Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 222/2021-T
Data da decisão: 2021-12-07  IRC  
Valor do pedido: € 491.966,08
Tema: IRC - Fusão invertida. Dedutibilidade de gastos com financiamentos.
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Sumário:

I - As operações de fusão inversa, permitindo a incorporação das sociedades adquirentes pela sociedade adquirida, implicam que os encargos financeiros com os contratos de mútuo e de suprimento suportados pelas entidades incorporadas – que entretanto se extinguiram – tenham passado a ser assumidos, por efeito da transferência global do património, pela sociedade incorporante;

II - Concluindo-se que os encargos inerentes aos financiamentos incorridos num momento anterior à fusão, tendo em vista a aquisição de participações sociais, poderiam potenciar, na perspectiva das entidades intervenientes, a geração de rendimentos e lucros, esses encargos são dedutíveis para efeitos fiscais, nos termos do artigo 23.º do Código de IRC, não obstante a operação de fusão inversa.

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., SA, NIPC ..., com sede em ..., n.º ..., ..., ...-... Vila Nova de Gaia, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação de IRC n.º 2018..., no valor de € 485.089,95, e de juros compensatórios n.º 2018 ..., no valor de € 70,83, e n.º 2018 ..., no valor de € 59.621,31 e a demonstração de acerto de contas n.º 2018 ..., relativos ao exercício de 2014, da qual resulta imposto a pagar no valor de € 491.966,08, e bem assim da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra eles deduzida.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade anónima cujo objeto social é a reciclagem de sucata e de desperdícios metálicos e o comércio de ferros em geral, que, anteriormente a 2009, era detida a 100% pela sociedade B..., S.A.

 

Em 2009, a Requerente participou numa operação de reorganização societária que se traduziu numa fusão por incorporação da sociedade B..., detentora da totalidade das suas participações sociais, bem como da sociedade C..., Lda.

 

Com a fusão por incorporação, a Requerente incorporou todo o ativo e passivo das referidas sociedades e passou a suportar os custos dos financiamentos contratados pelas mesmas, refletindo tais custos na sua contabilidade nos períodos tributários subsequentes.

 

No seguimento de uma ação de inspeção externa, a Autoridade Tributária efectuou uma correcção à matéria coletável de IRC do exercício de 2014, no montante de € 559.946,93, com base no não preenchimento dos critérios que, à luz do artigo 23.º, n.º 2, alínea c), do CIRC, permitem a dedutibilidade de gastos correspondentes aos encargos derivados de um financiamento bancário.

 

Estabelece o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, aí se incluindo, nos termos do n.º 2, alínea c), os gastos e perdas “De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração (…)”.

 

A aquisição da totalidade do capital de uma sociedade insere-se no interesse da empresa adquirente e apresenta causalidade económica, pelo que os custos suportados com essa aquisição não podiam deixar de considerar-se indispensáveis e dedutíveis, independentemente do êxito financeiro da transação ou da efetiva geração de proveitos a posteriori.

 

A correcção tributária viola o princípio da liberdade de gestão fiscal e da neutralidade, bem como o princípio da tributação segundo o lucro real, e os princípios da igualdade e da prevalência da substância sobre a forma.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que os gastos correspondentes aos juros suportados pela sociedade incorporante A..., SA (A...), em virtude da aquisição de capitais alheios por parte da sociedade incorporada B... para adquirir 100% das ações da primeira, não são fiscalmente dedutíveis para efeitos de apuramento do resultado tributável da sociedade incorporante, porque não foram constituídos no seu interesse empresarial, não contribuindo para a atividade produtora da Requerente ou para a prossecução do seu escopo societário.

 

E que os ativos que originaram os encargos financeiros em causa nos presentes autos (ações representativas do capital social da empresa A...), financiados por terceiros (instituição de crédito e acionista) não foram transferidos para a sociedade beneficiária (incorporante A...), mas para os acionistas, para a D... e para o Fundo de Investimento que detém o controlo total da empresa.

 

Assim, mesmo antes da fusão, a sociedade adquirida A... vê-se obrigada a assegurar, com o seu próprio património e liquidez, os fundos necessários para pagar o financiamento e respetivos encargos contratuais que foram contraídos por outrem (B...) com a finalidade de aquisição das suas próprias participações sociais.

 

A Autoridade Tributária afasta, por outro lado, a invocada violação dos princípios da liberdade de gestão fiscal e da neutralidade, da tributação segundo o lucro real, da igualdade e da prevalência da substância sobre a forma.

 

 Conclui pela improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 8 de Outubro de 2021 foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinada a remessa do processo para alegações pelo prazo sucessivo de dez dias.

