Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 200/2021-T
Data da decisão: 2021-12-10  IRS  
Valor do pedido: € 895.118,11
Tema: IRS (mais-valias) – valor de aquisição de ações doadas.
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SUMÁRIO:

1 - O valor de aquisição, relevante para efeitos de IRS (mais-valias), de ações representativas do capital de uma sociedade, adquiridas por doação, sem cotação em mercado oficial na data da doação ou em qualquer dia dos seis meses anteriores e com valor nominal superior a 500 euros, determina-se por aplicação da fórmula prevista no art. 15º, n.º 3, do CIS.

2- Cabe à AT a prova do valor da cotação em mercado oficial das ações, quando a ele pretenda recorrer para quantificar tal “valor de aquisição”.

 

DECISÃO ARBITRAL

A..., NIF..., e B..., NIF..., casados, residentes em ... n.º ..., ..., ..., ...-... Lisboa, apresentaram, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

 

A             O pedido

 

Os Requerentes pedem: (i) a anulação da liquidação de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2016 e (ii) das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.º 2020 ... e n.º 2020..., das quais resultou o valor global de € 936.485,80; (iii) da demonstração de acerto de contas n.º 2020 ... da qual resultou o valor global a pagar de € 895.118,11, por dedução do valor já pago pelos Requerentes (€ 41.367,69).

Tais liquidações foram parcialmente revogadas pela Requerida, tendo, em sua substituição, sido emitidas: (i) liquidação de imposto com o n.º 2021...; (ii) liquidação de juros 2021..., das quais resultou o valor global de € 895.390,24; (iii) “acerto de contas” 2021 ..., do qual resultou o valor global a pagar de € 854.022,55 (€ 895.390,24 - € 41.367,69).

 

B             Posição das partes

 

Está em causa a determinação, para efeito do cálculo da mais-valia obtida aquando da sua alienação, do valor de aquisição de 44.000 ações, representativas do capital da sociedade C..., SGPS, que o Requerente havia adquirido por doação feita pelo seu pai.

Os Requerentes entendem que tal valor (que computaram em € 3.203.200,00) deve ser apurado nos termos do nº 3 artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, aplicável por remissão do artigo 45.º do Código do IRS.

Imputam às liquidações impugnadas os seguintes vícios de ilegalidade:

i               Terem sido emitidas e notificadas aos Requerentes no final do ano de 2020, depois de findo o prazo de caducidade de três anos consagrado no n.º 2 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária;

ii              Violação do regime de anulação de atos administrativos constitutivos de direitos consagrado no n.º 2 do artigo 168.º do Código do Procedimento Administrativo;

iii             Assentarem numa correção ao valor de aquisição que viola o disposto no artigo 45.º do Código do IRS e no artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, porque o valor relevante não é o valor nominal dos títulos recebidos, como erradamente entendeu a Administração Tributária;

iv            Subsidiariamente, entendem que as liquidações de juros compensatórios são ilegais, porque não se verificam os pressupostos da sua emissão.

 

Por seu lado, a Requerida, na sua resposta, conclui pela improcedência das exceções e, no mais, pela legalidade das liquidações impugnadas, sustentando, no essencial, o seguinte (transcrevemos da resposta): de acordo com os elementos inscritos na declaração modelo 1 de IS (cf. documento 10), o número de ações transmitidas foi de 44.000 ações, com o valor de cotação das ações de € 10 cada; ou seja, de acordo com os elementos inscritos naquela declaração, o valor de cotação de cada ação é de €10,00; o valor que serviria de base à liquidação do IS se esta tivesse tido lugar seria o valor de € 440.000,00; os requerentes pugnam pela aplicação da fórmula prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do CI.; Porém, esta fórmula tem em consideração “o valor de balanço da sociedade a que respeitam as ações com o resultado dessa sociedade nos últimos dois exercícios”, pelo que só se aplica nos casos em que as ações não têm cotação, o que não é o caso, pois que os requerentes declararam na modelo 1 de IS um valor de cotação por ação.

 

 

C             Tramitação processual

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 08/04/2020, tendo sido automaticamente notificado à AT.

Os Requerentes optaram por designar árbitro, tendo indicado para exercer tais funções o Sr. Prof. Doutor Rui Medeiros. A Requerida indicou, para exercer idênticas funções, a Sra. Dr.ª Sofia Ricardo Borges. Estes, por consenso, indicaram para árbitro presidente o Sr. Prof. Doutor Rui Duarte Morais.

Os árbitros designados aceitaram tempestivamente as nomeações, que não foram objeto de oposição

O tribunal arbitral ficou constituído em 16/07/2021.

Em 22/07/2021 os Requerentes vieram aos autos informar que a AT havia revogado parcialmente as liquidações objeto do presente processo, na parte relativa a juros compensatórios referentes ao período posterior a 18 de maio de 2018, reafirmando o seu interesse no prosseguimento da lide relativamente à parte das liquidações impugnadas não revogada.

Em 23/09/2021, os Requerentes vieram aos autos informar que, em consequência da referida revogação parcial, as primitivas liquidações haviam sido substituídas pelas liquidações já supra indicadas, solicitando que passassem estas a ser o objeto do processo.

A Requerida apresentou tempestivamente resposta, na qual sustenta a legalidade das liquidações impugnadas, com argumentos que, no essencial, já se deixaram reproduzidos. Em tal articulado, aceitou expressamente que o objeto do processo passasse a ser constituído pelas liquidações substitutivas das que, inicialmente, haviam sido impugnadas. Juntou aos autos o PA.

Por despacho arbitral de 15/10/2021, foram os Requerentes notificados para, querendo, esclarecerem o constante do seu requerimento inicial no tocante à existência de cotação oficial das ações da sociedade C..., SGPS, tendo estes apresentado requerimento em que afirmam que “as ações da sociedade C... SGPS, SA “não tinham cotação em mercado oficial à data em que lhes foram transmitidas por doação (30 de novembro de 2015), nem nos seis meses anteriores a esta data.”

Notificada para exercer o seu direito ao contraditório, a Requerida veio pronunciar-se no sentido de que “não pode uma simples afirmação, de resto instada pelo Tribunal, e destituída de qualquer elemento de prova, mostrar-se bastante para contrariar quanto os [A] haviam declarado até agora e se mostra provado nos autos”, acrescentando que, “de acordo com os elementos inscritos pelos próprios, na declaração modelo 1 IS (cf. Documento 10), o número de ações transmitidas foi de 44.000 ações, com o valor de cotação das ações de € 10,00 cada” e que, assim, “o valor de aquisição considerado foi o declarado pelos A e constante do sistema informático da AT, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRS, (…) dando-lhes a possibilidade de exercer o direito de audição prévia e contrapor o projecto de correcções (…) alterando o valor de aquisição das acções alienadas.” A Requerida referiu ainda que “em sede de direito de audição nada foi aduzido que contrariasse o projecto de correcções (…) pelo que a AT sempre estava obrigada a proceder à correcção da declaração de rendimentos, de acordo com a informação disponível e constante da declaração Modelo 1 – IS.” e que “De igual modo, no pedido de pronúncia arbitral, os A mantêm quanto haviam declarado na declaração modelo 1 de IS.”

Por despacho arbitral de 13/11/2021, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT e não haver lugar à produção de alegações, por manifestamente desnecessárias. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.

 

II - SANEAMENTO

 O Tribunal encontra-se regularmente constituído, é competente e a ação é tempestiva. O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não há exceções de que cumpra conhecer.

