Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 205/2021-T
Data da decisão: 2022-02-22  Selo  
Valor do pedido: € 24.787,97
Tema: IS – Imposto do Selo – Garantias Bancárias.
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SUMÁRIO: 1. Na garantia bancária autónoma institui-se uma relação triangular, em que é possível distinguir uma relação de cobertura, entre o garantido, dador da ordem, e o garante, no âmbito da qual este se compromete, normalmente mediante remuneração, a prestar a garantia; uma relação de atribuição, entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia, que justifica a sua concessão, e, ainda, uma relação de execução, entre o garante e o beneficiário da garantia, que consiste precisamente na prestação da garantia.

2. O facto tributário que determina a exigibilidade do imposto do selo consolida-se na ordem jurídica com a tripla intervenção dos três intervenientes (garante, garantido e beneficiário), em que a aceitação da garantia por parte do beneficiário é fundamental para que a garantia bancária assuma a função de garantia e, consequentemente, esteja apta a cumprir a função para que foi emitida.

3. O cancelamento da garantia em momento prévio à sua apresentação ao beneficiário determina a inexistência de facto tributário e, consequentemente, não há lugar a qualquer tributação em sede de imposto do selo.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

1.            A..., SA., com o número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede social em ..., n.º..., ...-... Lisboa, (doravante designada por Requerente), apresentou um pedido de constituição de Tribunal arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigos 5.º, n.º 2, e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

2.            No pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 09.04.2021, a Requerente pretende que o Tribunal declare a ilegalidade do despacho de indeferimento do recurso hierárquico, proferido pela Diretora de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, do Imposto Único de Circulação e das Contribuições Especiais, cujo processo correu termos sob o n.º ...2019... . O recurso hierárquico foi deduzido contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa, proferido em 27.12.2018, pelo Chefe de Divisão de Serviço Central, ao abrigo de delegação de competências, conforme ofício datado de 28.12.2018, da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), deduzida contra o ato de liquidação de Imposto do Selo efetuado em dezembro de 2017 pelo B..., SA., no valor de € 24.787,97, e entregue nos cofres do Estado através da guia de retenção na fonte n.º ..., de 22.01.2018, sendo este imposto do selo referente à emissão da garantia bancária autónoma n.º ..., com o valor de € 4.131.328,21.

3.            Esta garantia bancária, a pedido da requerente, foi anulada em 27.12.2017 pelo B..., SA., e foram emitidas em sua substituição cinco garantias bancárias autónomas, com o objetivo de serem apresentadas nos processos de execução fiscal n.ºs ...2017..., ...2017..., ...2017..., ...2017... e ...2017..., que ao abrigo da verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo motivaram liquidação de imposto do selo no valor global de € 24.787,97.

4.            A Requerente solicita a anulação do imposto do selo relativo à garantia bancária n.º..., com o valor de € 4.131.328,21, a qual foi substituída por cinco garantias bancárias parciais, alguns dias após a sua emissão, cuja finalidade era exatamente a mesma que foi atribuída às cinco garantias bancárias parciais e a consequente restituição do imposto do selo, no valor de € 24.787,97, e a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, desde 27.12.2018, data correspondente ao despacho de indeferimento da reclamação graciosa.

5.            A Requerente considera que, quer o despacho de indeferimento do Recurso hierárquico n.º ...2019..., proferido pela Diretora de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, do Imposto Único de Circulação e das Contribuições Especiais, quer a liquidação de imposto do selo, no valor de € 24.787,97, efetuada em dezembro de 2017 pelo B..., SA., através da guia n.º..., de 22.01.2018, são ilegais, ilegalidade que, em síntese, fundamenta nos termos seguintes:

a)            A garantia bancária n.º..., no valor de € 4.131.328,21, emitida pelo B..., SA., em 20.12.2017, tinha por finalidade salvaguardar a suspensão de cincos processos de execução fiscal nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 169.º e 199.º do CPPT;

b)           A emissão desta garantia bancária, no valor de € 4.131.328,21, motivou, com base na verba 10.3 da TGIS, a liquidação de imposto do selo no valor de € 24.787,97;

c)            Esta garantia bancária unitária não chegou a ser apresentada nos serviços da Autoridade Tributária Aduaneira, conforme é assinalado no ponto 14 da decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2019...;

d)           Alguns dias após a emissão da garantia bancária n.º..., para obter a suspensão dos processos de execução fiscal n.ºs ...2017..., ...2017..., ...2017..., ...2017... e ...2017..., a Requerente solicitou ao B..., SA., a emissão de cinco garantias bancárias parciais, as quais foram emitidas pelo B... em 26.12.2017, com os n.ºs ..., ..., ..., ... e ..., e cuja soma totaliza o valor de € 4.131,328,21;

e)           Pela emissão das cinco garantias bancárias parciais, o B..., SA., com base na verba 103 da TGIS, liquidou imposto de selo no valor de € 24.787,97.