 

As partes não apresentaram alegações.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 9 de Agosto de 2021.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima cujo objeto social é a reciclagem de sucata e de desperdícios metálicos e o comércio de ferros em geral.
  2. Anteriormente a 2009, a Requerente era detida a 100% pela sociedade B..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ... .
  3. A B... era integralmente detida pela D..., SGPS, S.A., titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., que, por seu turno, era detida a 100% pelo E...– Fundo de Capital de Risco, titular do número de identificação de pessoa coletiva ... .
  4. A Requerente, a B... e a C... exerciam atividade no setor do tratamento e transformação de sucatas e eram detidas, direta ou indiretamente, pela D... .
  5. No ano de 2009, a Requerente participou numa operação de reorganização societária que se traduziu numa fusão por incorporação da sociedade detentora da totalidade das participações sociais da sociedade B... e da sociedade C..., Lda.
  6. No projeto de fusão refere-se que as sociedades envolvidas têm como objecto social actividades relacionadas com a valorização de resíduos e recolha, armazenagem e tratamento de sucatas, que a “existência das três empresas distintas está a implicar um conjunto de esforços (custos administrativos e de serviços), com despesas acrescidas” e a “gestão de sociedades com a mesma atividade centralizada numa única sociedade gerará sinergias consideráveis, através de uma maior flexibilidade de gestão e planeamento”.
  7. Para levar a efeito a referida operação, a B... obteve o financiamento necessário junto de instituições financeiras (F..., G... e H...), no montante total de € 61.200.000,00, e junto da sua acionista única D..., mediante suprimentos, no valor de € 36.000.000,00.
  8. Com a fusão por incorporação da B... e da C... na Requerente e a consequente transferência da globalidade do património das incorporadas para a incorporante, a Requerente assumiu os encargos decorrentes do empréstimo bancário que fora contraído pela B... e dos suprimentos efetuados pela D... .
  9. A Requerente foi objecto de uma ação de inspeção externa de âmbito geral, em sede de IRC, credenciada pela ordem de serviço n.º OI2016..., incidente sobre o exercício de 2014, e que teve em vista determinar se os encargos financeiros suportados com a operação de fusão por incorporação tem enquadramento no regime de artigo 23.º do Código do IRC.
  10. A acção inspectiva determinou um acréscimo à matéria coletável de IRC no montante de € 559.946,93.
  11. O Relatório de Inspecção Tributária, que constitui o documento n.º 5 junto ao pedido, e que aqui se dá como reproduzido, justifica a correcção com base no entendimento de que “[Os] gastos não foram realizados no interesse da empresa nem contribuíram para a obtenção de rendimentos ou ganhos que permitissem a obtenção de lucro de forma direta ou indireta, tal como deveriam ter sido, de acordo com o propósito expetável para qualquer sociedade. Não se vislumbra também qual o critério de racionalidade económica que esteve na sua origem, determinado de acordo com aquilo que é considerado útil e inevitável para a realização dos rendimentos ou ganhos de empresa; Todos os estes factos são comprovados pela evolução do volume de negócios e dos resultados tributáveis declarados pela A... desde 2008”, concluindo que “A estes gastos, que nem estão relacionados com o negócio da empresa, ou seja, com a sua exploração, nem com o seu objeto social ou fim económico da mesma, deverá ser negada a dedutibilidade fiscal.
  12. Na sequência, foi emitida o ato de liquidação de IRC n.º 2018 ..., no valor de € 485.089,95, e os atos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018 ..., no valor de € 70,83, e 2018 ..., no valor total de € 59.621,31 e a demonstração de acerto de contas n.º 2018 ... (compensação n.º 2018 ...), dos quais resultou imposto a pagar no valor de € 491.966,08.
  13. A Requerente apresentou reclamação graciosa dos actos de liquidação de imposto e juros compensatórios, que foi indeferida por despacho, de 31 de dezembro de 2020, emitido pelo Chefe de Divisão da Direção de Finanças do Porto, enviada sob registo postal em 13 de janeiro de 2021 e notificada no dia 18 seguinte.
  14. A reclamação graciosa foi indeferida com base na informação dos serviços que integra o documento n.º 1 junto ao pedido e que aqui se dá como reproduzida.
  15. A Requerente não procedeu ao pagamento voluntário do imposto e dos juros compensatórios, tendo havido lugar à instauração do processo de execução fiscal n.º ...2019... .

O) Com vista à suspensão do processo de execução fiscal, a Requerente nomeou à penhora o seu estabelecimento comercial, nos termos previstos nos artigos 782.º do CPC e 169.º, 199.º e 215.º, n.º 4, do CPPT.

P) O pedido arbitral deu entrada em 15 de Abril de 2021.

 Factos não provados

 

Não existem factos não provados que relevam para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta e factos não questionados.

 

            Matéria de direito

 

Dedutibilidade dos encargos financeiros como custos fiscais

 

5. A Autoridade Tributária procedeu à correção da liquidação de IRC da Requerente, relativamente ao exercício de 2014, por considerar não serem fiscalmente dedutíveis, nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, os encargos financeiros decorrentes de empréstimos realizados através de instituições bancárias pela B... e de suprimentos concedidos pela acionista única D..., que foram utilizados para a aquisição da totalidade do capital social da A... .

