Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 215/2021-T
Data da decisão: 2021-12-16  IRC  
Valor do pedido: € 94.165,26
Tema: IRC - Livre circulação de capitais; Fundos de investimento; Dividendos.
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SUMÁRIO:

 

  1. A liberdade de circulação de capitais é estabelecida pelo artigo 63.º do TFUE como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia.
  2. A liberdade de circulação de capitais goza da primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efetividade da livre circulação de capitais.
  3. A retenção na fonte em IRC de 25% sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia, simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal, é desconforme com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais.

Os Árbitros José Poças Falcão, Magda Feliciano e Ana Pinto Moraes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

  1. O A..., organismo de investimento coletivo em valores mobiliários constituído de acordo com o direito luxemburguês, com sede em ..., Rue ..., Luxemburgo, titular do NIF ... (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (daqui em diante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e anulação dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), a título definitivo, sobre dividendos de fonte portuguesa pagos entre maio de 2018 e setembro de 2019, no montante total de € 94.165,26 (noventa e quatro mil cento e sessenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos), bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020... .
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 15 de abril de 2021 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
  3. O Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 2 de junho de 2021, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
  5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 23 de junho de 2021.
  6. A Requerida, tendo sido notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, para apresentar a sua resposta, veio sustentar, em contestação de 20 de setembro de 2021, a improcedência do presente pedido de pronuncia arbitral, a manutenção na ordem jurídica do ato tributário de liquidação impugnado e a sua absolvição do pedido e pedir a suspensão do processo até decisão por parte do TJUE em sede do pedido de reenvio prejudicial das questões prejudiciais formuladas no âmbito do processo n.º 93/2019-T, com o fundamento de estar em causa a mesma questão de Direito, com um substrato fáctico em tudo semelhante ao do Requerente no presente processo.
  7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e entendeu não suspender a instância, por entender no mínimo, duvidosa a aplicação da decisão do TJUE no caso deste sufragar as citadas conclusões do advogado geral no Processo n.º C-545/19, através de despacho proferido em 14 de outubro de 2021,
  8. Por fim, o Requerente apresentou as alegações escritas em 2 de novembro de 2021, nas quais reiterou os fundamentos já anteriormente expressos.

 

