Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 237/2021-T
Data da decisão: 2021-12-29  ISV  
Valor do pedido: € 3.578,28
Tema: ISV – liquidação (art. 11.º do CISV e art. 110.º do TFUE).
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Sumário

O art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto esta norma impede que de termine o cálculo do imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro da UE sem ter em conta a depreciação dos mesmos, permitindo que o imposto aplicado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.

 

I – Relatório

1.A..., NIF ..., residente na Rua ..., ..., ..., ...-... Vila Nova de Gaia,  B..., NIF..., residente na Rua ..., ...– ...,   ..., ...-... Vila Nova de Gaia e C..., NIF ..., residente na Rua ..., ..., ..., ...-... Vila Nova de Gaia, vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a ilegalidade dos actos de liquidação do ISV (Imposto Sobre Veículos) resultante da não aplicação da redução prevista no art. 11.º do CISV à componente ambiental, e condenar a Autoridade Tributária (AT) a restituir a quantia de € 3.578,28, acrescida de juros indemnizatórios calculados à taxa legal em vigor à data do pagamento, desde a data do pagamento do imposto até à efectiva restituição.

2.O primeiro Requente alega ter importado um veículo ligeiro de passageiros, de marca..., ao qual foi atribuída a matrícula ... e que tinha sido matriculado pela primeira vez na Alemanha, em 28.09.2011, tendo procedido à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT liquidado o ISV pelo valor de € 4.639,42, do qual, € 1.573,07 correspondem ao valor cilindrada e € 3.066,35 ao valor da componente ambiental - sendo que, relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido da redução resultante do número de anos de uso do veículo, conforme a percentagem indicada na DAV.

3.O segundo Requente alega ter importado um veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., ao qual foi atribuída a matrícula ... e que tinha sido matriculado pela primeira vez na Alemanha, em 24.02.2012, tendo procedido à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT liquidado o ISV pelo valor de € 1.455,79, do qual, € 870,06 correspondem ao valor cilindrada e € 585,73 ao valor da componente ambiental - sendo que, relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido da redução resultante do número de anos de uso do veículo, conforme a percentagem indicada na DAV.

4.O terceiro Requente alega ter importado os quatro veículos ligeiros de passageiros (um..., a gasóleo, ao qual foi atribuída a matrícula ...; um ..., a gasóleo, ao qual foi atribuída a matrícula ...; dois ..., a gasóleo, aos quais foram atribuídas as matrículas ... e ...), os quais tinham sido matriculados pela primeira vez entre 23.12.2011 e 16.06.2014, tendo procedido às correspondentes declarações aduaneiras, na sequência das quais a AT procedeu às liquidações dos respectivos ISV pelo valor global de € 6.304,12, do qual, € 4.732,34 correspondiam aos valores da componente cilindrada e € 1.571.77 aos valores da componente ambiental - sendo que, relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido da redução resultante do número de anos de uso dos veículos, conforme as percentagens indicadas nas DAV.

5.Os Requerentes procederam ao pagamento dos impostos liquidados, mas consideram que as liquidações estão feridas de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, porque, no seu entender, a norma jurídica que esteve na base daquelas liquidações – o art. 11º do CISV – viola o art. 110º. do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).

6.Recordam, em seu favor, os termos do próprio Tribunal de Justiça da UE quando afirmou que a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional – tal como resulta da jurisprudência do TJUE (cf. ac. de 16.06.2016, Comissão/Portugal, proc. C-200/15, n.º 25).

 7.Ora, acontece que a redução do montante residual de imposto aplicada nos termos do CISV apenas incide sobre a componente da cilindrada, ignorando a componente ambiental,

8.O que permite à AT cobrar um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo, o que gera uma discriminação fiscal proibida por aquela norma do TFUE.

9.Essa circunstância está na origem de um novo processo de infracção da Comissão europeia contra Portugal que – não tendo o nosso país adequado a sua legislação nos termos indicados no parecer fundamentado daquela instituição europeia – resultou na instauração, em 23.04.2020, do proc. C-169/2020.

10.A mesma circunstância foi já objecto de mais de duas dezenas de decisões arbitrais do CAAD (algumas delas transitadas em julgado) que, com base nos mesmo fundamentos, anularam parcialmente as liquidações de ISV na parte respeitante à não redução da componente CO2.