 

 

III – PROVA

 

A             Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos.

a) O primeiro Requerente -A...– constituiu, com os demais sócios, em 2009, a C..., SGPS S.A., sociedade com o capital social de 4 milhões de euros, representado por 400 mil ações no valor nominal de €10,00 cada, independentemente da respetiva categoria, divididas em duas categorias, a saber Tipo A - ações ordinárias com direito de voto e Tipo B - ações preferenciais sem voto, no qual o primeiro Requerente subscreveu, por € 500.000,00, 50.000 ações da Categoria A e assumiu as funções de Vogal do Conselho de Administração para o triénio 2009-2011;

b) Já sócio da sociedade, o primeiro Requerente adquiriu mais ações representativas do capital social da mesma, conforme cinco contratos de compra e venda de ações, todos e cada um deles com diferentes acionistas, sempre com o preço de € 10,00 (dez euros) por cada ação. Concretamente, um primeiro contrato em dezembro de 2011, em que adquiriu 1.000 (mil) ações (Tipo B), e quatro outros em outubro de 2015, em que adquiriu, respetivamente, 1.000 (mil) (Tipo B), 1.000 (mil) (Tipo B), 21.000 (vinte e uma mil) (sendo 7.000 Tipo A e 14.000 Tipo B), e 20.000 (vinte mil) (sendo 7.000 Tipo A e 13.000 Tipo B) ações;

c) Em novembro de 2015 o Requerente adquiriu por doação, de seu Pai, 44.000 ações;

d) O valor nominal unitário de tais ações era de 10 euros;

e) Tal doação foi declarada à AT nos termos legais aplicáveis;

f) Em 7 de abril de 2016, o Requerente vendeu à sociedade D..., S.A., todas as ações da C... que então detinha, incluindo as referidas nas alíneas anteriores, no total de 133.000 ações, das quais 76.250 da Categoria A e 56.750 da Categoria B;

g)  O preço tinha duas componentes: um valor fixo (“The price of shares”) e valores adicionais que seriam devidos se aplicável (“The additional price of shares, if applicable”), entre 2016 e 2019, consoante o lucro obtido pela sociedade em tais exercícios;

h) O preço de venda inicial (“The Price of shares”) foi calculado tendo em consideração, entre o mais, o valor de passivo líquido da sociedade a 31 de Dezembro de 2015, a saber € 3.512.000,00 (três milhões quinhentos e doze mil euros), e foi de cerca de € 17,13 por ação.

i) Os Requerentes apresentaram, a 30 de Maio de 2017, a declaração de rendimentos, para efeitos de IRS, relativa ao ano de 2016, tendo indicado, no respetivo quadro do anexo G (mais-valias), como valor de aquisição das ações adquiridas por doação um montante apurado nos termos do nº 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, que consideraram aplicável por remissão do artigo 45.º do Código do IRS, o qual computaram em € 3.203.200,00, e como valor de aquisição das demais ações € 450.000,00 e € 440.000,00, respetivamente relativos às ações subscritas inicialmente e às ações adquiridas por contratos de compra e venda (cfr. supra);

j) Posteriormente, em função dos recebimentos dos valores adicionais referidos em g), os Requerentes submeteram sete declarações de substituição, sempre relativas ao ano de 2016, alterando sucessivamente o valor de realização, em resultado do pagamento das diversas prestações do preço adicional, mantendo inalterado o valor de aquisição dos títulos ora em causa e dos demais;

k) Tais declarações de substituição originaram procedimentos de verificação por divergências, os quais abrangeram quer os valores de realização das ações ora em causa, quer o seu valor aquisição;

l) Relativamente, pelo menos, à declaração apresentada em 14 de julho de 2017, os Requerentes foram notificados para apresentar todos os elementos relativos ao valor de aquisição das participações sociais, incluindo: (i) a escritura de constituição da sociedade; (ii) os contratos de compra de ações; (iii) o contrato de doação; e (iv) a comunicação da doação à Administração Tributária com todos os elementos necessários à respetiva avaliação, incluindo os relatórios e contas da C... nos exercícios anteriores à doação. O que fizeram a 18 de maio de 2018;

m) Na sequência, a Administração Tributária solicitou por e-mail aos Requerentes que corrigissem o quadro 10 do anexo B, “mantendo tudo o resto inalterado”;

n) Em 9 de julho de 2018, a Administração Tributária informou por e-mail os Requerentes que: “O Sistema abriu automaticamente uma nova divergência, a qual foi agora manualmente sanada, uma vez que a análise estava feita e se tinha concluído que a sua (última) declaração estava justificada e por isso mesmo correta” e que “em princípio está tudo resolvido”;

o) No âmbito do procedimento de análise da declaração apresentada em 20 de janeiro de 2019, a Administração Tributária notificou os Requerentes do seguinte: “Da análise efetuada aos documentos/alegações apresentados relativamente à notificação das divergências identificadas na declaração de rendimentos Modelo 3 do ano de 2016 com a identificação ..., informa-se que se encontram devidamente esclarecidas as questões submetidas a apreciação, pelo que se procederá de imediato ao encerramento do processo e consequente desbloqueio da sua declaração de IRS”;

p) Em 16 de novembro de 2020, no âmbito do procedimento de verificação da última declaração de substituição, apresentada em 29 de julho de 2019, os Serviços notificaram os requerentes do seguinte: “No seguimento da submissão da declaração de substituição Modelo 3 – IRS 2016, com a identificação ..., em 2019/07/29, verificou-se a reabertura das divergências com os códigos D09 (Os rendimentos de incrementos patrimoniais são inferiores aos conhecidos) e D14 (As retenções de rendimentos de incrementos patrimoniais declaradas são superiores às conhecidas), bem como à identificação do novo código D36 (Retenções na finte efetuadas por contribuinte falecido, com atividade cessada ou incumpridor), pelo que se procedeu à reanálise dos elementos declarados. Assim, os sujeitos passivos ficam informados que a presente notificação substitui a notificação anteriormente remetida, com o registo DF LISBOA ..., de 8 de maio de 2018, a qual fica sem efeito, sendo-lhes dado a conhecer o novo projeto de correções, para exercício do direito de audição prévia de acordo com o artigo 60.º da Lei Geral Tributária”. “(…) a justificação apresentada vem na sequência do histórico das declarações (…) e respectivas justificações apresentadas, para as divergências com os códigos D09 e D14 que reabriram sucessivamente. Contudo, a documentação que consta em anexo às justificações apresentadas, referem-se apenas aos valores inscritos no Quadro 10 do Anexo G, correspondendo à divergência com o código D14. Assim, havendo necessidade de comprovar os valores declarados no Quadro 9 do mesmo anexo, (…) procedeu-se ao contacto (…) do SPA, no sentido de apresentar a documentação comprovativa dos valores declarados nos Quadros 9 e 10 – Anexo G, (…) veio apresentar os documentos solicitados, (…), sendo que, da análise efectuada aos mesmos, bem como da consulta aos elementos constantes do sistema informático da AT, constataram-se incorrecções, (…).” / “(…) constataram-se incorrecções nos montantes declarados, pelo que se propõe a seguinte correcção: (…)”;

q) Em tal projeto de correções e, depois, na decisão final do procedimento, a AT não aceitou o valor de aquisição declarado, por entender que, nos termos previstos no artigo 45.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, o valor relevante não é o montante apurado por aplicação da fórmula consagrada no artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto do Selo, mas sim o valor das ações adquiridas a título gratuito e que consta da participação da transmissão gratuita (valor que serviria de base à liquidação do Imposto do Selo);

r) Com base neste entendimento, a AT corrigiu o valor de aquisição das quarenta e quatro mil ações doadas ao Requerente para € 440.000,00 (em lugar dos € 3.203.200,00 por estes apurados), tendo procedido às liquidações ora impugnadas.

s) Na declaração relativa à doação das ações em causa (Imposto do selo –Participação de transmissões gratuitas – Modelo 1), apresentada em 02-05-2016 pelo ora Requerente, consta:

(…)

 (verba 1):

7 – capital social - € 4.000.000

8 – capital social transmitido –  € 440.000

9- nº de ações transmitidas – 44.000

10- valor de cotação –  € 10 (VN),

e no Quadro VI – Documentos Anexos à Participação, assinalado, entre outros, o Campo “Certidão da CMVM/IGCP”;

t) Não houve lugar a liquidação de imposto do selo em razão desta doação por força da isenção decorrente da relação de parentesco entre doador e donatário (pai e filho).

 

Os factos dados por provados resultam de documentos juntos aos autos, não tendo sido objeto de impugnação por qualquer das partes.

 

 

B             Factos não provados

 

Não ficou provado que as ações da sociedade C..., SGPS, tivessem tido cotação, em mercado regulamentado, quer na data em que aconteceu a doação em causa neste processo, quer em qualquer um dos dias dos seis meses anteriores.

 

 

IV - O Direito

 

A             Caducidade do direito à liquidação

 

Os Requerentes defendem ser aplicável o prazo de caducidade de três anos previsto no n.º 2 do artigo 45º da LGT: No caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos. Estando em causa uma liquidação relativa ao ano de 2016 e tendo as (primitivas) liquidações sido emitidas e notificadas em novembro de 2020, concluem que tal prazo teria sido ultrapassado.

Na sua resposta, a Requerida sustenta (transcrevemos): a análise da(s) declaração(s) de rendimentos, [nem] sequer evidencia qualquer erro, designadamente, qualquer divergência entre o declarado e a vontade real do sujeito passivo; ainda que se concluísse, o que não se concede, pela existência de erro na declaração, o mesmo não poderia ter-se como erro nela evidenciado, já que a sua correção não passaria pela mera análise dessa declaração, face aos elementos dela constantes, mas antes pelo confronto com elementos exteriores à declaração, como de resto se veio a verificar.