 

Na sequência da transmissão do capital social, ocorreu a fusão por incorporação da B... e da C... na A..., com a transferência global do respectivo património, com todos os ativos e passivos, e a sociedade incorporante passou a assumir os encargos financeiros resultantes dos financiamentos (empréstimos bancários e suprimentos) que tinham servido para as incorporadas adquirirem o capital social da incorporante

 

Neste condicionalismo, a Administração Tributária sustenta que, com a fusão, os rendimentos gerados pela actividade da sociedade incorporante passaram a suportar os custos com a aquisição de capital e, nesse sentido, os fundos não estão a ser utilizados na respetiva exploração nem constituem fonte produtora dos proveitos ou ganhos que resultem da sua actividade empresarial, pelo que os mesmos não reúnem os requisitos de indispensabilidade e correlação que são exigidos pelo artigo 23.º do Código do IRC.

 

Em contraposição, a Requerente sustenta que, tendo em atenção que a incorporante beneficiária da fusão (A...) agregou a realidade jurídico-económica que existia nas sociedades incorporadas (B... e C...), os critérios do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC devem ser aferidos no contexto empresarial próprio da entidade que deduz os gastos devendo atribuir-se a estes custos uma conexão empresarial com a actividade da Requerente, enquanto sociedade incorporante.

Estando em causa a dedutibilidade, para efeitos fiscais, de gastos de financiamento incorridos por sociedades que passaram a integrar a A...  por efeito de uma operação de fusão invertida, interessa ter presente, num primeiro momento, a disposição do artigo 23.º do Código de IRC.

Na redação resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, com efeitos desde 1 de Janeiro de 2014, e aplicável ao período de tributação em análise, o n.º 1 desse preceito passou a dispor que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

Embora a nova redacção tenha afastado o requisito de indispensabilidade do gasto, continua a ser exigível, para a sua relevância fiscal, a conexão entre os gastos e o interesse empresarial, ainda que não significando uma necessária relação causal entre os gastos e os rendimentos.

 Tem-se como assente e constitui entendimento jurisprudencial firme que da “noção legal de custo fornecida pelo artigo 23.º do Código de IRC não resulta que a Administração Tributária possa pôr em causa o princípio da liberdade de gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram directamente proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa (cfr. acórdão do TCA Sul de 6 de outubro de 2009, Processo 03022/09 e, em idêntico sentido, acórdão do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2012, Processo 00624/05).

Nessa mesma linha de entendimento, o STA, referindo-se ao antigo conceito de indispensabilidade, e chamando a atenção para o carácter casuístico do seu preenchimento, formula o seguinte critério:

“A regra é que as despesas corretamente contabilizadas sejam custos fiscais; o critério da indispensabilidade foi criado pelo legislador, não para permitir à Administração intrometer-se na gestão da empresa, ditando como deve ela aplicar os seus meios, mas para impedir a consideração fiscal de gastos que, ainda que contabilizados como custos, não se inscrevem no âmbito da actividade da empresa, foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios. Em rigor, não se trata de verdadeiros custos da empresa, mas de gastos que, tendo em vista o seu objecto, foram abusivamente contabilizados como tal. Sem que a Administração possa avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a sua oportunidade e mérito”.

Vindo o mesmo aresto a concluir que, “sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, a Administração só pode excluir gastos não diretamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objetivo social, ou, ao menos, com nítido excesso desviante, face às necessidades e capacidades objetivas da empresa” (acórdão de 29 de março de 2006, Processo nº 1236/05).

Em síntese conclusiva, deve entender-se que a actividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a actividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando actividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de actividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou actos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos (cfr. neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).

É nesse âmbito compreensivo que se enquadra a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de junho de 2013).

 

6. No caso vertente, como resulta da matéria de facto tida como assente, os financiamentos obtidos pela B... e os suprimentos concedidos pela D... tiveram como finalidade a aquisição de capital social da A... .

 

As operações de fusão inversa, permitindo a incorporação das sociedades adquirentes pela sociedade adquirida, implicaram que os encargos financeiros com os contratos de mútuo e de suprimento suportados pelas entidades incorporadas – que entretanto se extinguiram – tenham passado a ser assumidos, por efeito da transferência global do património, pela sociedade incorporante.

 

Cabe fazer notar - como tem sido sublinhado pela jurisprudência – que a fusão de sociedades por incorporação, ainda que implique a perda de personalidade jurídica da sociedade incorporada, não determina o desaparecimento da realidade económica que ela constituía, que passa a encontrar-se integrada na sociedade incorporante por efeito da reorganização societária (cfr. acórdão do STA de 13 de abril de 2005, Processo n.º 01265/04).  

 

E é em relação à realidade económica no seu conjunto, resultante da incorporação, que cabe aferir se os encargos inerentes aos financiamentos incorridos num momento anterior à fusão, tendo em vista a aquisição de participações sociais, podem ter contribuído para originar rendimentos sujeitos a tributação que, como tal, possam ser deduzidos para efeitos fiscais nos termos do artigo 23.º do Código de IRC.

 

O que se afigura determinante, por conseguinte, não é que o passivo tenha sido constituído para adquirir participações sociais da sociedade beneficiárias mas que essa aquisição se torne passível de contribuir para a obtenção de rendimentos tributáveis.