f)            A Requerente alega que o que está em causa é a substituição da garantia n.º ..., no valor unitário e total de € 4.131.328,21, por cinco garantias bancárias parciais, cuja soma dos valores parciais totaliza exatamente aquele valor de € 4.131.328,21, e cuja finalidade foi exatamente a mesma, a suspensão dos cinco processos de execução fiscal instaurados contra a Requerente para cobrança coerciva de IVA, do ano de 2013, e já supra identificados;

g)            A Requerente apela a uma visão substantiva da interpretação e aplicação das normas de incidência do imposto do selo, em prejuízo de uma perspetiva estritamente formalista e legalista da realidade dos factos;

h)           No sentido de acentuar este pendor substantivo do imposto do selo após a reforma de 2000, a Requerente invoca diversas posições doutrinárias, em particular conexas com o contrato de prestação de garantias, concluindo pela existência de algum consenso doutrinário no sentido de que a tributação das garantias deve obedecer a uma visão substancialista das operações;

i)             A Requerente considera que a substituição de garantias não pode ser vista como um novo facto tributário e, inclusive, invoca alguma incoerência na posição da AT entre as situações de reforço do valor das garantias, em que apenas é tributado o valor adicional da garantia, e o caso em apreciação, que é de substituição integral da garantia e no qual a AT pretende tributar de novo o valor da garantia, verificando-se, portanto, uma situação de dupla tributação.

j)             A Requerente considera que a garantia n.º ..., no valor € 4.131.328,21, não se consolidou no ordenamento jurídico, porquanto não chegou a ser apresentada perante a AT, a entidade beneficiária da garantia emitida pelo B..., SA., logo não se verificou a sua aceitação por parte da AT, elemento essencial ao contrato de garantia, ainda que a aceitação fosse tácita;

k)            Sem conceder quanto à não tributação de todas as garantias bancárias emitidas pelo B..., SA., porquanto, o que está em causa é a substituição da garantia bancária n.º ...por cinco garantias parciais, a Requerente considera, que a não ser assim entendido, então, deve a tributação da garantia inicial ser feita em função do seu prazo de vigência – escassos dias – e a tributação não deve exceder o valor que resultar da aplicação da taxa devida pelo prazo efetivo da garantia, isto é, a taxa de 0,04% sobre uma fração de mês, incidente sobre o valor de € 4.131.328,21, o que determinaria que o valor de imposto do selo devido seria de € 1.652,53 (€ 4.131.328,21 x 1 fração de mês x 0,04%).

6. O pedido de constituição do Tribunal arbitral foi aceite em 04.12.2021 pelo Exm.º Presidente do CAAD e de imediato foi notificado à AT - Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por Requerida).

7. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n. º 1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal arbitral singular, tendo aceitado o encargo nos termos legalmente previstos.

8. Tendo sido notificadas desta designação, as Partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

9.            Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, em 22.06.2021 verificou-se a constituição do Tribunal arbitral.

10.          Em 12.07.2021 foi proferido despacho arbitral para a Exm.ª Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos previstos nas normas do artigo 17.º do RJAT.

11.          Em 30.09.2021, a Requerida veio juntar aos autos a sua resposta, a qual, sem prejuízo de infra se realçarem os seus aspetos fulcrais, se dá aqui por integralmente reproduzida. Em 08.10.2021, a Requerida fez juntar aos autos o processo administrativo (PA).

12.          Na defesa da legalidade do ato de liquidação do imposto do selo, no valor de € 24.787,97, e da sua manutenção na ordem jurídica, a Requerida começa por dar por integralmente reproduzidos os factos integrados no processo administrativo junto aos autos de arbitragem tributária.

13.          A Requerida invocando o normativo do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo e da verba 10 da TGIS conclui que as garantias estão, por regra, sujeitas a imposto do selo, independentemente da sua natureza ou forma, e na constituição da relação jurídica tributária sub judice são fatores determinantes na configuração deste facto tributário o tempo e o valor da garantia.

14.          A Requerida enuncia que o imposto do selo é por natureza um imposto indireto, um imposto de obrigação única, incidindo sobre operações (factos tributários) que se produzem e esgotam de modo instantâneo, ou seja, a tributação faz-se operação a operação e o facto tributário nasce e extingue-se no momento da sua verificação, desde que, obviamente, estejam preenchidos os pressupostos que fazem espoletar a sua sujeição a imposto.

