Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 206/2021-T
Data da decisão: 2021-12-14  ISV  
Valor do pedido: € 19.052,51
Tema: ISV - Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

 

 1. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever  de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia, pelo que  se  encontra ferido de ilegalidade um ato tributário praticado ao abrigo da citada norma do CISV, na medida da sua incompatibilidade com o artigo 110.º do TFUE.

3. Na revisão do ato tributário apresentada pelo contribuinte ao abrigo da 2ª parte, do artigo 78º, da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de revisão, quer a pretensão anulatória do contribuinte seja acolhida na decisão administrativa que tenha por objeto tal pedido, quer a anulação seja determinada em processo impugnatório deduzido contra o seu indeferimento pela AT no procedimento de revisão.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

No dia 11.04.2021, o Requerente, A..., contribuinte ..., solteiro, maior, residente na ..., nº  ...,  ..., Ourém, não se conformando com o despacho proferido em 23 de dezembro de 2020 pela Exma. Sr.ª Diretora da Alfândega de Aveiro, que indeferiu  pedido de revisão oficiosa da liquidação de imposto sobre veículos, apresentado com vista à anulação  parcial, referente  ao montante de 19.052,51 €, da  liquidação  de Imposto de ISV nº 2019/..., no  valor total   de 29.439,05 €, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à pretendida anulação parcial do ato tributário.

 O Requerente, alegando ter pagado o valor total da liquidação, peticiona ainda a restituição do referido montante de 19.052,51 €, acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 22.06.2021.

 

3. O fundamento apresentado pelo Requerente para sustentar a ilegalidade da liquidação e consequente anulação parcial das mesma, diz respeito ao cálculo para efeitos de tributação da  componente ambiental ou CO2, porquanto entende que  a norma jurídica que esteve na base da liquidação – artigo 11º do CISV –  ao não estabelecer, quanto aos veículos usados, uma percentagem de redução pelo tempo de uso, à semelhança do estabelecido para a componente cilindrada,  viola o artigo 110º do TFEU (Tratado de Funcionamento da União Europeia).

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão do Requerente, defendendo-se por exceção e por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:

 

Por exceção,

 

Atendendo a que a administração tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais) será forçoso concluir pela inexistência de imputabilidade aos serviços de erro que fundamente um procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

 

À luz do n.º 1, 1ª parte, do artigo 78.º da LGT, o pedido de revisão oficiosa apresentado é manifestamente intempestivo, pois se encontrava há muito ultrapassado o prazo da reclamação graciosa, de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISV.

 

Assim, tendo o pedido de revisão sido apresentado depois do prazo previsto na lei, encontra-se igualmente ultrapassado o prazo de 90 dias, contados após o termo do prazo de pagamento do imposto, para apresentação do pedido arbitral, que só veio a ser efetuado em 11.04.2021.

 

Consequentemente, tendo o presente pedido arbitral sido deduzido em consequência da rejeição do pedido de revisão por intempestividade, igualmente se mostra a presente impugnação intempestiva, verificando-se a caducidade do direito de ação, que constitui exceção perentória que impede e extingue o efeito jurídico dos factos articulados pela Requerente e, sendo de conhecimento oficioso, leva à absolvição da AT do pedido (cf. artigos 576.º n.ºs 1 e 3 e 579.º, ambos do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

Por impugnação,

 

Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de veículo usado, proveniente de outro Estado-membro, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV na redação em vigor à data dos factos, isto é, à data da introdução do veículo no consumo.

 

Ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objeto de redução, o Estado Português não teve por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas sim como corolário orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado-Membro.

 

Não se pode olvidar, igualmente, o estabelecido no artigo 66.º, relativo ao Ambiente e Qualidade de Vida, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (n.º 1), e, especificamente, o disposto na alínea h), do n.º 2 do mesmo artigo, quando se refere a um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente.

 

Configurando a aplicação da interpretação pugnada pela Requerente uma desaplicação do direito da União e do direito internacional - artigo 191.º do TFUE, Protocolo de Quioto e Acordo de Paris - que vinculam o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

 

Na elaboração do CISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1.º e 11.º do CISV, nos termos explanados, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, quanto à componente ambiental, sem mais, impondo-se que se afira a sua conformidade com os supra identificados comandos constitucionais.

 

Concluindo-se, assim, que a liquidação de ISV, resultante da aplicação do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, então em vigor, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.