 

Como se viu, os motivos determinantes para a fusão por incorporação foram a identidade de objecto social, a redução custos administrativos e de serviços e uma maior flexibilidade de gestão e planeamento (alínea F) da matéria de facto).

 

Há assim uma ligação entre os mútuos e os suprimentos efetuados para compra de participações e a estratégia de restruturação e redimensionamento que se pretendeu que a sociedade incorporante pudesse desenvolver posteriormente.

 

Como pode concluir-se, o aumento do ativo da Requerente, por efeito da fusão por incorporação das sociedades B... e C... está relacionado com razões empresariais que poderiam potenciar, na perspectiva das entidades intervenientes, a geração de rendimentos e lucros. Por outro lado, a assunção dos encargos inerentes aos investimentos anteriormente efetuados pelas sociedades incorporadas não pode deixar de ser entendida como uma necessária consequência da transferência global do património, que está subjacente às considerações de racionalidade económica que justificaram a fusão, sendo certo que é o Código das Sociedades Comerciais que admite que a fusão de sociedades pode realizar-se mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para outra (artigo 97.º, n.º 4, alínea a)).

 

Esses encargos financeiros não podem, por isso, deixar de ser considerados afetos à exploração.

 

Como se faz notar no acórdão proferido no Processo n.º 610/2018-T, se não se pode questionar, num momento prévio à fusão, que os encargos financeiros associados aos financiamentos obtidos pelas sociedades para aquisição de um ativo constituem juros de capitais alheios aplicados na exploração, e, como tal, são dedutíveis nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRC, não é a fusão por incorporação que pode conduzir a uma diferente consequência jurídica.

 

Ou seja, se os juros eram fiscalmente aceites previamente à fusão, também o serão após a fusão (invertida ou não), visto que o que está em causa é a transmissão dos direitos e obrigações das sociedades incorporadas para a sociedade incorporante de acordo com as regras do direito comercial, pelo que continuam a ser considerados juros de capitais alheios aplicados na exploração.

 

Poderia discutir-se se um dado investimento constitui um acto normal de gestão quando, por virtude de uma ulterior operação de fusão, tem em vista permitir a dedução pela sociedade incorporante de um passivo que tem origem na sociedade incorporada e que resulta da sua própria aquisição.

 

Afigura-se, porém, que a desconsideração dos efeitos fiscais, neste contexto, apenas poderia ter lugar pelo recurso à cláusula geral anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, que, em síntese geral, pressupõe que tenha sido praticado um acto ou negócio artificioso ou fraudulento que represente o abuso das formas jurídicas e que tenha como objetivo único ou principal a obtenção de uma vantagem fiscal (sobre este aspeto, António Castro Caldas/J.M Cabral Sacadura, “A dedutibilidade de encargos financeiros no âmbito de fusões e aquisições”, in Actualidade Jurídica Úria Menéndez, n.º 36, 2014, págs. 125-126).

 

Cláusula, esta, cuja aplicação está sujeita a procedimento próprio, sendo exigida a autorização do dirigente máximo do serviço, a audição prévia do contribuinte e dever especial de fundamentação por parte da Autoridade Tributária (cfr. artigo 63.º do CPPT). Não é esse o fundamento dos actos tributários de liquidação adicional que estão em causa, que se reconduzem unicamente à desconsideração da dedutibilidade de custos fiscais nos termos do artigo 23.º do Código de IRC.

 

Por todo o exposto, não pode deixar de reconhecer-se que se encontram preenchidos os requisitos da dedutibilidade dos encargos financeiros como custos fiscais, havendo de julgar-se procedente o pedido arbitral.

 

Neste mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STA de 22 de Março de 2018 (Processo n.º 0208/17) e esse entendimento tem sido seguido nas decisões arbitrais proferidas nos Processos n.º 606/2016-T, 610/2018-T e 470/2020-T, que incidiram sobre idênticos actos de correção adicional, e no Processo n.º 93/2015-T, cuja doutrina foi igualmente seguida nos Processos n.º 120/2017-T, 120/2018-T e 191/2019-T.

 

Questões de conhecimento prejudicado

 

Face ao sentido da decisão, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela Requerente.

 

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar procedente o pedido arbitral e anular o acto tributário de liquidação adicional de IRC n.º 2018 ..., no valor de € 485.089,95, relativo ao exercício de 2014, e os correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 491.966,08, que não contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Notifique.

 

Lisboa, 7 de Dezembro de 2021  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

 

O Árbitro vogal

 

 

Rui Morais

 

 

O Árbitro vogal

 

 

Jorge Carita

(com declaração de voto de vencido em anexo)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

À semelhança do que já aconteceu noutros processos, votei vencido, porque os argumentos para dar suporte à tese da não indispensabilidade dos custos referentes ao preço que uma sociedade paga para se adquirir a si própria, apesar das doutas Decisões até agora proferidas, continuam a não me convencer. Importa desde logo referir que, neste caso estamos perante um preço de aquisição de € 100.000.000,00 (cem milhões de euros), a que corresponde idêntico endividamento perante terceiros (bancos e acionistas), estes últimos financiados pela própria Requerente).