15.          A Requerida considera que, por referência à verba 10 da TGIS, à constituição da garantia está subjacente um facto tributário instantâneo, que motiva o nascimento [e se extingue] da obrigação tributária, como estabelece a alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º do Código do Imposto do Selo, e que a constituição de cada garantia emitida pelo B... a pedido da Requerente constituiu, per se, uma operação de garantia, um facto gerador autónomo que obrigou, por essa razão, o Banco a liquidar Imposto do Selo.

16.          A Requerida refere que a substituição da garantia autónoma inicialmente constituída por outras cinco garantias autónomas, não resultou de qualquer imposição do credor tributário, isto é, da AT, motivada pela desvalorização daquela e que a constituição destas visasse colmatar, não se vislumbrando em lado nenhum que as cinco garantias bancárias autónomas posteriormente constituídas tenham resultado de uma exigência da AT – que nem sequer chegou a ter conhecimento da mesma – motivada por qualquer facto ou causa que afetasse a sua validade, eficácia ou aptidão para cobrir as obrigações fiscais em cobrança coerciva. Ao invés, as cinco garantias bancárias autónomas foram constituídas no único e exclusivo interesse da Recorrente, em função das suas opções de gestão.

17.          Em face da dupla tributação alegada pela Requerente, a Requerida considera que não existe nenhuma situação de dupla tributação sobre a mesma realidade, uma vez que estamos perante fluxos económicos distintos e paralelos, geradores de factos tributários completamente distintos e com valorações tributárias em sede de Imposto do Selo também elas distintas, que resultam do facto de cada garantia constituir “per se” um facto tributário autónomo, um facto tributário distinto, inexistindo entre eles qualquer identidade.

18.          A Requerida considera que a requerente não suportou imposto do selo duas vezes sobre a mesma operação, o que está em causa é que os factos representam operações diferentes, com factos tributários distintos e completamente autónomos entre si, traduzidas na constituição de garantias bancárias autónomas destinadas a suspender cinco processos de execução fiscal.

19.          A propósito da circunstância da AT não ter chegado a ter conhecimento da garantia bancária n.º..., a Requerida explícita que a (in)eficácia não é condição de validade de um qualquer negócio jurídico, e não é pelo facto da AT não ter tido conhecimento da garantia que a mesma fica afastada da sujeição a imposto do selo, pois uma coisa é o preenchimento dos pressupostos que espoletam a obrigação de imposto, que no caso que se aprecia, e sem margem para dúvidas, ocorreram aquando da emissão da garantia bancária autónoma pelo B..., outra coisa é a AT ter rececionado a garantia, ato que nada interfere com a obrigação de liquidar o imposto.

20.          Apelando às normas da alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º e da verba 10 da TGIS, a Requerida enuncia que a lei estabelece como facto tributário a constituição da garantia, reportando-se a obrigação de imposto ao momento em que é gerado o respetivo instrumento ou título, dependendo a taxa a aplicar do tempo de duração da garantia, que é definido no momento da sua emissão, sem prejuízo de eventuais prorrogações.

21.          A Requerida considera que o tempo de duração da garantia tem uma relevância fundamental na determinação da taxa, mas isso não significa que o facto gerador esteja a ele associado, porque a sua produção é determinada por outro fator, que é a constituição da garantia e, por essa razão, não é a consumação de um determinado período de tempo, nem a verificação de uma determinada data do calendário que provocam a produção do facto gerador da obrigação do imposto, porque esse facto é a constituição da garantia. E, assim, a produção do facto gerador é independente do decurso do tempo de vigência da garantia, porque ocorre com a mera constituição desta.

22.          Alega a Requerida que o tempo de vigência da garantia é apenas relevante para a determinação da taxa no momento da sua constituição e não para a emergência da obrigação do imposto e, assim sendo, na configuração do facto tributário, o que releva para a liquidação do imposto não é o tempo que a garantia efetivamente dure, mas a duração temporal prevista no momento da constituição da garantia, ou então no momento da sua prorrogação.

23.          A Requerida considera que o entendimento da Requerente a propósito de uma eventual indexação, no sentido da redução da taxa de imposto ao tempo efetivo por que a garantia perdurou não tem qualquer suporte no texto nem no espírito da lei, devendo por esse motivo ser firmemente afastada.

24.          A Requerida conclui pela legalidade da liquidação de imposto do selo efetuada ao abrigo da verba 10 da TGIS e da do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, nada havendo a anular, devendo, consequentemente, o ato tributário manter-se na ordem jurídica, não havendo, outrossim, lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.

