Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 213/2020-T
Data da decisão: 2020-12-03  IRC  
Valor do pedido: € 120.782,57
Tema: IRC - Tributações autónomas; Despesas não documentadas; Art. 88.º do CIRC. Ónus da prova; Métodos indiretos.
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DECISÃO ARBITRAL

               

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Rui Ferreira Rodrigues e Jónatas Machado, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 6 de agosto de 2020, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., doravante “Requerente”, pessoa coletiva número..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Silves,  veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade e anulada parcialmente a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2019..., reportada ao período de 2018, no valor a pagar de € 142.515,31 (que inclui a importância de € 1.886,28 de juros compensatórios), na parte que resulta da tributação autónoma de despesas não documentadas, no montante de € 120.782,57, bem como dos juros compensatórios que lhe dizem respeito, com a consequente restituição dessa quantia e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”). Para tal, invoca vício material consubstanciado em erro nos pressupostos de facto e de direito na qualificação e quantificação do facto tributário.

 

Em 2 de abril de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT em 23 de abril de 2020.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação em 7 de julho de 2020, não manifestaram vontade de a recusar.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 6 de agosto de 2020.

 

                Em 30 de setembro de 2020, a Requerida apresentou a Resposta e juntou o processo administrativo (“PA”). Defende-se por impugnação, concluindo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.

 

Por despacho de 6 de outubro de 2020, foram notificadas ambas as Partes da intenção de dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que não foi requerida a produção de prova testemunhal, nem invocada ou identificada matéria de exceção.

 

Em 26 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas, fixando como prazo para prolação da decisão arbitral a data limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT. A Requerente foi ainda advertida em relação ao pagamento prévio da taxa arbitral subsequente.

                A Requerente optou por não alegar, tendo a Requerida apresentado as suas alegações em 20 de novembro de 2020, nas quais mantém e reforça os argumentos constantes da Resposta.

 

                SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente suscita diversos vícios que, na sua perspetiva, invalidam o enquadramento preconizado pela AT de “despesas não documentadas” em relação às divergências verificadas entre o saldo de Caixa e os meios monetários da sociedade, pressuposto da sujeição a tributação autónoma, à taxa de 50%, nos termos do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC. São esses vícios, a saber:

a)            A inexistência das despesas, uma vez que o saldo de Caixa, segundo a Requerente, é “fictício”, devendo-se a incorreções da contabilidade ou “erros de lançamento contabilístico” sem correspondência com efetivas disponibilidades financeiras;

b)           A violação do ónus da prova por parte da Requerida, que não logrou demonstrar, como lhe competia, a existência das despesas, o seu montante e o momento em que foram efetuadas, nos termos do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”);

c)            A não diminuição do resultado líquido do exercício pelas alegadas despesas;

d)           A inobservância do princípio da especialização e da periodização do lucro tributável (cf. artigos 8.º e 18.º do Código do IRC), pois as despesas, qualificáveis como factos tributários de natureza instantânea, a terem ocorrido, não teria sido em 2018, mas em exercícios anteriores, de que são oriundos os elevados saldos de Caixa;

e)           A aplicação de uma presunção – a de que a inexistência de numerário na caixa social corresponde a despesas – desprovida de suporte legal, pois apenas teria cabimento num procedimento de avaliação indireta, nos termos dos artigos 87.º e seguintes da LGT; e

f)            A fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, nos termos do artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

Por seu turno, a Requerida preconiza que a liquidação (parcialmente) impugnada decorre diretamente da aplicação da lei e não enferma dos vícios arguidos pela Requerente. Neste sentido, sustenta que:

(a)          A Requerente não fez prova dos factos alegados, designadamente das anomalias e irregularidades praticadas na contabilidade e em que medida o saldo da conta Caixa não correspondia à realidade das existências em numerário ou outros meios monetários de molde a poder afetar o apuramento e controlo do lucro tributável;

(b)          A sujeição a tributação autónoma das despesas não documentadas não depende da sua prévia contabilização como gastos, de modo a afetar negativamente o resultado do exercício;

(c)          A AT cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC ao demonstrar a referida divergência entre a contabilidade e a realidade e ao solicitar os documentos justificativos da diferença apurada;

(d)          Fazer recair sobre a AT o ónus de provar despesas em relação às quais inexistem documentos comprovativos e registos contabilísticos dos exfluxos monetários, circunstância em que a Requerente é a única que se encontra em condições de satisfazer esse ónus, redundaria num paradoxo;