I.1 ARGUMENTOS DAS PARTES

  1. Os argumentos trazidos aos autos centram-se, fundamentalmente, na questão da conformidade da aplicação da retenção na fonte aos dividendos distribuídos ao Requerente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
  2. O Requerente alega que o ato de liquidação viola a liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE com argumentos que a seguir se sintetizam:
  1. Trata-se de um caso evidente de divergência no tratamento fiscal entre contribuintes domiciliados na União Europeia em função da residência fiscal do beneficiário dos rendimentos, que afronta de forma direta e injustificada a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.
  2. É exclusivamente à luz da liberdade de circulação de capitais que deve ser escrutinada a (des)conformidade entre o regime previsto no artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF e o direito da União Europeia;
  3. Um organismo de investimento coletivo não residente em Portugal, tal como o Requerente, será, por regra, tributado quanto aos dividendos de fonte portuguesa que aqui obtiver. Inversamente, um organismo de investimento coletivo residente em território português não estará sujeito a tributação quanto ao mesmo tipo de rendimento.
  4. A diferenciação no tratamento fiscal dos rendimentos de fonte doméstica obtidos por veículos de investimento coletivo residentes e não residentes reside, pois, num único fator: a residência do titular do rendimento.
  5. Da leitura conjugada do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 22.º do EBF, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, é possível concluir que a tributação do Requerente em IRC por meio de retenção na fonte não se teria verificado se este fosse residente em território português.
  6. Resulta destas disposições legais que os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e as mais-valias, tal como estão definidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º, do Código do IRS, não são considerados no apuramento do lucro tributável dos organismos de investimento coletivo desde que estes se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
  7. O novo quadro legal veio consagrar, derradeiramente, do lado dos veículos de investimento constituídos e a operar em conformidade com as regras domésticas, a regra da irrelevância para o apuramento do respetivo lucro tributável dos rendimentos de capital, dos rendimentos prediais e das mais-valias (cf. artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF).
  8. O objetivo visado pelo legislador com a alteração ao regime fiscal dos organismos de investimento coletivo promovida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015 foi estabelecer um «regime fiscal neutro [para o próprio organismo de investimento coletivo], passando a tributação para a esfera dos investidores a uma taxa única».
  9. Do lado dos investidores não residentes, a isenção sobre os rendimentos provenientes de unidades de participação em fundos de investimento mobiliário – como o Requerente – ou de participações sociais em sociedades de investimento mobiliário quando tais fundos ou sociedades sejam constituídos e operem de acordo com a legislação nacional (cf. artigo 22.º-A, n.º 1, alínea d), do EBF).
  10. O TJUE decidiu, em várias oportunidades, que as medidas de direito interno que são aptas a dissuadir ou simplesmente tornar menos atrativos os investimentos de não residentes num Estado-Membro ou os investimentos de residentes noutros Estados-Membros são proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.
  11. O TJUE não tem, pois, hesitado em declarar desconformes com o direito da União Europeia as legislações internas que estabeleçam diferentes regimes de tributação – retenção na fonte para os não residentes versus isenção ou exclusão de tributação para os residentes – exclusivamente com base no local de residência do titular do rendimento.
  12. A legislação doméstica (EBF) não faz depender a exclusão de tributação dos rendimentos de capitais (e.g. dividendos) obtidos por organismos de investimento coletivo do facto de o nível de participação lhes conferir – ou não – uma influência certa ou decisiva na entidade participada.
  13. A vantagem fiscal aplica-se a qualquer organismo de investimento desde que o mesmo seja constituído e opere conforme a lei portuguesa (cf. artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF).
  14. A necessidade de assegurar uma repartição equilibrada do poder de tributação entre Estados-Membros não pode ser invocada como causa de justificação para restringir a livre circulação de capitais, já que o Estado-Membro optou por não tributar os organismos de investimento residentes que recebessem dividendos de origem doméstica.
  15. De igual modo, a necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais não permite justificar uma tributação incidente apenas sobre os não residentes, dado que um Estado que abdica da receita fiscal relativa a rendimentos gerados no seu território não tem a necessidade de controlar a cobrança do imposto.
  16. Tendo em conta que esta causa de justificação surge associada ao risco da evasão e fraude fiscais e da perda de receitas, a sua invocação pelo Estado Português seria descabida não só pelo facto de o regime do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF não ter como finalidade específica combater práticas fraudulentas ou abusivas como também por prever um sistema de tributação “à saída”.
  17. Seria, de resto, incongruente alegar a necessidade de assegurar a eficácia dos controlos fiscais quando o objetivo primordial da alteração legislativa promovida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015 foi precisamente alinhar o regime doméstico em matéria de tributação dos organismos de investimento coletivo com o que é praticado pela maior parte dos Estados-Membros.
  18. Relativamente à possibilidade de os Estados-Membros poderem, em derrogação do disposto quanto à livre circulação de capitais, continuar a aplicar «as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido», a jurisprudência uniforme do TJUE vai no sentido que tem de ser conjugada com o disposto no n.º 3 do artigo 65.º do TFUE.
  19. Isto quer dizer que a distinção não deve configurar um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.
  20. A existência de uma discriminação depende, naturalmente, da comparabilidade entre as situações em confronto.
  21. Como tem vindo a decidir o TJUE e os tribunais arbitrais tributários do CAAD, a não tributação do organismo de investimento (no caso, o Requerente) no Estado-Membro de residência (no caso, Luxemburgo) por força de disposições de direito doméstico não afeta a comparabilidade com um organismo de investimento coletivo português.
  22. A legislação portuguesa previne o risco de tributação em cadeia dos dividendos de fonte doméstica distribuídos a organismos de investimento que aqui estejam estabelecidos ao excluir estes rendimentos de tributação na esfera do veículo, mas, em sentido inverso, submete o mesmo tipo de rendimento a tributação quando o seu beneficiário é um organismo de investimento não residente.
  23. Uma diferenciação que prejudica, irremediavelmente, qualquer possibilidade de invocação de uma causa de justificação da restrição à livre circulação de capitais que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF encerra.
  24. A leitura do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF revela, muito claramente, que a exclusão de tributação dos dividendos na esfera do organismo de investimento coletivo residente não está, de forma alguma, condicionada ou dependente da tributação destes mesmos rendimentos na esfera do investidor.
  25. Por inexistir o indispensável nexo direto entre a vantagem fiscal conferida pelo artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF e a sua compensação pela liquidação de um determinado imposto, que não é exigida, não pode ser acolhido o argumento da coerência (ou coesão) do sistema fiscal para justificar a restrição em análise.
  26. É o próprio Estado da fonte dos dividendos (Portugal) que, podendo tributar, decide – porque é próprio de um modelo de tributação “à saída” – excluir de tributação os rendimentos de capitais pagos a organismos de investimento coletivo residentes.
  27. Portanto, não pode este Estado (Portugal), que prescindiu da tributação sobre os residentes, sujeitar a imposto os não residentes pelo simples facto de aí não se encontrarem estabelecidos com o argumento de que tal é necessário para preservar o seu poder tributário.
  1. A AT contra-argumentou com base nos seguintes fundamentos:
  1. Não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.
  2. A Administração Tributária não pode deixar de aplicar as normas legais que a vinculam, porquanto está a mesma adstrita ao princípio da legalidade positivada.
  3. A Administração Tributária, como qualquer órgão da Administração Pública, encontra-se estritamente vinculada ao cumprimento da lei, de acordo com o artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável subsidiariamente às relações jurídico-tributárias [ex vi do artigo 2.º alínea c) da LGT].
  4. A distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal ao Requerente é passível de ser qualificada como movimento de capital na aceção do artigo 63.º do TFUE e da própria Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho de 1988.
  5. A opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, mediante a subtração à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do Código do IRS), dos rendimentos prediais (artigo 8.º do Código do IRS) e das mais-valias (artigo 10.º do Código do IRS) conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, deslocando a tributação para a esfera do Imposto do Selo.
  6. A tributação em Imposto do Selo apenas recai sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
  7. Os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF – tal como ocorre com os fundos de pensões – por beneficiarem de isenção parcial de IRC, estão obrigados a liquidar e entregar a tributação autónoma incidente sobre os lucros distribuídos, quando as correspondentes partes sociais não sejam detidas, de modo ininterrupto, há pelo menos um ano.
  8. Os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso do Requerente, não estão sujeitos a tributação autónoma sobre os dividendos.
  9. Não existem elementos nos autos que permitam afirmar que tendo sido concedida uma isenção ao Requerente no Luxemburgo, esta isenção a impossibilita de recuperar a título de crédito por dupla tributação internacional ou formular qualquer pedido de reembolso, dos impostos suportados ou pagos no estrangeiro.
  10. Não foi emitido pelas autoridades fiscais do Grão-ducado do Luxemburgo, nem aí consta tal informação, bem como no artigo 173º, n.º 1 da mencionada Lei de 17 de dezembro de 2010, o qual, ainda que não seja da competência da AT analisar e/ou interpretar, também não menciona que o Requerente não tem direito a qualquer crédito de imposto no respetivo Estado da residência fiscal.
  11. Para efeitos de comparação da carga fiscal incidente sobre os dividendos auferidos em Portugal pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e os OIC constituídos no Luxemburgo, é redutor, e manifestamente insuficiente para extrair conclusões, atender apenas ao imposto retido na fonte e abstrair de outras imposições suscetíveis de onerar fiscalmente os dividendos.
  12. Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo – que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.
  13. O imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente (conforme suprarreferido não provou o contrário), bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu, embora tenha feito alusão aos variados regimes fiscais que vigoram em outros países da União Europeia, nomeadamente na jurisprudência do TJUE invocada.
  14. Não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente, antes, pelo contrário.
  15. Para efeitos de averiguar, em concreto, se as situações objetivas dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e dos Fundos de investimento estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, torna-se necessário comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimentos. Só deste modo será possível concluir se a desvantagem de cash-flow criada pela retenção na fonte de IRC, aos fundos de investimentos estabelecidos noutros Estados-Membros da UE, cria um obstáculo ao acesso ao mercado financeiro nacional, colocando-os numa situação desfavorável quando comparada com a situação tributária aplicada aos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF.
  16. Para avaliar se a legislação nacional aplicável aos OIC constituídos e estabelecidos em Portugal é discriminatória relativamente ao tratamento dos fundos de investimentos de outros Estados-Membros não basta olhar apenas o n.º 10 do artigo 22.º do EBF, pois, mesmo quando o que é sindicado é a tributação incidente sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um fundo de investimento estabelecido no Luxemburgo, impõe-se levar em conta todos os ónus fiscais incidentes sobre tais rendimentos e sobre os ativos (in casu, ações) que lhe dão origem.
  17. O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância.
  18. Um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado Membro, neste caso, o Luxemburgo, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais.
  19. Para efeitos de averiguar, em concreto, se as situações objetivas dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e dos Fundos de investimento estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, necessário se torna comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimentos.
  20. Deste modo, reitera-se que se reputa de ligeira e simplista a conclusão de que o regime de tributação dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF se mostra contrária ao Direito da União Europeia e que contraria as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais, porquanto, se baseia apenas no n.º 3 dessa disposição, alheando-se do disposto no n.º 8 do mesmo preceito, bem como da tributação em Imposto do Selo.
  21. O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
  22. Não pode concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE.
  23. A retenção na fonte efetuada sobre os dividendos pagos ao Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, devendo ser mantida na ordem jurídica.

