Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 218/2021-T
Data da decisão: 2021-12-03  IRC  
Valor do pedido: € 88.940,48
Tema: IRC – Preterição do direito de audição prévia do SP (artigo 60.º, nºs 1, alínea a) e 2 alínea b), da LGT e 90.º, n.º1, alínea b) do CIRC).
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Sumário:

 

a.            Se a liquidação oficiosa não foi emitida com base em critérios objetivos, sempre seria de dar a oportunidade ao contribuinte de ser ouvido, podendo fornecer outros elementos úteis à liquidação. Termos em que não pode considerar-se aquele ato de liquidação (ainda que previsto na lei), baseado em critérios objetivos e de conteúdo estritamente vinculado;

b.            A Administração Fiscal ao omitir a notificação da Requerente, para o exercício do direito de audição antes da liquidação, contribuiu para diminuir inaceitavelmente os meios de garantia e de defesa que a lei coloca à sua disposição, com o consequente vício de forma emergente de preterição de formalidade legal essencial, manifestamente lesivo e invalidante do ato.

 

Decisão Arbitral

Os Árbitros Fernanda Maçãs, Dr. Paulo Ferreira Alves e Dr. João Marques Pinto, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23 de Junho de 2021, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

A “A…………., LDA.” NIPC …….., com sede social em Rua ……….., …., Piso …, escritório …., ….-… Lisboa. Doravante designada por “Requerente”, veio, ao abrigo do disposto no artigo 10º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e o correspondente pedido de pronuncia arbitral, por discordar da liquidação de IRC no montante de € 88.940,46 (incluindo a liquidação de juros compensatórios nº 2020 ………………, no valor de €1.466,68), referente ao exercício de 2018, invocando perante o Tribunal que:

a)            A nulidade da liquidação de IRC nº 2020………, no valor de € 88.940,46 (oitenta e oito mil novecentos e quarenta euros e quarenta e seis cêntimos) incluindo a liquidação de juros compensatórios nº 2020………, no valor de €1.466,68, e consequentemente tudo o processado após a referida notificação, porque, tendo a Requerente sido declarada insolvente (por sentença proferida em 3 de Abril de 2014 pelo Tribunal Judicial da Comarca de .... – Proc. Nº ………/....), a notificação deveria ter sido enviada, nos termos do nº 3 do artigo 41º do CPPT, ao Senhor Administrador de Insolvência, porque à data dessa notificação era inquestionável que a Requerente já tinha sido declarada insolvente.

b)           Sendo declarada nula a notificação, nos termos do artigo 165º nº 1 alínea a) do CPPT, é entendimento da Requerente que deve ser anulado tudo o processado após esta notificação, determinando-se a sua repetição, porque se está perante a omissão de uma formalidade legalmente prescrita, susceptível de influir no exame e decisão da causa.

c)            De acordo com a Requerente, o facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT) ter procedido à liquidação oficiosa do IRS objecto de contestação, deveu-se ao facto de o seu contabilista certificado – Dr. B………… – TOC  nº ……. -  não ter cumprido as suas obrigações, nomeadamente a de entregar as declarações de impostos da Requerente referentes aos exercícios de 2017 e 2018, facto que motivou a apresentou uma queixa junto da Ordem dos Contabilistas Certificados, o que motivou a instauração de um Processo Disciplinar que corre, actualmente, sob o nº PD-…../19 e a contratação de um novo contabilista certificado.

d)           No âmbito do procedimento que originou a liquidação objecto de contestação, a AT fixou, ao abrigo do regime previsto no artigo 90º do Código do IRC (CIRC) oficiosamente, e relativamente ao exercício de 2018, a matéria colectável de € 416.513,93.

e)           Alega a Requerente, na sua petição inicial (ponto 33) que a fixação desta matéria colectável não lhe foi notificada, não lhe tendo sido permitido, por isso, exercer o correspondente direito de audição prévia.

f)            Pelo que ocorreu a preterição uma formalidade legal essencial e prévia à formação do acto tributário, considerando a Requerente que, não é o facto de o contribuinte não ter cumprido o dever de entrega da declaração de IRC que legitima o não exercício do direto de audição prévia.