(e)          Como a Requerente incumpriu a obrigação de contabilizar as despesas não documentadas, é a verificação da falta de meios financeiros detetada pela contagem física que gera o momento da ocorrência do facto tributário, para efeitos do disposto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC;

(f)           Se as despesas não estão documentadas não é possível aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados na esfera empresarial, logo é factual e juridicamente impossível aplicar-lhes o princípio da especialização dos exercícios e da periodização do lucro tributável, enunciado no artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC, que assenta no critério de competência económica;

(g)          No caso de despesas não documentadas, dado o desconhecimento da natureza e origem das operações subjacentes, apenas pode ser utilizado o chamado critério de competência de caixa;

(h)          Porém, mesmo o critério de competência de caixa só é exequível quando se está perante despesas não documentadas relevadas contabilisticamente em conta apropriada de gastos, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também refletido nas contas de meios monetários, o que não foi o caso. Deste modo, na situação vertente, o facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciado na data da contagem física e, consequentemente, só pode ser imputado ao exercício de 2018;

(i)           Afrontaria a própria natureza e finalidade de dissuasão/sancionatória adstrita à tributação autónoma das despesas não documentadas “premiar” fiscalmente os contribuintes que se eximem da obrigação básica de contabilização e/ou declaração daquele tipo de despesas;

(j)           A regra do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT não se aplica, pois pressupõe algum tipo de produção de prova suscetível de lançar luz sobre os motivos na origem da saída de meios monetários e datas em que ocorreram, o que a Requerente não logrou fazer.

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRC [tributações autónomas] impugnado, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado do termo do prazo para pagamento da liquidação de IRC impugnada, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) (aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea a)).

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A sociedade A..., LDA., aqui Requerente, tem por objeto a atividade de restauração e está inscrita sob o CAE 56101– Restaurantes tipo tradicional – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT) junto pela Requerente como Documento 4. 

B.            A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva, realizada ao abrigo da Ordem de Serviço OI2019..., aos períodos de 2016, 2017, de âmbito geral, e de 2018, de âmbito parcial - IRC, por se tratar de um contribuinte com perfil de risco – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

C.            No âmbito do referido procedimento inspetivo e com relevância para a matéria em apreciação nos autos, que se restringe à tributação autónoma de despesas não documentadas em relação ao período 2018, os Serviços de Inspeção procederam, em 17 de dezembro de 2018, à contagem dos valores em caixa da Requerente, na presença e com a anuência do sócio-gerente – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

D.           Nessa contagem, apurou-se a existência de fundos monetários (em numerário) na importância de € 81.397,89, incluindo valores constantes no estabelecimento, no escritório do mesmo e num cofre da agência bancária. Nessa data, o sócio-gerente confirmou a inexistência de dinheiro da Requerente noutro local – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

E.            Uma vez que o valor do saldo contabilístico de caixa da Requerente, à data, era de € 322.963,03 (após retificações efetuadas pela AT para ajustar o saldo contabilístico de base, referente a 30.11.2018, no montante de € 234.022,60, ao dia e hora em que se verificou a contagem), constatou-se uma divergência entre o dinheiro contabilizado na conta de caixa [€ 322.963,03] e o que se verificou existir na realidade [€ 81.397,89] cifrada em € 241.565,14 – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

F.            Pelo que a AT considerou que a diferença de caixa, de € 241.565,14 devia ser tributada autonomamente à taxa de 50%, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

G.           Com efeito, e transcrevendo-se a fundamentação do RIT:

“III.3  TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA 2016 – 2017 - 2108

[…] No sentido de testar aquele saldo, o qual deveria conferir com o saldo contabilístico à data, pegámos no saldo da conta caixa em 30/11/2018, abatemos alguns montantes que indevidamente influenciaram o seu saldo e, baseando-nos nos documentos contabilísticos, repusemos o saldo ao dia e hora da contagem, conforme quadro seguinte:

Descrição            Valor €

a)            Autoconsumos de 2016 27.771,65

b)           Autoconsumos de 2017 39.748,99

c)            Regularizações conta 27222        41.910,50

d)           Saldo contabilístico 30/11            234.022,60

Saldo retificado 30/11 (Soma)   343.453,74

e)           Pagamentos por caixa até 17/12               -3.142,75

f)            Recebimentos por caixa até 17/12           10.157,86

g)            Valor faturado, dia 17/12, até 14:02        58,20

h)           Correções TPA  -21.489,27

i)             Correções TPA  -6.074,75

1–Saldo contabilístico de Caixa  322.963,03

2–Contagem de Caixa    81.397,89

1-2 Divergência 241.565,14

Legenda:

a)            Anexo 3, autoconsumos de 2016 lançados a credito da conta Caixa, quando não houve qualquer saída de dinheiro;

b)           Anexo 8, folha 2, autoconsumos de 2017 lançados novamente a credito da conta Caixa, quando não houve qualquer saída de dinheiro;

c)            Anexo 18, corrigiram os saldos das contas 272225/6 por contrapartida de Caixa, contudo, não houve qualquer saída de dinheiro;

d)           Extrato da conta 11.1 Caixa, em anexo 19;

e)           Anexo 20;

f)            Prestações de Serviços até 17/12 (anexo 21) abatidas do TPA (anexo 22) até 17/12

€ 10.157,86 = 64.739,48 – 54.581,62

g)            Valor recebido em dinheiro (anexo 23), quadro extraído do SAF-T do dia;

h)           e i) Retificação de recebimentos por TPA de serviços prestados, registados indevidamente em caixa.

Em declarações levadas a escrito, o gerente da sociedade, C..., justificou parte da divergência a que chegámos com dinheiro que, segundo afirmou, a mãe terá guardado em casa, no total de € 116.144,50. Montante depositado na conta da empresa, na agência de ... do B..., em 4 tranches, dias 12, 13, 14 e 19 de março de 2019. Contudo, no dia da contagem presencial da Caixa nada referiu a respeito, motivo pelo qual não conseguimos comprovar que aquele montante, naquela data, pertencia à empresa e que se encontrava à guarda de uma sócia da mesma, até porque, o gerente da empresa, […], negou a existência de dinheiro noutros locais que não nos sítios da contagem.

Em março deste ano, o S.P. distribuiu ao sócio-gerente resultados do ano de 2018, € 90.000,00, pagos por transferência bancária (vede anexo 24), o que comprova que este montante só em março foi distribuído.

Por conseguinte, desconhecemos o destino dado àquela verba, isto é, se os sócios se apropriaram da mesma ou se efetuaram despesas sem que na contabilidade constem os respetivos documentos, isto é, despesas não documentadas.

No dia 9 de agosto de 2019, foi o senhor C... ouvido em declarações, vede anexo 25, onde, mais uma vez, afirmou que parte da divergência de caixa se deve ao valor, à data, guardado em casa pela sócia […], montante que desconhecia ser tratado contabilisticamente como caixa.

Refira-se que, aquando da contagem nada foi referido e só passados três meses é que o citado valor foi depositado, podendo aquele montante provir de várias fontes e momentos, por exemplo, de receita acumulada no trimestre ou de verbas entregues ou devolvidas pelos sócios para efeito de depósito e justificação dos saldos.

O gerente […] ainda declarou não saber que fim foi dado à verba remanescente, isto é, € 125.420,64; que não tem qualquer justificação para a divergência, contudo, os sócios não o retiraram da empresa, podendo a sua razão assentar em «situações contabilística de anos anteriores». 

Assim, por falta de apresentação de documentos comprovativos, corroborado pela afirmação de desconhecimento dos fins dados ao referido saldo, concluímos que foi empregue em diversas despesas não documentadas, tributadas autonomamente, à taxa de 50%, conforme n.º 1 do artigo 88.º do CIRC:

Divergência                        241.565,14

50%                                       120.782,57

[…]

IX.  DIREITO DE AUDIÇÃO - fundamentação

[…]

No que concerne às tributações autónomas do saldo inexplicável da conta 11.1 Caixa, levámos em consideração a contagem efetiva, as declarações do gerente aquando da mesma, os registos da contabilidade e os respetivos documentos de suporte. O ocorrido três meses depois parece-nos extemporâneo, porquanto, entre outras situações, o S.P. poderia ter auferido receita que justificasse os depósitos em causa ou os mesmos montantes poderiam ter sido devolvidos pelos sócios para efeito de depósito e justificação dos saldos. […]”

H.           Os saldos de caixa devedores constantes da contabilidade da Requerente a 31 de dezembro de cada um dos anos entre 2014 e 2018 foram os seguintes:

             2014 – € 372.122,92;

             2015 – € 361.966,86;

             2016 – € 39.295,23;

             2017 – € 158.647,08;

             2018 – € 162.064,72,

– cf. Documentos 5 a 9 juntos pela Requerente. 

