Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 22/2021-T
Data da decisão: 2021-09-13  Selo  
Valor do pedido: € 20.558,00
Tema: Imposto do Selo da verba 1.2 da TGIS. Doação verbal. Usucapião. Isenção subjectiva da alínea e) do artigo 6.º do CIS.
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SUMÁRIO

1.            A aquisição de imóveis por usucapião foi assimilada pelo legislador a uma transmissão gratuita, o que constitui uma ficção legal com fins estritamente fiscais, conforme decorre dos normativos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo.

2.            Os beneficiários da aquisição por usucapião, cuja obrigação tributária se constitui nos termos da alínea r) do n.º 1 do artigo 5.º do CIS, estão isentos do Imposto do Selo desde que sejam uma das pessoas singulares identificadas na norma da alínea e) do artigo 6.º do CIS.

 

Decisão Arbitral

 

                1. Relatório

 

A..., que também usa A..., casada, NIF..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Maia, doravante referida como «Requerente», veio, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) apresentar pedido de pronúncia arbitral (PPA) tendo em vista a  declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto de Selo n.º..., datado de 2020-10-08 (Participação n.º...), relativo a aquisição por usucapião,  de que resultou um valor a pagar de € 20 558.00.

Termina pedindo a anulação da liquidação “... sua totalidade, com as respetivas consequências legais”, incluindo que seja a Autoridade Tributária condenada a “...  devolver à Impugnante o valor já pago relativo a esta liquidação, ou seja, o montante de 2.055,80€ (dois mil e cinquenta e cinco euros e oitenta cêntimos), assim como qualquer outro montante prestacional, que no decurso do presente processo a Impugnante venha a liquidar”, devendo ainda a “... Autoridade Tributária ser condenada a pagar à Impugnante os juros indemnizatórios peticionados, à taxa legal de 4%, desde a data de pagamento da primeira prestação (10/12/2020), assim como, caso venha a ocorrer, do pagamento de prestações posteriores, desde a data de pagamento das mesmas, até à data do integral reembolso, nos termos do disposto no art.º 43.º, n.º 1 e 4 e art.º 35º n.º 10, da LGT e do art.º 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril)”.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 12-01-2021.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular (TAS) o signatário desta decisão, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 21-05-2021.

A AT apresentou resposta em 23.06.2021 e juntou na mesma data o PA, não tendo suscitado excepções nem questões prévias, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 Não foi realizada a reunião de partes do artigo 18º do RJAT, uma vez que o Tribunal reputou não ser necessária.

As partes apresentaram alegações escritas, em 21.07.2021 a Requerente e em 13.09.2021 a Requerida, mantendo o que já haviam referido em sede de PPA e resposta.

Convidada a Requerida a pronunciar-se, em sede de alegações, sobre o pedido de junção de documento, deduzido pela Requerente em 30.06.2021, veio referir o seguinte:

 

“... a Requerente, a fim de poder comprovar que o prédio objecto de usucapião - inscrito na matriz sob o artigo ..., não descrito no registo predial – pertencia ao seu pai, pretende agora que a AT junte documento que comprove esse facto, conforme invoca na alínea b) do ... requerimento.

 Se nos debruçarmos sobre as disposições legais referidas, quem invoca o direito é que tem de fazer a prova correspondente, e essa prova deve ser junta com o articulado onde se invoca esse direito.

 Assim, salvo o devido respeito, a Requerente deveria ter junto os documentos que entendia necessários para provar os factos que alegou e os direitos que se arroga, não podendo a Requerente pretender que a AT faça essa prova por si, pois o ónus é seu, nos termos do nº1 do artigo 74º da LGT.

 No entanto, sempre se dirá que, a AT já juntou aos autos documento n.º 2 do PA, que comprova que o prédio em causa nos autos e inscrito na matriz sob o artigo ..., não descrito no registo predial, não provém de nenhum outro.

 Além de que, o documento 4 junto pela Requerente declara que o imóvel em causa foi inscrito na matriz como novo. 

 Pelo que, não existe inscrição na matriz de nenhum prédio anterior, o que é corroborado com o facto de ainda constar como omisso no Registo Predial.

 Se houvesse registo de algum imóvel anterior em nome do pai da Requerente, esse imóvel teria de constar da caderneta predial, o que não acontece.  

...

Reitere-se que a Requerente demonstra nos autos que sempre esteve na posse do referido prédio desde que foi inscrito na matriz, pois o artigo em causa é novo.

E não podemos olvidar, que para preencher os pressupostos da isenção pretendida, o seu pai teria que lhe ter doado este mesmo artigo ... .

 E a primeira (mais antiga) documentação que a Requerente apresenta do imóvel é a inscrição na matriz, em seu nome através da modelo 129 de IMI, em 1976, onde declara que o imóvel é novo. Ou seja, não estava inscrito na matriz”.

 

Neste aspecto, do ponto de vista processual versus ónus da prova, decidindo, não há dúvida de que assiste razão à Requerida uma vez que os registos e os documentos de que dispunha foram juntos aos autos, sendo que, na leitura da lei que este Tribunal vai adoptar, a questão de fundo tem outra vertente, como na decisão em matéria de direito se tentará demonstrar.