 

II – SANEAMENTO

  1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
  2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, n.º 3, alínea b), todos do RJAT.
  3. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  4. Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar.
  5. O processo não padece de nulidades ou de quaisquer outros vícios que o invalidem, podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

III – DO MÉRITO

III.1 QUESTÃO DECIDENDA

  1. A questão decidenda consiste em determinar a conformidade das normas relevantes do Código do IRC e do EBF em vigor à data dos factos tributários relativas ao regime de tributação dos dividendos auferidos pelo OIC em presença com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais. Por outras palavras, em causa está saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia (in casu, Luxemburgo), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, ou não, o artigo 63.º do TFUE.

III.2 MATÉRIA DE FACTO

III.2.1 Factos provados

  1. Com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
  1. O Requerente é um organismo de investimento coletivo em valores mobiliários constituído sob a forma contratual ao abrigo do direito do Luxemburgo, que tem como sociedade gestora a B..., S.A., com sede no Luxemburgo.
  2. O Requerente segue, na sua constituição e funcionamento, as regras previstas na Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho, relativa a Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários, que foi transposta para o ordenamento jurídico luxemburguês por meio da Lei de 17 de dezembro de 2010.
  3. No Luxemburgo, de acordo com o artigo 173.º, n.º 1, da Lei de 17 de dezembro de 2010: «Sem prejuízo da cobrança das taxas de subscrição e transcrição e da implementação da legislação nacional relativa ao imposto sobre o valor acrescentado, nenhum outro imposto é devido pelos organismos de investimento coletivo localizados ou constituídos no Luxemburgo na aceção da presente lei, para além da taxa de subscrição mencionada nos Artigos 174 a 176».
  4. O Requerente detinha participações no capital de sociedades consideradas residentes para efeitos fiscais em Portugal, a C..., SGPS, S.A., titular do NIF..., e a D..., S.A., titular do NIF ... .
  5. Neste âmbito eram devidos ao Requerente os dividendos no valor ilíquido de €376.661,03 (trezentos e setenta e seis mil, seiscentos e sessenta e um euros e três cêntimos) abaixo indicados:

Uma imagem com mesa

Descrição gerada automaticamente

 

  1. A custódia das participações sociais (ações) que conferiram o direito aos dividendos supra identificados encontrava-se, à data dos factos, confiada ao E..., com sede na Alemanha, na qualidade de custodiante.
  2. O qual subcontratou o exercício das funções de custódia à sucursal no Reino Unido do F..., N.A., entidade com sede nos Estados Unidos da América, a entidade subcustodiante.
  3. Os dividendos foram pagos entre maio de 2018 e setembro de 2019.
  4. Os dividendos foram pagos ao F... NA London ... a 30/05/2018, 20/09/2018, 15/05/2019, 09/05/2019 e 10/09/2019, os quais foram sujeitos a retenção na fonte a taxa portuguesa.
  5. O agente em Portugal responsável pela retenção na fonte foi o G... (NIF:...) que pagou os dividendos/cupões acima indicados, reteve o imposto na fonte devido em Portugal e declarou os montantes nas declarações para os meses respetivos.
  6. Foram pagos ao Requerente, na qualidade de beneficiário efetivo dos rendimentos, os dividendos líquidos no valor de € 282.495,77 (duzentos e oitenta e dois mil, quatrocentos e noventa e cinco euros e setenta e sete euros).
  7. No momento do pagamento dos dividendos ao Requerente pela C..., SGPS, S.A. e pela D..., S.A., houve lugar à tributação por meio de retenção de IRC na fonte no montante total de € 94.165,26 (noventa e quatro mil cento e sessenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos).
  8. Os dividendos pagos ao Requerente foram alvo de retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 25% prevista no artigo 87.º, n.º 4, do Código do IRC.
  9. Foi apresentada reclamação graciosa, nº ...2020..., do ato de retenção na fonte de IRC, a título definitivo, realizado nos anos de 2018 e 2019.
  10. A reclamação graciosa foi indeferida, tendo sido concluído que a retenção na fonte em causa não enfermava de ilegalidade, na medida em que foi efetuada em obediência à legislação em vigor, tendo a mesma sido indeferida, após ter sido concedido o exercício do direito de audição, o qual não foi exercido.