 

Destarte, tendo o ato impugnado sido efetuado de acordo com o direito nacional e comunitário, não enfermam de qualquer vício, devendo, consequentemente, o mesmo ato de liquidação, na parte que vem impugnada, quanto ao cálculo do imposto efetuado nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, e à não aplicação de redução à componente ambiental nos termos deste artigo, considerar-se conforme ao direito constituído então em vigor.

 

A interpretação do artigo 11.º do CISV defendida pela Requerente resulta, desde logo, uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).

 

Por outro lado, defendendo o Requerente, a ilegalidade da liquidação, por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, verifica-se, ainda, além da violação, por via de tal interpretação, dos já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, a violação, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV, do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva.

 

De facto, a administração encontra-se coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

 

Em face do exposto, a interpretação do Requerente, do artigo 11.º do CISV viola os princípios acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, se reputa de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.

 

No que concerne ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, ainda que venha a considerar-se que o pedido arbitral deva proceder, o que só por dever de raciocínio se concebe, não poderá aquele obter acolhimento.

 

É que, efetivamente, a liquidação em causa nos presentes autos decorreu exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo sido efetuada nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto.

 

E, estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a Requerida AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

Tendo a AT agido no cumprimento estrito da lei, não se verifica qualquer erro de que possa resultar o pagamento indevido do imposto, sob pena de se verificar, com tal interpretação, uma violação, também aqui, do invocado princípio constitucional da legalidade e legalidade fiscal, não devendo assistir, por conseguinte, ao Requerente, o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

5. O Requerente respondeu por escrito à exceção suscitada pela Requerida sustentando que, além dos tribunais nacionais, também a Requerida está obrigada a desaplicar as disposições do direito nacional que contrariem normas de direito da União Europeia que gozem de efeito direto e que, nesta esteira, o indeferimento do pedido de revisão oficiosa, ainda que apresentado  para além do prazo concedido para a reclamação administrativa, permite o recurso às vias judiciais para efeitos de impugnação, desde que seja formulado dentro dos limites temporais em que a administração tributária pode rever o ato, como sucedeu no caso dos autos, devendo improceder a exceção suscitada.

 

6.Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.

Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario.

 

7. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

 

8. Cumpre solucionar as seguintes questões:

1) Exceção de caducidade do direito de ação.

2) Ilegalidade da liquidação de ISV.

3)Direito do Requerente à restituição do imposto pago indevidamente.

4) Direito do Requerente a juros indemnizatórios.

 

II – A matéria de facto relevante

 

9. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

9.1. Em 30.03. 2019, o Requerente introduziu em Portugal, proveniente da Alemanha, o veículo ligeiro de passageiros usado de marca ..., modelo..., com o peso bruto de 2.200 Kg, movido a gasolina, com o motor   nº ..., nº de quadro ..., cilindrada ... cc, de cor vermelha e outras, matriculado pela primeira vez no país de origem em 13.07.2009.

9.2. O Requerente apresentou na Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, através de representante indireto, a competente declaração aduaneira de veículo, em 25 de Abril de 2019, à qual foi atribuído o nº 2019/..., da mesma constando o valor de 299g/Km a título de emissão de gases CO2.

9.3. Notificado da liquidação nº 2019/..., de 23 de Abril de 2019, da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, no valor total de € 29.439,05, o Requerente procedeu ao seu pagamento.

9.4. Na liquidação em causa, o cálculo do imposto foi efetuado pela Autoridade Tributária e Aduaneira com recurso à aplicação da tabela A prevista na alínea a), do nº 1, do artigo 7º do CISV, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, pelo valor total de € 41.546,17, dos quais € 16.142,82 correspondem à componente cilindrada e € 25.403,35 à componente ambiental.

9.5. Relativamente à componente cilindrada, em virtude do número de anos do veículo, foi aplicada uma redução de 12.107,12 €, não se tendo operado idêntica redução no que respeita à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental.

9.6. Pela aplicação da percentagem de redução sobre a componente ambiental  em função do  tempo de uso do veículo, em conformidade com o critério de desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional estabelecidos no artigo 11º, nº 1, do CISV, a liquidação seria inferior no montante  de  19.052,51 €.

9.7. Em 12.10.2020, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação de ISV em causa no presente processo, com fundamento na 2ª parte, do nº 1, do art. 78º, da Lei Geral Tributária, com vista à anulação parcial do ato tributário.