 

A Requerente entende que a liquidação é ilegal porque beneficia da isenção do Imposto do Selo da verba 1.2 da TGIS, consagrada na alínea e) do artigo 6º do CIS.

A Requerida entende que a Requerente não beneficia da isenção porque não foi feita a prova de que o prédio que foi objecto de justificação notarial (invocando-se o instituto da usucapião) pertencia aos seus pais antes de 1976, por não estar inscrito no cadastro predial em nome dos mesmos.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

Consideram-se provados os seguintes factos, com relevo para a decisão:

 

A)           Em 17 de julho de 2020, no Cartório Notarial da ..., da Licenciada B..., a Requerente celebrou escritura  de justificação, por usucapião, relativa ao prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão amplo destinada a armazém com logradouro, sito na Rua ..., número ..., freguesia de ..., concelho de Valongo,  inscrito na matriz sob o artigo ...º, não descrito no registo predial – conforme artigo 2º do PPA, Documento nº 1 em anexo ao PPA e alínea a) do artigo 6º da Resposta da AT;

B)           Consta da escritura referida na alínea anterior o seguinte: “que ela, justificante, possui o prédio desde 10 de abril de mil novecentos e setenta e seis, por os seus pais, C... e D... lho terem doado verbalmente, por conta da quota disponível, data essa em que procederam à declaração de inscrição do imóvel no Serviço de Finanças, em nome da justificante, à data ainda menor de idade e cujo título, por isso, não dispõe” – conforme documento nº 1 junto com o PPA;

C)           A Requerente é filha de C... e de D..., conforme assento de nascimento nº ... de 2013 da CR Civil de  ...- conforme Documento nº 2 em anexo ao PPA;

D)           O prédio urbano referido em A) foi construído, conjuntamente com outros prédios, pelo pai da Requerente, C..., de acordo com o processo de obras n.º ... – OC/1974, tendo sido posteriormente atribuído o alvará de licença de utilização n.º..., de 25 de janeiro de 1985, relativo a quatro armazéns, com entradas pelos n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., da Rua ..., da freguesia de..., concelho de Valongo, de acordo com a certidão de 20.07.2018 emitida pela edilidade de Valongo – conforme artigo 4º do PPA,  Documento nº 3 junto com o PPA e falta de impugnação especificada da construção pelo Requerente apreciada nos termos do nº 7 do artigo 110º do CPPT;

E)            Em 10.04.1976, o pai da Requerente (enquanto declarante) apresentou o Modelo 129 INCM (declaração para inscrição ou alteração de prédio urbano) no Serviço de Finanças, do prédio urbano referido na alínea A) em representação da Requerente, à data menor de idade, onde declara que (1) o Requerente é o proprietário (2) o prédio é novo (3) pertence ao declarante. Prédio urbano que actualmente corresponde ao referido na alínea A) supra - conforme artigo 7º do PPA e Documento nº 4 em anexo ao PPA;

F)            Na declaração referida na alínea anterior o declarante fez a seguinte descrição do prédio: “edifício de um pavimento destinado a armazém, com área coberta de 759 metros quadrados e descoberta de 215 m2, sito na Rua ..., do Nascente com Rua..., e do Poente com ..., do Sul com Rua da ... e do Norte com ...” – conforme alínea b) do artigo 6º da resposta da AT e Documento nº 4 em anexo ao PPA;

G)           Ainda em 10.04.1976, o pai da Requerente (enquanto declarante) apresentou o Modelo 129 INCM (declaração para inscrição ou alteração de prédio urbano) no Serviço de Finanças, do prédio urbano hoje inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...º, em nome de outra irmã germana, menor, E...- conforme artigo 8º do PPA e Documento nº 5 em anexo ao PPA;

H)           Em 08 de outubro de 2020 a Requerente efectuou uma participação à Autoridade Tributária (Modelo 1 do IS), para efeitos de imposto de selo (Participação de Transmissões Gratuitas nº ...), na onde expressou “o bem em causa foi doado pelos pais da mesma nos termos constantes da escritura, pelo que no seguimento das decisões do STA, deverá ser considerada isenta” – conforme artigo 11º do PPA, documentos 6 e 7 em anexo ao PPA e alínea c) do artigo 6º da Resposta da AT;

I)             A AT, em data não apurada, procedeu à notificação da liquidação do imposto de selo, com o n.º..., datada de 2020-10-08, no montante total de 20.558,00€, com data limite de pronto pagamento de 31.12.2020, podendo pagar-se em 10 prestações semestrais, sendo a primeira de € 2 055,80 - conforme artigo 12º do PPA, documento nº 8 em anexo ao PPA e alínea d) do artigo 6º da resposta da AT;

J)            Em 10.12.2020, a Requerente, com o intuito de evitar a interposição de execução por parte da Autoridade Tributária e, consequentemente, a penhora de bens, procedeu, ao pagamento da primeira prestação do imposto no montante de 2.055,80€ - conforme artigo 16º do PPA e Documento n.º 9 em anexo ao PPA;

K)           Em 08.01.2021 a Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral – conforme registo no SGP do CAAD.