 

III.2.2 Factos não provados

  1. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

III.2.3 Fundamentação da fixação da matéria de facto

  1. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
  3. Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.3 – MATÉRIA DE DIREITO

  1. Com o presente processo cabe aferir a conformidade da retenção na fonte em IRC de 25% sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia (in casu, Luxemburgo), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC’s estabelecidos e domiciliados em Portugal, com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais.
  2. Para o efeito, cumpre referir que o Requerente, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos, os quais foram sujeitos a tributação por retenção na fonte à taxa liberatória de 25% prevista no artigo 87.º, n.º 4, do Código do IRC.
  3. Ora, a liberdade de circulação de capitais é arvorada pelo artigo 63.º do TFUE, como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia.
  4. Nessa qualidade, a mesma goza da primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efetividade da livre circulação de capitais.
  5. Por se tratar de um caso em tudo semelhante, transpomos a fundamentação vertida na Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 528/2019-T, à qual aderimos integralmente e sem reserva:

«Liberdade de circulação de capitais

35. Consagrada no artigo 63.º do TFUE, a liberdade de circulação de capitais é indissociável das demais liberdades fundamentais, a saber, de circulação de pessoas, de estabelecimento e de prestação de serviços, diferenciando-se delas na medida em que se estende a terceiros Estados. A liberdade de circulação de capitais implica a proibição de diferenciação discriminatória entre capitais do Estado-Membro e capitais provenientes de fora. Os Estados Membros podem regular em alguma medida a circulação de capitais, mas não podem discriminar. Quando se trata de densificar o âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais observa-se a inexistência de uma definição deste conceito. Por este motivo, o TJUE tem sucessivamente acolhido e sublinhado o valor enumerativo e indicativo, mas não exaustivo, da Diretiva n.º 88/361/CEE, incluindo o respetivo Anexo I, nomeadamente o número IV, onde se subsume ao conceito uma vasta constelação de operações e transações transfronteiriças sobre certificados de participação em organismos de investimento coletivo, em que se incluem as relevantes in caso. Com efeito, a distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal ao ora Requerente é passível de ser qualificada como movimento de capital na aceção do artigo 63.º do TFUE e da própria Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho de 1988.

36. Existem pelo menos quatro aspetos fundamentais de regime jurídico que se revestem de grande relevância hermenêutica e metódica, e que por esse motivo devem ser salientados. O primeiro diz respeito à aplicabilidade direta do artigo 63.º TFUE e da inerente proibição de restrições injustificadas da liberdade de circulação de capitais. O segundo refere-se ao facto de as liberdades fundamentais do mercado interno terem como principais destinatários os Estados Membros, que devem abster-se de adotar medidas legislativas, administrativas e jurisdicionais de restrição das mesmas. O terceiro aspeto prende-se com a relação de complementaridade – e por vezes de sobreposição – que a liberdade de circulação de capitais estabelece com as liberdades de circulação de mercadorias e de pessoas, a liberdade de estabelecimento e a liberdade de prestação de serviços. Um quarto ponto tem que ver com o reforço progressivo da importância da liberdade de circulação de capitais no mercado interno, especialmente a partir da criação da União Económica e Monetária (UEM). Um dos principais objetivos da UEM consiste, precisamente, em facilitar a livre transferência de capital entre os Estados-Membros no quadro do mercado interno e das relações económicas e financeiras com Estados terceiros. A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efetiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia através da mais fácil disponibilização de capital.

Âmbito normativo e tributação

37. O âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE abrange vários domínios (v.g. movimento físico da moeda; investimento em propriedade imobiliária e títulos de crédito), sendo um deles, justamente, o do tratamento fiscal dos movimentos de capitais, que cai sob alçada da respetiva aplicabilidade direta. Embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados-Membros, a mesma deve ser exercida no respeito do direito da União Europeia, sem de qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.

38. O problema específico do tratamento fiscal da distribuição de dividendos tem ocupado um lugar central na jurisprudência europeia, incluindo não apenas o TJUE, mas também o Tribunal EFTA. Tanto este último órgão, no caso Focus Bank, como o TJUE, em casos como ACT GLO, Denkavit, Amurta, Truck Center, Aberdeen Property, Comissão v. Países Baixos, Comissão v. Portugal, , Santander Asset Management e Sofina SA, para citar apenas alguns dos mais relevantes exemplos, pese embora algumas diferenças factuais e jurídicas nas respetivas decisões, apontam globalmente no sentido de dever considerar-se que o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não residentes – v.g. imputando aos investidores residentes um crédito de imposto e sujeitando as entidades não residentes a retenção de imposto sem imputação; retendo imposto sobre dividendos pagos a não residentes e não retendo no caso de dividendos pagos a residentes – configurar, em princípio, uma violação da liberdade de circulação de capitais e nalguns casos também da liberdade de estabelecimento, pondo em causa o funcionamento do mercado interno.

39. Como acima se assinalou, a discriminação começou a ser apontada pelo Tribunal EFTA no caso E – 1/04, Focus Bank ASA v. The Norwegian State, 23.11.2004, sobre dividendos pagos por uma empresa norueguesa a acionistas residentes e não residentes na Noruega, beneficiando os primeiros (e não os segundos) de um crédito de imposto sobre a retenção feita na empresa. Posteriormente, o TJUE sustentou, no caso C-374/04 - Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, 12.12.2006, sobre o tratamento diferenciado de dividendos pagos por sociedades britânicas a sociedades mãe residentes ou não residentes no Reino Unido, sofrendo as mesmas uma desvantagem no fluxo de caixa, que quando o Reino Unido exerce a sua jurisdição fiscal sobre rendimento obtido na fonte deve fazê-lo de forma a garantir a igualdade de tratamento em matéria de crédito de imposto relativamente a residentes e não residentes, considerando-se que uns e outros estão em situação comparável.

40. No mesmo sentido se pronunciou a mesma instância jurisdicional no caso C-170/05, Denkavit, 14.12.2006, relativamente à retenção de imposto, pela França, sobre dividendos pagos por filiais residentes a sociedades mães não residentes, ficando os dividendos pagos a sociedades mães residentes quase isentos de impostos, tendo o tribunal sublinhado que a partir do momento em que a França, unilateralmente ou mediante tratado, decide impor uma retenção sobre pagamentos a não residentes, os mesmos ficam colocados em situação comparável aos residentes. No caso C-379/05, Amurta SGPS, 08.11.2007, relativamente retenção de imposto de 25%, pela Holanda, sobre dividendos pagos a sociedades mães não residentes, sendo os dividendos pagos a residentes isentos de imposto, considerou-se que ambos estão em situação comparável, devendo qualquer mitigação da dupla tributação abranger residentes e não residentes.

