Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 197/2019-T
Data da decisão: 2020-05-13  IVA  
Valor do pedido: € 142.765,83
Tema: IVA – Transmissão de bens gratuita.
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Rita Guerra Alves e Cristina Aragão Seia, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 20 de Março de 2019, A..., com sede em ..., na República Checa, registada para efeitos de IVA em Portugal sob o número de identificação fiscal ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IVA n.º 2018..., relativo ao segundo trimestre de 2017, no valor indicado de €140.925,83.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             Vício de falta de fundamentação da decisão de indeferimento do pedido de reembolso de IVA constante do relatório de conclusões da acção de inspeção;

ii.            Erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por errada aplicação da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do IVA, porquanto, em seu entender, a Requerente não efectuou qualquer cedência a título gratuito de tooling.

 

3.            No dia 20-03-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 10-05-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 29-05-2019.

 

7.            No dia 03-07-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

8.            Foi facultada à Requerente a possibilidade de se pronunciar, por escrito, sobre a matéria de excepção aduzida pela Requerida na sua Resposta, faculdade essa que foi exercida.

 

9.            No dia 10-12-2019, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente / Ao abrigo do disposto nas als. c) e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

10.          Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

11.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas.

 

12.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é uma entidade sediada na República Checa, cujas principais operações consistem na comercialização por grosso de peças e acessórios para veículos automóveis a partir das suas instalações na República Checa.

2-            A Requerente é uma entidade não residente e sem estabelecimento estável em Portugal.

3-            A Requerente encontra-se registada, para efeitos de IVA, em Portugal, encontrando-se enquadrada no regime normal, com periodicidade mensal, por operações tributadas à taxa normal, com direito a dedução total do IVA suportado. 

4-            A Requerente registou-se para efeitos de IVA em Portugal por pretender proceder à venda de moldes (tooling) a empresas de fabricação de automóveis.

5-            Quando é adjudicado à Requerente um contrato de fornecimento de componentes para a indústria automóvel, esta subcontrata terceiros para a produção de componentes.

6-            Os referidos componentes são fabricados com base no tooling previamente adquirido pela Requerente.

7-            O tooling tem especificações próprias e exclusivas ao fabrico dos componentes.

8-            No âmbito dos contratos de fornecimento celebrados, a Requerente adquire, para o efeito, os componentes para veículos automóveis que se destinam a ser incorporados em veículos na fábrica da Requerente na República Checa e o tooling utilizado na produção de tais componentes.

9-            O tooling e os componentes que são fabricados com base naquele são adquiridos pela Requerente, em regime de subcontratação, a fornecedores estabelecidos em Portugal.

10-         A Requerente celebrou com a B... um contrato de relacionamento Master, denominado de “Strategic Supplier Contract”, ao abrigo do qual foram posteriormente celebrados os acordos de produção de tooling e componentes designados “tooling agreements” para cada encomenda específica das marcas fabricantes de automóveis.

11-         O contrato master (“Strategic Supplier Contract”) e o “Tooling Agreement” foram celebrados entre a C... e o Fornecedor (B...) e abrangem a F... (CZ ...).

12-         A F... (CZ...) é indirectamente detida pela C....

13-         O tooling permanece em Portugal nas instalações da B....

14-         O artigo 18.º das condições contratuais dispõe o seguinte:

i)             “[...] the parties [...] acknowledge that F… shall have the sole and exclusive title of the Tooling”.

ii)            “The supplier shall mark the ownership of F… by obvious property tags permanently fixed on the Tooling”.

15-         O artigo 19.º das condições contratuais dispõe o seguinte:

i)             “Supplier shall thereon possess the tooling in behalf of F… only”. “The Toooling shall not be transferred, sold, alienated, hired or in any way pledged to a third party without prior and written consent of F…”.

ii)            “Supplier shall inform F… immediately in case any third party claims title of the tooling or a foreclosure related to the Tooling”.