g)            Entende a Requerente, em face do exposto, especialmente pelo facto de não ter exercido o seu direito de audição prévia, que a liquidação deve ser anulada, por violação do artigo 60º nº 1 alínea a), nº 2 e nº 4, da LGT, devendo a Requerente ser notificada exercer este direito.

h)           Entende ainda a Requerente que, no caso em apreço, não foi executada, pela AT, qualquer diligencia com vista à correcção dos valores oficiosamente fixados e, dessa forma, aferir o valor correcto da matéria colectável.

i)             Considerando, por isso que se verificou uma violação dos princípios do inquisitório, da verdade material e da imparcialidade, pois a AT limitou-se a notificar o contribuinte da liquidação oficiosa de IRC.

j)             Sem apurar, como obriga o artigo 104º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o rendimento real do sujeito passivo que seria a única forma de traduzir a efectiva situação tributária da Requerente.

k)            Porque caso o tivesse feito, verificaria que o valor da liquidação oficiosa, se mostrou totalmente “discrepante e desfasado da verdadeira actividade da sociedade e dos rendimentos e despesas por ela gerados.

l)             No capítulo VII da petição inicial, socorrendo-se dos documentos que são anexados, nomeadamente dos documentos com os números 9, 10 e 11, alega a Requerente que, no exercício de 2018, teve, comprovadamente, custos no valor de € 547.298,91

m)          Tendo obtido proveitos (de acordo com o ficheiro SAFT constante do documento nº 12) no valor de € 555.388,79.

n)           Pelo que a sua matéria colectável foi de € 8.089,88, o que originaria um imposto (IRC) a pagar de € 1.375,28, considerando uma taxa de 17%.

o)           Pedindo, em conclusão, ao Tribunal que decrete a anulação das liquidações oficiosas, porque (i) as mesmas, contrariando o disposto nos artigos 41º nº 3 do CPPT, 81º nºs 1 e 4 do CIRE e 156º do CPPT, foram remetidas para a sociedade  e não para o Administrador de insolvência, (ii) não foi observado e respeitado o exercício do direito de audição prévia (violando os artigos 60º , nº 1 a) da LGT e 2º nºs 1 e 2, 5 e 7 do CPA), (iii) e foram desrespeitados os princípios do inquisitório, da verdade material e imparcialidade (violando o artigo 104º da CRP).

p)           Sendo que, no caso de não vir a ser decretada a anulação das referidas liquidações, deve o valor do lucro tributável, a ser pago pela Requerente, considerando os proveitos obtidos e os custos suportados, ser fixado em € 8.089,88, o que originaria um imposto (IRC) a pagar de € 1.375,28.

Notificada em 24-06-2021, do requerimento apresentado pela Requerente, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante identificada como “Requerida”) apresentou a sua defesa em 13-09-2021.

a)            Alega a AT que a notificação deve ser considerada válida, na medida em que não subsistem duvidas que o sujeito passivo teve conhecimento da notificação das liquidações como o demonstra, de forma cabal, o pedido de pronuncia arbitral.

b)           Não sendo aplicável ao caso concreto a norma que obriga à notificação do liquidatário judicial, uma vez que o âmbito de aplicação da mesma é o processo de execução fiscal.

c)            Devendo ainda relevar o facto de a situação de insolvência e a designação do respectivo administrador não terem sido comunicadas à AT.

d)           No que se refere ao fundamento invocado pela Requerente de que não exerceu o direito de audição prévia, considerou a AT, na sua contestação, que tal argumento não deve colher, pois, no termos do artigo 60º nº 2 alínea b) da LGT, essa audiência é dispensada “No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para a apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.”

e)           Quanto à alegada Ilegalidade e Inconstitucionalidade da liquidação oficiosa, invocada pela Requerente, a AT veio contestar esta argumentação, da seguinte forma:

f)            O contribuinte não apresentou, tempestivamente a declaração Modelo 22 relativa ao exercício de 2018;

g)            Assim, considera a Requerida que na “Na falta de apresentação da declaração periódica de rendimentos, o legislador impõe que a administração tributária efetue a liquidação [artigo 89.º alínea b)] até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita, tendo tal liquidação oficiosa por base o maior dos seguintes montantes: a matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75; a totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada; o valor anual da retribuição mínima mensal [artigo 90.º n.º 1 alínea b)].” O que, não pode deixar de ter consequência legais.