9.8. O Requerente foi posteriormente notificado de projeto de decisão de indeferimento, datado de 16.11.2020, que teve como fundamento a seguinte informação da Chefe da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, com base em proposta do técnico responsável:

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

9.9.O Requerente pronunciou-se em sede de audição prévia tendo nessa sequência a Senhora Diretora da Alfândega de Aveiro, por despacho de 23.12.2020,  mantido a posição tomada em sede de projeto de decisão, indeferindo o pedido de revisão em causa, com fundamento na informação supra referida.

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.

 

10. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, bem como da posição da Requerida relativamente aos factos alegados pelo Requerente que, nem em sede de procedimento de revisão, nem em sede de resposta no presente processo, foram contestados, antes emergindo concordância das partes relativamente à matéria de facto alegada pelo Requerente, restringindo-se o desacordo, em exclusivo, a matéria de direito.

 

-III- O Direito aplicável

 

 

 DA EXCEPÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO

 

11. Como supra se referiu, sustenta a Requerida a intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado, por inexistência de erro imputável aos serviços  e por, aquando da sua apresentação, há muito ter sido ultrapassado o prazo de revisão previsto na 1ª parte, do nº 1, do artigo 78º, da LGT, com a consequente caducidade do direito de ação, por se encontrar igualmente ultrapassado o prazo de 90 dias, contados após o termo do prazo de pagamento do imposto, para apresentação do pedido arbitral.

 

A Requerente, ao invés, considera estar verificada a ocorrência de erro imputável aos serviços, no caso, um erro de direito, por violação do artigo 110º do TFUE, sustentando a improcedência da exceção.

 

Vejamos.

 

Consta do acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14[1], em linha com jurisprudência constante do mesmo Tribunal que “Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”
 

 

Por outro lado, pode ler-se no acórdão do TJUE de 4 de dezembro de 2018, no processo C‑378/17 [2], em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida, o seguinte:

38      Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).

39      Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado‑Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”

Na decisão do   TJUE no processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, pode ainda ler-se que:

 “há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C‑224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).[3]

 

Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros que “(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito”.[4]E no mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, escrevendo sobre o princípio do primado do direito comunitário:“(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária”[5]

 

Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a não observância de tal dever, consubstancia de erro de direito  imputável aos serviços.

 

Assim também tem concluído, pacificamente, a jurisprudência nacional, conforme consta da decisão arbitral  de 1 de Abril de 2021, proferida no proc. 457/2020-T, de 1 de Abril de 2021, onde se pode ler o seguinte:

 

“Importa assim, determinar se se verifica, in casu, erro imputável aos serviços. Não podendo imputar-se aos serviços qualquer erro de facto, importa averiguar se lhes poderá ser imputado erro de direito. A este propósito já decidiu o STA, ao estabelecer no acórdão proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14 que «(…) tem desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que “existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12.12.2001, no recurso n.º 026233, pois “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro” já que “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços”. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.»

O mesmo resulta do acórdão do TCAS n.º 1058/10.0BELRS, de 31.01.2019, onde se decidiu, mais recentemente no sentido de que «(…) o erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração, compreendendo o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, no âmbito do qual se enquadra a violação das normas de direito da UE.»”

 

Nesta medida, e com tal fundamento, poderia a Requerente apresentar, como apresentou, o pedido de revisão no prazo de quatro anos após a liquidação.

Acresce que, muito embora a Requerida tenha referido, na decisão que incidiu sobre o pedido de revisão da liquidação, indeferir a mesma com fundamento na sua extemporaneidade, o certo é em tal decisão não deixou de sustentar a legalidade do ato de liquidação ao referir que “a Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espectro do princípio da legalidade”.

É certo que a Requerida de imediato acrescenta “e não tendo (…) a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num “julgamento” de pretensa desconformidade com o direito comunitário (…)”[6].Mas, mesmo que se considere que a Requerida não apreciou a legalidade do ato de liquidação entendemos que, no caso concreto, à luz do princípio da tutela judicial efetiva e do seu subprincípio do “pro actione”,  sempre haverá que admitir o conhecimento do mérito da ação.