11.Tal ilegalidade, referem os requerentes, foi já reconhecida pelo próprio Governo ao propor a alteração do art. 11.º do CISV – o que foi aprovado pela Assembleia da República na Lei do Orçamento para 2021 – a qual alterou a tabela de desvalorização pelo número de anos de uso dos veículos também relativamente à componente CO2.

12.Pretende, por isso, os Requerentes que as reduções aplicadas à componente cilindrada sejam também aplicadas à componente ambiental, o que implica a descida do ISV a pagar, em € 2.416.45 para o primeiro requerente, em € 380,72 para o segundo requerente e em € 781,11 para o terceiro requerente.

13.Montantes que deverão ser restituídos aos requerentes acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º da LGT.

 

14.Em 23.04.2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, na mesma data.

15.Em conformidade com os artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do tribunal arbitral singular que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

16.As partes, notificadas dessa designação em 9.6.2021, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º/1 a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, sendo o tribunal arbitral singular constituído em 29.06.2021.

17.Em 13.07.2021, foi proferido o despacho nos termos do art. 17.º/1 do RJAT, para notificação da Sr.ª Directora-geral da AT, a fim de que esta juntasse o processo administrativo e apresentasse resposta no prazo de trinta dias e, bem assim, querendo, solicitasse a produção de prova adicional.

18.A Requerida não apresentou resposta, mas juntou o processo administrativo em 17.11.2021.

19.Em 29.11.2021 foi proferido despacho no qual, considerando que a matéria de facto poderia ser fixada com base na prova documental, se dispensava a reunião prevista no art. 18.º do RJAT e a apresentação de alegações escritas.

20.Não obstante, veio a Requerida, em 7.12.2021, apresentar alegações, nas quais invoca um erro de cálculo (de € 270) relativo ao pedido de reembolso apresentado pelo primeiro Requerente, questiona o próprio pedido de restituição (por considerar que esta, a ocorrer, será competência das alfândegas) e considera ainda que a haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, estes só serão devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa e já não desde a data do pagamento do imposto.

21.Notificados das alegações, os Requerentes requereram o desentranhamento das mesmas face ao despacho arbitral de 29.11.2021, reconhecendo, todavia, a ocorrência de um lapso de escrita na indicação do montante reclamado pelo primeiro requerente (nos termos referidos pela Requerida), pelo que solicitaram a rectificação do mesmo.

 

II. Saneamento

22.O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cf. art.os 2.º/1 a) e 5.º do RJAT).

23.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º/1 a) do RJAT.

24.As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. art.s 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.03).

25.O processo não enferma de nulidades, havendo apenas que decidir a questão prévia das alegações apresentadas pela Requerida quando estas tinham sido dispensadas e do consequente pedido de desentranhamento pelos Requerentes.

26.Neste ponto, é incontestável a extemporaneidade das alegações da Requerida, a qual não pode vir arrogar-se ao direito de não prescindir do contraditório – principalmente depois de optar por não o fazer no momento processual adequado, ao não apresentar resposta.

27.Evitando incidentes processuais que imporiam o prolongamento desnecessário do período decisório, as alegações serão, por isso, em tudo desconsideradas – com excepção da redução em € 270 do montante relativo à componente ambiental que resultaria da aplicação das percentagens de redução aplicadas à componente cilindrada, já que essa correcção foi reconhecida e solicitada pelo próprio Requerente.

 