 

2.1.  Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

                Os factos provados basearam-se nos documentos juntos pelas Partes. Por cada alínea dos factos provados, são indicados os documentos ou artigos das peças processuais que não mereceram dissentimento entre as partes e que foram considerados relevantes.

                Não há outros factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

3. Matéria de direito

               

                Quanto à questão de fundo que se coloca neste processo – se é ou não de aplicar a isenção subjectiva da alínea e) do artigo 6º do CIS - já se pronunciou recentemente o CAAD, através da decisão arbitral CAAD Processo nº 383/2020-T.

                A situação colocada neste processo é a mesma que se colocou no processo CAAD nº 383/2020-T.

                Este Tribunal pouco poderá acrescentar ao que é referido na referida decisão arbitral, considerando que nela se faz uma leitura assertiva, em termos de aplicação das normas fiscais aplicáveis, no seu conjunto, pelo que, visando contribuir para a uniformização das decisões arbitrais do CAAD a ela se adere na parte que a seguir se reproduz:

 

                “... a questão de direito que importa decidir é a de determinar se a isenção subjetiva ínsita na norma da alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo -  e de que beneficiam o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes -  é aplicável à aquisição de imóvel por usucapião, uma vez que, para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o legislador, na norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do CIS, estabeleceu que são transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objeto o direito de propriedade ou figuras parcelares deste direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião.

A usucapião traduz-se na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, que, salvo disposição em contrário, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. E a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr. art. ºs 1251.º e 1287.º do Código Civil).

A usucapião, uma vez invocada, determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida, pelo que há que concluir que não estamos aqui perante uma transmissão do direito anteriormente incidente sobre a coisa e correspondente ao adquirido por usucapião. A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão. Daí que os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que pudessem eventualmente padecer os anteriores direitos sobre a mesma coisa, v.g, a falta de título ou a falta de registo. Na aquisição por usucapião estamos perante uma forma de aquisição de direitos que se funda na posse (poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real), quando esta reveste certas características e desde que se mostrem verificados alguns requisitos, relativos, nomeadamente, ao seu tempo de duração, sendo certo que a usucapião tem sempre na sua base uma situação possessória e essa posse pode ter sido constituída ex novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior. A invocação desta posse apta à usucapião, tanto pode ser feita judicial como extrajudicialmente (como no presente caso aconteceu) e, uma vez invocada, a usucapião atua retroativamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse (cfr. art.ºs. 1288° e 1317°, al. c).

 

A usucapião consubstancia uma aquisição originária, nunca uma aquisição derivada, assente numa alegada transmissão de bens operada por escritura pública de compra e venda, de doação, ou de partilha, assim, atento o carácter originário das aquisições por usucapião que, por isso, nunca são verdadeiras transmissões, pois o usucapiente não sucede nos direitos dum qualquer anterior titular do direito de propriedade (bem como de qualquer outro direito real do gozo) sobre o bem adquirido por usucapião”.

 

No caso concreto, na escritura de justificação, assinada pela Requerente e por três testemunhas, exara-se desde logo a advertência de natureza criminal: “adverti os outorgantes que incorrem na pena prevista para o crime 348º do Código Penal se dolosamente e em prejuízo de outrem tiverem, respetivamente, prestado e confirmado declarações falsas”.

Depois a Requerente declarou: “que é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, do prédio urbano, composto por casa de rés do chão amplo destinada a armazém com logradouro, sito na Rua..., número ..., freguesia de ..., concelho de Valongo, com a área total de novecentos e setenta e quatro metros quadrados, sendo a coberta de setecentos e cinquenta nove metros quadrados e a descoberta de duzentos e quinze metros quadrados, inscrito na matriz sob o artigo ..., ... não descrito no registo predial”.

E continua referindo: “que ela, justificante, possui o prédio desde dez de abril de mil novecentos e setenta e seis, por os seus pais, C... e D... lho terem doado verbalmente, por conta da quota disponível, data essa em que procederam à declaração de inscrição do imóvel no Serviço de Finanças, em nome da justificante, à data ainda menor de idade e cujo título, por isso, não dispõe. Que desde aquele ano entrou na posse do imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade plena, aproveitando todas as suas utilidades, usufruindo-o, dando-o em locação e recebendo os respetivos frutos, fazendo melhoramentos e reparações e suportando os respetivos encargos, posse esta que exerce até hoje, de modo contínuo, pacífica e publicamente e de boa fé, pelo que se afirma proprietária do prédio, justificando a sua aquisição por usucapião”.

Concluir-se-á, pois, que as declarações prestadas pela Requerente, em sede de escritura de justificação, perante o Senhor Notário, estão suficientemente documentadas no tempo, como se retira das alíneas C) a G) dos factos provados.

 

Voltando à decisão arbitral CAAD Processo nº 383/2020-T:

 

“Verifica-se que, no caso dos autos, embora se trate de uma aquisição originária, porque estamos perante aquisição por usucapião, na verdade, a justificação tem subjacente o fim material de reatar o trato sucessivo tendo em vista suprir a falta de um título formal para registo relativo a transmissões derivadas (transmissão de ascendente, cônjuge e descendentes).