16-         O artigo 11.º das condições contratuais dispõe o seguinte:

“Supplier undertakes to use the Tooling exclusively for the fulfilment of Purchase Orders issued by F… or its Related Companies, with the exclusion of any other user either for its own account or for the account of any third party, unless such use has been expressly permitted in writing by F… in advance”.

17-         No final da produção dos componentes, a Requerente procede à venda do tooling a clientes seus em território português.

18-         Em 07-07-2017, a Requerente solicitou através da sua declaração periódica do 2.º trimestre de 2017, o reembolso de IVA no valor global de €140.925,83.

19-         A AT deu início a uma inspecção interna, em sede de IVA, que incidiu sobre o período 2017/06T.

20-         Em 27-12-2017, a Requerente foi notificada do projecto de relatório de inspecção tributária e para, querendo, exercer direito de audição prévia.

21-         A Requerente exerceu direito de audição.

22-         No âmbito da inspecção, concluiu a AT o seguinte:

23-         Na sequência da referida inspecção, a AT indeferiu o pedido de reembolso no valor de €140.925,83 e procedeu a correções no montante de €142.765,83.

24-         Em 06-03-2018, através do Ofício n.º ... de 27-02-2018, a Requerente foi notificada do indeferimento do pedido de reembolso de IVA, com fundamento na insuficiência de crédito em conta corrente em resultado das correções efectuadas no montante de €142.765,83, correspondentes ao imposto considerado em falta na transferência gratuita.

25-         Em 04-04-2018, a Requerente apresentou recurso hierárquico da decisão de indeferimento do pedido de reembolso de IVA.

26-         Em 09-03-2018, a Requerente foi notificada da liquidação de IVA n.º 2018..., da qual resultou valor a pagar de €1.597,50.

27-         A referida liquidação tinha como data limite de pagamento o dia 09-05-2018.

28-         Em 05-06-2018, a Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, tendo atribuído à acção o valor de €1.597,50.

29-         Foi instaurado o processo arbitral que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa sob o n.º 281/2018-T, tendo o Tribunal Arbitral Singular se considerado incompetente em razão do valor da causa para conhecer do pedido.

30-         Por e-mail de 06-02-2019, foi notificado à Requerente e à AT, o arquivamento do processo nos termos do artigo 23.º do RJAT.

31-         A Requerente apresentou em 12-02-2019, requerimento para esclarecimento e reforma da decisão arbitral, uma vez que o Tribunal Arbitral Singular não havia fixado as consequências do julgamento da verificação da incompetência e da absolvição da Requerida da instância.

32-         O Tribunal Arbitral singular, no âmbito do processo n.º 281/2018-T, proferiu despacho nos seguintes termos:

“Entende a Requerente que a decisão suscita dúvidas por o Tribunal, depois de se considerar incompetente em razão do valor da causa, absolvendo a requerida da instância, não ter fixado as consequências do julgamento da verificação daquela incompetência do tribunal.

De conformidade com o que prevê o art.º 613º nº1 do CPC, “1-Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa; 2- É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprimir irregularidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.

Portanto, o juiz pode retificar erros materiais, pode suprir nulidades e reformar a sentença.

Quanto aos erros materiais estabelece o n.º 1 do artigo 614º: “Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou algum dos elementos previstos no nº 6 do art.º 607º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo os quais quer inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.”

Sem dificuldade, é normal concluir que não estão verificados os requisitos para que, por despacho do juiz, a sentença possa ser corrigida porquanto não é confirmada a existência de qualquer erro material nem a requerente os invoca, pelo que a sentença não é retificável.

Vigora segundo o art.º 616º do mesmo CPC a possibilidade de reforma da sentença quanto a custas, o que também não está em causa.

Adicionalmente, se a sentença não for recorrível, as partes podem também pedir a sua reforma quando tenha ocorrido lapso manifesto do juiz (i) na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, e também (ii) nos casos em que constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa  da proferida.