I.             A Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2019 ..., datada de 2 de dezembro de 2019, referente ao período 2018, no valor de € 142.515,31, que contém, entre outros, o valor de € 122.814,56  relativo a tributações autónomas e de € 1.886,28 de juros compensatórios (conforme demonstração de liquidação de juros n.ºs 2019...– cf. Documentos 1 e 2 juntos pela Requerente. 

J.             A liquidação adicional de IRC e juros compensatórios ora identificada resultou no valor global (imposto e juros) a pagar de € 143.119,49, conforme Demonstração de Acerto de Contas n.º 2019..., com data limite de pagamento em 22 de janeiro de 2020 – cf. Documento 3 junto pela Requerente. 

K.            A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação adicional de IRC e juros, na importância de € 143.119,49, em 16 de janeiro de 2020 – cf. Documento 10 junto pela Requerente.

L.            Em discordância com a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios relativa ao período de 2018, supra identificada, na parte que se refere à tributação autónoma de despesas não documentadas, a Requerente apresentou no CAAD, em 1 de abril de 2020, o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

2.            FACTOS NÃO PROVADOS E MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

 

Com relevo para a decisão não se provou que os saldos da conta Caixa da Requerente tivessem derivado de erros ou irregularidades contabilísticas fundadas no erro ou omissão de determinados lançamentos. A Requerente faz alegações genéricas e levanta hipóteses especulativas, sem, contudo, concretizar um específico erro e/ou irregularidade que na situação vertente se tivesse efetivamente verificado (artigos 16.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 41.º e 45.º do ppa). 

Não se provou de igual forma que os elevados saldos da conta Caixa não correspondessem a reais disponibilidades financeiras na posse da Requerente e fossem inverosímeis ou fictícios (artigos 26.º, 28.º, 30.º, 40.º, 41.º, 42.º e 75.º do ppa). Também não se provou que as divergências identificadas entre o saldo da conta Caixa e as disponibilidades financeiras existentes fossem provenientes dos exercícios anteriores a 2018 e que, a terem-se verificado despesas não documentadas, estas teriam ocorrido em grande medida nos exercícios passados (artigos 24.º, 40.º e 76.º do ppa). Ou ainda que em 2018 não existiu qualquer efetiva saída de fundos da Caixa a favor de terceiros que não tenha sido devidamente documentada (artigo 73.º do ppa).

 

Por outro lado, o aparecimento, 3 meses depois da contagem, de um valor de € 116.144,50, alegadamente guardado “em casa” da mãe do gerente e que este desconhecia à data da contagem, o qual foi posteriormente depositado em contas bancárias, não evidencia, nem demonstra, que esse valor respeitasse ao saldo Caixa (artigo 40.º do ppa).

 

Não foram identificados outros factos que devam considerar-se não provados.

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

A convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente. De salientar que é consensual que, em 30.11.2018, o saldo contabilístico da conta Caixa da Requerente correspondia a € 234.022,60  e que quando foi feita a contagem presencial da Caixa, em 17.12.2018, o dinheiro encontrado se limitou a € 81.397,89.

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

1.            QUESTÕES DECIDENDAS

 

A questão fundamental a apreciar prende-se com a qualificação da divergência apurada, de € 241.565,14, entre o saldo de Caixa contabilístico, ajustado a 17 de dezembro de 2018, no montante de € 343.453,74, e a contagem presencial da Caixa efetuada nesse mesmo dia, que se cifrou na quantia de € 81.397,89.

 

Está em causa o enquadramento dessa divergência a título de despesas não documentadas e a consequente sujeição a tributação autónoma, à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, bem como a aferição do critério temporal definidor dessa tributação.

 

2.            REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO APLICÁVEL E NATUREZA DA TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA DE DESPESAS NÃO DOCUMENTADAS

 

O artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, dispõe o seguinte:

 

“Artigo 88.º

Taxas de tributação autónoma

1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.”

 

                Esta disciplina teve como antecedente a tributação das então denominadas “despesas confidenciais ou não documentadas”, que foi iniciada pelo artigo 4.º do Decreto-lei n.º 192/90, de 9 de junho, à taxa autónoma de 10%, incrementada para 25% pelo artigo 29.º da Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado – “LOE” – para 1995).

 

Mais tarde, o artigo 6.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, aditou ao Código do IRC o artigo 69.º-A que, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, passou a integrar esta matéria no Código, determinando a respetiva tributação à taxa agravada de 50%, ao abrigo do seu n.º 1. Foi simultaneamente revogada, pelo artigo 7.º, nº 11 daquela Lei [n.º 30-G/2000], a norma avulsa constante do artigo 4.º do citado Decreto-lei n.º 192/90.