O Tribunal considera que assiste razão à Requerida. Não está em causa um qualquer erro na declaração (nas declarações) de rendimentos apresentada pelos Requerentes. Estes declararam (em todas elas) o (mesmo) valor de aquisição das ações doadas que consideram aplicável, entendimento esse que continuam a sustentar nos presentes autos,

O que declararam correspondia e continua a corresponder à sua vontade, não existe pois qualquer divergência entre a sua declaração e a sua vontade.

Não está em causa uma declaração viciada, mas sim uma divergência entre as partes quanto à lei aplicável, o que conduziu à não aceitação pela AT do valor de aquisição declarado. Ora, a não aceitação pelo destinatário do conteúdo (ou de parte do conteúdo) de uma declaração não implica ou significa que a declaração enferme de erro, entendida esta palavra com o significado que a lei (art. 247º do Código Civil) lhe atribui.

Não existindo erro, fica necessariamente prejudicada a questão de saber se o mesmo seria ou não manifesto.

Termos em que improcede a alegada exceção.

 

 

B             Violação do regime de anulação de atos administrativos constitutivos de direitos consagrado no n.º 2 do artigo 168.º do CPA

 

Os Requerentes invocam, por outro lado, que os atos contestados no processo em apreço são ilegais, devendo ser anulados, por consubstanciarem uma correção feita para além do prazo para anulação de atos administrativos constitutivos de direitos estabelecido no artigo 168.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo. Com efeito, de acordo com o entendimento dos Requerentes, os atos de arquivamento/encerramento dos procedimentos de verificação, em que foram analisados os elementos relativos ao valor de aquisição das participações sociais doadas “não podem ser qualificados como inócuos na sua esfera jurídica, sob pena de se reconhecer a sua total inutilidade”. Para os Requerentes, as notificações de arquivamento/encerramento dos referidos procedimentos, “com a confirmação de que esses valores se encontram corretos”, “transformam a mera expectativa de consolidação da situação tributária dos contribuintes num verdadeiro direito subjetivo associado a essa consolidação”, pelo que se a Administração Tributária quiser corrigir os elementos, anteriormente, declarados e validados, só o poderá fazer no prazo de um ano previsto no artigo 168.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo. (cf. artigos 67.º, 68.º e 70.º do pedido arbitral). Neste pressuposto, os Requerentes consideram que a “decisão de anulação dos atos de arquivamento/encerramento dos procedimentos anteriores” que está “compreendida na decisão final do procedimento relativo à declaração n.º ... só podia ter sido emitida no prazo de um ano contado de 9 de julho de 2018 ou de 20 de janeiro de 2019”, o que não se verificou dado aquela decisão ter sido proferida em 16 de novembro de 2020.

A Requerida não concorda com a posição defendida pelos Requerentes, na medida em que considera que os atos de encerramento dos procedimentos não são atos constitutivos de direitos. Para a Autoridade Tributária, os atos em apreço não configuram atos administrativos na definição do artigo 148º do Código do Procedimento Administrativo, por não serem atos com eficácia externa, isto é, produtores de efeitos jurídicos externos, atingindo a esfera jurídica de terceiros. A Requerida considera que a apreciação feita pelos serviços, no âmbito de um processo de divergências, constitui um mero ato preparatório do ato final de liquidação, sendo este último o ato administrativo do qual resulta, com carácter definitivo e efeitos executórios, a declaração do direito do Estado a um determinado quantitativo pecuniário. Mais, acrescenta a Autoridade Tributária que o artigo 168.º, n.ºs 1 e 4, alínea c), do Código de Procedimento Administrativo permite a anulação administrativa de atos administrativos constitutivos de direitos, só assim se obtendo um equilíbrio entre o legítimo interesse da Administração Pública em reaver as importâncias indevidamente pagas a terceiros por erro material ou de cálculo e o interesse genérico na segurança e na certeza jurídicas (cf. Artigos 26.º e seguintes da Resposta).

Este Tribunal considera que os Requerentes não têm razão. Desde logo, e segundo o entendimento que prevaleceu neste colégio arbitral, o regime de revogação de atos constitutivos de direitos plasmado no Código do Procedimento Administrativo não se aplica no âmbito dos procedimentos de identificação de divergências que culminam com um ato em que a Administração Tributária declara que se encontram devidamente esclarecidas as questões submetidas a apreciação. Por outro lado, e independentemente da questão anterior, os Requerentes não identificam o concreto ato pretensamente constitutivo de direitos, referindo, aliás, em alternativa, dois atos para o efeito (de 9 de julho de 2018 e de 20 de janeiro de 2019). E não consta dos autos um concreto ato que tenha posto termo ao procedimento de divergências no qual os Requerentes juntaram, no dia 18 de maio de 2018, a documentação de que dispunham para comprovar o valor de aquisição das participações sociais.

 

C             Valor de aquisição de ações adquiridas por doação

 

C1) Dispõe o art.º. 45º, nº 1, do Código do Imposto do Selo (valor de aquisição a título gratuito): Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se o valor de aquisição, no caso de bens ou direitos adquiridos a título gratuito: a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo; b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido”.

Não tendo havido liquidação de imposto, por se tratar de uma doação isenta, está em causa a aplicação da al b).

Por sua vez, o art.º. 15.º, n.º 3, do CIS (valor tributável de participações sociais, títulos de crédito e valores monetários) dispõe, no aqui aplicável:

“ O valor das ações, (…) é o da cotação na data da transmissão e, não a havendo nesta data, o da última mais próxima dentro dos seis meses anteriores, observando-se o seguinte, na falta de cotação oficial:

a) O valor das ações é o correspondente ao seu valor nominal, quando o total do valor assim determinado, relativamente a cada sociedade participada, correspondente às ações transmitidas, não ultrapassar (euro) 500 e o que resultar da aplicação da seguinte fórmula nos restantes casos:

Va = [ 1 / ( 2 x n ) ] x [ S + ( (R1 + R2) / 2 ) x f ]

(…)”

 

Temos, assim, previstas legalmente três diferentes hipóteses para determinação do valor de aquisição de ações adquiridas a título gratuito (no caso, por doação):

a)            Primeira hipótese: tal valor corresponderá, em primeiro lugar, à soma dos valores nominais, quando o total do das ações transmitidas, assim determinado relativamente a cada sociedade participada, não ultrapassar 500 euros .

Este segmento da norma não é aplicável ao caso em apreço, uma vez que está em causa a doação de 44.0000 ações representativas do capital de uma única sociedade (a C... SGPS), com o valor nominal unitário de 10 Euros, pelo que o valor total da transmissão, segundo este critério, seria de 440.000 euros, o que excede em muito o limiar de 500 euros fixado por lei.

b)           Segunda hipótese, tal valor corresponderá (i – primeira subhipótese) ao da cotação das ações na data da transmissão e, não a havendo nesta data, (ii – segunda subhipótese) o da última mais próxima dentro dos seis meses anteriores.

É a aplicabilidade deste segmento da norma que funda a divergência entre as partes.

 

C2) A cotação oficial traduz um preço de referência, formado em mercado regulamentado, que reflete, num determinado momento, o valor de um determinado ativo que se encontra a ser transacionado nesse mercado, acabando, desta forma, por também representar uma síntese de avaliações económicas referentes a esse mesmo ativo.

A cotação, enquanto preço de referência, possui duas caraterísticas essenciais: (i) por um lado, é um preço público, já que deve ser divulgado, em cada sessão, no boletim de mercado (artigo 212.º, n.º 1 alínea b) e artigo 222.º, n.º 2, ambos do Código dos Valores Mobiliários (“CVM”)) e (ii) por outro, trata-se de um preço oficial, no sentido em que, qualquer referência contratual ou legal ao preço de um valor mobiliário, deve ser entendida como referindo-se à sua cotação, nos termos do artigo 222.º, n.º 1 do CVM. Este normativo dispõe que sempre que na lei ou em contrato se refira a cotação numa certa data, considera-se como tal o preço de referência definido pela entidade gestora do mercado regulamentado a contado.

Ora, não ficou provado que as ações da C... SGPS tivessem tido “cotação” que preenchesse os requisitos que acabámos de enunciar na data da doação ou dentro do período temporal referido pela lei.

Sendo a existência de “cotação” pressuposto essencial do direito que a AT invoca (determinar o valor de aquisição com base na cotação das ações transmitidas), a dúvida sobre o facto reverte em seu desfavor (art. 74º, n.º 1, da LGT).

 

C3) A AT entende, porém, que o Requerente, na declaração que apresentou para efeitos de IS, declarou ser de 10 euros a cotação de cada ação que lhe foi transmitida.