h)           Neste caso, a lei obriga a que a AT liquide oficiosamente o imposto.

i)             Através do Aviso nº ………… de 23.10, a Requerente foi notificada nos seguintes termos: «No sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira não se encontra registada a vossa declaração de rendimentos Modelo 22 do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), relativa ao período de 2018, cujo termo do prazo de entrega ocorreu em 2019-06-30 (com exceção dos sujeitos passivos com períodos especiais de tributação).

Sendo obrigatória a apresentação anual da referida declaração, o não cumprimento desta obrigação, para além de sancionada como contraordenação, nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), implica a emissão de uma liquidação oficiosa, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC (CIRC), a qual tem por base o maior dos seguintes valores:

A matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a Administração Tributária e Aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75;

A totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;

O valor anual da retribuição mínima mensal.

Esta liquidação oficiosa fica, no entanto, prejudicada se, no prazo de 15 dias, vier a ser apresentada a declaração em falta, a qual deve ser obrigatoriamente enviada por transmissão eletrónica de dados, no Portal das Finanças (www.portaldasfinancas.gov.pt).»

j)             De acordo com a Requerida, a liquidação oficiosa, não está, desta forma, ferida de qualquer ilegalidade, tendo sido efectuada, “nos termos do artigo 90.º n.º 1 alínea b) 1) do CIRC, a matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75 – ou seja (de acordo com a informação extraída do SAFT):

€ 586.904,34 (valor de faturação) + € 538,11 (valor de notas de débito) - € 32.053,20 (valor de notas de crédito) = € 555.389,25 € 555.389,25 x 0,75 = € 416.541,93 (matéria coletável).”

k)            Acresce que, podendo o sujeito passivo apresentar, em sede de reclamação graciosa, todos os elementos contabilísticos de suporte para a sua defesa, bem como todos os cálculos de imposto que considerasse adequados, tal teria sido levado em consideração pela AT.

l)             Por fim, entendeu a AT que, estando em causa, essencialmente matéria de direito, é dispensável a prova testemunhal, até porque a AT se limitou a aplicar o quadro legal à realidade factual.

m)          Concluindo que se deve manter, na ordem jurídica o acto tributário de liquidação.

Em 13.09.2021, o Tribunal notificou a Requerente para que indicasse factos que se pretendem submeter a julgamento.

Em resposta a Requerente indicou que pretendia submeter a julgamento os factos constantes dos artigos 4, 8, 21 a 26, 28, 32, 38, 39, 42, 50, 51, 52, 53, 60, 61 a 75, 77 e 78.

Em 28.09.2021, a Requerente apresentou resposta à contestação da Requerida, alegando, em síntese, os mesos argumentos constantes do requerimento inicial, com excepção do pedido de condenação da Requerida, em litigância de má-fé, nos termos do artigo 542º nº 2 do Código de Processo Civil, por, no âmbito da resposta produzida, vir reafirmar e confirmar o valor de liquidação em IRC, tendo sido produzida prova em contrário no requerimento inicial. Neste âmbito, solicitou a Requerente que fosse aplicada à Requerida uma multa de € 10.000,00 (dez mil euros).

Por despacho produzido pelo Tribunal em 02.10.2021, o Tribunal notificou a Requerida para se pronunciar pela resposta enviada pela Requerente em 28.09.2021, tendo a Requerida alegado, em resposta, que se tratava de o exercício abusivo de um contraditório, onde não se acrescentava qualquer facto novo.

Quanto à litigância de má-fé considerou a Requerida que não estavam reunidos os pressupostos previstos no citado artigo 542º nº 2 do Código de Processo Civil, tendo-se limitado a contestar, de forma inteiramente legal, os argumentos apresentados pela Requerente na sua petição inicial.

Por despacho emitido em 24.10.2021, o Tribunal Arbitral pronunciou-se (i) pela não aceitação, com excepção da questão da litigância de má-fé, da resposta apresenta pela Requerente em 28.09.2021, por considerar que versava sobre matéria sobre a qual não é permitida o contraditório, constituindo um verdadeiro abuso de direito e (ii) indeferiu o pedido de produção de prova testemunhal por considerar que se tratam, essencialmente, de questões de direito.

