibilidade do princípio da periodização no direito contabilístico quanto ao momento do reconhecimento dos réditos (cfr. nomeadamente, parágrafos 18 e 22 da NCRF 20), o certo éque tal não pode justificar, no plano fiscal, o uso de um critério aleatório em que aimputação dos gastos ou dos proveitos a um certo ano económico é determinada combase em meras opções de gestão do empresário.

Como antes se anotou, o princípio da periodização dos rendimentos, em IRC, pode ser flexibilizado, em certas circunstâncias, por razões de justiça material. Mas não é essa a situação do caso. Se o sujeito passivo entende que deverá prescindir da cobrança dos juros de mora debitados a certos clientes, os montantes correspondentes poderão ser levados a custos no ano económico em que perdeu a vantagem patrimonial. Não há aí um qualquer agravamento fiscal ou a desconsideração de proveitos de que o contribuinte deixou de beneficiar. O que sucede é que os rendimentos e os custos são imputados aos anos económicos em que contabilisticamente foram obtidos ou suportados.».

95. Nem sequer se invoque, no caso concreto em apreço, o princípio da justiça, tendo em conta que a Requerente tinha, e tem ainda, a possibilidade de utilizar os procedimentos de apresentação das declarações de substituição, sem prejuízo da possibilidade de utilização da reclamação graciosa ou do pedido de revisão do ato tributário a que se referem, respetivamente, o artigo 68º e seguintes do Código de Procedimento e do Processo Tributário e o artigo 78º da Lei Geral Tributária, um e outro com a possibilidade de abrirem o recurso à via judicial.

96. Como bem refere a entidade Requerida na sua Resposta ao Pedido de Pronúncia, a decisão arbitral proferida em 2012-09-28, proc. n.º25/2012-T aponta no sentido que tem vindo a ser defendido, conforme se pode verificar pelas partes mais relevantes:

«[t]odavia, não decorre deste princípio um dever jurídico de colmatar ou corrigir atos ou omissões dos contribuintes salvo se tal ocorrer de forma involuntária ou não intencional. Doutro modo, estaria sempre encontrada a forma de, à luz de tal princípio, tudo ser permitido, designadamente v. g., atos processuais fora de prazo, recursos ainda que a Lei os não permita, etc.

Naturalmente que tal não pode ser porquanto e além do mais, razões e princípios se sobrepõem como os da segurança e certeza jurídicas.

Ou seja: o princípio da justiça será (ou poderá ser) a válvula de escape para o exercíciode um direito ou reposição da justiça duma concreta situação tão só e apenas quando na sua invocação não esteja um ato ou omissão voluntários e se considere intolerável vedar, por razões formais ou processuais, o exercício do direito.

[…]

E tal omissão não foi evidentemente decorrente de qualquer circunstância ou razão impeditiva ou de desconhecimento mas tão só e apenas porque não quis fazê-lo, quiçá por razões de estratégia comercial, de gestão ou outras.

Assim e se não usou do direito (e dever) no tempo e modo devidos, sibi imputat.[…]

Não é certamente para colmatar e dar resposta a omissões deliberadas dos contribuintes que existe a mencionada norma constitucional.

Ou seja: também nesta perspetiva se coloca a questão da divergência de posições consoante as omissões ou incorreções declarativas resultem de atos ou omissões desculpáveis dos

contribuintes passíveis de correção à luz dos princípios da justiça e da verdade fiscal ou, pelo contrário, tais omissões ou incorreções resultem de estratégias deliberadas (comerciais, de gestão ou outras), fruto assim da vontade do contribuinte ou mesmo de lapso indesculpável.».