Tal entendimento não se nos afigura correto. Como provado, o Requerente fez contar do campo da declaração intitulado “valor de cotação” o seguinte: € 10 (VN).

Como é sabido, o art.º 236.º do Código Civil, não obstante a sua inserção sistemática, contém as regras gerais de interpretação e integração das declarações: a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

Parece-nos indiscutível que um normal declaratário, minimamente conhecedor do que está em causa (e, em particular, a concreta declaratária, a AT, por definição particularmente qualificada), sempre concluiria que o Requerente declarou ser de 10 euros o valor nominal de cada ação (uma vez que colocou, a seguir a tal valor, entre parenteses, a abreviatura VN, à qual não poderá ser atribuído outro significado).

De todo o modo, mesmo que fosse outro o sentido a atribuir à declaração (o de ter sido indicado uma “cotação oficial”), tal não constituiria a AT no direito a liquidar o imposto assumindo tal valor, caso não ficasse provado a sua correspondência à verdade (princípio da verdade material).

Em segundo lugar, parece-nos insustentável a conclusão da AT de que, tendo sido este o valor declarado, seria o que serviria de base à liquidação, se a ela devesse haver lugar.

Havendo lugar a liquidação e obrigação de pagamento do Imposto do Selo, a AT tinha a obrigação legal de não aceitar o valor declarado por este não corresponder ao prescrito por lei.

Mas é evidente que conjeturas sobre qual o valor de IS que teria sido pago, caso não estivesse em causa uma transmissão isenta, não podem assumir relevo para a quantificação do imposto (de outro imposto, o IRS) devido pelos Requerentes em resultado da alienação onerosa de tais ações.

 

C4) Importa ainda acrescentar que o disposto na al. b) do nº1 de art. 45º do CIRS (o valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido) só pode ter uma interpretação: o valor que, segundo a lei, deveria servir de base à liquidação do IS.

É o que decorre do princípio da legalidade dos impostos.

Ora, excluídas que estão as duas primeiras hipóteses legais (consideração do valor nominal e consideração da cotação oficial, por não provada a sua existência), resta a terceira, a determinação do valor das ações transmitidas por aplicação da fórmula constante do nº 3 do art.º15 do CIS.

É este o valor que legalmente deveria ser considerado na liquidação do IS, caso a ela houvesse lugar e, consequentemente, por força da al. b) do nº 1 de art.º 45º do CIRS, é por aplicação dessa mesma fórmula que deve ser apurado o valor de aquisição das ações ora em causa, relevante para o cálculo da mais-valia obtida.

Ao considerar, nas liquidações impugnadas, outro valor (independentemente de este ser o valor nominal das ações ou o valor declarado pelo Requerente para efeitos de IS), a AT cometeu um erro de direito que viciou tais atos tributários.

 

C5) Não cabe a este tribunal pronunciar-se sobre a correção do valor de aquisição (€ 3.203.200,00) declarado pelos Requerentes, pois não integra o objeto deste processo).

 As liquidações impugnadas apenas estão parcialmente viciadas por ilegalidade, até porque abrangem, para além de outros eventuais rendimentos, a mais-valia obtida com a alienação de outras ações da C..., que eram também propriedade dos ora Requerentes.

 

D             OUTROS PEDIDOS

 

Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação do pedido relativo à ilegalidade da liquidação de juros compensatórios.

Não pode o tribunal arbitral pronunciar-se sobre o direito dos Requerentes a serem indemnizados por prestação indevida de garantia, pois os tribunais não se pronunciam sobre questões meramente hipotéticas (a garantia não terá, ainda, sido prestada). Tal não prejudica os Requerentes, atento o disposto no art. 53º, n.º 3, da LGT.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Anulam-se parcialmente as liquidações impugnadas, devendo a AT proceder a nova liquidação de imposto em que seja considerado como valor de aquisição das 44.000 ações da C... SGPS, cuja propriedade adveio ao Requerente através de doação isenta de IS, o montante resultante da aplicação da fórmula constante do nº 3 do art. 15º do CIS.

 

VALOR: € 895.118,11.

CUSTAS pelos Requerentes, uma vez que exerceram a opção de designar árbitro (art. 5º, n.º 2, do Regulamento de Custas).

 

10 de dezembro de 2021

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais

 

 

Rui Medeiros

 

 

Sofia Ricardo Borges (vencida, conforme declaração anexa)

 

 

Declaração de Voto

 

Sempre com todo o devido respeito, que é muito, não acompanhei - na parte que referirei - a decisão da matéria de facto. Como também não acompanhei a decisão (seja no seu sentido, seja na sua fundamentação) da matéria de Direito no respeitante ao valor de aquisição das acções transmitidas por doação (ponto C, no Acórdão). Nesta medida, e pelas razões que passo a expor, votei vencida.

Como segue.

 

Estamos em sede de tributação em IRS. Categoria G – Mais-Valias.

E está em causa a determinação, para efeitos do apuramento do ganho de mais-valias, do valor de aquisição das acções transmitidas por doação ao Requerente.

Com efeito, determina o legislador, no n.º 1 do art.º 10.º do CIRS, que constituem mais-valias, entre outros, os ganhos obtidos que resultem de alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários - cfr. al. b) do n.º 1.

Tendo o Requerente alienado onerosamente (em Abril de 2016), entre outras acções representativas do capital social da mesma sociedade, 44.000 acções que lhe haviam sido transmitidas por doação de seu Pai (em Novembro de 2015); estabelecendo o legislador, no n.º 4 do mesmo art.º 10.º, que o ganho sujeito a IRS (rendimentos da Categoria G, incrementos patrimoniais, portanto, cfr. art.º 9.º) é constituído, no caso daquele específico ganho de mais-valias, pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (al. a) do n.º 4 do art.º 10.º ); tendo as ditas 44.000 acções ingressado na esfera jurídica do Requerente por via de uma transmissão gratuita - sempre haveria, pois, que apurar o valor de aquisição das mesmas. Para assim se apurar qual a valorização, o incremento patrimonial, de que as mesmas acções beneficiaram enquanto na esfera jurídica do Requerente. Melhor, o incremento patrimonial efectivo que por via das acções adveio à esfera jurídica do Requerente aquando da venda das mesmas (realização das mais-valias). Que será o montante do rendimento sujeito, em IRS, de que se trata nos autos.

 

Estamos assim, insista-se, em sede de IRS, tributação sobre o rendimento. Como supra.

No caso, o Requerente submeteu a sua declaração de IRS referente ao ano de 2016 e na mesma declarou rendimentos obtidos com uma carteira de activos diversificada, entre os quais os referentes à alienação onerosa das acções que detinha representativas do capital social da sociedade C... .

A este respeito - alienação de acções da sociedade C...- e para efeitos do apuramento do respectivo ganho de mais-valias, tendo declarado (Anexo G)  como valores de aquisição, os seguintes :

(i)           € 450.000,00 - referente às 45.000 acções que havia subscrito aquando da constituição da sociedade, e de que era titular à data da alienação em 2016; 

(ii)          € 440.000,00 – referente às 44.000 acções que também adquiriu onerosamente, 1.000 acções em Dezembro de 2011 e 43.000 acções em Outubro de 2015; e

(iii)         € 3.203.200,00 – referente às 44.000 acções que adquiriu por transmissão gratuita, doação de seu Pai em vida, em Novembro de 2015.

 

*

Estamos sempre a laborar, pois, tendo em vista apurar o quantum da valorização das acções, melhor, do incremento patrimonial que as mesmas aportaram (pela alienação em 2016) na esfera jurídica do SP. Que há-se ser constituído pela diferença entre o valor de realização - no caso, o preço pelo qual  o Requerente vendeu das acções (que nos autos não se discute) - e o respectivo valor de aquisição.

 

E assim sendo, muito embora o valor pelo qual as acções (doadas, v. (iii) supra) ingressaram na esfera jurídica do beneficiário tenha sido igual a zero (aquisição gratuita), há que determinar/apurar/atribuir um valor às mesmas – que será o valor de aquisição - para este efeito - o efeito de permitir apurar qual o montante do ganho de mais-valias aquando da realização destas.  Mais rigorosamente: qual o montante do ganho auferido (mais-valias) ou, se em sentido inverso, das perdas sofridas (menos-valias), na esfera jurídica do sujeito passivo em IRS aquando da transmissão onerosa das acções.

 

E quanto ao que deve entender-se ser o valor de aquisição dos bens quando de ingresso na esfera jurídica do respectivo beneficiário a título gratuito, quando portanto de transmissões gratuitas se trate, cuidou o mesmo legislador no art.º 45.º. Assim (no que aos autos releva):

“Artigo 45.º -  Valor de aquisição a título gratuito

1. Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se o valor de aquisição, no caso de bens ou direitos adquiridos a título gratuito:

a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo;

b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido.”