III. Matéria de facto

Factos provados

28.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

  1. O primeiro Requerente importou da Alemanha um veículo ligeiro de passageiros, de marca ... conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2019/..., datada de 1.10.2019, da Alfândega do Freixieiro.
  2. Tratando-se de um veículo com entre 8 e 9 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 70%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
  3. O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
  4. A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 70% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
  5. A liquidação do imposto fixou o valor total de € 4.639,42, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
  6. Este valor (de € 4.639,42) resulta do somatório de € 5.243,58 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 3.066,35 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 3.670,51 (valor que corresponde a 70% da primeira parcela).
  7. O segundo Requerente importou da Alemanha um veículo ligeiro de passageiros, de marca ... conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2019/..., datada de 10.08.2019, da Alfândega do Freixieiro.
  8. Tratando-se de um veículo com entre 7 e 8 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 65%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
  9. O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
  10. A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 65% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
  11. A liquidação do imposto fixou o valor total de € 1.455,79, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
  12. Este valor (de € 1.455,79) resulta do somatório de € 2.485,88 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 585,73 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 1.615,82 (valor que corresponde a 65% da primeira parcela).
  13. O terceiro Requerente importou da Bélgica um veículo ligeiro de passageiros, de marca ... conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2018/..., datada de 11.12.2018, da Alfândega do Freixieiro.
  14. Tratando-se de um veículo com entre 5 e 6 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 52%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
  15. O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
  16. A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 52% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
  17. A liquidação do imposto fixou o valor total de € 1.295,46, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
  18. Este valor (de € 1.295,46) resulta do somatório de € 2.293,60 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 194,53 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 1.192,67 (valor que corresponde a 52% da primeira parcela).
  19. O terceiro Requerente importou da Alemanha um veículo ligeiro de passageiros, de marca ...conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2018/..., datada de 25.07.2018, da Alfândega do Freixieiro.
  20. Tratando-se de um veículo com entre 5 e 6 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 52%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
  21. O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
  22. A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 52% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
  23. A liquidação do imposto fixou o valor total de € 1.778,95, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
  24. Este valor (de € 1.778,95) resulta do somatório de € 2.485,88 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 585,73 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 1.292,66 (valor que corresponde a 52% da primeira parcela).
  25. O terceiro Requerente importou da Alemanha um veículo ligeiro de passageiros, de marca ... conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2017/..., datada de 21.12.2020, da Alfândega do Freixieiro.
  26. Tratando-se de um veículo com entre 4 e 5 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 52%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
  27. O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
  28. A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 52% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
  29. A liquidação do imposto fixou o valor total de € 1.754,75, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
  30. Este valor (de € 1.754,75) resulta do somatório de € 2.450,47 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 578,52 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 1.274,24 (valor que corresponde a 52% da primeira parcela).
  31. O terceiro Requerente importou da Alemanha um veículo ligeiro de passageiros, de marca ... conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2017/..., datada de 21.12.2020, da Alfândega do Freixieiro.
  32. Tratando-se de um veículo com entre 2 e 3 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 35%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
  33. O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
  34. A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 35% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
  35. A liquidação do imposto fixou o valor total de € 1.474,96, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
  36. Este valor (de € 1.474,96) resulta do somatório de € 1.941,49 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 212,99 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 679,52 (valor que corresponde a 35% da primeira parcela).

 

Factos não provados

29.Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

30.O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.

 

III. Matéria de Direito

31.O presente pedido de pronúncia arbitral fundamenta-se na ilegalidade da norma do artigo 11.º do CISV, relevante na liquidação ora impugnada, por violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.

32.A questão que se coloca é saber se as liquidações de ISV relativas às viaturas usadas identificadas nos autos padecem ou não de ilegalidade parcial, devendo, em caso afirmativo, declarar-se a anulação parcial daqueles actos tributários (conforme pretendem os Requerentes).

33.De facto, a aplicação do referido art. 11.º do CISV aos veículos portadores de matrículas de Estados membros da UE tem em vista contemplar, no cálculo do imposto devido, a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, prevendo uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo – mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.

34.Defendem os Requerentes que a aplicação da referida norma leva a que seja cobrado aos veículos importados (a lei refere também o termo admitidos) de outros Estados membros da UE um imposto superior àquele que subsiste nos veículos idênticos transaccionados no mercado nacional, por não aplicar a redução à componente ambiental.

35.Tal circunstância configura uma discriminação fiscal proibida pelo art. 110.º TFUE.

36.A AT não se pronunciou relativamente a esta alegação.

37.A posição deste tribunal nesta matéria – que tem sido objecto de diversas decisões arbitrais – coincide com a expressa anteriormente nos proc. 98/2020-T e 365/2020 e 378/2020.