 

                Com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (LOE para 2008), foi eliminada a referência a despesas confidenciais, passando o artigo 81.º (atual artigo 88.º) do Código do IRC a contemplar apenas a expressão “despesas não documentadas”, mantendo-se a taxa de 50%.

 

A eliminação das despesas confidenciais do elenco dos factos sujeitos a tributação autónoma, mantendo-se, no entanto, o mesmo regime de tributação sob a categoria de despesas não documentadas, das quais as primeiras são um subconjunto, limitou-se a remover uma redundância, pois a despesa confidencial é também uma despesa não documentada, sendo “duvidoso que a distinção entre as duas figuras tenha tido alguma relevância no nosso regime fiscal enquanto existiu”, como assinala a decisão arbitral n.º 7/2011-T, de 20 de setembro de 2012 (ponto 12).

 

                Neste âmbito, convém também notar que a tributação autónoma incide sobre distintas tipologias de despesas, com diferentes objetivos e “as considerações a respeito de certo tipo de tributações autónomas, podem não ser pertinentes e válidas relativamente a outro tipo de tributações autónomas” (cf. decisão arbitral proferida no processo n.º 256/2018, de 12 de fevereiro de 2019).

 

                Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de setembro de 2017, no processo n.º 0146/16, há que ter “presente o tipo de tributações autónomas em causa […], uma vez que, como veremos adiante, sob esta denominação cabem realidades com teleologia e finalidade distintas, a reclamarem tratamento diverso. Desde logo, porque a par das tributações autónomas sobre gastos, as mais frequentes, existem também tributações autónomas sobre rendimentos. Mas também, e essencialmente, porque há tributações autónomas que podem ser deduzidas para efeitos de determinação do lucro tributável e outras insuscetíveis de dedução” – em idêntico sentido vide os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de março de 2012, processo n.º 0830/11, e de 31 de março de 2016, processo n.º 0505/15.

 

Refere ainda o aresto citado [processo n.º 0146/16] que as “tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma. […] “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.”

 

                Ressalta notória a finalidade anti elisiva da tributação autónoma das despesas não documentadas e a clara afirmação de que estas, ao contrário do que alega a Requerente, não têm de ser despesas que em termos contabilísticos afetam o resultado do exercício, diminuindo-o, como seria o caso se tivessem sido simultaneamente contabilizadas como gastos dedutíveis.

 

Existem, de facto, algumas situações em que a dedução fiscal do gasto é pressuposto da incidência de certas tipologias de tributações autónomas, mas no caso específico das despesas não documentadas tal não sucede. Aliás, pelo contrário, conforme referido no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no citado processo n.º 146/16, as despesas não documentadas (anteriormente também designadas de “confidenciais”) reportam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis.

 

                Interessa recordar que os conceitos de despesa e de gasto não são sinónimos, nem do ponto de vista contabilístico, nem na perspetiva fiscal. As despesas são saídas de recursos financeiros do património de uma entidade ou organização e podem referir-se a gastos (que incluem, nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, “perdas” e “ajustamentos”) ou a outras realidades, como, por exemplo, investimentos. Ou seja, há despesas que não são relativas a (ou qualificáveis como) gastos. E, por outro lado, se em regra os gastos supõem um desembolso financeiro, i.e., uma despesa, tal não significa que não existam múltiplos gastos que não têm associada qualquer despesa, pelo menos diretamente, como as depreciações e amortizações, as perdas por imparidade ou as provisões, entre outras.

 

                A hipótese de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC sujeita a tributação autónoma as “despesas” e não os “gastos”, sem prejuízo de o mesmo dispêndio poder preencher em simultâneo os dois conceitos, de despesa e de gasto. Como prescrito naquela norma, o facto de a despesa não ser considerada como gasto fiscalmente dedutível ao abrigo do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b) do Código do IRC (que determina a não dedução, como componente negativa do lucro tributável, das despesas não documentadas) não prejudica a tributação autónoma.

 

A respeito da análise de uma questão de retroatividade no domínio fiscal (que não está em discussão nos presentes autos) também o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a caracterização da tributação autónoma de despesas não documentadas, fazendo-o nos seguintes moldes:

 

“[…] estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.” – acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de janeiro de 2011.