Na verdade, como escrevem Serena Cabrita Neto-Carla Castelo Trindade:

“ (…) não é evidente a  linha que separa um indeferimento por razões formais -por não verificação de erro imputável aos serviços, de injustiça grave ou notória- de um indeferimento por razões materiais. Assim, cremos ser de admitir que se o contribuinte porventura fundamentar a sua ação judicial  (de impugnação ou de pedido de constituição de tribunal arbitral) com um segundo grupo de argumentos e um subsequente pedido, isto é, com o conhecimento do próprio mérito do pedido de revisão, com a consequente anulação do acto tributário, não haverá como não admitir o “alargamento” do objecto da acção ao mérito.É que a tutela judicial efectiva obriga a que o contribuinte possa, nos momentos processuais próprios, levar ao conhecimento do tribunal todas as questões não resolvidas administrativamente. E sendo o acto tributário o objecto “mediato” desta acção, a impugnação ou o pedido de constituição do tribunal arbitral sempre se mostram ser os meios mais adequados para tutelar o contribuinte”[7]

Ora, no caso concreto, da petição constam os fundamentos pertinentes à apreciação do mérito do pedido, bem como da resposta  da Requerida constam os argumentos pelas quais esta entende que  aqueles fundamentos sobre o mérito, alegados pelo Requerente, não devem proceder.

Nestas circunstâncias, entender que o tribunal não deve conhecer do mérito, implicaria a imposição ao Requerente de interposição  duma ação administrativa especial para o  tribunal administrativo e fiscal   conhecer da existência de  erro imputável aos serviços, para o que o tribunal não poderia deixar de apreciar a juridicidade da liquidação (mas sem que o meio processual em causa permitisse a anulação da mesma) e cuja decisão, em caso de procedência, iria  determinar que a AT seria obrigada a conhecer do mérito da revisão e da consequente juridicidade do ato. Tal solução, seria não só atentatório do princípio da tutela judicial efetiva, mas também, como é evidente, da economia processual e do princípio eficiência da administração pública e da inerente racionalização de meios (Cfr. Art. 267º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa). A que acresce que, tendo-se o Tribunal já pronunciado sobre a existência de erro imputável aos serviços, com o inerente juízo de ilegalidade da liquidação, não se vislumbra como poderia  a AT deixar de respeitar o sentido da decisão judicial.

Não pode, pois, deixar de se concluir que não estava ao Requerente vedado a contestação da  decisão que indeferiu o pedido de revisão oficiosa  através de impugnação judicial ou arbitral, tendo como objeto mediato o ato de liquidação.

 

Assim sendo, tendo a Requerente apresentado o pedido de pronúncia arbitral dentro do prazo de noventa dias após a notificação da decisão que indeferiu o pedido de revisão, foi a presente ação apresentada tempestivamente, improcedendo a suscitada exceção de caducidade do direito de ação.

 

12.DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV.

 

Escreveu-se na decisão arbitral proferida no processo 572/2018-T[8], designadamente, o seguinte:

 

“6.47. Em sede de ISV, existe um longo percurso no que diz respeito às questões que a Comissão Europeia tem levantado ao Estado Português em matéria de legalidade das normas nacionais, nomeadamente, quanto à carga fiscal incidente sobre os veículos usados.

6.48. Com efeito, essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.

(…).

6.66. Não obstante as disposições internas, e como já vimos, o artigo 110º do TFUE (na esteira do artigo 90º do Tratado de Roma), preceitua que “nenhum EM fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares”.

6.67. Sobre a interpretação deste artigo face aos direitos nacionais já o TJUE se pronunciou por diversas vezes precisando o seu alcance dado que a admissão nos mercados nacionais de veículos automóveis portadores de placa de matrícula definitiva de outros Estados membros, isto é de veículos usados, rege-se exclusivamente pelo direito nacional, não podendo, todavia, tal direito contrariar os princípios em que se alicerça o funcionamento da UE.

6.68. Por isso, dentro da liberdade conformadora que o legislador nacional dispõe para modelar o imposto de forma a proceder à sua cobrança de forma exequível e eficaz, é necessário ter em conta, para além da opinião da Comissão Europeia, enquanto entidade a quem cabe zelar pelo respeito pelo Tratado, a jurisprudência comunitária que se vai produzindo.

6.69. E tanto assim é que em conformidade com o documento anexado pela Requerida com as suas alegações escritas se percebe que o Estado Português, interpelado pela Comissão Europeia em 2009/2010, quanto à forma como eram tributados os veículos usados admitidos em Portugal provenientes da UE (porque contrária ao previsto no referido e citado artigo 110º do TFUE), se viu forçado a alterar a legislação em vigor em matéria de ISV, em concreto o artigo 11º, nº 1 do Código do ISV (naquela data vigente), através da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2011), no sentido de:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental:

6.70. Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE nº C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que “a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE” (sublinhado nosso).