25.          E, consequentemente, a Requerida pugna pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

26.          Em face do conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, por despacho de 17.12.2021, o Tribunal arbitral decidiu: i) Dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT; ii) Determinar que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas, a apresentar pelas Partes no prazo simultâneo de 20 dias, por aplicação conjunta do previsto no artigo 91.º, n.º 5, do CPTA, e no artigo 120.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º do RJAT; iii) Que atenta as circunstâncias do Tribunal Arbitral ter sido constituído em 22.06.2021, e de entre o dia 22 de dezembro de 2021 ao dia 03 de janeiro de 2022 decorrerem as férias judiciais, em ordem à adequada e correta observância do prazo para a produção das alegações das partes, e no sentido de, outrossim, permitir ao Tribunal continuar fazer a análise e estudo da doutrina e da jurisprudência existente sobre a matéria controvertida e, ainda, por forma a obter tempo útil para a prolação da decisão arbitral, o tribunal determinou, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, a prorrogação do prazo para a emissão da decisão arbitral por dois meses, tendo fixado o dia 21.02.2022 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

27.          A Requerente apresentou as alegações em 24.01.2022, as quais se dão aqui por integralmente reproduzidas, sendo que nelas a Requerente reafirma a posição e os argumentos que já havia produzido na petição inicial.

28.          A Requerida, através de requerimento apresentado em 25.01.2022, trouxe aos autos o texto seguinte: “1. Considerando o carácter simultâneo das alegações e não tendo sido suscitada nenhuma questão nova que exija pronúncia, a Requerida, sob pena de incorrer, nesta sede, numa mera repetição inútil, remete e dá por integralmente reproduzido o aduzido em sede de Resposta; 2. Reservando-se, no entanto, o direito de responder a alguma questão nova que venha a ser suscitada nas alegações apresentadas pela Requerente, sob pena de violação do princípio do contraditório”.

 

II.            SANEAMENTO

 

29.          O Tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

30.          O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).

31.          Não existem nulidades nem outros vícios que invalidem o processo e que obstem ao conhecimento e apreciação do mérito do pedido.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

III.1.1 Factos provados

32.          Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que importam à decisão e determinar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo a obrigação de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi dos normativos das alíneas a) e e), do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

33.          Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, pelo que, atendendo às posições assumidas pelas partes nos articulados e nos diversos elementos documentais que integram o processo arbitral, o Tribunal destaca os elementos factuais infra descritos que, não tendo sido contestados pelas Partes, se consideram provados:

33.1       A pedido da Requerente, em 20.12.2017, o B..., SA., procedeu à emissão da garantia bancária n.º ..., no valor de € 4.131.328,21.

33.2       Conforme se pode verificar através do respetivo texto, a garantia bancária n.º ... tinha por finalidade garantir, nos termos dos artigos 169.º e 199.º do CPPT, a suspensão dos processos de execução fiscal n.ºs ...2017..., ...2017..., ...2017..., ...2017... e ...2017..., instaurados conta a executada A..., SA, com vista à cobrança coerciva de imposto sobre o valor acrescentado e juros compensatórios eferentes a períodos de tributação do ano de 2013.

33.3       Através da análise casuística do texto de cada uma das cinco garantias, emitidas em 26.12.2017, pelo B..., SA., verifica-se que a garantia bancária n.º ..., no valor de € 1.515.129,35, teve por finalidade garantir a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2017...; a garantia n.º..., no valor de € 889.307,41, teve por finalidade garantir a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2017...; a garantia n.º..., no valor de € 1.267.370,04, teve por finalidade garantir a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2017...; a garantia n.º..., no valor de € 292.138,11, teve por finalidade garantir a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2017...; e a garantia n.º..., no valor de € 167.383,30, teve por finalidade garantir a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2017... .

33.4       O imposto do selo, no valor de € 24.787,97, foi entregue nos cofres do Estado através da guia IS n.º ..., datada de 20.01.2018.

33.5       Em 22.12.2017, a Requerente solicitou ao B... a substituição da garantia bancária n.º..., no valor de € 4.131.328,21, por cinco garantias bancárias, com o valor individual acima descrito, a fim de cada garantia, per se, permitir a suspensão de um processo de execução fiscal.

33.6       Em 27.12.2017, o B..., SA., através de comunicação, referência..., comunicou à Requerente o cancelamento da garantia bancária n.º..., no valor de € 4.131.328,21.

33.7       A garantia bancária n.º..., no valor de € 4.131.328,21, não foi apresentada nos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira.

33.8       Em 21.08.2018, a Requerente apresentou no Serviço de Finanças Lisboa..., reclamação graciosa deduzida, nos termos do artigo 68.º e seguintes do CPPT, contra a liquidação de imposto do selo, no valor de € 24.787,97.

33.9       A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 27.12.2018, do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC, notificado à Requerente através do ofício n.º..., de 28.12.2018, da UGC.