Na mesma data – 24.10. 2021 – o Tribunal produziu um segundo despacho, dispensando a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, notificando as partes para produzirem as suas alegações no prazo de 15 dias e marcando o dia 23.12.2021 como data limite para a produção da decisão final.

No dia 10.11.2021, a Requerente apresentou as suas Alegações, nas quais não veio acrescentar qualquer facto ou fundamento relevantes e diferentes relativamente aos constantes do seu Requerimento inicial quer ao pedido posterior de condenação da Requerida em litigância de má-fé.

A Requerida não apresentou alegações.

 

II. Saneador

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

III. Fundamentação

III.1. Factos provados

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

a) A Requerente foi declarada insolvente por sentença proferida em 3 de Abril de 2014 pelo Tribunal Judicial da Comarca de .... – Proc. Nº …../....;

b) A Requerente não entregou a sua declaração Modelo 22 relativa ao exercício de 2018;

c) A AT fixou, ao abrigo do regime previsto no artigo 90.º, nº1, alíneas a e b), do Código do IRC (CIRC) oficiosamente, e relativamente ao exercício de 2018, a matéria colectável de € 416.513,93;

d)A fixação desta matéria coletável não foi notificada à Requerente; 

e)A AT liquidou oficiosamente o IRC do exercício de 2018 no valor global de € 88.940,46 (que incluiu a liquidação de juros compensatórios no valor de €1.466,68) e notificou dessa liquidação a sociedade e não o seu Administrador de insolvência;

f) A Requerente, na pessoa do seu Administrador Judicial, não foi notificada desta liquidação pelo que se viu privada de exercer o seu direito de audição prévia;

g) A Requerente não deduziu reclamação graciosa da referida liquidação oficiosa de IRC.

 

III.1.1. Factos não provados

Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

III.1.2.Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, e nos documentos juntos por estas ao presente Processo.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT, e consignar se considera provada ou não provada essa causa de pedir, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei é que o princípio da livre apreciação não domina na avaliação das provas produzidas.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

III.2. Questões Decidendas

Atenta a posição assumida pelas partes nos argumentos apresentados, são as seguintes as questões centrais a dirimir, as quais cumpre, pois, apreciar e decidir:

Peticionado pela Requerente:

i.             A verificação da nulidade da citação/notificação da nota de liquidação de IRC, determinando-se a repetição de todo o processado desde a alegada citação /notificação, efetuando-se nova citação /notificação na pessoa do Sr. Administrador Judicial;

ii.            A declaração de anulação da nota de liquidação por violação de preterição do exercício do direito de audição antes da liquidação;

iii.           A ilegalidade e inconstitucionalidade da liquidação impugnada;

iv.           Pedido de condenação como litigante de má-fé da Requerida.

 

III.2.1. Matéria De Direito

i.             A verificação da nulidade da citação/notificação da nota de liquidação de IRC, determinando-se a repetição de todo o processado desde a alegada citação /notificação, efetuando-se nova citação /notificação na pessoa do Sr. Administrador Judicial

Atendendo ao peticionado pela Requerente, e seguindo o princípio pro actione (também chamado anti-formalista) que encontra clara manifestação no art. 124º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal apreciara prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

A apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte: a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos; b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.

Retomando os autos, iniciaremos pelo seguinte pedido da Requerente:

Da verificação da nulidade da citação/notificação da liquidação de IRC, determinando-se a repetição de todo o processado desde a alegada citação /notificação, efetuando-se nova citação /notificação na pessoa do Sr. Administrador Judicial.

Alega, sumariamente, que a sociedade C……..Unipessoal, Lda., foi declarada insolvente por sentença proferida em 03 de abril de 2014, no âmbito do processo n.º ……/.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ...., Juízo de Comercio de .... – Juiz 3, e desde 25/06/2015, a administração do estabelecimento de farmácia ficou acometida ao Sr. Administrado de Insolvência nomeado no processo Dr. D……….. Contudo o Sr. Administrador não foi notificado da liquidação de IRC ora impugnada.