Todavia, atento o carácter originário das aquisições por usucapião que, por isso, nunca são verdadeiras transmissões, pois o usucapiente não sucede nos direitos dum qualquer anterior titular do direito de propriedade ...  Na verdade, nas aquisições originárias, ao contrário do que ocorre nas aquisições transmissivas - que importam a translação do direito de propriedade de uma para outra pessoa e que, nessa medida, têm perfeitamente identificado o adquirente e o transmitente – aquelas não acarretam a translação do direito de propriedade de uma para outra pessoa e que, por essa razão, apenas têm o adquirente, inexistindo, portanto, e por princípio, o transmitente.

Portanto, a exegese jurídica sobre a possibilidade da isenção subjetiva prevista na norma da alínea e) do artigo 6.º do Código do IS, ser ou não aplicável quando o Imposto do Selo, liquidado com base nos normativos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º do Código do IS, tiver por fundamento a aquisição por usucapião, é razoável e pertinente, porquanto, não havendo na aquisição por usucapião um transmitente, como é que pode ser considerada uma isenção subjetiva em benefício do cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes?

 É esta linha de raciocínio que pode justificar os dois votos de vencidos apostos no Acórdão do Pleno da secção do Contencioso Tributário do STA, proferido no processo n.º 0746/11, de 02.05.2012, ou o voto de vencido aposto no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, proferido no processo n.º 1119/15.9BELSB, de 07.08.2018, que pela sua relevância se transcreve quase na íntegra “(…). Votei vencido o presente acórdão pelas razões que exponho infra, resumidamente. O que está em causa no presente processo é saber se a aquisição de imóveis com base na figura da usucapião e através de escritura de justificação notarial está, ou não, isenta de imposto de selo, dado se enquadrar (?) na previsão da norma de isenção constante do art.° 6º, al. e), do C. l. Selo. Antes de mais se dirá que a usucapião consubstancia uma forma de aquisição originária de um ou mais bens, pelo que não se trata de uma transmissão de bens, uma vez que ao direito de propriedade constituído pelo novo titular não corresponde a cessação de idêntico direito de outrem. O direito do novo titular não deriva de um direito anterior de outro possuidor, mas é um direito que se constitui "ex novo", de forma originária na ordem jurídica, entre um titular e um bem (cfr. art°s. 1287 e 1288, do C. Civil). A incidência do Imposto do Selo sobre as aquisições por usucapião está consagrada no art.° 1.º, n.º 3, al. a), do C. l. Selo, tal como na verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo (cfr. José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 3.ª, Edição, 2016, pág.498 e seg.).

Não consideramos que o citado art.º 6.º, al. e), do C. l. Selo, abranja na sua previsão as aquisições por usucapião, visto que o legislador não se refere expressamente a tal situação, apenas se limitando a considerar as transmissões gratuitas, sendo que a usucapião não tem a natureza de uma transmissão de bens, seja ela gratuita ou onerosa, conforme supramencionado. Contrariamente ao entendimento vertido na posição que logrou vencimento neste acórdão, na interpretação sistemática das normas do C. l. Selo (cfr. art.° 9.º, do C. Civil), em causa nos presentes autos, deve o intérprete concluir que o legislador sentiu necessidade de consagrar a equivalência das aquisições por usucapião às transmissões gratuitas (cfr. supramencionado 1.º, n.º 3, al. a), e 2, n°.2, al. b), do C. l. Selo), apesar da diferente natureza jurídica de ambas as situações.

No mencionado art.º 6.º, al. e), do C.l.Selo, tal equivalência legislativa não se verifica, assim não sendo defensável que se possa considerar um qualquer grau de parentesco face a um hipotético e inexistente titular anterior à aquisição. (…)”.

Todavia, a consideração desta posição jurídica ficou prejudicada, porquanto, a Requerida – Autoridade Tributária e Aduaneira – acolheu a jurisprudência uniformizada ínsita no Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0746/11, de 02.05.2012, em que é sumariado o entendimento seguinte: “I. Quando o legislador veio, no art.º 1.º, n.º 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais. II. É, portanto, irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade para efeitos do nascimento da obrigação tributária, pois esta se constitui com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial [al. r) do art.º 5.º do CIS], incluindo o imposto sobre o ato de aquisição por usucapião. III. O art.º 6.º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que por mera interpretação declarativa se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção. IV. Deve considerar-se contrário ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídica, enquanto subprincípios do princípio do Estado de Direito, que o legislador possa utilizar, sobretudo ao nível de normas de isenção fiscal e no âmbito do mesmo imposto, os mesmos conceitos com significados opostos, para daí extrair encargos económicos sobre os contribuintes de forma pouco clara e transparente”.

Com efeito, e talvez ex vi a norma do n.º 4 do artigo 68.º-A da LGT, a Requerida - AT - acolheu a jurisprudência uniformizada do STA e desviou a temática controvertida do plano da hermenêutica jurídica e colocou-a no plano casuístico dos elementos e meios probatórios, como se pode verificar em função das conclusões da doutrina administrativa ínsita na Instrução de Serviço n.º 40.054, Série I, de 22.12.2017, da DSIMT, que prescrevem no sentido de que:

“a) A aplicabilidade da isenção subjetiva prevista na al. e) do art.º 6.º do CIS à aquisição por usucapião, dependerá da demonstração casuística e concreta da verificação dos pressupostos constantes daquela norma;

b) A demonstração dos factos dependerá dos meios de prova apresentados, considerando-se, em princípio, a escritura pública de justificação notarial insuficiente para o efeito, preferindo os meios de prova de maior valor probatório, i. e. de força probatória plena sobre os demais meios de prova, como é o caso da prova documental”.