41. Importa igualmente ter em conta a decisão proferida no caso C-282/07, Belgian State - SPF Finances v Truck Center SA., 22.12.2008, relativamente à retenção de imposto sobre pagamentos de juros ao exterior, em que o TJUE considerou que residentes e não residentes não estavam em situação comparável, na medida em que, quando a sociedade distribuidora de juros e a sociedade beneficiária desses juros residem na Finlândia, esta última atua na sua qualidade de Estado da residência, ao passo que quando uma sociedade residente nesse Estado paga juros a uma sociedade não residente, a Finlândia atua na sua qualidade de Estado de origem dos juros. No caso C-282/07, Aberdeen Property Fininvest Alpha, 18.06.2009, o TJUE sustentou que a diferença de tratamento fiscal dos dividendos entre as sociedades-mãe, em função do local da sua sede, é suscetível de constituir uma restrição à liberdade de estabelecimento, em princípio proibida pelo TFUE, uma vez que torna menos atraente o exercício da liberdade de estabelecimento por sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros, as quais poderiam, consequentemente, renunciar à aquisição, à criação ou à manutenção de uma filial no Estado-Membro que aplica esta diferença de tratamento.

42. Na decisão proferida no processo C-521/07, Comissão v. Países Baixos, 11.06.2009, entendeu-se que a não isenção de retenção de imposto a dividendos pagos a sociedades não residentes, diferentemente do que sucedia relativamente a sociedades residentes com participações iguais ou superiores a 5% constitui uma restrição da liberdade de circulação de capitais no EEE. Também no caso C-493/09, Comissão v. Portugal, 06.10.2011, o TJUE entendeu que não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 63.° TFUE e 40.° do Acordo Espaço Económico Europeu, o Estado-Membro que reserva o benefício da isenção de imposto sobre as sociedades apenas aos fundos de pensões residentes no seu território. Esta diferença de tratamento tem por efeito dissuadir os fundos de pensões não residentes de investir em sociedades portuguesas e os aforradores residentes de investir nesses fundos de pensões.

43. Uma posição semelhante foi seguida pelo TJUE na decisão relativa aos casos C-338/11 a C-347/11, Santander Asset Management SGIIC SA, 10.05.2012, numa situação de retenção de 25% sobre dividendos distribuídos a OIC’s (valores mobiliários) não residentes, em que se considerou que quando um Estado-Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OIC beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação. Também no caso C-575/17, Sofina, Rebelco e Sidro, 22.11.2018, o TJUE sustentou, relativamente a uma retenção na fonte de 25% sobre dividendos distribuídos a não residentes, reduzida a 15% por uma CDT, que, uma vez que os dividendos recebidos por uma sociedade não residente são tributados aquando da sua distribuição, há que ter em conta o exercício fiscal de distribuição dos dividendos para comparar a carga fiscal que incide sobre esses dividendos e a que incide sobre os dividendos distribuídos a uma sociedade residente.

44. Embora não estejam sempre numa situação comparável, residentes e não residentes são colocados nessa posição a partir do momento em que o Estado-Membro que se considere, unilateralmente ou por convenção, opte por tributar os acionistas não residentes de maneira menos favorável que os residentes, relativamente aos dividendos que uns e outros recebam de sociedades residentes. Especialmente relevante, em sede das liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais, é o facto de o tratamento fiscal menos favorável dos não residentes os dissuadir, na qualidade de acionistas, de investirem no Estado da residência das empresas distribuidoras de dividendos, e constituir, igualmente, um obstáculo à obtenção de capital no exterior por parte dessas empresas.

45. Por outro lado, a jurisprudência europeia tem insistido na noção de que um EstadoMembro não pode deixar de cumprir as suas obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno por considerar que outro Estado-Membro se encarregará de

compensar de alguma maneira o tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação. Neste domínio vale o princípio geral de que as liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento requerem a igualdade de tratamento fiscal dos dividendos pagos a residentes e não residentes pelo Estado-Membro anfitrião, no caso de ambos estarem sujeitos a tributação de dividendos.

46. Na interpretação e aplicação das liberdades fundamentais do mercado interno prevalece o entendimento, amplamente sufragado pelo TJUE, segundo o qual a liberdade é a regra e as restrições à liberdade são a exceção. Estas últimas compreendem, quer as limitações ao exercício da liberdade, quer as discriminações no exercício da liberdade. Atento o caráter excecional das restrições, devem as mesmas ser devidamente fundamentadas e objeto de interpretação restritiva. A admissibilidade de restrições à liberdade de circulação de capitais por parte dos Estados-Membros encontra-se prevista no artigo 65.º do TFUE, na senda das derrogações à liberdade de circulação de capitais já previstas na Diretiva n.º 88/361/CEE. A análise do caso concreto deve ser levada a cabo com base nas premissas normativas acima sintetizadas.

Comparabilidade das situações

47. O artigo 65.º alínea a) do TFUE prevê a possibilidade de os Estados-Membros aplicarem disposições pertinentes de direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao lugar de residência ou ao lugar onde o capital é investido. No entanto, essa previsão deve ser atenuada pelo requisito do artigo 65.º, n.º 3, do mesmo Tratado, segundo o qual qualquer exceção não pode constituir um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida pelo artigo 63.º. Quer dizer, as restrições têm como limite a garantia da própria liberdade de circulação de capitais26. Importa, pois, para este efeito, saber se a situação dos fundos de investimento residentes e não residentes em Portugal é objetivamente comparável.

48. No caso de fundos de investimento residentes na Alemanha, o artigo 10.º da relevante CDT28, permite que o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, seja limitado à taxa de 15%. No entanto, como os fundos de investimento em causa gozam de uma isenção à luz do direito alemão, sendo considerados fiscalmente transparentes, não podem beneficiar do referido artigo. Numa primeira análise, poder-se-ia dizer que essa impossibilidade resulta do facto de gozarem de uma vantagem fiscal, a isenção, de que os seus congéneres portugueses não usufruem. Estes, beneficiam da isenção de retenção, ao mesmo tempo que estão sujeitos a dois impostos – IRC e Imposto do Selo – cujo efeito cumulativo pode, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.

49. Por outro lado, o imposto retido à Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera dos investidores individualmente considerados. Num caso e noutro, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelos fundos alemães. Estas diferenças podem ser invocadas, prima facie, para sustentar que não se trata de situações comparáveis.