6.71. E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

6.72. Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, nº 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

6.73. A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este EM não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados “importados” de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional.

6.74. Com efeito, a Comissão volta a entender que a legislação nacional não é compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, na medida em que os veículos usados “importados” de outros EM são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado nacional. “

(…)

 

6.85. Não obstante a Requerida referir que “(…) o conteúdo do artigo 110º deste tratado proveio do artigo 90º do tratado CE, ao qual ainda não estavam subjacentes as preocupações ambientais, com a acuidade que hoje se colocam”, tal afirmação não será de todo correcta porquanto o artigo 191º do TFUE teve origem no artigo 174º daquele Tratado e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90º, nomeadamente, no já citado processo C-290/05.

6.86. E, recorde-se, em conformidade com o que é defendido pelo Requerente, o Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, refere que “este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.[9]

 

(…)

6.87. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, o que deverá aqui relevar é que o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.”

 

Esta posição, tem vindo a ser perfilhada em sucessivas decisões arbitrais proferidas, designadamente, nos processos n.º 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 498/2019-T e 660/2019-T, 13/2020-T e 293/2020-T. Também este Tribunal Arbitral acompanha o entendimento da douta decisão arbitral citada, pelas razões nela expostas.

 

13. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 11.º DO CISV EFETUADA PELO REQUERENTE

 

Quanto a esta questão, acompanha-se o decidido da decisão arbitral proferida no processo 293/2020-T, onde se pode ler:

 

“12. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.”

 

14. Assim, o ato de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV é, nesta medida, ilegal, devendo ser parcialmente anulado, no que respeita ao excesso de tributação decorrente daquela ausência de redução, nos termos peticionados pelo Requerente.

 

15. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida ao reembolso da quantia indevidamente arrecadada, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição  por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

 

16.No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.

Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Por sua vez dispõe o nº 3 do mesmo artigo:

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

(…)

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”

 

 

Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-05-2018, processo 1201/17:

“3.8. Importa, por isso, afrontar a questão de saber se os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que o pagamento do tributo foi efetuado ou a partir de um ano após o pedido de revisão formulado pelo contribuinte.


Já vimos que o acórdão fundamento entendeu que os juros indemnizatórios a que as impugnantes têm direito neste processo são apenas devidos a partir de um ano após o pedido de revisão por elas formulado.


O acórdão de 15-02-2007, processo 01041/06, deste STA tem o seguinte sumário:
“I - A revisão oficiosa dos actos de liquidação é susceptível de ser provocada pelo interessado, dentro do respectivo prazo, com fundamento em qualquer erro, de facto ou de direito, imputável à Administração.


II - Pedida a revisão oficiosa do acto de liquidação e vindo o acto a ser anulado, mesmo que só na impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada.”.


Neste acórdão são referidos os diversos acórdãos que neste mesmo sentido se pronunciaram.
E o acórdão fundamento acompanhou esta corrente jurisprudencial afirmando no seu sumário o seguinte:


“I - O art.º 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, sem definir o momento a partir do qual são os mesmos devidos.
II - O nº 3, c) do mesmo preceito consagra que também são devidos juros indemnizatórios, «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária».
III - O legislador considera que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respectiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.”.


Do artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária resulta que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.


Não resulta desta norma qual o momento a partir do qual são os juros indemnizatórios devidos.
O n.º 3, c) do mesmo preceito estabelece, contudo, que são devidos juros indemnizatórios, “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária”.
À situação em apreciação é aplicável o nº 3, al. c) do artigo 43º da Lei Geral Tributária pois que podendo a recorrida ter questionado a liquidação optou por nada fazer até ao momento em que apresentou um pedido de revisão oficiosa do ato tributário.


Como se escreveu no acórdão fundamento entre a data da liquidação e a data do pedido de revisão decorreu um extenso período em que a reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não impulsionou, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte, suscita a questão da ilegalidade do ato de liquidação imediatamente após o pagamento da quantia em questão pois que entendeu o legislador que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respetiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.