Nesta medida, há que salientar que se, a título exemplificativo, tivermos em consideração as alegações da Requerida produzidas nos recursos jurisdicionais que deram azo ao Acórdão do STA, proferido no processo n.º 01112/12, de 20.02.2013, e ao Acórdão do TCAS proferido n.º 1119/15.9 BELSB, de 07.06.2018, verifica-se que se registou uma profunda evolução na sua posição doutrinal sobre a temática sub judice, senão vejamos um segmento do que foi alegado no primeiro processo indicado, a saber:

“(…). 3.º A questão que aqui se coloca é de saber, se aos factos em apreço nos autos, é de aplicar ou não a isenção prevista na alínea e) do art.° 6.° do Código de Imposto do Selo relativamente à aquisição por usucapião do direito de propriedade, a favor da impugnante B……, operada em 2004.09.23, através da celebração da escritura pública de justificação notarial, na qual é mencionado que o referido prédio lhe foi doado verbalmente em parte, pelos seus pais, sem contudo ter sido reduzida a escrito tal doação.

4º Considerando que a doação foi feita verbalmente, não se poderá invocar com base em facto translativo da propriedade do imóvel a favor da impugnante, pelos pais da impugnante, através da doação, porque este não ocorreu uma vez que a doação foi feita verbalmente e por conseguinte, por se tratar de um imóvel, a mesma não é válida por falta de forma, art.° 947. ° n.º 1 do Código Civil.

 5º A aquisição por usucapião, é uma aquisição originária, da qual resulta a inexistência de transmitente do imóvel, por conseguinte.

6º Está fora do âmbito das transmissões gratuitas a favor de herdeiros legitimários, porque estas pressupõem a existência de um transmitente.

7º A isenção do imposto do selo, prevista e regulada no normativo do art.° 6. ° e) do CIS, contempla as transmissões gratuitas a favor de herdeiros legitimários.

8º No caso em apreço, a transmissão gratuita do direito de propriedade sobre o imóvel, é resultante da sua aquisição por usucapião a qual tem por base a inexistência de um transmitente.

9º Entendemos que o caso em apreço não se enquadra no normativo da isenção, previsto no art.° 6. ° e) do CIS e consequentemente o tributo liquidado é devido.

10.º Por outro lado, a Meritíssima Juiz “a quo” ao enquadrar os factos na alínea e) do art.° 6. ° do CIS, isentando o ato impugnado de imposto, fez uma interpretação extensiva que as leis fiscais não permitem no tocante às isenções, violando assim o art.° 103. ° n.º 2 da CRP.

11.º Considerando que o legislador, quer, no art.° 1 n.º 3 alínea a) parte final, quer na tabela geral do imposto do selo no seu 1.2 do imposto do selo, menciona a referência “incluindo a aquisição por usucapião”.

12.° Não tendo feito tal menção na citada na alínea e) do art.° 6. °, teve a intenção de não abranger as isenções derivadas de aquisições por usucapião, a fim de evitar fraude fiscal”.

 A atual posição da Requerida, vertida designadamente na Instrução de Serviço n.º 40.054, Série I, de 22.12.2017, da DSIMT (artigo 12º da Resposta), e que foi reproduzida na sua resposta nos presentes autos, vai ao encontro da jurisprudência uniforme firmada no STA que, em síntese, pugna no sentido de que, sendo o ato formal de aquisição por usucapião de um imóvel objeto de incidência de tributação em imposto de selo, quando o imposto do selo, porém, constituir encargo do cônjuge, a alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto de Selo consagra a isenção subjetiva do cônjuge (cfr. acórdão do STA, proc.º 0431/10, de 13.10.2010).

Com a reforma do património, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, ocorreu uma importante inovação do Imposto do Selo relativamente ao antigo Imposto Sucessório, materializada na sujeição a imposto das aquisições de bens por usucapião.

A aquisição por usucapião é uma aquisição originária de um ou mais bens, pelo que não se trata de uma transmissão de bens, uma vez que ao direito de propriedade constituído pelo novo titular não corresponde a cessação de idêntico direito de outrem. O direito do novo titular não deriva de um direito anterior de outro titular, mas é um direito que se constitui de novo, de forma originária na ordem jurídica, entre um titular e um bem.

Não se tratando de uma transmissão, a aquisição por usucapião não estava sujeita ao Imposto Sucessório. Apesar disso, esse tipo de aquisição consubstancia, pelo menos formalmente, um enriquecimento do novo titular, uma vez que no seu património é inscrito um novo direito sem contrapartida patrimonial direta.

As aquisições por usucapião passaram a estar sujeitas a Imposto do Selo sobre as transmissões gratuitas, em razão, fundamentalmente, da necessidade de prevenir a evasão fiscal. Na verdade, na vigência do Imposto Sucessório, a falta de previsão da sua sujeição havia conduzido à utilização dos instrumentos de justificação da aquisição por usucapião para titular aquisições de bens que, na verdade, eram transmissões por compra e venda, doações ou através de outros tipos de contratos sujeitos àquele imposto.