33.10     Em 30.01.2019, a Requerente apresentou no Serviço de Finanças de Lisboa ..., recurso hierárquico contra o despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa n.º ...2018..., identificado no ponto anterior.

33.11     O recurso hierárquico n.º ...2019... foi indeferido por despacho de em 23.12.2020, proferido pela Diretora de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, do Imposto Único de Circulação e das Contribuições Especiais, ao abrigo de Subdelegação de competências.

33.12     O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 09.04.2021 e a constituição do Tribunal Arbitral ocorreu em 22.06.2021.

 

III.1.2 Factos não provados

 

34.          Os factos provados baseiam-se nos documentos apresentados pelas Partes e juntos ao processo arbitral, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.2 MATÉRIA DE DIREITO

 

35.          Em face do pedido de pronúncia arbitral, a questão de direito que importa decidir é a de determinar se a liquidação de imposto do selo inerente à garantia bancária n.º..., emitida pelo B..., SA, em 20 de dezembro de 2017, enferma do vício de ilegalidade, tal como vem arguido pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral ou se, pelo contrário, tal com defende a Requerida, o ato de liquidação de imposto do selo em causa não padece de qualquer invalidade.

36.          Importa, portanto, em termos de incidência objetiva e subjetiva em sede de imposto do selo, cuidar do enquadramento normativo aplicável e, outrossim, avaliar a expressão jurídica atribuível ao título de garantia bancária n.º..., no valor de € 4.131.328,21, emitida pelo B..., SA., em 20 de dezembro de 2017.

37.          A norma do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS) estabelece que “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”. E, por sua vez, as normas da verba 10 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), no tocante à determinação da taxa aplicável às garantias em função do seu prazo de validade, prescrevem que as “(…) Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro-caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente - sobre o respetivo valor, em função do prazo, considerando-se sempre como nova operação a prorrogação do prazo do contrato:

10.1 Garantias de prazo inferior a um ano - por cada mês ou fração 0,04%          

10.2 Garantias de prazo igual ou superior a um ano 0,5%

10.3 Garantias sem prazo ou de prazo igual ou superior a cinco anos 0,6%.”.

38. A Requerente solicitou ao B..., SA., a emissão de uma garantia bancária no valor de € 4.131.328,21, com o objetivo de obter, nos termos dos artigos 169.º e 199.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, a suspensão de cinco processos de execução fiscal contra si instaurados com vista à cobrança coerciva de imposto sobre o valor acrescentado relativo a períodos de tributação do ano de 2013.

39. Em face da norma do n.º 1 do artigo 199.º do CPPT, a garantia bancária é um dos tipos de garantias consideradas idóneas para efeitos de constituição/prestação no âmbito do processo de execução fiscal, em ordem a obter a suspensão da normal tramitação da execução fiscal, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 52.º da Lei Geral Tributária e do n.º 1 do artigo 169.º do CPPT.

40. Todavia, as garantias têm de ser constituídas/prestadas no prazo e nos termos prescritos nos n.ºs 6 e 7 do artigo 199.º e dos n.ºs 7 a 9 do artigo 169.º, todos do CPPT, sob pena da garantia não ser considerada idónea e o órgão da execução fiscal proceder à penhora de bens de que o executado seja titular. Verifica-se, portanto, que é indispensável a apresentação da garantia por parte do devedor e a sua aceitação por parte do órgão da execução fiscal, sob pena da execução fiscal prosseguir a sua normal tramitação.

41. Atento o prazo de validade atribuído à garantia n.º..., em face da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS, aquando da emissão da garantia bancária, o B..., SA., procedeu à liquidação do imposto do selo aplicando ao valor da garantia a taxa de 0,6%, o que determinou a liquidação no valor de € 24.787,97 (€ 4.131.328,21 x 0,6% = € 24.787,97).

42. Todavia, a garantia bancária n.º..., no valor de € 4.131.328,21, não foi apresentada nos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, a ora Requerida e, em 27 de dezembro de 2021, foi cancelada pelo B..., SA., em execução de pedido apresentado, por escrito, pela Requerente e, outrossim, solicitou a emissão de cinco garantias, com valores parciais, com vista a obter a suspensão dos processos de execução fiscal contra si instaurados e a correr termos no Serviço de Fianças de Lisboa ... .

43. Embora o contrato de garantia bancária seja um contrato atípico é consensual que tem de ser outorgado através de documento escrito e, no caso particular da Autoridade Tributária e Aduaneira, as garantias bancárias a constituir/prestar com vista a obter a suspensão dos processos de execução fiscal têm de observar os exatos termos prescritos nos normativos dos artigos 52.º da LGT e dos artigos 169.º e 199.º do CPPT, sendo indispensável a aferição destes termos por parte do órgão da execução fiscal no sentido de avaliar da idoneidade da garantia prestada, o que inquestionavelmente exige a apresentação da garantia bancária perante o respetivo beneficiário, in casu, a AT e esta através de ato expresso ou tácito efetuar a aceitação da garantia.