 

Pois bem. Sem surpresa, o fundamental nestes autos reconduz-se, quanto a nós e como melhor procuraremos deixar exposto mais adiante, a uma questão de interpretação de lei. Máxime, deste mesmo art.º 45.º do CIRS.

 

Avançando, para depois aqui regressarmos.

 

A posição que fez vencimento neste Tribunal foi no sentido de que, não tendo ficado provado nos autos que as acções em questão haviam sido cotadas em mercado oficial regulamentado, e de que pretendendo a Requerida AT aplicar a cotação das acções transmitidas (“determinar o valor de aquisição com base na cotação das acções transmitidas”), recaía sobre a mesma (Requerida) o respectivo ónus da prova (“sendo a existência de “cotação” pressuposto essencial do direito que a AT invoca”); e de que, assim, perante o non liquet, a falta de prova deve ser valorada em seu (da Requerida) desfavor, nos termos do art.º 74.º, n.º 1 da LGT.

 

Antes de mais, deve dizer-se aqui chegados, não acompanhamos a decisão da matéria de facto quanto a factos não provados. Quanto a nós, a considerar-se ter resultado não provado algum facto tê-lo-ia sido o de que não resultou provado que as acções eram acções “não cotadas”.

 

Com efeito, o SP atribuiu um valor de cotação às acções, aquando da submissão da Participação de Imposto do Selo (Modelo I). Atribuiu um valor que nunca veio depois a questionar, seja em sede de procedimento administrativo, como o poderia ter feito, seja em sede dos presentes autos. Atribui-o e assim submeteu a Declaração, assinando de seu punho onde se lê “A participação corresponde à verdade e não houve qualquer omissão” .

A Requerida AT, por seu lado, fez uso, como devido, do declarado pelo SP na sua declaração oficial. Trabalhou com base no valor constante do Processo Administrativo. O valor tal como constante da Declaração de Participação da Transmissão Gratuita em IS, submetida pelo Requerente, é este o valor a que a Requerida AT recorreu. O valor que resulta da Declaração do SP, insista-se. A partir daí o ónus da prova, assim o entendemos, reverte para este, reverteu para o Requerente. Caberia ao Requerente a prova de o valor não ser esse mas sim outro, divergir daquele que ali oficialmente declarou - à Requerida - ser o valor que atribuía às acções que adquiriu por doação. Prova que não fez, nem procurou, aliás, fazer (limitando-se a invocar ser de aplicar a fórmula do art.º 15.º, n.º 3 do CIS , por assim se apurar “o valor tributável das acções não cotadas” ).

Ora, e como determinado pelo legislador na LGT (art.º 74.º, n.º 1), sobre quem os invocar recairá o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos. O facto constitutivo do direito da Requerida AT a liquidar como liquidou, as acções terem uma Cotação - “Valor de Cotação”, cfr. Modelo I - encontra-se assente, nem vem sequer questionado, o Requerente declarou oficialmente à Requerida (em Declaração de Modelo Oficial para o efeito) aquele valor para efeitos de liquidação de IS , € 10,00/acção, que é, também, o valor nominal. Não há que aplicar, portanto, neste ponto, as regras sobre a distribuição do ónus da prova.

 

Havia uma Declaração de Imposto do Selo, a montante. Que não pode ser ignorada.

Desde logo porque assim o determina o legislador, em IRS – cfr. art.º 45.º do CIRS.

Que é onde nos situamos. Imposto sobre o rendimento. É o rendimento - rendimento acréscimo - aquilo de cuja tributação nestes autos se cuida.

 

A Requerida procedeu à correcção da liquidação com base na própria Declaração, relevante (cfr. art.º 45.º do CIRS), do Requerente. Sendo que “(…) qualquer liquidação com base na declaração do contribuinte não exige a elaboração de prova pela administração (sem prejuízo do controlo da veracidade presumida).”  Como do n.º 1 do art.º 74.º da LGT resulta.

Já o Requerente, por seu turno, que declarou para efeitos de IS o que declarou, não provou em contrário do que ali declarou. Não provou qualquer facto (ou sequer alegou) que permitisse entender resultar modificado (ou dever entender-se resultar modificado) o que ali declarou oficialmente. Na dúvida, acrescente-se, sempre o facto deve considerar-se como constitutivo do direito .

O facto (“Não cotadas”) era o único que poderia considerar-se controvertido, o Requerente vindo dizer nos autos, em contrário do declarado, que as acções eram “Não cotadas” e a AT, por seu turno, tal impugnando. Logo na sua Resposta , e novamente quando o Requerente, em resposta ao despacho do Tribunal, veio informar que as acções não tinham cotação. As regras da distribuição do ónus da prova impunham no non liquet - sobre este facto, portanto - a falta de prova reverter em desfavor do Requerente.

 

E note-se como, aliás, em anexo à própria Declaração Modelo I o Requerente anexou (v. factos provados) Certidão da CMVM. Anexando-a em simultâneo, declarou à Requerida, inscreveu na Declaração oficial, como valor de cotação das acções em questão, o valor unitário de € 10,00. Certidão que porventura poderia ter feito constar dos presentes autos, o que não sucedeu. Nem sequer quando, convidado pelo Tribunal a vir informar quanto ao facto de as acções serem ou não cotadas, se limitou a afirmar que “não tinham cotação em mercado oficial”.

Não terá sido feita, diríamos, de ânimo leve, sem uma razão de ser, a Declaração, receptícia. Declaração que foi até, inclusive, submetida já em momento ulterior ao da venda das acções concretizadora das mais-valias (em Abril de 2016 a venda / em Maio de 2016 a submissão da Participação, cfr. factos provados).

Em suma, houve um valor declarado pelo Requerente para efeitos de liquidação de imposto do selo.  Foi esse o valor a que a Requerida recorreu. E bem, quanto a nós. Seja porque assim o mandava (e manda) o legislador fazer - cfr. art.º 45.º do CIRS, seja também quando se tenha em vista o controlo da veracidade presumida.

Senão vejamos o que decorre dos factos.   

À data em que adquiriu por doação as 44.000 acções cujo valor de aquisição aqui está em questão, ou, mais rigorosamente, em data próxima, o Requerente também adquiriu onerosamente outras tantas acções representativas do mesmo capital social (da sociedade C...). A (cinco) diferentes então accionistas. Sempre, todas e cada uma das acções, pelo preço unitário de € 10,00. Na sua quase totalidade em Outubro de 2015.

Seu Pai, que entretanto as terá adquirido (não subscrevera acções na constituição da sociedade, como também resulta dos documentos carreados para os autos ), após, transmitiu 44.000 acções ao Filho, Requerente. Por doação em vida.  Em Novembro de 2015.

Ora, o valor de aquisição de todas as demais acções representativas do mesmo capital social - como aliás também Declarado pelo Requerente na sua Declaração de IRS, para efeitos de apuramento do quantum do rendimento de mais-valias (Anexo G), e como consta seja da Escritura de constituição da sociedade, seja dos contratos de compra e venda de acções pelos quais o Requerente adquiriu mais 44.000 acções, foi de € 10,00/acção. E assim declarou o Requerente, ali, um valor de aquisição, total, de € 450.000,00 no caso das 45.000 acções que subscrevera inicialmente e mantinha, e um valor de aquisição, total, de € 440.000,00 no caso das 44.000 acções que comprou (comprou 1.000 em Dezembro de 2011 e 43.000 em Outubro de 2015).

Estariam então reunidas condições para que a Requerida AT duvidasse da veracidade presumida  do constante da Participação de Transmissões Gratuitas – Modelo I, submetida pelo Requerente?

Não cremos.

Não cremos encontrar facilmente respaldo na realidade que acções, todas elas representantivas do capital social da mesma sociedade, quando pagas para ingressar na esfera jurídica do Requerente versus quando aí tendo ingressado gratuitamente, tudo em datas próximas, pudessem ter como valor de aquisição montantes tão díspares como € 10,00/acção (as primeiras) e € 72,80/acção (as segundas) . Como vem pretender o Requerente.

Considera o Requerente, assim, dever ter-se por valor de aquisição do total das 44.000 acções adquiridas por compra, na sua quase totalidade em Outubro de 2015, o montante de € 440.000,00. Quatrocentos e quarenta mil euros.

E por valor de aquisição do total das 44.000 acções adquiridas por doação em Novembro de 2015 o montante de € 3.203.200,00. Três milhões duzentos e três mil e duzentos euros.