Nessas situações a escritura de justificação era utlizada, fundamentalmente, como instrumento de evasão fiscal, para evitar o imposto que incidia sobre as transmissões tituladas pelos contratos em que realmente assentavam essas transmissões.

A previsão da sujeição a imposto das aquisições por usucapião consta da verba 1.2 do Tabela Geral do CIS, cuja redação é a seguinte: "1.2 - Aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião, a acrescer, sendo caso disso, à da verba 1.1 sobre o valor 10%", bem como da alínea a) do n.º 3 do artigo 1, ambos do CIS, que tem a seguinte redação: "a) Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião".

Nestas aquisições, o facto gerador ocorre na data em que se tornam definitivos os efeitos do instrumento que lhe serve de título, seja a justificação judicial, notarial ou administrativa. Assim o prevê a alínea r) do n.º 1 artigo 5.º do CIS, que dispõe que "[n]as aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a ação de justificação judicial, for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial”.

Assim, na sequência da referida reforma do património, o Imposto do Selo passou a tributar as transmissões, e o legislador acrescentou ao âmbito da sujeição das transmissões gratuitas as aquisições por usucapião, sem, contudo, as considerar transmissões, que na verdade não são.

Na verdade, quando, através do normativo do n.º 3 do artigo 1.º do CIS, o legislador estabeleceu que, para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, pelo que se impõe concluir que o legislador não quis alterar essa natureza, tendo apenas visado alargar a base de incidência do imposto do selo, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais.

Esta ficção legal é repetida na alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do CIS, quando o legislador, ao regular a incidência subjetiva do imposto, estabelece que “[n]as demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários”.

Finalmente, e no que concerne às isenções subjetivas, no artigo 6. ° do CIS, o legislador prescreve que nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2. da tabela geral de que são beneficiários, são isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo, o “cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes”. Todavia, neste normativo o legislador não fez constar o segmento relativo à “aquisição por usucapião”.

Será legitimo questionar a técnica legislativa, na medida em que nos artigos 1° e 2° do CIS, a usucapião é considerada equiparada ou ficcionada a uma transmissão gratuita, mas já não o será nos normativos que estabelecem as isenções (art.º 6.º do CIS). É verdade que o legislador nos normativos anteriores referiu-se sempre à usucapião e no artigo 6° do CIS não o faz, mas será que era necessário fazê-lo?

Há que sublinhar que no artigo 2° do CIS, o legislador regula a incidência subjetiva do imposto do selo, referindo expressamente que “nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários.” Importa, assim, concluir que quando se chega ao artigo 6. ° já não há necessidade de voltar a repetir-se a expressão, na medida em que o objetivo do preceito está centrado na enumeração das pessoas que estão isentas de imposto e não nas operações, temática que já foi tratada anteriormente.

Por outro lado, há que realçar que o preceito diz expressamente que são isentos “o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários”. Isto é, o preceito ao remeter expressamente para as “transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral” dispensa a necessidade de repetir a expressão usucapião porque o n.º 3 do artigo 2. ° do CIS, para onde a alínea e) do artigo 6. ° do CIS remete, já contém, precisamente, a noção de “transmissões gratuitas” para efeitos daquela tabela onde se inclui a usucapião. O que significa que, por mera interpretação declarativa, se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da isenção da alínea e) do artigo 6. ° do CIS.

A não ser assim, ficaria por responder qual a razão de ser de dar tratamento diferente discriminando a usucapião das demais aquisições gratuitas, quando o objetivo da isenção prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS é o de favorecer precisamente o cônjuge ou equiparado e os descendentes e ascendentes. Não se vendo, assim, razão para adotar nesta sede uma noção restrita de “transmissão gratuita”, distinta do sentido amplo adotado nos demais preceitos, se o objetivo da lei é proteger as pessoas indicadas na alínea e) do artigo. 6.º do CIS, então, o mais natural é que valha aqui a noção ampla de “transmissão gratuita” adotado pelo legislador nos demais preceitos do CIS.

A nosso ver, não colhe o argumento, fundado no princípio da igualdade, de que a uma situação de justificação de propriedade de dado prédio, fundada na usucapião, não deverá ser admissível a materialização da isenção a que alude a alínea e) do artigo 6.º do CIS, pela razão de que, atenta as características de aquisição originária, inexiste transmitente da propriedade relativamente ao qual se possa estabelecer o vínculo de parentesco, ou a ele equiparado, exigido pelo normativo - cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes -, para que, ao mesmo, se possa fazer apelo.

Com efeito, estatui o princípio da igualdade - que consiste em tratar de forma igual aquilo que é igual e de forma diferente, aquilo que é diferente, na justa medida dessa diferença -, plasmado, em primeira linha, no artigo 13.º da CRP, mas também no artigo 55.° da LGT e no artigo 6.° do CPA, sobre a imposição de um tratamento de igualdade efetiva entre os cidadãos e, necessariamente, às situações com que, estes, se vêem confrontados, ou seja, "este princípio obriga a administração tributária a tratar de forma idêntica os administrados que estejam em situações semelhantes e a aplicar tratamentos diferentes aos que se encontrem em situações substancialmente distintas."