97. De igual modo e em idêntico sentido conclui a decisão arbitral proferida no processo n.º 442/2017-T, a qual, em função da prevalência do princípio da justiça, dispõe da seguinte forma:

«[d]e facto, em bom rigor, em face do princípio da especialização, no entender deste Tribunal, o gasto já devia ter sido imputado e deduzido ou, pelo menos, provisionado no ano de 2013; não o tendo feito nesse ano, a Requerente podia ainda ter apresentado, no prazo legal, reclamação graciosa da respetiva autoliquidação. Mas não! Vem reportá-lo ao exercício de 2015 […] Entendemos que, ao contrário do alegado pela Requerente, a resolução da questão decidenda não pode ser encarada acentuando apenas o relevo que nos merecem os princípios da justiça e da capacidade contributiva, antes exige uma ponderação global dos interesses em presença mediada pelo princípio da proporcionalidade.

Com efeito, não podemos deixar de ter em conta as exigências legais de natureza formal e de especialização dos exercícios e que estas têm subjacentes objetivos como o controlo da atividade do contribuinte, a promoção da realidade e a proteção do interesse público no combate à fuga e à evasão fiscal. Por essa razão se compreende o estabelecimento pela lei da sanção da não dedutibilidade dos custos para a violação das obrigações acessórias e formais por parte do contribuinte: o princípio da tributação segundo o lucro real deve ceder perante os fins de prevenção geral da lei fiscal. Em suma, se por um lado, os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real não são absolutos antes tendo como limites outros valores constitucionalmente protegidos, por outro, o princípio da justiça não pode dar cobertura a situações como a dos autos, numa ponderação global dos interesses em presença, mediada pelo princípio da proporcionalidade: deve, no entendimento deste Tribunal, dar-se prevalência ao interesse público de prevenção e combate à fraude fiscal, sendo que neste juízo de ponderação deve ser tido igualmente em conta o princípio da justiça na perspetiva dos contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais, que de outra forma seriam discriminados face aos que sistematicamente não as cumprem. No caso em concreto, decidir no sentido do pretendido pela Requerente, corresponderia também a ignorar a obrigação que sobre ela impende quanto às exigências de contabilidade organizada.

O reconhecer, neste concreto caso e pelos motivos expostos, a prevalência do princípio da

especialização dos exercícios não pode ser interpretado como “violação do princípio da proporcionalidade (proibição de excesso) que resulta da consagração do princípio do Estado de direito democrático inscrito no artigo 2.º da Constituição, com concretização particular nos artigos18.º, n.º 2, e 266.º n.º 2, da Constituição, 52º e por violação dos princípios da iniciativa privada, da propriedade privada, incluindo dos meios de produção, e da liberdade de gestão e organização empresarial, que se retiram ou deduzem dos artigos 62.º (direito de propriedade privada), 80.º, alínea c) (liberdade de iniciativa e de organização empresarial), 81,º alínea f) (liberdade de gestão empresarial, que tem por contraponto um Estado que promove a neutralidade por oposição a criar distorções) 82.º, nºs 1 e 3 (garantia de existência do sector privado) e 86.º, n.º 2 (proibição de intervenção por parte do Estado na gestão das empresas privadas), todos da Constituição”, como pretende a Requerente».

98. Sustenta ainda a Requerente que as liquidações padecem de falta de fundamentação, o que manifestamente não parece verificar-se no caso concreto em apreço, entendendo o Tribunal Arbitral que são evidentes as razões que levaram a AT a decidir no sentido de não aceitar no exercício de 2017 os gastos referentes aos exercícios de 2015 e 2016.

99. A análise do relatório elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária permite identificar claramente os factos e as razões de Direito que sustentam as correções efetuadas e acima identificadas.

100. Finalmente, carece igualmente de base legal que a sustente a invocação da violação do princípio do inquisitório, previsto no artigo 58.º da LGT, uma vez consta do relatório que os Serviços de Inspeção diligenciaram no sentido de incorporar no procedimento inspetivo os elementos necessários ao apuramento da situação tributária da Requerente.