 

A par do que já decorrerá do que antecede - e insistindo mais uma vez em que é de IRS que se cuida nos autos, rendimento, incremento patrimonial mais-valias - não parecerá verosímil que umas e outras acções (por consequência afinal do que antecede, cfr. versão pugnada pelo Requerente) tenham depois (ao ser vendidas em Abril de 2016) “valorizado” na esfera jurídica do Requerente de formas (tão) discrepantes. Melhor se diria, antagónicas. Tendo as primeiras (e também as subscritas inicialmente) valorizado consideravelmente na medida da diferença entre o respectivo valor de aquisição e o preço de venda em 2016 - o “Price of Sale”, recorde-se, foi de c. € 17,13 por acção  (a que viriam a acrescer pagamentos cfr. “additional price of shares”) e as segundas, ao invés, não só não valorizado de forma semelhante (sequer valorizado), como sofrido uma substancial menos-valia. Se se quiser concretizar, por elucidativo, assim: pelo preço de venda das acções (“Price of Sale”) o Requerente recebeu € 2,278,988,25 . Por 133.000 acções, portanto (45.000 + 44.000 + 44.000). Sendo que por 44.000 acções foram, assim, pagos/recebidos c. € 753,720,00. Temos pois que - contra um valor de aquisição que teria sido (como pugna o Requerente) de € 3.203.200,00 – o Requerente (só) recebeu € 753,720,00. Menos-valia de € 2.449.480,00, pois.  Perdas sofridas neste montante, em decorrência das acções adquiridas por doação de seu pai (em decorrência da alienação onerosa dessas acções).

Em contraste, desde logo as 44.000 acções adquiridas cfr. contratos de compra e venda provocaram um incremento patrimonial na sua esfera jurídica de € 313.720,00.

 

Como quer que seja, sem maiores desenvolvimentos e sem prejuízo de tudo quanto antecede, não ficou prejudicado, quanto a nós, o controlo da veracidade presumível por parte da Requerida.

 

E também pela disciplina do art.º 236.º do CC se concluiria, quanto a nós, como a Requerida concluiu. Pois que tal é o que seria razoável um normal declaratário na posição deduzir, e não deixa o declarante de poder contar com esse entendimento. De que declarou um “Valor de Cotação” de € 10,00. Nem nos parece que por o Requerente ter ali acrescentado “(VN)”, no campo 10- “Valor de Cotação”, a situação se altere, quando a Modelo I continha um (outro) campo próprio para o efeito: 12 - “Valor Fixado no Contrato Social” .

 

Por outro lado, ainda se refira, também não vemos, como no Acórdão, que a expressão “cotação” só possa ser interpretada, para os fins a que aqui somos chamados decidir, com o sentido exclusivo de cotação em mercado regulamentado. Em mercados regulamentados como o da Bolsa de Valores, sabemo-lo, o sentido será precisamente o que se expõe no Acórdão . Não é necessariamente esse, ou não será exclusivamente esse, porém, quanto a nós, o sentido com que o legislador o toma em sede de IRS, Mais-Valias.

Desde logo existe cotação em mercado regulamentado e existe cotação em mercado aberto. Se dúvidas houvesse, v. por exemplo como se lê no no n.º 3 do art.º 43.º a referência do legislador à alienação de partes sociais de micro e pequenas empresas “não cotadas nos mercados  regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores”.

O fito do legislador de aproximação ao que seja o valor de mercado / valor real não deixará de estar presente. Como aliás em geral, também, em sede de imposto do selo.  

Mais, quando o nosso legislador trouxe a tributação de mais-valias para o seio do IRS, após a adopção do conceito amplo de rendimento como rendimento acréscimo a permiti-lo, fê-lo com o realismo (que já vinha aliás desde a tributação nos seus primórdios das mais-valias entre nós ) de pretender tão só abranger situações que sejam mais recorrentes, de valores mais relevantes e, não de somenos, que não se revelem de maiores dificuldades na sua determinação . Desde logo por aqui, parece-nos também, A fórmula prevista no art.º 15.º, n.º 3 do CIS não seria o pretendido como A fórmula (a maiúscula é intencional) para o apuramento do valor de aquisição para efeitos de mais-valias em IRS, como exclusiva possibilidade quando de acções não cotadas em mercado regulamentado se trate.

A “cotação” a que o legislador se pretende referir, parece-nos, e estamos em sede de IRS, terá um conceito mais abrangente. Não havendo cotação em mercado regulamentado haverá ainda assim que atribuir-se um valor aos bens. Como o Requerente fez, na Modelo I. Atribuiu como “Valor de Cotação”  o valor de € 10,00, correspondente ao valor nominal, que corresponderia de alguma maneira ao valor de mercado (em coerência com os contratos de compra e venda de acções em Outubro de 2015 assim se diria ). Declarou-o oficialmente. À Requerida. E Declarou-o em cumprimento do disposto nos art.ºs 26.º e 28.º do CIS, que impõem a obrigação declarativa também no caso de sujeição com isenção em IS. Anexando, como o legislador impõe (e como resultou provado), Certidão da CMVM – cfr. art.º 26.º do CIS. E como também aí refere o legislador, a participação da doação é feita em modelo oficial (a Modelo I, submetida pelo Requerente) e deve conter “a relação dos bens transmitidos com a indicação dos valores que devem ser declarados pelo apresentante.”

Tudo como se verificou suceder no caso, portanto.

Que de cotação em sentido mais abrangente que exclusivamente o de “cotação em mercado oficial regulamentado” se deve, quanto a nós, entender ser o sentido visado pelo legislador (e reflectido na Modelo oficial para a qual o legislador em IRS remete - “Valor de Cotação” ) decorrerá também desde logo de uma interpretação sistemática  e tendo em conta, desde logo, o constante no art.º 48.º do CIRS ao tratar do valor de aquisição a título oneroso de partes sociais para efeitos, mais uma vez, de tributação de Mais-Valias. Como daí se retira, mesmo aí onde a aquisição se tenha feito a título oneroso, é a declaração do contribuinte, o valor atribuído pelo mesmo aos bens, que prevalece se mais baixo do que o valor de cotação em mercado regulamentado, quando exista. Por seu lado, quando não exista cotação em mercado regulamentado o valor de aquisição será o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respectivo valor nominal.

Tudo a apontar, quanto a nós, no sentido de o termo “cotação” para efeitos de apuramento do valor de aquisição ter sido querido pelo legislador com um significado mais abrangente do que seria exclusivamente o de “cotação em mercado oficial regulamentado”. Estaremos a tratar do valor de mercado dos títulos, e esse valor de mercado, cotação, admitiu o legislador, nesta sede, poder também ser, quando aplicável, o atribuído para o efeito pelo contribuinte ao bem.  Um “preço” de mercado, atribuído com conhecimento de causa, diremos. Assim o vemos. Ademais fazendo-o o Requerente, regressando agora mais concretamente ao caso, em simultâneo com a junção de documento - Certidão da CMVM.

 

Por tudo o que já ficou exposto, e em qualquer caso, era quanto a nós de decidir pela improcedência do pedido também na questão C do Acórdão. A Requerida cumpriu com o seu ónus da prova, o Requerente não. Ao invés do decidido.

Ademais, a expressão Cotação / Valor de Cotação não é de entender restritivamente.

Tudo como supra.

 

Mais, a aplicação da fórmula do n.º 3 do art.º 15.º do CIS é afastada pelo legislador para o caso de acções preferenciais sem voto (cfr. n.º 4). No caso, como é também possível apurar dos elementos de facto carreados nos autos , mais de 60% das acções adquiridas por doação eram-no. Pelo que, também por aqui, sempre nos afastaríamos do decisório.

 

E ainda. Mesmo no caminho seguido no Acórdão, assim o vemos, uma interpretação conforme à Constituição, a que sempre seríamos conduzidos, não permitiria decidir pela aplicação da fórmula. Com efeito, o decidido, parece-nos, conduzirá a admitir como legais situações como a que poderemos colocar desde logo partindo dos dados no autos. Vejamos.

Caso o pai do Requerente tivesse transmitido ao filho as acções, tal como os demais accionistas que o fizeram, por contrato de compra e venda (a €10,00 cada acção), teria este incorrido numa Mais-Valia considerável (ao depois vendê-las). Mas tendo-lhe o pai transmitido as mesmas acções (as mesmas, insista-se) por doação, o Requerente incorre numa substancial menos-valia (sofre perdas, portanto, substanciais).

Se o pai lhe tivesse vendido era indiscutível que as acções tinham entrado na sua esfera jurídica, tal como as demais que ao tempo o Requerente adquiriu, por € 440.000,00. Doando, ao que parece, e sempre com todo o respeito, segundo a posição que fez vencimento, e que confirma ser de aplicar a fórmula, as acções entraram na esfera jurídica do Requerente com o valor de € 3.203.200,00 - três milhões duzentos e três mil e duzentos euros.