Ora, a nosso ver, é exatamente por força do princípio da igualdade que se justifica a extensão da isenção subjetiva prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS à transmissão gratuita, aquisição por usucapião, porquanto, como é o caso nos presentes autos, o recurso à justificação notarial apenas teve por objetivo a obtenção de título formal, por forma a permitir o registo na Conservatória do Registo Predial, pois, se tal não fosse necessário, a transmissão ter-se-ia verificado por transmissão sucessória e, consequentemente, verificar-se-ia a isenção do Imposto do Selo.

Ora, o legislador não terá pretendido criar uma solução legal diametralmente oposta para uma realidade factual e material, e com um efeito equivalente, e que, embora configure institutos jurídicos diferentes, é completamente igual, ao que acresce que, em sede interpretativa das leis fiscais, quando persistir alguma dúvida, deve atender-se à substância económica dos factos (cfr. art.º 11.º da LGT).

Assim, e como é conhecido, até 31 de dezembro de 2003, o sistema de tributação em Portugal sobre o património incluía a existência de uma regra em matéria de tributação no que respeita às transmissões gratuitas de bens, qual seja, a da sua tributação. A partir dessa data, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, através da qual se introduziu na ordem jurídica a grande reforma relativa à tributação sobre o património, esse sistema regra de tributação deixou de existir, tendo sido substituído pela implementação de “um conjunto de transformações que mudaram o paradigma da tributação das transmissões gratuitas em Portugal”. Em especial, atento a questão que nos prende agora a atenção, assumindo o legislador expressamente uma opção de não tributação “das transmissões gratuitas sempre que os beneficiários sejam os membros do núcleo familiar mais restrito, ou seja, os chamados herdeiros legitimários”, opção que surge suportada no entendimento de que a tributação dessas transmissões nesse especial “circunstancialismo familiar” se afigurava desnecessária ou menos justificável face aos princípios fundamentais de tributação e aos reais objetivos subjacentes a esta reforma.

 

Nesta linha de raciocínio, há que realçar que foi precisamente essa opção que ficou positivada na alínea e) do artigo 6.º do CIS, no qual, como já se viu, se estabelece que estão isentos do imposto "[o] cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários".

Na jurisprudência do CAAD - área tributária – identificaram-se três processos arbitrais – n.ºs 105/2015-T, 488/2016-T e 268/2017-T – que se ocuparam da tributação das aquisições por usucapião, porém, os factos determinantes da causa de pedir são diversos dos factos controvertidos nos presentes autos. Todavia, não deixámos de ponderar e de refletir sobre a interpretação e aplicação do direito aos factos que foi feita no âmbito dos referidos processos arbitrais.

Como se vem referindo, a temática controvertida no presente processo arbitral já foi exaustivamente analisada e decidida pelos Tribunais Tributários Superiores, inclusive, é hoje unânime o entendimento que o STA tem sobre esta temática, como resulta evidenciado dos acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de que se destacam os acórdãos seguintes: proc.º 0922/09, de 27.01.2010; proc.º 0746/11, de 02.05.2012; proc.º 01112/12, de 20.02.2013; proc.º 0718/15, de 12.10.2016; proc.º 01372/16, de 29.03.2017, e proc.º 0121/16.8BEMDL, de 20.05.2020.

Importa, ainda, fazer referência ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 1119/15.9 BELSB, de 07.06.2018, que sumaria jurisprudência uniforme no sentido de que:

I.             A equiparação da aquisição por usucapião a uma transmissão gratuita, consagrada no artigo 1.º, n.º 3, do Código de Imposto de Selo (CIS), constitui uma ficção que o legislador fiscal estabeleceu exclusivamente para efeitos fiscais.

II.            A isenção estabelecida no artigo 6.º alínea e) do CIS de pagamento de imposto do selo por parte cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes e a remessa aí realizada para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da Tabela Geral de que são beneficiários, implica que se deva julgar como incluído no âmbito de aplicação da referida norma de isenção a usucapião.

III.          Considerando que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não é de acolher um sentido interpretativo de uma norma que implique o reconhecimento de que o legislador utilizou (pretendeu utilizar) um mesmo conceito com significados opostos na regulamentação de um mesmo imposto, especialmente no estabelecimento dos pressupostos de isenção do seu pagamento.

IV.          Tal reconhecimento, para além de contrariar as regras interpretativas, teria sempre que ter-se como contrário aos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas e da transparência, enquanto subprincípios do princípio do Estado de Direito.

V.           Tendo o Supremo Tribunal Administrativo proferido acórdão uniformizador de jurisprudência e mantendo-se pacifico desde então o entendimento jurídico que aí perfilhou, não existem razões – na presença de uma situação de facto idêntica à considerada no referido aresto e na ausência de novos argumentos jurídicos a ponderar – para que sejam postos em causa os objetivos, princípios e valores que estão na base da existência da própria previsão legal de acórdãos com aquela natureza, a saber: a pacificação/uniformização da jurisprudência dos sentidos de decisão dos Tribunais Centrais e dos Tribunais de 1.ª instância; a pacificação das atuações e decisões administrativas e uma maior segurança e certeza jurídica na interpretação e aplicação da lei, especialmente quando a Administração Tributária já conformou a sua própria atuação ao julgamento realizado pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no referido acórdão uniformizador”.