44. A circunstância de, por força das normas de incidência objetiva e subjetiva, a liquidação do imposto do selo se processar aquando da emissão do título da garantia bancária não permite concluir que o facto tributário ocorre de forma instantânea nesta data e que é absolutamente irrelevante o ato de aceitação da garantia por parte do respetivo beneficiário.

45. Há que considerar que a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º do CIS estabelece que a obrigação tributária considera-se constituída, nos atos e nos contratos, no momento da assinatura pelos outorgantes, pelo que sendo o contrato de garantia um contrato tripartido, em que intervém o garante, o garantido e o beneficiário, o contrato de garantia só está apto a produzir efeitos jurídicos após a efetiva aceitação, ainda que tácita, por parte do beneficiário da garantia, logo há que concluir que só após este momento é que se pode considerar consolidado na ordem jurídica o facto tributário, sob pena de se verificar a sujeição a tributação de um documento inútil, ineficaz e destituído de qualquer efeito jurídico.

46. Importa, assim, tendo por base o ordenamento jurídico vigente proceder à caracterização jurídica do contrato de garantia bancária autónoma. Na verdade, as garantias bancárias autónomas são garantias pessoais prestadas por bancos. No âmbito dos negócios e comércio jurídico este tipo de garantia pessoal tem vindo a assumir especial desenvolvimento. Esta garantia ocorre quando determinada instituição bancária ou financeira aceita garantir pessoalmente a satisfação de uma obrigação assumida por terceiro, independentemente da validade ou eficácia desta obrigação e dos meios de defesa que a ela possam ser opostos, assegurando, assim, que o credor obterá sempre o resultado do recebimento da prestação de que é titular.

47. A garantia autónoma é, no essencial, um contrato celebrado com o interessado – o mandante – e o garante, a favor de um terceiro – o beneficiário. A garantia autónoma é configurada como um contrato celebrado entre o garante e o beneficiário, porém, é do mandante que o garante recebe a comissão. Na garantia o garante obriga-se a pagar ao beneficiário uma determinada importância, isto é, o garante pagará ao beneficiário determinada importância, assim que este lha peça. As partes podem, porém, acordar se a garantia é automática, isto é, verdadeiramente a mera solicitação ou automática ou se, pelo contrário, o garante deve fazer verificação e qual a sua extensão (não automática). Na garantia à primeira solicitação, as partes estipulam ainda que o garante não oporá qualquer exceção às exigências da garantia, mas antes a satisfará imediatamente sem discussão logo que tal seja solicitado pelo credor, desde que naturalmente estejam a ser respeitados os termos estipulados para a exigência da garantia.

48. É a partir do texto da garantia que se pode apreender a sua finalidade e alcance. Todavia, toda a garantia autónoma comporta alguns traços essenciais que surgem, de modo pacífico, na doutrina e na jurisprudência. Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as exceções literais que constem do próprio texto da garantia. Nunca as derivadas da relação principal, cabendo ao beneficiário demonstrar que a garantia invocada se reporta a determinada obrigação ou dívida.

49. Basicamente, a função da garantia autónoma não é assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da garantia, uma determinada quantia em dinheiro. Perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá vir esgrimir com argumentos retirados do contrato principal, porquanto, a garantia tem fins próprios, autossuficientes, servindo como um simples sucedâneo de um depósito em dinheiro. A garantia autónoma tem ainda outras finalidades, na medida em que dá credibilidade ao mandante e estabelece segurança entre as partes nos negócios ou relações jurídicas. No comércio jurídico, muitas vezes, as partes não se conhecem e a circunstância de surgir uma instituição bancária reconhecida que se responsabiliza pelo cumprimento da obrigação introduz tranquilidade e confiança e sossega mutuamente as partes. Um segundo aspeto, acessório, mas importante, tem a ver com o papel financeiro das garantias, uma vez que, por via da garantia, o garante concede fundos ao mandante, entregando-os diretamente ao beneficiário.

50. A garantia autónoma é um negócio jurídico que requer uma série de cuidados por parte dos intervenientes. O mandante vê-lhe escapar o controlo do pagamento, ele pode ter de assistir, impotente, ao pagamento, pelo garante, de uma quantia que ele poderia reter e que, depois, terá de reembolsar, com juros e comissões, ao próprio garante. Por seu turno, o garante assume uma responsabilidade que terá de honrar, mesmo quando descubra que o mandante não oferece a necessária confiança. Daí que, em regra, a garantia autónoma é prestada mediante contragarantias idóneas ou através de esquemas que tornem comportável o risco que representa.