Alguém que adquire o bem A por compra tem, quando vende esse bem por X, uma determinada Mais-Valia. Mas alguém que adquire o mesmo bem A por doação (e tratava-se de acções representativas do capital social da mesma sociedade adquiridas em altura aproximada), e vende esse bem pelo mesmo X, não só não tem a mesma Mais-Valia (o bem, que ademais adquiriu a custo zero, não valoriza, dir-se-á, da mesma forma na sua esfera jurídica) como, ao arrepio de tudo o expectável, tem uma menos-valia.

 

Perguntar-se-á: desde logo o princípio da igualdade e o seu sub-princípio nesta sede da tributação em função da capacidade contributiva não sairão beliscados?

Recorde-se que o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares é sobremaneira enformado pelos referidos Princípios Constitucionais. Tributam-se rendimentos, rendimentos que, por reveladores de capacidade contributiva, justificam (legitimam) a tributação.

 

E teria, em todo o caso, tal cenário sido querido pelo legislador? Que sempre teremos que presumir ser um legislador razoável que consagrou as melhores soluções dentro do espírito do Sistema?

O legislador que em IRS, Mais-Valias, nas acções não cotadas em mercado regulamentado quis que quando adquiridas a título oneroso se considerasse valor de aquisição o valor documentalmente provado ou, na sua falta, o valor nominal - art.º 48.º -, teria querido que quando adquiridas gratuitamente … se aplicasse, diferentemente e sem outra possibilidade, a fórmula do art.º 15.º, n.º 3 do CIS… que, sabe-se, tende a fazer despoletar o aumento do valor… ? E, assim, a potencialmente anular mais-valias…? (quando não a gerar menos-valias… sem correspondência na realidade, como se vê no caso dos autos)

 

Enfim, logo por tudo o que antecede o Pedido seria de julgar, quanto a nós, improcedente – também na questão fundamental (C., no Acórdão).

 

Mas mais. E determinante, quanto a nós, desde logo.

Estamos em IRS. Tributação do rendimento, conceito de rendimento acréscimo.

Tributação de mais-valias. Incrementos patrimoniais (Categ. G).

Está em causa o ganho de mais-valias obtido com a venda de acções adquiridas por doação. Transmissão gratuita.

Manda o legislador - art.º 45.º do CIRS - considerar como valor de aquisição, para determinação dos ganhos sujeitos a IRS no caso de bens adquiridos a título gratuito:

              a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo;

                b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido.”

Remete o CIRS, pois, para uma de duas hipóteses. As que ficam transcritas.

Pois bem.

Para ser considerado para efeitos de liquidação de IS declarou o SP o valor de € 10,00 por acção. Como provado.

Valor esse que estabilizou na Ordem Jurídica.

O Requerente não vem questionar que assim o tenha feito, nem tão pouco impugnou incidentalmente a sua Declaração de imposto do selo.

No caso, foi nesse valor que a Requerida AT se fundou.

 

As transmissões entre herdeiros legitimários (transpostas que foram para o CIS juntamente com as demais transmissões gratuitas) estão sujeitas a IS. Porém isentas.

Não se está perante uma não incidência ou exclusão de tributação.

Estamos perante uma transmissão sujeita a IS, mas que beneficia de uma isenção subjectiva.

Se dúvidas houvesse, v. art.º 1.º - em especial n.º 3, al. c) por confronto com o n.º 5 (CIS).

V. também assim no Preâmbulo do CIS: “Assim, as participações sociais (…) passarão a ser tributados nos termos gerais do Código, isto é, apenas se e quando ocorrer a sua transmissão gratuita”, e, bem assim, a Verba 1.2 da Tabela Geral do IS.

O Requerente é sujeito passivo (também) de IS – cfr. art.º 2.º, n.º 2, al. b) do CIS.

Porém isento - cfr. art.º 6.º al. e) CIS (doação de seu pai).

Mesmo beneficiando da isenção, o sujeito passivo de imposto do selo está, em coerência, obrigado a cumprir com a sua obrigação acessória – Obrigação Declarativa, obrigação de Participação – cfr. art.º 26.º do CIS, e art.º 28.º ex vi n.º 11 do art.º 26.º (v. também art.º 63.º-A, n.º 1, in fine).

O processo de liquidação do IS, no caso das transmissões gratuitas, inicia-se precisamente com a submissão da Declaração Oficial pelo beneficiário da transmissão – v. art.º 28.º, n.ºs 1 e 2 do CIS.

Com base na Participação “instaura-se o respectivo processo de liquidação do imposto” – cfr. art.º 27.º, n.º 2 do CIS.

E a documentação obrigatoriamente junta com a Participação integra o processo de liquidação do imposto – cfr. art.º 26.º, n.º 6 e 27.º do CIS.

Temos, pois, que, competindo a liquidação do imposto do selo nas transmissões gratuitas aos serviços centrais da DGCI (cfr. art.º 25.º e ss do CIS), o beneficiário é obrigado a participar a doação ao serviço de finanças competente, constituindo esta – Participação – precisamente impulso do procedimento de liquidação.

E da Participação, de Modelo Oficial, como supra, deverá constar, como bem se compreende, não só a identificação dos bens como também “a indicação dos valores que devam ser declarados pelo apresentante.” - cfr. art.º 26.º, n.º 2 CIS. Para efeitos de liquidação de imposto do selo, portanto. Sempre haverá que concluir.

Nos termos do art.º 27.º, n.º 2 do CIS, com base na Participação deverá ser instaurado o respectivo processo de liquidação do imposto, “(…) que deverá incorporar todos os elementos constantes do artigo anterior [art.º 26.º], (…) e o processo de determinação do valor de estabelecimento ou de partes sociais [art.º 31.º], elementos estes que servirão de base ao procedimento de liquidação previsto no art.º 33.º”.

 

E como estabelece o legislador no art.º 33.º (CIS) - n.º 1 - uma vez instruído o processo “o chefe de finanças promove a liquidação do imposto”. Mais estabelecendo - n.º 2 - que desde que exista acto ou contrato susceptível de operar transmissão “o chefe de finanças só pode abster-se de promover a respetiva liquidação com fundamento em invalidade ou ineficácia julgada pelos tribunais competentes (...)”.

Sem surpresa, é o caso. Doação – acto susceptível de operar transmissão.

E nada do que vem de se dizer resulta prejudicado ao atentarmos na forma como o legislador se exprimiu, por sua vez, no n.º 4 deste mesmo dispositivo legal, devidamente interpretado (desde logo na relação com os demais números, e atentando na respectiva epígrafe – “Liquidação do imposto”). Com efeito, também dali se retira, assim o vemos, que casos há em que, muito embora se promova a liquidação, o quantitativo daí resultante acaba por ser zero. Ali se lê: “Sempre que o imposto devido pelas transmissões gratuitas deva ser liquidado pelos serviços (…) só se procede à liquidação (…) se o seu quantitativo não for inferior a € 10.” Dir-se-ia que o conceito de “liquidação” aqui é utilizado pelo legislador em sentido estrito. Pois que liquidação não deixará também de ser o acto em que no procedimento de liquidação se vem a apurar um quantum nulo.

E não estaremos sozinhos, parece-nos, ao assim o interpretar.

Senão vejamos.

Em anotação a este n.º 4 escrevem António Santos Rocha e Eduardo José Martins Brás  assim: “No n.º 4 estabelece-se uma limitação de ordem técnica - isenção técnica -, aplicável, exclusivamente, ao imposto do selo devido pelas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral, sempre que o imposto deva ser liquidado pelos serviços da administração fiscal, o que sucede por regra [art.º 25.º/1], só se procede a essa liquidação, mesmo que adicional, se o seu quantitativo for igual ou superior a € 10,00 ou, dito de outro modo, a liquidação, uma vez promovida pelo serviço de finanças, assumirá um valor nulo.”

 

Houve liquidação.

Em rigor, quanto a nós, o último facto cfr. constante do probatório seria: “Não houve lugar a IS a pagar em razão desta doação (…)”.

 

E sempre, como quer que seja, a seu tempo foi indicado/atribuído/declarado o valor das acções para efeitos de liquidação de imposto do selo. Pelo SP, em imposto do selo. Cfr. Modelo I, nos autos.

E foi aquele o valor considerado para o efeito – “para efeitos da liquidação de imposto do selo”, cfr. al. a) do n.º 1 do art.º 45.º

Nos termos do n.º 1 do art.º 45.º, assim, o valor de aquisição das acções para efeitos de determinação das Mais-Valias será aquele, € 10,00 por acção, o valor que foi considerado para efeitos de liquidação de IS. Tudo como vimos de agora ver.