 

Com relevância para a determinação da natureza da tributação autónoma, afirma ainda o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, que “A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. […] como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período de tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).”

 

Resulta das considerações expostas que as tributações autónomas têm diversas finalidades além da reditícia, destacando-se no caso das despesas não documentadas, a de prevenção da fraude e evasão fiscais (anti abuso) e a sancionatória ou penalizadora, associadas ao facto de, provavelmente, ou em muitos casos, aquelas despesas terem conexão com a distribuição de proventos que não serão tributados na esfera dos beneficiários (embora devessem sê-lo), ou que escapam à tributação em IVA, presumindo-se o inerente prejuízo para a Fazenda Pública e a desigualdade na repartição dos encargos públicos. A que acresce, eventualmente, poderem respeitar a atuações ilícitas, designadamente a práticas ilegais de corrupção.

 

                Sobre a desnecessidade de tais despesas afetarem o resultado líquido como requisito sine qua non da sua tributação autónoma, no sentido que se acompanha, fundamenta a decisão arbitral n.º 235/2020-T, de 20 de outubro de 2020:

“Defende a Requerente a interpretação de que «as despesas são todos os valores despendidos pelo sujeito passivo, ou seja, por definição, implicam sempre um desembolso financeiro ou um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro; – uma despesa implica sempre a saída efetiva de fundos do sujeito passivo e, consequentemente, uma diminuição do seu património; tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afetar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018».

É manifesto que não é assim. Trata-se de petição de princípio. Apenas seria assim caso a Requerente tivesse contabilizado as despesas não documentadas, para refletir as saídas de caixa. Não as contabilizou, e por isso apresenta os saldos da conta 11-Caixa que apresenta. E como não as contabilizou, não fez diminuir o resultado líquido do exercício.

Aliás, como bem se consagra em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a lei não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:

As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender – e também o entende este tribunal arbitral – que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que mais bem garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.”

 

À face do exposto, ao contrário do que argumenta a Requerente, afigura-se clara a desnecessidade de as despesas não documentadas, afetarem o resultado líquido como requisito constitutivo da tributação autónoma.

 

Por outro lado, da jurisprudência constitucional citada infere-se que o facto gerador da tributação autónoma corresponde à “realização da despesa” e é caracterizado como um facto tributário instantâneo que gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso, de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos.

 

3.            SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DO ÓNUS DA PROVA E A EXISTÊNCIA DAS DESPESAS

 

                O significado de despesas não documentadas reconduz-se a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.

 

                Na situação sub iudice, verifica-se uma divergência, no montante de € 241.565,14, entre o saldo de Caixa e os valores monetários que estavam na disponibilidade da Requerente à data dos factos . A própria Requerente confirma a divergência de valores entre o saldo de Caixa e as quantias que efetivamente estavam na sua disponibilidade. Assente que está a divergência de valores entre o saldo de Caixa e as disponibilidades monetárias, forçoso será também assumir a verificação de uma saída de valores monetários da sociedade, que deve ser qualificada como dispêndio ou desembolso não documentado.

 

                Podem existir múltiplas explicações e justificações para a saída não documentada de fundos da sociedade, como, a título de exemplo, lucros ou adiantamentos por conta de lucros efetuados a sócios, empréstimos efetuados a sócios, erros na emissão de recibos sem que tenha ocorrido o pagamento, erros ou irregularidades contabilísticas, entre tantas outras. Todavia, na ausência de elementos de prova e de quaisquer documentos de suporte que possam indiciar a respetiva finalidade (dos dispêndios), a saída de fundos permanece na categoria de despesa não documentada.

 

                Na tese da Requerente, apesar de esta ter cometido erros que deram origem a divergências e de não os saber explicar em concreto, seria a AT que teria o dever de descobrir e demonstrar os dispêndios realizados e a data em que o foram, numa exigência inatingível e impraticável, pois quem dispõe dos elementos passíveis dessa comprovação é unicamente a Requerente.

                Convém notar, antes de mais, que o facto de não se ter apurado a que se ficou a dever a elevada divergência entre a conta Caixa e a caixa física deriva unicamente de incumprimento dos deveres acessórios declarativos do contribuinte. É sobre este que recai o dever de declarar as suas operações com verdade e rigor, declarações que se presumem válidas nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT.

 

                No entanto, a Requerente não satisfez o ónus de demonstrar o que alegou, i.e., que os fundos que registou em caixa eram “fictícios”, por derivarem de lançamentos erróneos, nem em que circunstâncias é que o foram.  Limitou-se a uma alusão genérica a irregularidades contabilísticas, desprovida de uma enunciação de factos concretos e muito menos da sua demonstração, por isso insuscetível de ser considerada.