50. Porém, em causa está saber se a determinação da comparabilidade da situação dos fundos residentes e não residentes em Portugal deve entrar em linha de conta com a situação fiscal em que se encontram os fundos de investimento não residentes em Portugal no respetivo Estado de residência – tendo em conta pertinente regime jurídico e as CDT’s entre Portugal e esses Estados – especialmente no caso dos Estados-Membros da União Europeia ou integrantes do Espaço Económico Europeu, ou ainda levar em conta a situação concreta dos respetivos investidores29. Soluções normativas que obrigassem a ter em conta, para efeitos de comparação, a situação concreta dos fundos de investimento dos 28 Estados-Membros, a partir das relevantes CDT’s, se os houver, ou a indagar do impacto fiscal da retenção e das medidas de mitigação da dupla tributação económica na situação fiscal de cada investidor individualmente considerado seriam extremamente complexas, mesmo numa situação em que os acionistas fossem, eles próprios, pessoas coletivas, cada qual residente numa jurisdição diferente.

51. Por outras palavras, se se quiser fazer uma determinação caso a caso para cada fundo de investimento não residente ou investidor individual, o trabalho administrativo envolvido, embora possa compensar os Estados-Membros por via de um aumento das receitas, acaba por ser, tendo em conta o grande número de investidores de alguns fundos, administrativamente impraticável. Tanto os fundos residentes em Portugal como os não residentes podem ter acionistas institucionais e individuais de todos os Estados-Membros da União Europeia e de Estados terceiros. Em causa estão, na prática, diferenças significativas de facilidade e praticabilidade administrativa. Diferentemente, se se circunscrever a análise ao nível da situação fiscal dos fundos residentes e não residentes a quem são distribuídos dividendos, uma única determinação será suficiente.

52. Neste contexto, o que deve relevar é o impacto direto que as normas tributárias têm na atividade dos fundos e não o efeito indireto na situação fiscal dos investidores individualmente considerados. Estes não têm necessariamente a mesma nacionalidade dos fundos, já que hoje é extremamente fácil levar a cabo investimentos transfronteiriços, sendo que esse mesmo é um dos objetivos do mercado interno e da liberdade de circulação de capitais. O rastreamento de investidores individuais espalhados por todo o mundo e a aplicação de um conjunto diferente de regras a cada um deles, dependendo de seu país de domicílio, apresentaria uma situação impraticável para os tribunais que, no futuro, fossem chamados a analisar a conformidade da legislação fiscal nacional em causa com as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais.

53. O fundo Requerente, residente na Alemanha, pode ter investidores estrangeiros, incluindo portugueses, e os fundos fiscalmente residentes em Portugal podem ter investidores estrangeiros, incluindo alemães. A presente ação não foi intentada pelos investidores nem os mesmos são partes nela, nem é lícito chamar à colação a posição (para efeitos fiscais) dos referidos investidores. O artigo 22.º do EBF não estabelece nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC —residentes ou não residentes — e a situação fiscal dos seus detentores de participações. Da mesma forma, a AT não afere da posição dos investidores em OIC estabelecidos (e residentes para efeitos fiscais) em Portugal para reconhecer a estes o regime fiscal previsto no artigo 22.º do EBF.

54. Deve, por conseguinte, considerar-se decisivo, para efeitos de comparabilidade, o facto de a lei portuguesa diferenciar expressamente, para efeitos de retenção na fonte, entre fundos de investimento residentes e não residentes – e não a situação fiscal, mais ou menos vantajosa, que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados da residência ou ainda a situação fiscal individual dos respetivos investidores. Do ponto de vista do Estado Membro que se considere, fundos residentes e não residentes estão numa situação comparável se ambos estão sujeitos à respetiva tributação.

55. Como sublinhou o TJUE no caso Santander Asset Management, quando um Estado-Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OIC beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação. Também não parece a este Tribunal Arbitral ser relevante aferir do impacto fiscal que, nas mais variadas situações individuais e concretas, a sujeição da Imposto de Selo dos OIC residentes em Portugal possa produzir neste ou naquele fundo de investimento, visto tratar-se aí de um imposto sujeito a uma lógica patrimonial totalmente distinta da tributação do rendimento. O critério a ter em conta é, em primeira linha, o da letra do artigo 22.º do EBF, só depois havendo que tomar em consideração outros fatores.

56. Como se pôs em relevo acima, os fundos residentes e não residentes são colocados numa posição comparável a partir do momento em Portugal opta por tributar os não residentes de maneira menos favorável do que os residentes, dissuadindo aqueles, na qualidade de acionistas, de investirem das empresas residentes distribuidoras de dividendos e dificultando a obtenção de capital no exterior por parte destas mesmas empresas. Por outro lado, Portugal não pode deixar de cumprir as obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno por considerar que os outros Estados-Membros se encarregarão, de alguma forma, de compensar de tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação.

 

Justificação da diferenciação

57. No âmbito das liberdades fundamentais do mercado interno assume a maior importância a problemática dos chamados limites dos limites. Cumpre, assim, indagar sobre se a diferenciação entre fundos residentes e não residentes, nos termos do artigo 22.º do EBF na redação relevante à data dos factos, pode ser justificada, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, nomeadamente por se tratar de uma medida indispensável para impedir infrações às leis e regulamentos nacionais, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras. A própria derrogação prevista nesse preceito é ulteriormente limitada pelo disposto n.º3, do mesmo artigo – uma norma especial de limite dos limites – que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º».

58. No entender do presente colégio arbitral, dificilmente se poderia argumentar de forma convincente no sentido da indispensabilidade da medida diferenciadora em apreciação. Em primeiro lugar, é o Estado português que, no exercício da sua jurisdição fiscal, opta deliberadamente por diferenciar entre fundos residentes e fundos não residentes, isentando os primeiros da retenção de imposto sobre a distribuição de dividendos e sujeitando à mesma os segundos, colocando-os numa situação comparável, e em seguida tratando-os de forma diferente. Ora, não se vê em que medida é que essa diferenciação é indispensável à prevenção de infrações fiscais. Com efeito, não se percebe que a diferenciação em causa possa prevenir a evasão fiscal, nada existindo na mesma que se refira à prevenção de montagens ou construções meramente artificiais, desprovidas de genuína substância económica. Recorde-se que o critério da indispensabilidade aponta para a justificação da diferenciação fiscal em causa apenas quando não existam meios alternativos menos restritivos – de limitação e diferenciação – à disposição do Estado-Membro em presença37, adequados à salvaguarda do sistema fiscal ou de supervisão.