 

Mas revejo-me na primeira onda de Decisões Arbitrais (Proc. 14/2011-T, 87/2014-T) e do mesmo modo nos votos de vencido (Proc. nº. 92/2015-T, 93/2015-T e 88/2016-T) que não conseguiram vislumbrar a absoluta indispensabilidade de tais gastos, suportados relativamente a um ativo de uma sociedade, a propriedade dela própria, infelizmente desaparecido aquando da fusão face à sua própria natureza.

 

Apesar das diversas decisões entretanto proferidas, continuo sem conseguir compreender que numa empresa que, antes da fusão, revelava modestos custos financeiros mensais, passe, após uma operação de fusão invertida de um grupo (para além de tudo o que foi feito antes para ali se chegar), a suportar milhares de euros ano, e que a Autoridade Tributária tenha que continuar a aceitar como dedutíveis para efeitos fiscais, nos anos seguintes até integral amortização dos mesmos – o que poderá nem vir a acontecer face à situação financeira que a Requerente atualmente atravessa, que pode levar à sua própria insolvência.

 

Tratou-se de uma operação com tamanho justificado interesse e virtualidades económicas e financeiras tais, que a Requerente pode acabar insolvente, naturalmente por virtude do esforço ou melhor do sacrifício financeiro que teve que desenvolver para se pagar a si própria !!!

 

A Requerente passou a ter uma dívida colossal, por contrapartida de um ativo intangível, como nos diz a AT “… sem qualquer tipo de valor real.”

 

Fácil seria constatar a evolução do lucro tributável da Requerente antes da fusão e depois da fusão, para melhor se confirmar a “grande” evolução que tais resultados tiverem, e quem sabe, até ao seu fim de vida.

 

E pagar os juros devidos pelos empréstimos contraídos pela “mãe” para comprar a “filha” e aceitar fiscalmente como custo da filha, é tal e qual o mesmo que comprar matéria prima para fabricar e vender sucatas e desperdícios metálicos !!!

 

Tudo se passa, efetivamente, como se a atividade da Requerente fosse a sua própria aquisição e não a venda de sucata, como diz a AT noutros processos em que está em causa igual situação, ou melhor, os custos “dizem respeito à sua auto-aquisição”.

 

E a situação dos presentes autos assume contornos absolutamente únicos, se também tivermos presente que o empréstimo que ajudou a financiar a B... para comprar a Requerente, foi obtido junto da D..., que por sua vez se financiou junto da Requerente.

 

Não está aqui em causa apenas o empréstimo diretamente solicitado junto da banca, mas o facto da Requerente ter financiado uma empresa (D...- a sua acionista), que depois financiou outra (B...), para que com o dinheiro indiretamente emprestado pela Requerente esta última a comprasse.

 

Ou seja, foi com seu próprio dinheiro (obtido não sabemos como, mas provavelmente contraindo mais dívida junto da banca) que a acionista da Requerente a comprou…

 

Mas está consagrado que isto é mesmo assim e que é próprio, é inerente a qualquer uma aquisição de leveraged buyout (LBO), que constitui um mecanismo utilizado para tornar custos inadmissíveis em eficiência fiscal.

 

E também não se diga que o caráter de indispensabilidade dos custos deve ser aferido quando a dívida é contraída, esquecendo por completo o momento em que os juros são efetivamente suportados (adeus princípio da especialização dos exercícios, e para já não falar do sempre necessário nexo de causalidade entre custos e proveitos).

 

Efetivamente tenho dificuldade em aceitar que os juros contraídos por uma sociedade para adquirir outra sociedade na qual ela própria se veio a incorporar, possam vir a ser aceites para efeitos fiscais.

 

E, se não tenho dúvidas de que no momento em que a dívida foi contraída os respetivos encargos eram um custo para efeitos fiscais – o que a AT não nega - , já tenho dúvidas que o possam continuar a ser após a fusão (invertida) e que ainda para mais haja quem entenda que se o eram nesse momento, em que foram contraídos “terão que o ser para sempre…” (posição da Requerente no Proc. n.º 88/2016-T, pág. 7), independentemente das mudanças que ocorrerem, incluindo a fusão, ainda para mais invertida (ninguém dúvida que a fusão é uma operação prevista na lei e não está aqui em causa a aplicação de uma CGAA, mas sim e apenas a aplicação do art.º 23 do CIRC).

 

Como é que se pode referir que “… os gastos com juros em questão, correspondem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta” (Proc. n.º 88/2016-T, pág. 9), quando eles serviram para que terceiros adquirissem precisamente a sociedade que atualmente os suporta.

 

Seria o mesmo que, por exemplo, no âmbito de uma reestruturação societária, abrangida pelos benefícios fiscais no art.º 60.º do Estatutos dos Benefícios Fiscais, da qual constam uma fusão invertida, depois das isenções de IMT, IS, etc., ainda se viessem a considerar os juros de um idêntico endividamento, como custo fiscal da sociedade filha, que incorpora a mãe que a comprou.