                Como refere a decisão arbitral n.º 235/2020-T numa situação similar, a ausência dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidenciava, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, uma despesa não documentada. Fundamenta este aresto arbitral, com o qual se concorda, nos seguintes moldes:

                “À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.

                A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respetiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.

                Por outro lado, os valores elevados dos saldos de caixa mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros, incorreções ou irregularidades contabilísticas, pelo que a respetiva atribuição a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

                Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.

Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.

[…]

Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados pelas prestações de serviços de restauração, como torna opacas as datas em que tal ocorreu.”

 

                Nestes termos, a Requerente não demonstrou quaisquer erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos, devendo assumir-se que, conforme por aquela contabilizado, tais valores chegaram a ingressar na sua esfera patrimonial. Posto isto, os subsequentes dispêndios ocorridos e não registados na contabilidade da Requerente configuram, como já afirmado, despesas não documentadas, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC. 

 

                É inaplicável, neste âmbito, o disposto no artigo 100.º do CPPT, que postula a anulação do ato de liquidação sempre que exista dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário. Tal dúvida não se verifica in casu, em virtude de a Requerente não ter produzido qualquer prova suscetível de abalar ou fragilizar os registos contabilísticos de lançamento de valores na conta Caixa e os pressupostos de aplicação do regime da tributação autónoma pela AT, que são, sem mais, originados nos elementos inscritos na sua própria contabilidade [da Requerente].

 

4.            IMPUTAÇÃO TEMPORAL DAS DESPESAS

 

                Segundo a Requerente, o facto de o saldo da conta Caixa nos anos que precederam 2018 ser substancialmente elevado denota que o saldo de Caixa do período de 2018 é oriundo do saldo de anos anteriores, pelo que a tributação, a ser devida, não o seria em 2018, mas nos anos (antecedentes) a que respeita. Porém, não se afigura ser assim.

 

                Desde logo, o pressuposto de facto invocado pela Requerente, de que o saldo de Caixa de 2018 provém de anos anteriores não foi demonstrado. Nos anos 2014 e 2015 esse saldo foi de € 372.122,92 e de € 361.966,86, respetivamente. Porém, em 2016 diminuiu de forma drástica para € 39.295,23, subindo em 2017 para € 158.647,08. Assim, para além de não ter sido demonstrada a influência do saldo de anos anteriores, se o fosse (que não foi) não tinha a virtualidade de justificar a totalidade da divergência encontrada em 17.12.2018, que ascendeu a € 241.565,14 (no ano precedente o saldo era de € 158.647,08).

 

                A tributação autónoma, apesar de inserida do Código do IRC, apresenta uma natureza particular, o seu facto gerador corresponde à realização da despesa, e não ao lucro, e é um facto tributário instantâneo, gerador de uma obrigação única, e não de formação sucessiva como o IRC.

 

                Sem prejuízo do exposto, às tributações autónomas em sede de IRC aplicam-se todos os regimes do Código deste imposto que não sejam incompatíveis com a sua natureza, precisamente porque formalmente inseridas no mesmo, como decorre o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a) do referido Código. É o que sucede com as regras relativas à apresentação de declarações (artigos 117.º, n.º 1, alínea b) e 120.º do Código do IRC), à autoliquidação, à liquidação adicional e todas as outras que sejam necessárias para a sua aplicação. Deste modo, como salienta a decisão arbitral n.º 235/2020, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas.

 

                Porém, não revestindo a tributação autónoma a natureza de um imposto periódico afigura-se que não lhe é aplicável o princípio da anualidade e da especialização dos exercícios que pressupõe a abrangência de um período prolongado de formação do facto tributário [o exercício], que em Portugal corresponde, em regra, ao ano civil (artigos 8.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1 do Código do IRC).

 

                O momento da tributação das despesas deve, desta forma, aferir-se com base no que a Requerida apelida de critério de “competência de caixa”. O tax point reporta-se à data em que ocorreu a saída de caixa (o desembolso), sendo as despesas imputadas ao período (exercício) em que essa data se inscreve, assim se articulando com o regime de periodização do IRC. Todavia, nos casos em que os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, como sucede na situação vertente, é inviável a determinação da data saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa .

 

                Segue-se, de novo, a fundamentação da decisão arbitral n.º 235/2020-T que convoca o disposto no n.º 2.3 do “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística”, constante do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, em relação ao regime de acréscimo (periodização económica): “2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).” Argumenta a decisão n.º 235/2020-T no seguinte sentido:

“as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, ou seja o regime de acréscimo, exceto para a informação de fluxos de caixa – à qual portanto tal regime expressamente se não aplica. Para movimentações de caixa, o regime que resta é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada).

E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’.

Não o fez. Não contabilizou saídas. Pode legitimamente deduzir-se, com base na experiência, que utilizou, de facto, o que na literatura técnica sobre ‘economia não registada’ (também dita ‘informal’), se designa por ‘caixa aberta’, vindo depois alegar, sem ensaio sequer de o procurar demonstrar ou provar, a existência de erros e incorreções.

Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.”

 

Conclui-se, desta forma, não assistir razão à Requerente relativamente ao momento temporal a que se reportam o facto gerador, não tendo logrado demonstrar que as saídas de Caixa em causa ocorreram em anos anteriores (sendo que relativamente a uma parte do saldo da conta Caixa tal seria impossível, pois o saldo dos dois anos imediatamente anteriores eram substancialmente inferiores).

 

Conclui-se, assim, ser correta a consideração, pela AT, das despesas não documentadas no período de 2018, ao qual corresponde o saldo divergente objeto de contabilização e no qual se constatou, em 17 de dezembro desse ano, por contagem física, a falta de correspondência entre as disponibilidades monetárias e o respetivo saldo registado na contabilidade.

 

5.            SOBRE OS MÉTODOS INDIRETOS

 

                A Requerente parte do carácter fictício do saldo da conta Caixa, para o que invoca irregularidades e erros contabilísticos, e chega à conclusão que devia ter sido alvo de uma correção de métodos indiretos e não de tributação autónoma. Entende-se que não tem razão .

 

                Em primeiro lugar, como foi repetidamente referido, o alegado caráter fictício da conta Caixa não foi demonstrado, nem se suscita um quadro factológico passível de abalar a credibilidade da escrita da Requerente.

 

                Em segundo lugar, os elementos necessários à correta determinação do imposto estão disponíveis, dispensando o recurso a métodos indiretos, que são subsidiários dos métodos diretos , e que implicam necessariamente que seja inexequível a quantificação direta e exata da matéria tributável, de acordo com artigo 87.º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 88.º, ambos da LGT. Na situação vertente, a quantificação não era impossível e resultou da forma mais fiável que se pode equacionar: a contagem física e direta dos valores monetários na disponibilidade da Requerente.

 

                Sendo o saldo contabilístico de Caixa um dado, a diferença resultante da contagem física representa o total dos desembolsos indocumentados que foram feitos pela Requerente, ou seja, afere-se a base de incidência da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, precisamente as despesas não documentadas .

 

                O facto de não se saber a que despesas respeita a base de incidência não constitui requisito de enquadramento na modalidade de avaliação indireta, que é sempre uma última ratio. Dir-se-á até que, em geral, as despesas não documentadas não são cognoscíveis, pretendendo o legislador tributar de forma agravada, mas sempre por via da avaliação direta, essa mesma opacidade por aquilo que ela pode representar (e provavelmente representa).

 

                A falta de transparência relativa ao destino do dispêndio não constitui pressuposto da aplicação de métodos indiretos, que se prende antes com a dificuldade em alcançar a base tributável, o quantum. Ora essa, como vimos, foi objeto de quantificação direta, pela contagem física levada a efeito pela AT, na presença do representante legal da Requerente, nada havendo a censurar à correção meramente aritmética, através de avaliação direta, que lhe foi efetuada, pois não foram identificados motivos para desconsiderar a contabilidade e não se encontram reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 87.º da LGT.

 

6.            JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

O direito a juros indemnizatórios deriva do pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido por erro imputável aos Serviços, de acordo com o disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, e depende do ganho de causa da Requerente, o que não se verificou na situação em análise.

 

Em face do exposto, improcede o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, por falta de preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 43.º, n.º 1 da LGT.

 

* * *

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 120.782,57 correspondente ao valor da liquidação de IRC respeitante à Tributação Autónoma aqui impugnada – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 3.060,00, a cargo da Requerente, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de dezembro de 2020

 

Os Árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Rui Ferreira Rodrigues

(Declaração de voto: Revendo a posição anteriormente assumida no âmbito de outro processo respeitante a idêntica matéria).

Jónatas Machado