59. Em segundo lugar, e na linha do que acaba de ser dito, sempre seria possível isentar de retenção (ou diminuir o respetivo montante) tanto os fundos residentes em Portugal como os fundos residentes noutros Estados-Membros e, simultaneamente, dar um tratamento fiscal em geral idêntico aos investidores residentes em Portugal pelos dividendos recebidos de sociedades residentes em Portugal ou noutros Estados-Membros, seguindo as orientações definidas pela jurisprudência do TJUE em sede de dupla tributação económica39. A existência de alternativas menos restritivas de relativamente fácil concretização legislativa constitui evidência de que se está, no caso, perante uma diferenciação desproporcional e, portanto, ilegítima40 . Por outro lado, o TJUE tem sustentado que um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode ser considerado compatível com o direito da União devido à eventual existência de outros benefícios41. Nas suas palavras, se os Estados-Membros utilizarem a liberdade de sujeitar a imposto os rendimentos gerados no seu território, são obrigados a respeitar o princípio da igualdade de tratamento e as liberdades de circulação garantidas pelo direito primário da União.

60. Acresce que, e este é um terceiro aspeto relevante em sede do artigo 65.º n.º1 e 3 do TFUE, a garantia da coerência do sistema fiscal português também não pode ser invocada para justificar a diferenciação de regime da retenção, na medida em que a jurisprudência do TJUE exige uma ligação direta entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem através de uma imposição específica, situação que não se verifica necessariamente através da eventual sujeição dos OIC’s às taxas de tributação autónoma de IRC e da Verba 29 da Tabela Geral do Imposto Selo, sendo este um tributo de natureza e lógica patrimonial.

61. A aplicação trimestral do Imposto de Selo a fundos em diferentes condições (v.g. fundos com valorização súbita de ativos, seguida de alienação e distribuição de dividendos; fundos com perfil conservador de investimento e valor da carteira de investimentos relativamente constante), estando dependente da eventual capitalização dos rendimentos provenientes dos dividendos, pode gerar, dentro de cada um dos sucessivos exercícios, consideráveis disparidades arbitrárias de tratamento fiscal entre os vários fundos de investimento residentes e entre estes e os não residentes, com impacto evidente nos respetivos fundos de caixa. Esta realidade é tanto mais significativa quanto é certo que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, a apreciação da existência de um eventual tratamento desvantajoso dos dividendos pagos a não residentes deve ser efetuada em relação a cada ano fiscal individualmente considerado.

62. Por outro lado, a aplicação da taxa de tributação autónoma de 23% prevista no artigo 88.º n.º 11 do CIRC – por força do artigo 22.º do EBF – está dependente do facto eventual da não permanência, de modo ininterrupto, das partes sociais a que correspondem os lucros na titularidade dos sujeitos passivos aí previstos durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e da sua não manutenção durante o tempo necessário para completar esse período, situações de ocorrência eventual e incerta. Ora, as disparidades de tratamento fiscal assim geradas não asseguram necessariamente a neutralização da desvantagem fiscal em que ficaram colocados os fundos não residentes, sujeitos a uma retenção de imposto suscetível de os dissuadir de investirem em Portugal e de dissuadir os residentes em Portugal de investirem em fundos de investimento de outros Estados-Membros.

63. Também não colhe o argumento do interesse geral na garantia de uma repartição e equilibrada do poder de tributar, devendo entender-se, com o TJUE, que quando um Estado-Membro tenha optado por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários de tais rendimentos45. Ou seja, em caso algum se poderá entender que se trata aqui de restrições justificadas por razões de segurança pública ou ordem pública.

64. Do mesmo modo, em quarto lugar, a garantia da efetividade da supervisão financeira não justifica, por si só, a diferenciação de tratamento entre fundos residentes e fundos não residentes em Portugal. Como efeito, se é certo que um OIC constituído ao abrigo de legislação estrangeira (em concreto, ao abrigo da legislação de um outro Estado-Membro da UE) e aí sujeito aos poderes de supervisão da respetiva entidade reguladora não cumpre os pressupostos previstos na legislação portuguesa e certamente não estará sujeito à supervisão da CMVM, também o é que o TJUE já sustentou, num caso envolvendo o nosso país, a inadmissibilidade de uma regulamentação nacional que impeça de forma absoluta um determinado fundo de fazer prova de que satisfaz as exigências que lhe permitiriam beneficiar da isenção, nomeadamente fornecendo os documentos comprovativos pertinentes que permitam às autoridades fiscais nacionais verificar, de forma clara e precisa, que esses fundos preenchem, no seu Estado de residência, exigências equivalentes às previstas pela legislação nacional.

65. Como tem sido sucessivamente afirmado pelo TJUE, a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE deve ser interpretada em sentido amplo e as possibilidades de restrição à mesma, previstas e limitadas no artigo 65.º do mesmo Tratado devem ser indispensáveis à prossecução de interesses públicos ponderosos, devidamente fundamentadas e interpretadas de maneira restritiva48. É sobre o Estado português que recai o ónus de provar que os seus objetivos fiscais e financeiros não poderiam ser prosseguidos por meios alternativos menos restritivos do que a diferença de tratamento fiscal em causa49, ónus esse que manifestamente não foi cumprido pela argumentação expendida pela AT, sem prejuízo de se reconhecer o empenhado e competente esforço nesse sentido. A orientação de fundo seguida pela jurisprudência do TJUE sobre o âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais, os seus limites e os limites dos limites – da maior importância à luz da garantia de uniformidade de interpretação e aplicação do direito da União Europeia – torna inviável essa missão probatória no caso concreto.

66. O presente Tribunal Arbitral aceita como boa a noção, várias vezes sustentada pelo TJUE, de que o reconhecimento de uma ampla margem de conformação dos Estados-Membros em sede de regulação dos capitais tornaria a respetiva liberdade de circulação ilusória50. Dada a linguagem prudente nelas incorporada, resulta claro que as exceções do artigo 65.º, nº 1, alínea a) e do n.º 3 do TFUE devem ser aplicadas somente em circunstâncias raras e especiais. Esta é uma barreira significativa de difícil superação por parte do Estado português.