Entende a Requerente que a notificação da liquidação expressamente dirigida à sociedade, após a data de declaração de insolvência da sociedade, deveria ter sido efetuada ao Administrador de Insolvência, nos termos do disposto nos artigos 41.º n.º 3 do CPPT, do 81.º n.ºs 1 e 4 do CIRE e 156.º do CPPT, e não como foi à Requerente Via CTT.

A Requerida, contra-argumentou, sucintamente alegando que a notificação é um mero requisito da eficácia do ato tributário (liquidação), não contendendo com a sua validade material ou intrínseca (artigo 77.º n.º 6 da LGT), a não observância da forma de notificação constitui uma mera irregularidade que não afetará o valor da notificação, desde que se comprove que ela foi efetivamente efetuada. Não existem dúvidas de que o sujeito passivo teve conhecimento da notificação das liquidações, como o demonstra cabalmente o pedido de pronúncia arbitral, em que a Requerente surge a exercer o seu direito de defesa e impugnação, refutando o teor dos atos tributários.

Vejamos,

Da análise do probatório constante dos presentes autos, resulta efetivada a notificação da nota de liquidação impugnada, dirigida à sociedade ora  Requerente, em 16.12.2020, via CTT, e nada consta, sobre a efetivação da notificação ao Administrador de Insolvência.

Sucede que procedendo a Requerida à notificação, mas não tendo sido cumprido o formalismo, a notificação seria inválida e irregular se não se demonstrar, por qualquer outro meio, que a carta chegou, efetivamente, ao seu destinatário.

Provando-se que a notificação chegou, efetivamente, ao conhecimento do contribuinte, a apontada formalidade degrada-se em formalidade não essencial, sendo a partir dessa data do conhecimento que deve contar-se o prazo para sindicar a respetiva decisão.

A Requerente com a notificação efetuada pela Requerida tomou conhecimento da notificação da liquidação, e exerceu o seu direito de defesa.

Não existem dúvidas de que o sujeito passivo teve conhecimento da notificação da liquidação, como o demonstra cabalmente o pedido de pronúncia arbitral, em que a Requerente surge a exercer o seu direito de defesa e impugnação, refutando o teor do ato tributário.

Assim, resulta que a Requerente conheceu da notificação e compreendeu e respondeu à mesma, pelo que se encontra comprovada a efetividade da notificação/citação.

Procedendo-se à aplicação nos presentes autos do princípio do aproveitamento dos atos, as formalidades procedimentais previstas na lei degradam-se em não essenciais se, apesar delas, for atingido o fim que a lei visava alcançar com a sua imposição. Neste sentido, seguimos de perto o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 8 de setembro de 2010 – Proc. n.º 0437/10.

Pelo exposto anteriormente, a não observância da forma de notificação constitui uma mera irregularidade que não afetará o valor da notificação, improcedendo assim o pedido da Requerente.

 

ii.            A declaração de anulação da nota de liquidação por violação de preterição do exercício do direito de audição antes da liquidação;

Alega a Requerente, a declaração de anulação da nota de liquidação por violação de preterição do exercício do direito de audição antes da liquidação, porquanto a Autoridade Tributária tinha o dever de a notificar para o exercício do seu direito de audição.

A Requerente, alega em suma, que a Autoridade Tributaria acionou o mecanismo previsto no artigo 90.º do CIRC, tendo fixado a matéria coletável para o exercício de 2018, sem cumprir o direito de audição antes da liquidação.

Neste sentido alega a Requerente que a omissão de qualquer ato, legalmente previsto para o cumprimento do procedimento e forma de liquidação, constitui preterição de uma formalidade legal atinente à formação do ato tributário, com a consequente anulação do ato de liquidação por violação do disposto no artigo 60.º n.º1 alínea a) e n.º 2 e 4,  da LGT.

A Requerida, contra-argumentou, no caso da liquidação oficiosa, efetuada com base em valores objetivos previstos no artigo 90.º n.º 1 alínea b) do CIRC, não tendo o sujeito passivo apresentado a declaração periódica de rendimentos em falta, apesar de notificado para o efeito, é dispensada a audição prévia antes da liquidação oficiosa nos termos do artigo 60.º n.º 2 alínea b) da LGT.