Também no regime deste artigo não conseguimos apoios ou fundamento para alterar a sentença por força do regime de reforma de sentença previsto no art.º 616º do CPC. Não há qualquer erro quanto a custas, nem erro na determinação da norma aplicável ou qualificação errada dos factos, nem sequer estão em causa matérias atinentes à prova.

O juiz tem ainda a possibilidade de suprir nulidade (nº 2 do art.º 613º) “nos termos dos artigos seguintes”.

O regime de nulidades da sentença está previsto no art.º 615º do CPC:

1-            É nula a sentença quando:

a)            Não contenha a assinatura do juiz;

b)           Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c)            Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d)           O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e)           O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

2-            A omissão prevista na alínea a) no número anterior é suprida oficiosamente, a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.

3-            Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.

4-            As nulidades mencionadas nas alíneas b) e e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.

Primeiramente, conforme estabelece o nº 3, as nulidades das alíneas b) e e) só podem ser invocas perante o tribunal que proferiu a decisão se a mesma não admitir recurso ordinário, o que não é o caso.

A eventual nulidade que aqui se poderia suscitar seria a constante da alínea d) por o juiz ter deixado (omissão de pronúncia) de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento (excesso de pronuncia).

No presente caso não foi apreciado o mérito do pedido pelo que também não pode ter lugar a nulidade da sentença prevista na alínea d) do citado preceito, quer por excesso quer por omissão de pronúncia. Nos presentes autos a decisão recaiu unicamente sobre a verificação de uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento de mérito o que se configura como uma forma de incompetência relativa do tribunal.

O que foi apreciado foi a incompetência relativa do tribunal, o que é uma exceção dilatória que nos termos do art.º 577º do CPC obsta ao conhecimento do mérito da causa dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal, conforme nº 2 deste preceito.

Nos termos do RJAT, no CAAD funciona apenas um tribunal, que decide em coletivo ou em singular, em função do valor da causa ou da indicação de árbitro por parte do sujeito passivo (artº 5º) pelo que o cumprimento desta última possibilidade de remessa do processo é inviável. Por outro lado, não se vê como se pode acolher a tese suscitada sobre a possibilidade de o processo de o processo ser distribuído de novo por inexistência de regime legal que o preveja.

Até, a nosso ver, será mais correto considerar que, na verdade, o instituto jurídico da arbitragem voluntária, contém mecanismos com solução diversa para esta situação de extinção da instância sempre que não tenha havido decisão de conhecimento do mérito, nomeadamente, no art.º 24º, nº 3 do RJAT, e o próprio art.º 89, nº 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, subsidiariamente aplicável, por força do art.º 29º do RJAT.”.

33-         A Requerente apresentou o presente pedido de constituição de tribunal arbitral com vista à declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IVA n.º 2018..., relativo ao segundo trimestre de 2017.

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Designadamente, os factos dados como provados nos pontos 4 a 10, 13 e 17, tiveram em conta o depoimento prestado pela testemunha D..., que relatou os mesmos de forma coerente e convincente, em termos de não deixar ao Tribunal, qualquer dúvida razoável a seu respeito.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

i.             Da matéria de excepção

Começa a Requerida por arguir a excepção de caducidade do direito de acção, por entender, em suma, que não se pode a Requerente escudar no previsto no art.º 24.º n.º 3 do RJAT, para tentar tornar tempestiva a presente acção.

No entender da Requerida, a circunstância de no processo arbitral 281/2018T do CAAD, o Tribunal se ter declarado incompetente em função do valor da acção, com a consequente absolvição da Requerida da instância, por a Requerente ali ter indicado um valor errado para o processo, é imputável àquela e não é desculpável.

Vejamos.