 

Como é que se afirma que os capitais alheios foram aplicados na exploração pela sociedade incorporante, quando ela não tem matérias-primas, equipamentos, nem tão pouco comprou o capital social de qualquer outra sociedade!!!

  

Não serviram os financiamentos para pagar o preço de aquisição da Requerente por parte da sociedade que nela se veio a incorporar. Os juros decorrem do endividamento de terceiros, tendo a dívida sido contraída antes da fusão.

 

Desse modo, a sociedade está a pagar aos seus próprios acionistas (ou parte deles, dependendo da relação de troca de fusão) o preço de aquisição das ações dela própria.

 

Nos processos do CAAD que analisei não posso, por isso, deixar de subscrever a Declaração de Voto subscrito pelo Dr. António Brás Carlos (Proc. n.º 88/2016-T), nomeadamente quando ele manifesta a sua discordância relativamente à tese do prolongamento da existência da sociedade incorporante.

 

Por seu turno, a síntese factual ali efetuada deixa a nu o propósito de toda a operação, colocando naturalmente em causa que os juros suportados possam continuar a ter relevância fiscal no período pós-fusão.

 

Categórico o ponto 8 desta declaração de voto, que aqui transcrevo, com a devida vénia:

 

“8. Todos os passos da operação estão inseridos na mesma “unidade de intenção e ação” e são, desde o início, unicamente dirigidos ao objectivo referido no número anterior. Objetivo esse estranho ao interesse empresarial da Requerente, não sendo o financiamento e o pagamento dos concomitantes encargos necessários à sua atividade, nem indispensáveis para a prossecução do seu interesse empresarial específico concretizado na produção dos seus rendimentos sujeitos a imposto ou na manutenção da sua fonte geradora. A obrigação de pagamento dos encargos em análise nunca foi, desde a primeira hora, contraída no interesse empresarial da Requerente, sendo para mim claro que não poderia, após a fusão, passar a considerar-se que tais financiamentos eram para si indispensáveis para efeitos do nº 1 do artigo 23º do CIRC.”

 

Razão tem o Dr. António Brás Carlos quando refere em síntese final (ponto 10) que a decisão ali em causa naquele processo não respeita, antes contrariando ostensivamente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STA/TCA).

 

“10. Em consequência, tendo presente o acima referido, os encargos respeitantes àqueles empréstimos, suportados pela Requerente, não preenchem o requisito da indispensabilidade a que se refere o nº 1 do artigo 23º do CIRC, porque, em síntese:

a) Não respeitam à actividade por si desenvolvida (Ac. STA, proc. 171/11);

b) Os gastos correspondentes aos juros suportados por uma sociedade incorporante em virtude da aquisição de capitais alheios por parte da sociedade incorporada para adquirir 100% das ações da primeira, não são indispensáveis para esta sociedade (incorporante), porque não foram constituídos no seu interesse empresarial, não sendo, assim, necessárias para a prossecução do seu escopo societário (Ac. STA, proc. 164/12 e Acs. TCA-Sul, proc. nº 5327/12 e proc. nº 8137/14);

c) Não existe qualquer nexo causal entre aqueles gastos e os seus proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica (Ac. TCA-Sul, proc. nº 6754/13);”

 

Continua a ser relevante neste contexto o Voto de Vencido do Prof. João Menezes Leitão nos Processos n.ºs 92/2015-t e 93/2015-T.

 

Aqui se reitera a referência à jurisprudência dos Tribunais Tributários que consagram que “os custos (…) não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades” (Acórdão do STA de 30.05.2012, Proc. 0171/11).

 

É por isso vasta a análise da jurisprudência que fazendo uso da leitura correta do princípio da indispensabilidade de custos, leva a que da sua aplicação resulta a não indispensabilidade daqueles que em tais Decisões estão em causa (92/2015-T e 93/2015-T)

 

“… que esses gastos não respeitam à actividade desenvolvida pela própria sociedade contribuinte, carecem de relação com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, não foram incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades, são estranhos à actividade da empresa, não é possível descortinar neles qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos, explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica, foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial.” (sublinhado meu). Será que não chega!!!

 

Também tenho que concordar com o Prof. Menezes Leitão quando ele refere que:

“… assumir os indicados gastos de financiamento a Requerente fica obrigada a desviar recursos extraídos do seu património, que deveriam ser destinados à prossecução da sua actividade e à realização do seu objecto social, para o pagamento da dívida e dos encargos financeiros respeitantes à aquisição das participações sociais no seu capital por outrem.” (pág. 62 e 63 da Decisão)

 

Com aplicação ipis verbis ao caso nos autos!!!

 

E se a empresa não tiver saúde financeira para suportar encargos desse montante (juros de milhares de euros) e entrar em processo de insolvência, como parece ser o caso?!!