Ora, da análise do probatório dos presentes autos, resulta que a Requerente, não foi notificada para o exercício do seu direito de audição.

Por conseguinte, a questão aqui decidir é a de saber, se existiu violação de preterição do exercício do direito de audição antes da liquidação.

A este propósito importa, reter, o princípio da audiência dos interessados previsto no n.º 1 do artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), embora não corresponda a um direito fundamental, é uma concretização do modelo da administração participada expresso no n.º 5 do artigo 267.º da C.R.P., que impõe à Administração Pública o principio da participação dos particulares na formação das decisões que lhe digam respeito, sendo uma das manifestações mais flagrantes do modelo da Administração aberta.

O direito de audição, encontra a sua consagração constitucional no artigo 267.º, n.º 5, da CRP: “o processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito”.

Como decorre da norma constitucional, o regime do direito de audição é relegado para  «lei especial», a definição dos termos em que tal direito será exercido, o que no caso presente, encontramos o seu regime no disposto no artigo 60.º da LGT:

Artigo 60.º

Princípio da participação

1. A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

2 - É dispensada a audição:

a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;

b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.

4. O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.

5. Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação.

6. O prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição é de 15 dias, podendo a administração tributária alargar este prazo até o máximo de 25 dias em função da complexidade da matéria.

7. Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.

Com efeito, o direito ou o dever de audição-prévia, constitui uma garantia de defesa dos particulares, de modo a permitir a justeza e a correção do ato final do procedimento.

Dada a sua importância, o direito de audição-prévia só pode ser dispensado nas situações legalmente previstas no artigo 60.º, n.º 2 e 3 da LGT.

Contudo é entendimento jurisprudencial, a existência de duas situações em que a omissão da audiência prévia poderá não ter consequências invalidantes.

Tem sido admitido o princípio do aproveitamento do ato tributário, quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral, nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente, ou, se trate de atividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão. (Ac. do STA n.º 0548/12 de 24-10-2012 Relator: Fernanda Maçãs)

O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação do interessado. (Ac. do STA n.º 01391/14 de 25-06-2015 Relator: Francisco Rothes).

Na segunda situação, havendo procedimento de segundo grau, quer o ato primário tenha sido mantido quer tenha sido alterado e substituído pelo ato do segundo grau, “...a decisão administrativa final acaba por ser o ato de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este ato que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação” Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa in "Lei Geral Tributária" anotada, 2012, pp. 517. (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo: 01196/05.0BEPRT de 02-02-2017)

Como nos diz o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo: 02046/04.0BELSB de14-10-2020: “O afastamento do efeito anulatório por preterição do direito de audiência, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, apenas pode ocorrer quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece, em geral, nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada.”.

Retomando os autos, da factualidade descrita nos presentes autos, face ao regime legal gizado, não se verifica o disposto no artigo 60.º, n.º 2 e 3 da LGT que permitiria a dispensa do direito de audição, e da jurisprudência elencada, não encontramos qualquer fundamento subsumível ao caso concreto, que, se insira nos dois tipos de situação supra elencados, consequentemente não se verificam cumpridos os critérios de aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo.

Com efeito, no caso, repete-se não se verificam os pressupostos do n.º 2 alínea b) do artigo 60.º da LGT.

Como ficou dito, a Requerida fixou a matéria colectável com base no critério da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIR, que tem o seguinte conteúdo (1):A matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a Administração Tributária e Aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75;

Ora, este critério, ao contrário dos demais previstos no mencionado preceito, não constitui um critério inteiramente objetivo. A fixação da matéria coletável, com base nos elementos de que a Administração disponha, não pode dispensar a investigação da realidade tributária para aferir os elementos corretos da tributação em causa, designadamente através da audição do contribuinte. Com efeito, ao ser dada a oportunidade ao contribuinte de ser ouvido, sempre poderá fornecer outros elementos úteis à liquidação. Termos em que, não podemos considerar este ato de liquidação (ainda que previsto na lei), de conteúdo estritamente vinculado.