Dispõe o art.º 24.º/3 do RJAT que:

“Quando a decisão arbitral ponha termo ao processo sem conhecer do mérito da pretensão por facto não imputável ao sujeito passivo, os prazos para a reclamação, impugnação, revisão, promoção da revisão oficiosa, revisão da matéria tributável ou para suscitar nova pronúncia arbitral dos actos objecto da pretensão arbitral deduzida contam-se a partir da notificação da decisão arbitral.”.

                Como explica Carla Castelo Trindade, em obra citada pela Requerida , “A concretização do que entender por “imputável ao sujeito passivo” revela-se porém difícil. No limite, poder-se-ia afirmar que a ocorrência de qualquer excepção dilatória seria imputável ao sujeito passivo na medida em que foi ele que não configurou correctamente a competência do tribunal, (…) Julga-se porém, que caberá ao tribunal arbitral aferir a desculpabilidade desse “erro” do   sujeito passivo.   Dito   de outro modo,   e  tomando   por   referência os  casos  de incompetência do tribunal arbitral, há questões de tal maneira dúbias, que determinam na Doutrina e na própria jurisprudência posições contraditórias, que, caso seja procedente uma excepção de incompetência, o não conhecimento do mérito poderá não ser imputável ao  sujeito passivo.”.

                É, assim, ao presente Tribunal arbitral que compete aferir a desculpabilidade do erro na indicação do valor do processo arbitral 281/2018T, e na consequente absolvição da instância pelo Tribunal arbitral ali constituído.

                No caso, o que se verifica é que houve uma liquidação com o valor de €1.597,50, tendo a Requerente peticionado a sua anulação, bem como a da correcção no montante de €142.765,83 e do RIT que lhe deu origem e o reembolso do montante de €140.925,83.

                Ora, consabidamente, a matéria relativa ao valor da causa, nos processo tributários e arbitrais tributários, é matéria notoriamente contenciosa, podendo-se ver, a esse respeito, o decidido nos Acórdãos do TCA Sul de 13-03-2014, proferido no processo 07125/13, de 25-06-2019, proferido no processo 44/18.6BCLSB, e de 17-01-2019, proferido no processo 062/18.4BCLSB, este último objecto de recurso para o STA para melhoria do Direito, admitido pelo Acórdão daquele Tribunal de 21-11-2019.

                Deste modo, e tendo em conta o disposto no art.º 97.º/1/a) do CPPT, será abstractamente defensável, embora se possa discordar, que o valor da causa a indicar fosse o indicado pela Requerente no processo arbitral 281/2018T.

                Por outro lado, mesmo a decisão de absolvição da instância proferida naquele processo, não se poderá considerar como razoavelmente previsível, já que, tendo em conta o disposto nos art.ºs 104.º/2 e 105.º/3 do CPC, sempre o processo poderia ter sido remetido para o tribunal arbitral colectivo competente, a constituir para o efeito.

                Assim, tendo em conta o exposto, será de reputar desculpável a errónea indicação do valor da causa pela Requerente, sendo, por isso, de aplicar no caso o art.º 24.º/3 do RJAT e sendo, como tal, tempestiva a presente acção arbitral, devendo, assim, improceder a excepção ora em apreço.

 

***

ii.            Do fundo da causa

Como se viu já, as questões que se apresentam a decidir, tal como formuladas pela Requerente, são as seguintes:

i.             Vício de falta de fundamentação da decisão de indeferimento do pedido de reembolso de IVA constante do relatório de conclusões da acção de inspeção;

ii.            Erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por errada aplicação da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do IVA, porquanto, em seu entender, a Requerente não efetuou qualquer cedência a título gratuito de tooling.

Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:

“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

2 - Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:

a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;

b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”

Deste modo, e não tendo sido expressamente estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

*

Conforme é hoje jurisprudência pacífica e firmada, “É exclusivamente à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática da liquidação adicional de IVA que deve aferir-se a legalidade desse acto tributário.” .