A Requerente, recorreu à justificação extrajudicial, através de escritura notarial, com vista a obter título formal pleno e idóneo, no sentido de reatar o trato sucessivo em sede de registo predial, tendo para o efeito intervindo na escritura diversos outorgantes que declararam todo o historial sobre a posse dos bens imóveis em causa, cujo probatório está devidamente demonstrado nos documentos anexos ao pedido de pronúncia arbitral e, em relação aos quais, a Requerente, por força da aquisição por usucapião, é titular...” do direito de propriedade do bem imóvel.

“Importa considerar que a escritura pública de justificação da usucapião é o ato final de um procedimento especificamente regulado por lei, designadamente nos artigos 89.º a 101.º do Código do Notariado, que inclui diversas cautelas e verificações destinadas a assegurar um elevado grau de fidedignidade de que depende a legalidade dos atos de justificação.

Acresce que a escritura pública de justificação da usucapião constituí prova plena das declarações produzidas pelos outorgantes e pelas testemunhas, tendo estas afirmado que “confirmam as declarações ... da primeira”, “sendo que, ainda que uma determinada prova, por alguma circunstância, não possa fazer prova plena, não significa que a mesma deva ser pura e simplesmente inutilizada ou liminarmente desconsiderada”.

A verdade, é que o processo notarial está cuidadosamente previsto na lei, tendo, inclusive uma função social, pelo que o depoimento que é recolhido por notário em ato público, se não for suficiente para justificar e estabilizar na ordem jurídica o depoimento prestado por terceiros idóneos, e objeto de subsequente publicação obrigatória, não pode tal depoimento ser colocado em causa por argumentos estritamente formais.

Pois, tentando ir ao encontro da doutrina administrativa ínsita na Instrução de Serviço n. º40054, Série I, de 22.12.2017, da DSIMT, in casu, o Tribunal não vislumbra que provas poderiam ser careadas para os autos, a não ser aquelas que o histórico cadastral da vida fiscal da Requerente e demais outorgantes possa proporcionar, todavia, há que considerar que estes elementos probatórios serão do conhecimento da Requerida”.

 

Aqui chegados, também neste processo se terá que concluir, “por adesão à jurisprudência uniforme dos Tribunais Tributários Superiores, que se considera que o normativo da alínea e) do artigo 6.º do CIS abrange as transmissões gratuitas, incluindo a aquisição por usucapião” e sendo a Requerente, filha de C..., entidade que construiu o prédio urbano e o registou na AT, em 1976, em nome da Requerente então menor, com o claro intuito de o doar à filha, (tal como o fez quanto à outra filha menor com outro bem imóvel) fica claro que a Requerente adquiriu a posse sobre os imóveis em causa por transmissão de ascendente para descendente, o que justifica a aquisição gratuita do referido bem imóvel aqui em causa por via da usucapião.

               

Face ao exposto procede o pedido de pronúncia arbitral, uma vez que a liquidação impugnada enferma de vícios de erro sobre os pressupostos de direito, nos termos acima expostos, que justificam a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT. 

 

                4. Restituição do indevidamente pago. Direito a juros indemnizatórios.

 

Na sequência da ilegalidade do ato de liquidação controvertido, há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força do disposto nos artigos 24º nº 1, alínea b), do RJAT e 100º da LGT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

 

Procede, pois, o pedido de reembolso da quantia de IS correspondente ao imposto já pago em 10.12.2020 (alínea J) dos factos provados e bem assim o pedido de reembolso das prestações que tenham sido pagas posteriormente (artigo 50º do PPA).

 

***

 

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução. (Aditada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro)

4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas. (Aditado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 

Revertendo o que se referiu para o caso concreto deste processo, verifica-se que deve ser aplicado o regime do nº 1 do artigo 43º da LGT, porquanto o erro de liquidação deve ser imputável à Requerida, que a levou a efeito por sua iniciativa,  pelo que são devidos juros indemnizatórios aos Requerentes, devendo ser contados desde a data do efectivo pagamento de cada prestação e calculados sobre a importância de cada prestação paga, nos termos do disposto no artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

Os juros indemnizatórios são devidos desde a data de cada pagamento, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d), e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva.

 

                5. Decisão

 

Nestes termos decide este Tribunal Arbitral:

 

A)           Anular o acto de liquidação de Imposto de Selo n.º..., datado de 2020-10-08 (participação n.º...), relativo à aquisição por usucapião do prédio urbano identificado e A) dos factos provados, de que resultou um valor a pagar de € 20 558.00.

B)           Condenar a AT na restituição das prestações do imposto do selo liquidado que tenham sido pagas e no pagamento dos a juros indemnizatórios devidos desde a data de cada pagamento, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d), e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 20 558,00.          

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1 224,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, por ter decaído na totalidade (artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 122.º, n.º 2, do CPPT).

               

Lisboa, 13 de Setembro de 2021

 

Tribunal Arbitral Singular

 

O Árbitro,

(Augusto Vieira)