Em suma, ao contrário do que pretende a Requerida, a liquidação oficiosa não foi emitida com base em critérios objetivos, termos em que seria exigido a notificação da Requente com vista à determinação do seu rendimento real.

Deste modo, a Administração Fiscal, ao omitir a notificação da Requerente, para o exercício do direito de audição antes da liquidação, diminuiu inaceitavelmente os meios de garantia e de defesa que a lei coloca à sua disposição, com o consequente vício de forma emergente de preterição de formalidade legal essencial, manifestamente lesivo e invalidante do ato.

Assim, e por tudo o que se vem de expor, a Requerida estava legalmente obrigada à audição antes da liquidação da Requerente, nos termos do artigo 60.º n.º 1 a) da Lei Geral Tributária, dever esse que, não foi cumprido, com a consequente preterição de formalidade legal, geradora da anulabilidade de tal ato.

Pelo exposto, a liquidação impugnada enferma de vício procedimental que a Requerente lhe imputa, e que justifica a sua anulação, procedendo nesta parte o pedido da Requerente.

Desta omissão decorre também a alegada violação dos princípios do inquisitório e da verdade material.

 

III.2.2. Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vicio imputado à liquidação impugnada, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das restantes questões suscitadas, de harmonia com os artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

III.2.3. Pedido de condenação como litigante de má-fé da Requerida

Sustenta a Requerente, no âmbito do último requerimento por si oferecido, que a entidade Requerida deve ser condenada como litigante de má-fé.

Em exercício do contraditório, invoca, a AT, que tal pretensão carece de fundamento.

Cumpre decidir.

O regime da litigância obedece, em sede tributária, a regime especial, no essencial constante do artº. 104.º da Lei Geral Tributária, nos termos do qual:

“1 - Sem prejuízo da isenção de custas, a administração tributária pode ser condenada numa sanção pecuniária a quantificar de acordo com as regras sobre a litigância de má-fé em caso de actuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adoptado em situações idênticas.

2 - O sujeito passivo poderá ser condenado em multa por litigância de má-fé, nos termos da lei geral.”

As regras, de natureza especial, assim relevantes neste domínio respeitam, exclusivamente, à entidade ora requerida.

Incumbirá, porém, ao Sujeito Passivo, alegar e provar a factualidade suscetível de concretizar o conteúdo da norma em causa (n.º 1 do referido artº. 104.º da LGT).

Na presente ação, porém, a Requerente não enunciou, nem fez prova, da factualidade suscetível de concretizar o conteúdo do pedido efetuado e da respetiva norma.

A possibilidade de efetiva responsabilização de uma parte processual com base no enunciado tipo de fundamento, não se basta, contudo (nos termos gerais), com a mera invocação de conceitos de direito ou com a reprodução literal da lei. Pressupõe, ao invés, que sejam invocados factos concretizadores de tais conceitos normativos, bem como que deles seja feita prova.

Não logrou, porém, a Requerente, cumprir esses ónus, não se enquadrando, a factualidade que invoca, no âmbito da hipótese contida na norma. Dela não se extrai, porém, o uso manifestamente reprovável de meios processuais, nem a intenção de prossecução de objetivo ilegal, de impedimento de descoberta da verdade ou de entorpecimento da ação da justiça.

A pretensão formulada pela Requerente carece, assim, de fundamento.

Nestes termos, julga, o Tribunal, improcedente o pedido, formulado pela Requerente, no sentido da condenação da Requerida como litigante de má-fé, sendo esta absolvida de tal pedido.

 

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar totalmente procedente o pedido de anulação dos atos tributários de liquidação de IRC e de juros compensatórios supra identificados, com as legais consequências;

b)           Julgar improcedente o pedido, formulado pela Requerente, de condenação da Requerida como litigante de má-fé, com a consequente absolvição da Requerida do pedido.

 

V. Valor do processo

Fixa-se ao processo o valor de € 88.940,48, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

VI. Custas

Custas no montante de € 2 754,00, a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 3 de Dezembro de 2021

 

Os Árbitros

 

Dra. Fernanda Maçãs (árbitro presidente)

 

O Árbitro Vogal

(Paulo Ferreira Alves)

 

O Árbitro Vogal

(João Marques Pinto)