                No caso sub iudice, a liquidação adicional objecto da presente acção arbitral, funda-se, em suma, no entendimento de que a Requerente “… é uma entidade totalmente autónoma, em termos tributários, em Portugal, gozando de personalidade tributária, e nestes termos, totalmente distinta e independente da entidade sediada na República Checa”, pelo que a Requerente “não engloba em caso algum, a entidade F...., estabelecida na República Checa e lá registada para efeitos de IVA, sob o NIF CZ....”.

                Nesse seguimento, entende a Requerida que sendo os moldes (tooling) adquiridos pela Requerente, utilizados pela B..., no benefício da F...., necessariamente que ocorre uma cedência daqueles moldes a título gratuito, uma vez que a Requerente nada factura a este título, a quem quer que seja,, pelo que  se estará perante uma operação esta sujeita a imposto nos termos do art.º 3.º n.º 3, al. f) do CIVA, sendo o valor sujeito a imposto, determinado nos termos do art.º 16.º n.º 2 al. b) do mesmo Código.

                A Requerente, por sua vez, argumenta em suma que não ocorreu qualquer transmissão gratuita de bens, dado que os moldes (tooling) se mantiveram sempre na sua propriedade, não tendo a B... o poder de dispor dos mesmos, e tendo alguns sido vendidos por si, após o termo da necessidade da sua utilização, e que mesmo que assim não se entenda, sempre se haverá de concluir que tal transmissão gratuita não teve qualquer outra finalidade que não a de negócio.

                Vejamos, então.

*

                A situação de facto sub iudice não se reveste de contornos particularmente complexo, e pode ser resumida da seguinte forma:

                - A Requerente é um sujeito passivo com sede na República Checa, que se cadastrou na Administração Fiscal portuguesa, tendo em vista a actividade, a realizar em território nacional, de compra e venda de moldes;

                - A Requerente adquiriu moldes, tendo nessa aquisição suportado IVA, cuja utilização cedeu a um seu fornecedor, para que este fabricasse peças para automóveis que lhe adquire e comercializa, directamente e por meio de uma sua subsidiária, fora do território nacional;

                - Terminada a vida útil dos moldes, a Requerente vende os mesmos em território nacional, liquidando o correspondente IVA.

                A questão que se coloca, face à concreta fundamentação do acto tributário ora em crise, é se a cedência da utilização dos moldes adquiridos pela Requerente, nos termos atrás descritos e constantes da matéria de facto provada, configura, ou não, uma transmissão gratuita, nos termos e para os efeitos do art.º 3.º n.º 3, al. f) do CIVA aplicável, cujo teor é o seguinte:

“Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo:

f) Ressalvado o disposto no artigo 26.º, a afectação permanente de bens da empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto;”.

                A própria letra da lei, indicia desde logo que, no caso concreto, não poderá concluir que estejamos perante uma transmissão gratuita, nos termos prescritos pela norma em questão, dado que dali resulta que aquela transmissão pressupõe a afectação permanente.

                Isto mesmo, de resto, foi afirmado no Ac. do TCA-Sul de 10-11-2016, proferido no processo 07832/14, onde se pode ler que que “O art. 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA que tributa o auto consumo externo de bens pressupõe que a afectação de bens a uso próprio do titular, do pessoal, ou a fins alheios à empresa tenha carácter permanente.”.

                É certo que o art.º 3.º n.º 3, al. f) do CIVA em causa, corresponde à transposição para o direito nacional do disposto no art.º 16.º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado, que não se refere a afectação permanente, dispondo que:

“É assimilada a entrega de bens efectuada a título oneroso a afectação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa ao seu uso próprio ou do seu pessoal, a transmissão desses bens a título gratuito ou, em geral, a sua afectação a fins alheios à empresa, quando esses bens ou os elementos que os constituem tenham conferido direito à dedução total ou parcial do IVA.”.