Com interesse, escrevia Alberto Xavier, ao tratar actos tributários positivos e negativos, quanto ao reconhecimento de uma isenção não deixar de poder ser uma liquidação: “(…) Noutras hipóteses (…) da aplicação da norma ao caso concreto resulta o reconhecimento da não tributabilidade do facto e, portanto, de não existência no caso concreto de uma obrigação de imposto. (…) O reconhecimento da não tributabilidade do facto e a consequente prática de acto negativo podem, todavia, resultar ou da não verificação de qualquer dos elementos de que se compõe o tipo legal (…) ou da verificação de factos impeditivos, como são as isenções. (…) se a isenção se configura como um facto impeditivo quanto à constituição da obrigação tributária, ela já assume valor constitutivo de uma situação jurídica complexa – a do contribuinte isento – e que é inteiramente distinta da do não contribuinte. (…) frequentemente a lei comete ao contribuinte isento certos deveres jurídicos – como o de apresentação regular de declarações (…) - que jamais impõe ao não contribuinte. O acto de reconhecimento da isenção pode, pois, não ser meramente um acto declarativo de um facto impeditivo: nos casos em que o facto em que a isenção se traduz tenha cumulativamente efeitos constitutivos de uma situação jurídica subjectiva, esta é também objecto da aludida declaração.”  

 

E referindo-se genericamente à liquidação, Saldanha Sanches assim: “(…) é um acto administrativo cujo conteúdo decisório fundamental consiste na determinação do quantum de uma prestação pecuniária e, também, do momento em que deve ter lugar esta mesma prestação. / Tornando consequentemente necessário que um desses efeitos seja a formação de um dever de prestação pecuniária, eventualmente positivo ou negativo: (…) a declaração por parte da Administração fiscal, que o imposto devido naquele ano é igual a zero (…), é uma das modalidades possíveis da liquidação.”

 

Com efeito, e voltando à isenção (de um facto tributário sujeito, pois), em particular, não deixa de se constituir, aí, uma relação jurídico tributária. Estão reunidos a norma de incidência e o facto da vida real que a ela se subsume. Como sucede no caso dos autos: doação em Novembro de 2015 e artigos do CIS percorridos (máxime art.º 1.º, e Verba 1.2 da TGIS). Por outras palavras, verifica-se ainda assim um facto tributário, e, assim também, dá-se – deu-se, no caso - o nascimento da relação jurídico tributária e suas vinculações – cfr. art.º 36.º, n.º 1 da LGT.

Apenas ficou impossibilitada uma quantificação que não nula.

 

Como quer que seja.

Foi considerado aquele valor, declarado, para efeitos de liquidação de imposto do selo.

Conforme n.º 1, al. a) do art.º 45.º do CIRS.

A Participação despoletou o procedimento de liquidação de IS.

Encontramo-nos, quanto a nós, no âmbito da referida alínea.

Aliás, se assim não fosse, não só não se compreenderia a que fim se destinaria aquela alínea.

Como também não teria o legislador andado tão bem quanto andou.

Com efeito, parece-nos, assim também se alcança o impedir da duplicação dos dois impostos (IRS Mais-Valias e IS): na al. b) caberão desde logo os casos das transmissões gratuitas não isentas, e portanto o IS sendo devido, relativamente às quais a Participação não foi submetida. Aí será então tido por valor de aquisição para efeitos de IRS o valor que serviria de base à liquidação do IS. Assim não se apurando, em IRS, e até esse valor, numa posterior transmissão onerosa por um valor superior, valor a pagar. Não se apurando Mais-Valias em IRS.

 

Acresce que também não parece razoável que o legislador, que manda submeter uma Declaração em IS para os efeitos e nos termos vistos - também para as transmissões gratuitas isentas nesse imposto - não o estivesse a fazer para algum fim. Tê-lo-à pensado também, parece-nos, para assim ser posteriormente apurável o ganho de mais-valias que venha a ser provocado por esses bens na esfera jurídica do beneficiário se, e quando, um dia mais tarde vierem a ser objecto de uma transmissão onerosa. E nesse contexto é considerado um valor – para efeitos dessa liquidação. Que será nula. Em IS. Mas ficando latente uma tributação em IRS, Mais-Valias. Que fica então pendente da verificação da condição da tributação das mais-valias, a saber a transmissão onerosa do bem, se e quando esta ocorrer.

E nem pareceria razoável, diga-se, que o delinear da situação jurídica do sujeito passivo dali decorrente não tivesse que estabilizar, a certo momento, na Ordem Jurídica. Sob pena de o legislador permitir (querer) situações de incontornável dificuldade no apuramento do valor do bem… pense-se em transmissões gratuitas isentas de IS relativamente às quais só passados dez, quinze, vinte anos ou mais ocorra uma transmissão onerosa do bem… apurando-se só então, à data da transmissão onerosa, o valor de aquisição, do zero (desconsiderando o declarado aquando da transmissão gratuita).

 

E note-se também como, afinal, o legislador não deixou de revelar estar atento.

Ao invés de excluir a incidência, em IS, simplesmente isentou. Sujeição mas com isenção. E assim manteve a obrigação declarativa.

E por aí passa também precisamente, quanto a nós, a inter-relação que é feita no art.º 45.º entre os dois impostos. Melhor, entre o declarado para efeitos de um e do outro imposto.

É que se o sujeito passivo declarou para efeitos de Mais-Valias em IRS um determinado montante como valor de aquisição, não terá assim facilmente sucesso, parece, quando queira declarar um valor diferente para efeitos de IS. E vice versa. Desde logo em casos como o presente.

Recorde-se, já agora, como nos autos o SP declarou como valor de aquisição de 44.000 acções por compra o valor de € 440.000,00, mas já para efeitos de IS - não obstante também assim o ter declarado - veio depois pretender, nos presentes autos, ser de considerar outro o valor de aquisição no caso das 44.000 acções adquiridas por doação (idênticas às primeiras, como visto), por recurso ao que alegadamente teria sido de declarar (e assim de considerar) quanto a estas para efeitos de IS.

 

Ainda se diga.

Em IS estamos a tratar do apuramento de um valor tributável. Para sobre ele se aplicar uma taxa. Imposto real, portanto.

Sobre (no IS do tipo do do caso) o património.

Em IRS estamos a tratar do apuramento de um valor de aquisição para depois a ele recorrer no confronto com o valor de realização e – assim, por sua vez – apurar o ganho auferido pelo sujeito passivo na sua esfera jurídica. Imposto pessoal, pois.

Sobre o rendimento.

 

E nada do que fica exposto deixa de ser, parece-nos, o coerente com estarmos perante lógicas diferentes de tributação, num e no outro imposto.

A base de incidência, a matéria colectável, num e no outro, sendo claramente distintas.

Num, o valor de um bem. Daí a expressão no CIS “valor tributável” (v. art.º 15.º CIS).

No outro, o valor do rendimento auferido. Com base em incrementos, valorização do património na esfera jurídica do sujeito passivo. Aumento da capacidade contributiva do sujeito passivo.

 

Por fim, nem se diga que não havia a fundamentação da Requerida sido conforme com o que agora por último se expôs (quanto à aplicação da al. a) do n.º 1). Por várias vezes se referindo a Requerida simplesmente ao n.º 1 do art.º 45.º. Bem se compreendendo o sentido com que o faz – o de dever ser tido por relevante o valor declarado em IS. Ademais, se dúvidas houvesse, que não há, a fundamentação de Direito é também admissível por recurso aos princípios jurídicos ou mesmo por referência genérica ao regime legal aplicável, desde que resultem perceptíveis os fundamentos jurídicos da decisão.  Como sempre será no caso.

 

Por tudo, a Liquidação em crise era de manter na Ordem Jurídica, por conforme à Lei.

Nem de outra forma a poderia ter processado a Requerida, seja por força do Princípio da Legalidade a que está obrigada na sua actuação, seja por força da indisponibilidade dos créditos tributários (cfr. art.º 30.º, n.º 2 da LGT).

A unidade do Sistema Jurídico e a sua coerência valorativa e axiológica também assim o impunham. Interpretação que assegure a coerência na ordenação das consequências do Direito.

E a presunção de razoabilidade do legislador ao consagrar as soluções que consagrou… não resulta em vão.

O Pedido era, quanto a nós, totalmente improcedente.

 

Com todo o respeito, que, também se insista, é muito, a Decisão não disse o Direito.

 

Lisboa, 10 de Dezembro de 2021

 

Sofia Ricardo Borges