 101. A este propósito, deve ter-se presente o Acórdão do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2012, proferido no Proc. n.º 00624/05.0BEPRT e que refere o seguinte:

«O princípio do inquisitório encontra, como se sabe, a sua justificação na prossecução do interesse público imposto à Administração Tributária e no dever de imparcialidade que norteia toda a actividade administrativa (artigos 266º, nº 1, da CRP e 55º da LGT). Como é evidente, esta obrigação da Administração de averiguar a verdade material não retira aos contribuintes o seu dever de colaboração na produção de provas, como resulta do artigo 59º da LGT.

No entanto, como tem vindo a ser entendido, a não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, pode ser fundamento de ilegalidade do acto tributário ou em matéria tributária. Porém, sem prejuízo daquilo que ficou dito, deve ter-se presente o seguinte, por forma a evitar cair num erro que pode ser fatal na apreciação destas questões: o princípio do inquisitório não obriga a Administração a investigar, nos casos em que caiba ao contribuinte o ónus da prova, pretensões sem o mínimo de suporte probatório. Por outras palavras, e no que toca ao alcance de tal princípio, “a previsão desta obrigação da administração tributária de averiguar os factos relevantes para a decisão não significa que ela tenha o ónus da prova desses factos, pois apenas a insuficiência probatória de factos constitutivos dos direitos invocados pela Administração é valorada processualmente contra ela (art. 74.º, n.º 1, da L.G.T.)”Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 1999, Vislis Editores, pág. 192».

102. Tudo visto, conclui o Tribunal Arbitral que o princípio da especialização dos exercícios está ancorado na prossecução do interesse público da prevenção e combate da evasão fiscal, o que significa que o caso concreto em apreço não se enquadra no tipo de situações que a aplicação do princípio da justiça pretende salvaguardar, desde logo, porquanto, não ficou demonstrada qualquer injustiça que permitisse equacionar a derrogação do princípio nos termos em que a jurisprudência acima identificada o admite e, ademais, porquanto, entende o Tribunal Arbitral que a Requerente tinha ao seu dispor, em alternativa, a possibilidade de corrigir, por via da substituição, as declarações periódicas do IRC dos exercícios de 2015 e de 2016 ou de apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão do ato tributário.

103. Havendo provas evidentes de que os gastos suportados em 2015 e 2016 poderiam ter sido imputados nos respetivos exercícios e não havendo factos suscetíveis de integrar a exceção prevista no nº 2 do artigo 18º do Código do IRC, o Tribunal Arbitral entende que há uma clara violação do princípio contabilístico da especialização dos exercícios, constante do art.º 18º anteriormente mencionado, a qual não é suscetível de ser afastada pelo princípio da justiça, donde resulta que os atos tributários praticados pela entidade Requerida e que se traduziram em liquidações adicionais de imposto não padecem de qualquer ilegalidade, devendo, por isso, ser mantidos.

 

V. DECISÃO:

Face ao exposto, o Tribunal Arbitral decide:

a) Julgar improcedente o presente Pedido de Pronúncia Arbitral, por não provado;

b) Absolver a Requerida de todos os pedidos, com as consequências legalmente devidas.

 

VI. VALOR DO PROCESSO:

Fixa-se o valor do processo em 153.281,72 €, em conformidade com o disposto no artigo 97º - A do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. CUSTAS:

Fixa-se o valor das custas em 3 672,00 €, calculadas em conformidade com a Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, em função do valor do pedido, a cargo da Requerente, por decaimento, nos termos do disposto nos artigos 12º, nº 2 e 22º, nº 4 do RJAT e ainda do artigo 4.º, n.º 5 do RCPAT e artigo 527, números 1 e 2 do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 21 de janeiro de 2022.

 

Os Árbitros

Manuel Macaísta Malheiros (Presidente)

José Rodrigo de Castro

Paulo Lourenço

(Relator)

Nos termos do artigo 15º-A do DL nº 10º-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL nº 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade do Árbitro Presidente, Senhor Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros, e do Árbitro Adjunto, Senhor Dr. José Rodrigo de Castro.