                Não obstante, o certo é que não se tratará, o indicado desfasamento da norma nacional em relação à norma comunitária, de questão que valha a pena discutir aqui, desde logo na medida em que, por um lado, o Tribunal, como se indicou já, está limitado, nos seus poderes de conhecimento, aos concretos fundamentos do acto tributário impugnado, e estes se restringem, no que à fundamentação de direito diz respeito, e no que ao caso releva, à norma do art.º 3.º/3/f) do CIVA aplicável.

                Por outro lado, acresce também que a situação de facto apurada, não permitira, em todo o caso, concluir pela afectação do bem a fins alheios à empresa, sendo que a própria fundamentação constante do RIT não é clara, sequer, no sentido de esclarecer a quem é que ali se considerou terem sido afectados os bens em causa, transparecendo, em determinadas partes, o entendimento de que teria sido a fornecedora da Requerente (aB...), tendo a Requerente interpretado o RIT desta forma, e noutras partes que seria a própria Requerente, na sua qualidade de sujeito passivo na República Checa, tendo a Requerida interpretado o RIT dessa forma.

                De qualquer modo, não se comprovando, como é o caso, que existiu uma afectação permanente dos bens à utilização de terceiros, como é o caso, sempre a conclusão a chegar deveria ser a de que estava em causa uma prestação de serviços gratuita, tributável nos termos da al. a) do n.º 2 do art.º 4.º do CIVA aplicável, e não uma transmissão de bens enquadrável no art.º 3.º/3/f) do mesmo diploma, conforme o TJUE já indicou , não se podendo, como é sabido, o Tribunal substituir-se à AT na fundamentação de direito do acto tributário.

                Assim, e face ao exposto, dever-se-á concluir que o acto tributário objecto da presente acção arbitral enferma de erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, por errada aplicação do art.º 3.º/3/f) do CIVA, na medida em que não ocorreu qualquer transmissão de bens gratuita, tributável nos termos daquela norma, pelo que deverá ser anulado, procedendo, nessa parte, o pedido arbitral e ficando prejudicado o conhecimento da questão relativa ao vício de falta de fundamentação, suscitada pela Requerente.

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                Com o pedido anulatório, a Requerente cumula o pedido acessório de anulação das correcções realizadas pela AT, no montante de € 142.765,83, e da condenação daquela no deferimento do pedido de reembolso de IVA, no montante de € 140.925,83.

                Ora, como se explica no Ac. do TCA Sul de 16-09-2019, proferido no processo 120/18.5BCLSB:

“1. O pedido de condenação da AT ao reconhecimento de um crédito de IVA relativo a um exercício passado, crédito esse a ser utilizado em exercícios futuros, deve ser formulado numa acção administrativa para reconhecimento de direitos em matéria tributária.

2. A competência legalmente atribuída aos tribunais arbitrais em matéria tributária não abrange a apreciação de pedidos idênticos aos anteriormente referidos.”.

                Deste modo, não se integrando no âmbito do processo arbitral tributário as matérias em questão, não poderá a mesma ser apreciada, devendo, em sede de execução do ora julgado, ser tutelados os interesses da Requerente relativos aos pedidos referidos.

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                Cumula, ainda, a Requerente com o pedido anulatório, os pedidos de restituição do valor de imposto indevidamente pago, bem como de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

                De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, sendo consequentemente devida a restituição da quantia paga pela Requerente.

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

Há assim lugar, na sequência da declaração de ilegalidade do acto de liquidação objecto da presente decisão arbitral, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular o acto de liquidação de IVA n.º 2018...;

b)           Não conhecer os pedidos acessórios de anulação das correcções realizadas pela AT, no montante de € 142.765,83, e da condenação daquela no deferimento do pedido de reembolso de IVA, no montante de € 140.925,83;

c)            Condenar a Requerida na restituição do imposto indevidamente pago, por força da liquidação ora anulada, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados;

d)           Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo indicado.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 142.765,83, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Maio de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Rita Guerra Alves)

 

O Árbitro Vogal

(Cristina Aragão Seia)