67. A jurisprudência do TJUE acima referida permite sustentar que o artigo 63.º do TFUE consubstancia, para o caso sub judice, uma situação de ato esclarecido (acte éclairé). A mesma, suportada em múltiplos casos, fornece parâmetros suficientemente seguros sobre a interpretação e aplicação que deve ser feita do preceito em causa relativamente às circunstâncias fácticas e normativas do caso concreto. Tendo o TJUE proferido diversas decisões no sentido de julgar incompatíveis com a liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais múltiplas diferenciações em matéria de retenção na fonte por dividendos distribuídos a residentes e não residentes em casos com contornos substancialmente semelhantes ao aqui presente – independentemente da natureza dos processos que levaram a essas decisões e mesmo que os factos não fossem estritamente idênticos – o presente Tribunal, no exercício dos deveres que lhe incumbem no âmbito da cooperação judicial, de afirmar a primazia do direito da União Europeia sobre o direito interno e de seguir a orientação interpretativa acolhida pelo TJUE, e na qualidade que lhe é reconhecida de órgão jurisdicional de reenvio54, conclui pela inexistência, em concreto, do dever de reenvio prejudicial de interpretação previsto no artigo 267.º § 1 alínea a) e § 3 do TFUE55, entendendo que se está claramente diante de uma restrição não indispensável nem justificada da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE».

  1. Nestes termos, conforme resulta de tudo o exposto, verifica-se a desconformidade da aplicação da norma constante do artigo 87.º, n.º 4, do Código do IRC – da qual resultou uma retenção na fonte em IRC de 25% – sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal ao Requerente (OIC estabelecido no Luxemburgo), com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais.
  2. Pelo que, julga-se procedente a pretensão do Requerente estando a AT obrigada à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio.

 

IV – JUROS INDEMNIZATÓRIOS

  1. Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito», de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
  2. O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estabelecer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
  3. Este entendimento decorre do princípio da tutela jurisdicional efetiva e da correspondente ampliação dos poderes conformadores da jurisdição administrativa e tributária. Por isso, o Requerente tem o direito de ser reembolsado do imposto pago e juros indemnizatórios por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».
  4. Isto porque, na sua atuação, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como ele vem sido interpretado pelo TJUE. Sendo a primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe ao presente Tribunal arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respetiva ilegalidade. Caso em que, nos termos do artigo 43.º n.º 3 da LGT, são devidos juros indemnizatórios, a partir do trânsito em julgado da sentença.

 

 

V – DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

1) Declarar a ilegalidade dos atos tributários de retenção na fonte ora sindicados por erro nos pressupostos de direito, a saber, por violação da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE;

2) Condenar a Requerida à restituição da quantia de € 94.165,26 (noventa e quatro mil cento e sessenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos) relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos entre maio de 2018 e setembro de 2019, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º do Código do IRC e 22.º do EBF e ao pagamento de juros indemnizatórios a partir do trânsito em julgado da sentença, nos termos do artigo 43.º n.º 3 da LGT;

3) Julgar improcedente o pedido de suspensão do processo.

 

VI – VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 94.165,26, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

VII – CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.754,00 a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

  • Notifiquem-se as partes e o Ministério Público junto do TCAS, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17º-3, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).

 

Lisboa, 16 de dezembro de 2021

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

Ana Pinto Moraes

(Árbitra Adjunta)

 

 

Magda Feliciano

(Árbitra Adjunta)

 

Vencida conforme declaração junta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Na linha com o defendido na presente decisão, considera-se que face ao direito constituído devidamente interpretado aplicável ao caso concreto a situação tributária dos OIC residentes e não residentes é comparável, dado tratarem-se de organismos com base legal comunitária e o mesmo escopo/actividade. O facto dos OIC residentes serem tributados em sede de tributações autónomas e de IS não torna estes organismos incomparáveis com os OIC não residentes, sendo certo que a tributação autónoma e o IS a que estão sujeitos os OIC residentes assentam em fundamentos diferentes daqueles que subjazem à tributação do rendimento obtido pelas pessoas colectivas (CAAD, Proc. 90/2019, de 23.07, pontos 42 e ss.).

Admitindo-se, tal como na presente Decisão, a comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, entende-se, porém, seguindo a doutrina expendida no Acórdão proferido no proc. 1435/12 do STA de 9.07.2014, que o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida pelo n.º 1 do artigo 63.º do TFUE.

Na verdade, seguindo-se o entendimento expresso no Acórdão do STA, proc.19/10.3BELRS, de 7.05, Para que se pudesse concluir, in casu, no sentido do carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as entidades financeiras não residentes, a recorrida teria que demonstrar que suportara uma tributação mais elevada no seu conjunto, o que não se verificou. Neste sentido, vide o Acórdão Gerritse, de 12 de Junho de 2003 (Processo C- 234/01).

É de sublinhar que estando perante matéria de direito, como entendido pela sentença proferida pelo Tribunal a quo, cabia à impugnante ter demonstrado a existência dos factos constitutivos dos direitos, prova a fazer por quem os invoca, tal como o que se encontra firmado no ordenamento fiscal português, no art.º 74.º da LGT e 342.º do Código Civil, subsidiariamente aplicável às relações jurídico-tributárias. Não o tendo feito, não é possível invocar de modo assertivo o carácter discriminatório da norma em discussão.

 

No caso sub judice, em face da matéria de facto e dos documentos juntos aos autos entende-se que o Requerente não fez prova da discriminação proibida, não revelando a certidão de existência emitida por entidade luxemburguesa para o propósito estabelecido no artigo 93.º, n.º 3 da Directiva 2009/65/EC qualquer discriminação proibida.

Assim sendo, não se acompanha neste ponto a Decisão proferida, considerando-se que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo,  o Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada.

Louvo-me, por isso, dos Acórdãos do STA proferidos nos processos n.º 1192/13, de 21.05.20215, n.º 1435/12, de 9.07.2014, n.º 884/17, de 12.09.2018, e o já citado proc. 19/10.3BELRS, de 7.05.

É o que se me oferece dizer.

Razões pelas quais voto vencida.

 

 

Magda Feliciano