51. Por sua vez, o beneficiário da garantia, isto é, o credor da obrigação, também tem uma intervenção ativa na definição da garantia, porquanto, pode fazer depender a sua receção da circunstância da garantia observar as condições legais prescritas, em ordem a que os termos da garantia possam dar cobertura aos fins a que propõe.

52. O contrato de garantia não está tipificado na lei, antes resulta do princípio da autonomia privada (art.º 405.º do Código Civil). No comércio jurídico tornou-se frequente a prestação de uma garantia que em vez de ser acessória, fosse autónoma, ou seja, que não tivesse a sua prestação dependente da obrigação principal.

53. A garantia autónoma tem natureza contratual, sendo um negócio causal na medida em que comporta em si mesma uma função económico-social própria, traduzida na função de garantia. O garante não promete o resultado da prestação a título principal, mas sim um resultado indireto, no caso de não se verificar o cumprimento por parte do devedor principal. Na garantia autónoma a obrigação do garante não se molda sobre a obrigação principal, quer quanto ao seu objeto, quer quanto aos pressupostos da sua exigibilidade, ela represente uma obrigação própria e autónoma em tudo distinta da obrigação do devedor.

54. Configurando um negócio atípico, o contrato de garantia autónoma não tem exigências de forma legalmente estabelecidas. Todavia, atento o risco que a garantia autónoma envolve parece não ser admissível a mera aplicação da regra da liberdade de forma prevista no artigo 219.º do Código Civil, sendo essencial a elaboração de um documento escrito para assegurar a ponderação da decisão vinculada do garante aos termos da garantia autónoma. Outrossim, constitui elemento do contrato de garantia a sua aceitação por parte do beneficiário, podendo esta ser meramente tácita (cfr. art.ºs 217.º e 234.º do Código Civil).

55. Nas palavras de Luís Menezes Leitão , na garantia autónoma institui-se uma relação triangular, em que é possível distinguir uma relação de cobertura, entre o garantido, dador da ordem, e o garante, no âmbito da qual este se compromete, normalmente mediante remuneração, a prestar a garantia; uma relação de atribuição, entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia, que justifica a sua concessão, e, ainda, uma relação de execução, entre o garante e o beneficiário da garantia, que consiste precisamente na prestação da garantia.

56. No âmbito da relação de cobertura, há um compromisso entre o garante e o garantido pelo qual aquele se compromete a emitir uma garantia a favor da pessoa que venha a ser designada por este, exigindo como contrapartida o pagamento de uma comissão, ao mesmo tempo que o garantido se compromete, além de pagar essa comissão, a reembolsar imediatamente o garante, caso este venha a ter que efetivamente que efetuar ao beneficiário da garantia a prestação a que se comprometeu.

57. No âmbito da relação de atribuição, existe um negócio específico entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia, que justifica que a garantia venha a ser prestada.

58. E, por fim, na relação de execução, o garante vincula-se a prestar ao beneficiário a garantia nos termos exatos em que se obrigou perante o dador da ordem. Estamos aqui perante um verdadeiro contrato, uma vez que se exige a aceitação do beneficiário, ainda que esta possa ser tácita nos termos previstos no artigo 217.º do Código Civil. Todavia, o contrato é de cariz unilateral ou não sinalagmático por criar apenas obrigações para o garante.

59. Perante a caracterização da relação triangular emergente da prestação de uma garantia autónoma, importa desde já concluir que uma garantia bancária autónoma que não chegou a ser apresentada ao seu beneficiário e, logo, não foi aceite por este não reúne as condições necessárias a produzir os efeitos jurídicos emergentes da relação de atribuição e da relação de execução, estando, consequentemente, prejudicada a sua função de garantia. Com efeito, a garantia autónoma pressupõe três relações contratuais entre sujeitos diversos. O contrato principal, ou seja, aquele donde decorrem as obrigações garantidas (para este efeito é irrelevante que as dívidas tributárias não sejam emergentes de uma relação contratual) e que é concluído entre o credor garantido e o devedor/ordenante. O contrato entre o devedor e o garante, em regra um banco, pelo qual este último se vincula, mediante uma remuneração (comissão de banco), a celebrar com o credor o contrato de garantia autónoma. E, por fim, o contrato de garantia autónoma em si, celebrado entre o banco/garante e o credor/beneficiário do qual decorre a obrigação autónoma.