38.As taxas a aplicar para efeito de cálculo do ISV não incidem sobre o valor do automóvel, mas têm por base a cilindrada do motor (componente cilindrada) e a quantidade de CO2 emitida por quilómetro (componente ambiental) – sendo que foram estruturadas em taxa normal, taxa intermediária e taxa reduzida e taxa para veículos usados, nos termos do disposto nos artigos 7.º a 11.º do Código do ISV.

39.Para o cálculo do ISV devido por veículos usados portadores de matrículas atribuídas por outros Estados membros da UE, dispõe o artigo 11.º/1 e 2 do CISV o imposto  […] é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com excepção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional.

40.Esta matéria (da aplicação do ISV aos veículos importados de outros Estados membros) vem sendo objecto de um prolongado atrito entre as instituições europeias e o Estado Português, no tocante à legalidade do regime nacional (que vem sendo objecto de sucessivas modificações).

41.No seguimento de algumas decisões desfavoráveis ao entendimento oficial nacional, o ac. de 22.02.2001 (Gomes Valente, proc.º C-393/98) do Tribunal de Justiça afirmou que o montante máximo do imposto aplicável aos veículos usados importados é determinado pelo do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional (n.º 24).

42.O legislador vem, todavia, introduzindo pequenos ajustamentos no regime, sem cuidar de o adequar às exigências resultantes do TFUE, o que deu origem a novas reacções por parte da Comissão Europeia e do TJUE.

43.Pondo fim à discussão – ou ao que dela restava – o TJUE, em 2.9.2021 (proc. C-169/20. Comissão c. Portugal) decidiu, sobre a questão em apreço que [a]o não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.

44.Nesse sentido, não pode este tribunal arbitral deixar de insistir que o art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto aquela norma não pode, em conformidade com o que esta dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de forma a que o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.

 

45.A par do pedido de declaração da ilegalidade parcial das liquidações de ISV identificadas no processo, os Requerentes peticionam ainda juros indemnizatórios.

 

46.No que diz respeito ao pagamento de juros indemnizatórios, de acordo com o disposto no art. 24.º/5 do RJAT é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário, daqui resultando que uma decisão arbitral não se limita à apreciação da legalidade do acto tributário.

47.De igual modo, de acordo com o disposto no artigo 24.º/1 b) do RJAT, deverá ser entendido que o pedido de juros indemnizatórios é uma pretensão relativa a actos tributários (v.g. de liquidação), que visa explicitar/concretizar o conteúdo do dever de restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

48.Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos art. 43.º/1 e 2, e 100.º da LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

49.O direito a juros indemnizatórios depende, assim, da verificação de um erro imputável aos serviços da Requerida, do qual tenha resultado um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

50.Na sequência da declaração de ilegalidade parcial dos actos de liquidação de ISV identificados, na medida do peticionado pelos Requerentes, e nos termos do disposto no art. 24.º/1 b) do RJAT (em conformidade com o que aí se estabelece), a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, pelo que terá de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos pelo Requerente, relativos ao ISV na parte em que as liquidações se devem considerar anuladas, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivessem sido cometidas as ilegalidades já assinaladas.

51.Tratando-se de matéria na qual o Estado português vem sendo sucessivamente condenado – facto esse que é do pleno conhecimento dos serviços – e bem assim, porque se têm repetido decisões no sentido de impor à AT a correcção da situação em apreço – decisões essas que os serviços insistem em ignorar, mantendo uma visão da legalidade que nem no plano formal alcança sustentação, consideram-se preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, aos quais os Requerentes terão direito, à taxa legal, calculados sobre as quantias de ISV pagas indevidamente, os quais serão contados de acordo com o disposto no art. 61.º/3 do CPPT, ou seja, desde as datas dos pagamentos dos impostos indevidos até à data da emissão da respectiva nota de crédito.

 

IV. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

  1. Julgar procedente o pedido de anulação parcial das liquidações de ISV identificadas no pedido arbitral, determinando-se a sua anulação parcial com a consequente obrigação do reembolso das quantias pagas em excesso: ao primeiro Requerente do montante de € 2.146,45, ao segundo Requerente do montante € 380,72 e ao terceiro Requerente de € 781,11;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;
  3. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 3.308,28 € (três mil trezentos e oito euros e vinte e oito cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 612 € (seiscentos e doze euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2021

 

O Árbitro

 

 

Rui M. Marrana

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º/5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º/1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990