 

Embota tal argumento não tenha sio utilizado na presente Decisão, importa referir que a questão que aqui nos preocupa não se resolve por força da suposta violação da neutralidade fiscal da fusão, já que, nem nos termos da legislação nacional (artºs 74º e 75º. do CIRC), nem dos da legislação comunitária (Diretiva 2009/113/EU de 19/10, relativa ao regime fiscal da fusão) está prevista que essa neutralidade se alcança reconhecendo amanhã aquilo que apenas podem ser custos hoje (Vd. Argumentação da Requerida (arts 122º. a 127º. da Resposta e importante Acórdão do TJUE citado no artº. 125º. dessa mesma Resposta)

 

Nada disso.

 

A neutralidade está especificamente garantida através de outas medidas (regras de valorização das transferências de elementos patrimoniais, depreciações e amortizações, ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e mais e menos valias), mas que nenhuma delas se prende com a dedutibilidade fiscal de custos financeiros da operação.

 

Quanto ao momento relativamente ao qual deve ser aferida a indispensabilidade de um custo, para além do que já referi, revejo-me na posição defendida pela Requerida onde fundamentadamente se defende que tal apreciação tem que ser feita periodicamente e se remete para jurisprudência relevante, por exemplo aquela que pugna pela seguinte posição:

 

“… um custo será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros….” (Decisão do STA, transcrita pela Requerida), ou dito agora pelo TCAS que a propósito do nº. 1 do artº. 23º. do IRC, considera que ”…a indispensabilidade de um custo tem sido interpretada como um conceito indeterminado de necessário preenchimento casuístico, em resultado de uma análise de perspetiva económico-empresarial, na percepção de uma causalidade económica entre a assunção de um encargo e a sua realização no interesse da empresa.”

 

A Requerida considera que este entendimento foi inclusivamente sufragado pelo Tribunal Constitucional ao reconhecer que “o facto tributável em IRC corresponde à percepção de rendimento, sendo o gasto ou custo atendido na sua função instrumental face ao rendimento acréscimo sujeito a tributação (não isento)”.

 

Importa referir ainda que a atitude da AT não coloca em causa a liberdade de gestão da empresa, nem tal argumento foi utilizado em sede própria pela Requerida.

 

Daí que, quando a presente Decisão transcreve acórdão de 29 de março de 2006, Processo nº 1236/05, que refere o seguinte:

“A regra é que as despesas corretamente contabilizadas sejam custos fiscais; o critério da indispensabilidade foi criado pelo legislador, não para permitir à Administração intrometer-se na gestão da empresa, ditando como deve ela aplicar os seus meios, mas para impedir a consideração fiscal de gastos que, ainda que contabilizados como custos, não se inscrevem no âmbito da actividade da empresa, foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios. Em rigor, não se trata de verdadeiros custos da empresa, mas de gastos que, tendo em vista o seu objecto, foram abusivamente contabilizados como tal. Sem que a Administração possa avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a sua oportunidade e mérito”.

 

Está, em nossa opinião, a dar razão à Requerida e não à Requerente, já que estes custos, tal como diz o Acórdão em referência:

  1. não se inscrevem no âmbito da actividade da empresa; (sucatas, acrecentamos nós).
  2. foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios (acionistas da Requerente, acrecentanos nós)
  3.  Em rigor, não se trata de verdadeiros custos da empresa, mas de gastos que, tendo em vista o seu objecto, foram abusivamente contabilizados como tal.

 

A Requerida não diria melhor.

E esse mesmo Acórdão decide do seguinte modo:

“sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, a Administração só pode excluir gastos não diretamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objetivo social, ou, ao menos, com nítido excesso desviante, face às necessidades e capacidades objetivas da empresa” (acórdão de 29 de março de 2006, Processo nº 1236/05).(negrito nosso)

 

Torna-se evidente que nenhuma empresa tem como objeto social a atividade de “compra de si mesma”, mal se compreendendo também que tal compra se enquadre nas suas “necessidades” (se não o tivesse feito a sua verdadeira atividade continuaria a ser desenvolvida dentro do seu real objeto social) e que corresponda minimamente às suas “capacidades objetivas”, porque a sua incapacidade para o fazer é bastante objetiva, já que teve que se financiar brutalmente para o fazer, pondo inclusivamente em causa a sua própria subsistência.

 

Estamos assim, manifestamente, no caso concreto, perante um “nítido excesso desviante”.

 

Citando nova decisão Jurisprudencial, neste caso o Acórdão do CAAD tirado no Procº. 480-/2016 – T, a presente Decisão faz a sua síntese conclusiva do seguinte modo:

 

“Em síntese conclusiva, deve entender-se que a actividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a actividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando actividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de actividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou actos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos (cfr. neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).”

 

Impõe-se assim, a existência de operações que tenham um propósito.

E qual?

“De obtenção de rendimentos e manutenção da fonte produtora.”

 

Ora é sabido que a compra de si própria gerou “zero” de rendimentos e está prestes a acabar com a “fonte produtora”, porque a Requerente está a entrar em PER…

 

Apela-se a um sentido amplo de atividade produtiva, mas preenche-se o conceito afirmando que o mesmo significa a “actividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos “.