Daí que se possa concluir que esta norma do artigo 43.º, n.º 3 c) da LGT consagra um regime especial, quanto aos juros indemnizatórios, aplicável apenas em situações de revisão, como é o caso dos presentes autos e não perante a situação normal típica em que a impugnação da liquidação se inicia após o pagamento.” [10]

 

 

Em conformidade com este aresto, que se acompanha, o Requerente apenas terá direito a juros indemnizatórios a partir do fim do prazo de um ano após a apresentação do pedido de revisão formulado, ou seja, a partir de 12.10.2021.

 

 

-IV- Decisão

 

 

Assim, nos termos e com os fundamentos supra expostos decide o Tribunal arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se a anulação parcial da liquidação no valor total de 19.052,51 €, condenando-se a  Requerida a restituir tal valor, acrescido de juros indemnizatórios contados a partir de 12.10.2021.

 

 

Valor da ação: 19.052,51 € (dezanove mil, cinquenta e dois euros e cinquenta e um cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas pela Requerida, no valor de 1 224.00 €, nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.

 

Notifique-se as partes.

 

Nos termos e para efeitos do art. 17º, nº 3 do RJAT, notifique-se, ainda, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual.

 

Lisboa, CAAD, 14.12.2021

 

O Árbitro

 

 

Marcolino Pisão Pedreiro

 

 

 



[1] Os acórdãos do STA referidos ou citados na presente decisão podem ser consultados em “www.dgsi.pt”.

[2] Os acórdãos do TJUE referidos ou citados na presente decisão podem ser consultados em “https://curia.europa.eu

[3] Nosso sublinhado.

[4] DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA, Almedina, 2004, p. 530.

[5] DIREITO DA UNIÃO, Almedina, 8ª edição, 2017, pag. 365. 

 

[6] Entendimento que se considera errado, conforme acima se assinalou.

[7]CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, Almedina, 2017, Vol. I,  pags. 609-610.

[8] As decisões arbitrais  referidas ou citadas  na presente decisão podem ser consultados em “https://caad.org.pt/tributario/decisoes

[9] Nesta linha, pode ler-se na decisão arbitral proferida no processo 660/2019-T:

55. Nesta sede, importa referir que decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional.

 

56. O que equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM.”

 

 

[10] Em sentido idêntico vd.  acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24-10-2018, processo 099/18.3BALSB, onde também se pode ler:

Acresce referir que este acórdão segue jurisprudência tirada há algum tempo, designadamente o acórdão de 22/06/2005 tirado no recurso nº 322/05 onde, com muita clarividência se expressou:

(…) O nº 3 refere, ainda, que “são também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.E entende-se que assim seja pois que se podia o contribuinte com fundamento em erro imputável aos serviços questionar a liquidação, nos termos do nº 1 do mencionado artº 43º, tendo, em tal situação, caso a sua pretensão procedesse direito aos juros indemnizatórios contados nos termos do nº 3 do artº 61º do CPPT (desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito) se deixou, eventualmente passar o pedido de impugnação e se socorreu do mecanismo da revisão imediatamente ficou sujeito às consequências deste mecanismo legal.

É que ao solicitar tal revisão é razoável que a AT disponha de certo prazo para a apreciar.

Neste sentido pode consultar-se Jorge de Sousa, CPPT Anotado, 4ª edição, 2003, notas 2 e 10 quando afirma que no artº 61º se prevê que sejam pagos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectue mais de um ano após o pedido, se o atraso for imputável à Administração Tributária sendo o termo inicial de contagem de tais juros indemnizatórios, no caso de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte (fora das situações de reclamação graciosa enquadráveis no nº 1 do mesmo artº 43º da LGT), devidos a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão, podendo até ser contados a partir de momento posterior se o atraso não for imputável à Administração Tributária.

E não se descortina qualquer inconstitucionalidade em tal preceito legal, na interpretação que se deixa exposta, pois que a opção pela via da revisão que tem este regime e não pelo regime do nº 1 do artº 43º apenas é imputável ao particular que escolheu aquele caminho e não este pelo que não ocorre a inconstitucionalidade defendida da alínea c) do nº 2 do mesmo artº 43º da LGT”.

 Pretender que a aplicação do preceito seria só para casos de procedência do pedido de revisão oficiosa constituiria limitação à extensão dos juros indemnizatórios que não tem na letra da lei correspondência verbal e funcionaria como “condicionadora do sentido decisório da Administração” causticando-a com juros mais extensos no caso de indeferimento do pedido de revisão apresentado muito para além dos prazos de impugnação ou reclamação normais.”