60. O título de emissão de garantia bancária autónoma que não tenha obtido a expressão jurídica decorrente desta tripla relação contratual entre garante, ordenante e beneficiário, não assumiu a função de garantia e, consequentemente, traduziu-se numa declaração negocial inapta a produzir os respetivos efeitos jurídicos, tanto mais que os efeitos decorrentes da relação de atribuição e de execução só se podem produzir na esfera jurídica do beneficiário. Ora, na situação sub judice o beneficiário da garantia foi absolutamente estranho ou alheio à emissão do título da garantia bancária e não foi chamado a efetuar a receção da garantia que determinou a liquidação de imposto do selo em crise.

61. Nesta medida, perante o cancelamento da garantia bancária n.º ... a pedido da Requerente, e a circunstância da mesma não ter sido apresentada nos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, e, assim, não ter ocorrido por parte do beneficiário o respetivo ato de aceitação, ato determinante para a outorga e consolidação da relação contratual emergente do contrato de garantia bancária, o referido título de garantia não adquiriu a função de garantia. Consequentemente, não se verificou a consolidação do facto tributário na ordem jurídica, aliás, este não chegou a ocorrer, porquanto, o contrato de garantia não foi outorgado por todos os intervenientes e, assim sendo, estamos perante uma situação de inexistência de facto tributário, razão pela qual não há lugar à exigibilidade de qualquer imposto do selo em relação à garantia n.º ..., a qual não se consolidou na ordem jurídica por efeito do seu cancelamento e, designadamente, por não ter sido alvo de aceitação por parte do seu beneficiário.

62. Em face de todo o exposto, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se a liquidação de imposto do selo, no valor de € 24.787,97, referente ao período de tributação do mês de dezembro ano de 2017 e supra melhor identificado.

 

IV.          JUROS INDEMNIZATÓRIOS

63. Conjuntamente com a anulação do Imposto do selo integrado no período de tributação do mês de dezembro do ano de 2017, a Requerente pede que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

64. Nos termos da norma do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."

65. Há que referir que, em face da norma do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral, pelo que, assim, importa conhecer do pedido, sendo que o direito a juros indemnizatórios pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal pagamento indevido derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

66. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT], o qual estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

67. Embora as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT utilizem a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

68. O processo de impugnação judicial, incluindo por via arbitral, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

69. In casu, o ato de liquidação do imposto do selo foi efetuado ao abrigo da figura da substituição tributária e entregue nos cofres do Estado pela Instituição de Crédito (B..., SA.) que procedeu à emissão da garantia bancária n.º ... a pedido da Requerente, pelo que, neste caso, não é possível imputar qualquer tipo de erro aos serviços da AT na efetivação do ato de liquidação do imposto do selo alvo do presente pedido arbitral.

70. Porém, na sequência da dedução da reclamação graciosa contra o ato de liquidação de imposto do selo, no valor de € 24.787,97, supra identificado, e agora objeto do presente processo arbitral, em face das alegações produzidas pela Requerente no procedimento de reclamação graciosa, processo n.º ...2018..., a Autoridade Tributária e Aduaneira teve a oportunidade de proceder à análise e avaliação da matéria controvertida e podia ter efetuado o correto enquadramento jurídico-tributário dos factos e, consequentemente, ter efetuado a plena reconstituição da legalidade do ato tributário ou da situação objeto do litígio. Assim, não o tendo feito, a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa há lugar à imputação de erro aos serviços da AT.

71.          Deste modo, e na linha da jurisprudência constante dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) proferidos no processo n.º 0926/17, de 06.12.2017, e no processo n.º 0250/17, de 03.05.2018, deve, nos termos do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do CPPT, a Autoridade Tributária Aduaneira proceder ao pagamento à Requerente de juros indemnizatórios à taxa legal, em relação ao ato de liquidação de imposto do selo no valor de € 24.787,97, desde a data do despacho de indeferimento da reclamação graciosa até à data do processamento da respetiva nota de crédito (n.º 5 do art.º 61.º do CPPT).

 

V.           DECISÃO

Nestes termos, o Tribunal arbitral decide:

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b) Anular o ato de liquidação de imposto do selo efetuado ao abrigo da figura da substituição tributária pelo B..., SA., no valor de € 24.787,97, e entregue nos cofres do Estado através da guia de IS n.º..., de 22.01.2018.

c) Anular o despacho de 23.12.2020, proferido no recurso hierárquico a que foi atribuído o número de processo ...2019... .

d) Julgar procedente o pedido de restituição de imposto do selo, no valor de € 24.787,97 e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios, à taxa legal, desde a data de indeferimento da reclamação graciosa (27.12.2018) e até à emissão da nota de crédito.

 

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 24.787,97 (vinte e quatro mil setecentos e oitenta e sete euros e noventa e sete cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).

 

CUSTAS

O valor das custas é fixado em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 5 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de fevereiro de 2022

 

O Árbitro

Jesuíno Alcântara Martins