 

Voltamos à estaca “zero” no que aos rendimentos diz respeito.

 

Estas operações, para a Requerente, apenas geraram custo e colossais, nunca rendimentos…

 

E mesmo assim não há censura jurídica que impeça a sua contabilização como custos com relevância fiscal…

 

Assim, através da nova redação do artº. 23º. do CIRC (Lei nº. 2/2014) entende o presente Tribunal Arbitral, com o apoio da Comissão de Reforma Fiscal do IRC de 2013, que independentemente da efetiva contribuição dos custos para os rendimentos sujeitos a imposto, basta para a sua aceitação fiscal “…a conexão com atividade empresarial, …”.

 

E é essa conexão que, na minha opinião, e com o devido respeito para com opiniões contrárias, efetivamente não existe.

 

Com todo o respeito, parece resultar algo contraditório que, depois de ter afastado a necessidade de contribuição da despesa para os rendimentos sujeitos a imposto, a presente Decisão consagre o seguinte entendimento:

 

“O que se afigura determinante, por conseguinte, não é que o passivo tenha sido constituído para adquirir participações sociais da sociedade beneficiárias mas que essa aquisição se torne passível de contribuir para a obtenção de rendimentos tributáveis.” (negrito nosso).

 

 

Primeiro, refere-se que não é necessário que a despesa em causa contribua para os rendimentos sujeitos a imposto e de seguida refere-se que é essa contribuição para a obtenção de rendimentos tributáveis que é determinante….

 

No ponto seguinte desta Decisão, vem referido, que os motivos determinantes para a fusão foram:

 

i). Identidade do objeto social;

ii). Redução de custos administrativos e de serviços;

iii). Maior flexibilidade de gestão e planeamento.

 

Remete-se para a alínea F da matéria de facto, que consagra o seguinte:

 

  1. No projeto de fusão refere-se que as sociedades envolvidas têm como objecto social actividades relacionadas com a valorização de resíduos e recolha, armazenagem e tratamento de sucatas, que a “existência das três empresas distintas está a implicar um conjunto de esforços (custos administrativos e de serviços), com despesas acrescidas” e a “gestão de sociedades com a mesma atividade centralizada numa única sociedade gerará sinergias consideráveis, através de uma maior flexibilidade de gestão e planeamento”.

 

 

Ora, salvo melhor opinião, o que se dá como provado no processo é o que consta do Projeto de Fusão e não que a Requerente tenha conseguido provar, não tanto a identidade dos objetos, que nem era a mesma, mas a efetiva redução de custos e flexibilização de gestão e planeamento.

 

A redução de custos é dada como impossível, atendendo aos milhões que a Requerente foi “condenada” a ter que pagar para o resto da sua existência, e quanto ao resto nada se disse nem provou.

 

 

Nem a atividade das sociedades era a mesma, nem os custos suportados eram relevantes, porque uma delas foi criada e foi extinta de imediato, e as sinergias vieram a redundar na aprovação de um PER, quem sabe antes da insolvência.

 

Conclui de seguida a presente Decisão que:

 

“… o aumento do ativo da Requerente, por efeito da fusão por incorporação das sociedades B... e C... está relacionado com razões empresariais que poderiam potenciar, na perspectiva das entidades intervenientes, a geração de rendimentos e lucros.”

 

Não se compreende bem a que aumento de ativo nos estamos a referir, mas se se trata daquele que possa ter resultado da fusão por incorporação de duas sociedades, em que uma delas era meramente instrumental e sem atividade e foi extinta, não está provado que o balanço pós fusão, passou a ter um ativo superior ao que evidenciava antes da fusão.

 

Passivo tem de certeza…

 

E termina a presente Decisão afirmando que:

 

“Poderia discutir-se se um dado investimento constitui um acto normal de gestão quando, por virtude de uma ulterior operação de fusão, tem em vista permitir a dedução pela sociedade incorporante de um passivo que tem origem na sociedade incorporada e que resulta da sua própria aquisição.”

 

Não é preciso ir pela aplicação do CGAA, bastava não aceitar estes juros como custo.

Aliás a AT refere especificamente que não está em causa a aplicação de qualquer norma anti-abuso, que o artº. 23º-. do CIRC não é uma delas, e que apenas pretende desconsiderar os custos em causa ao abrigo desse mesmo artigo do CIRC.

 

Curiosamente, tem acontecido que quando a AT utiliza o percurso normativo aqui posto em prática (artº. 23º. do CIRC), os tribunais têm entendido que o deveria ter feito com recurso ao mecanismo próprio de aplicação da GGAA.

 

E quando segue esse caminho as Tribunais têm decido que, ou não se verificam os pressuposto de aplicação da Cláusula ou a AT deveria ter ido pelo artº. 23º. do CIRC…

 

O que aqui deixo é a base das razões pelas quais não posso acompanhar a douta decisão proferida.

 

Lisboa, 7 de dezembro de 2021

 

(Jorge Carita)