Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 19/2021-T
Data da decisão: 2021-10-12  ISV  
Valor do pedido: € 4.648,53
Tema: Imposto sobre veículos. Revisão oficiosa da liquidação.
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SUMÁRIO:

 

1-O erro imputável aos serviços, fundamento do meio de revisão extraordinária dos atos tributários previsto nº 1 do art. 78º da Lei Geral Tributária (LGT),  abrange apenas o erro na aplicação da parte do  direito da União Europeia  originário ou derivado  que vincule  diretamente todos os poderes públicos e os particulares, ainda  quando  não haja nenhuma lei nacional que  assim o determine.

2-Não têm aplicação direta as normas do direito comunitário ou derivado cuja aplicação nos Estados membros   dependa de medidas  normativas nacionais, legislativas ou regulamentares, ou de atos administrativos da exclusiva competência desses Estados.

3-Têm, por outro lado, somente efeito direto as normas que, não sendo de aplicação direta, podem ser invocadas pelos particulares junto dos tribunais nacionais, como fonte de direitos e obrigações.

4- O princípio do primado tanto é compatível com a aplicação direta como com o efeito direto das normas do Direito Comunitário.

5-O art. 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), correspondente ao anterior artigo 90.º do Tratado da Comunidade Europeia(TCE), que declara que nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares, é uma norma com efeito direto, prevalecendo sobre disposições nacionais contrárias, mas  não tem  aplicação direta.

6- Nos termos do art. 288º desse TFUE, correspondente ao art. 249º do TCE, essa aplicação direta está reservada aos Regulamentos, às Decisões, ou outras normas de Direito Comunitário que se destinem a produzir efeitos análogos aos dos Regulamentos e Decisões,

7 -A vinculação da AT ao princípio da legalidade, expressa no nº 2 do art. 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no art.  55º da LGT, impede aquela, bem como qualquer outro órgão da administração pública, de recusar a aplicação de uma norma de direito nacional com fundamento na sua  inconstitucionalidade ou ilegalidade , caso em que se substituiria  aos tribunais, com a consequente violação do princípio da separação de poderes expresso no art. 2º da CRP, salvo quando estiver em causa a aplicação dos direitos, liberdades e garantias referidos no nº 1 do art. 18º.

8- Deste modo, a ilegalidade das liquidações impugnadas por violação de normas de direito comunitário com mero efeito direto, para efeitos da aplicação do meio de revisão oficiosa do nº 1 do art. 78º da LGT, não pode ser considerada como causada pelos serviços, salvo quando o seu fundamento seja erro na interpretação dessas normas.

9- Não sendo aplicável o meio extraordinário de revisão do nº1 do art. 78º da LGT, o ato tributário só pode ser anulado em consequência de reclamação graciosa ou impugnação judicial, a deduzir respetivamente nos termos do nº 1 do art. 70º e do nº 1 do art. 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário(CPPT), aplicáveis a todas as ações análogas de natureza interna.

10- Os prazos para reclamar ou impugnar de 120 dias e 90 dias previstos nessas normas legais não tornam praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária, assegurando, assim, a sua efetividade, e são aplicáveis a todas as ações análogas de natureza interna, respeitando, assim, o princípio da equivalência.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I-             RELATÓRIO

 

1.Identificação das Partes

1.1. Requerentes

A..., NIF ..., residente na Rua..., ..., ..., o Primeiro Requerente , e  B..., NIF..., residente na Rua..., ...-... Maia, a Segunda Requerente, coligados nos termos do art. 104º do CPPT. Ambos os Requerentes são considerados particulares para efeitos dos arts. 3º e 16º do CISV.

1.2.Requerida

Autoridade Tributária (AT), representada pelas juristas C... e D..., designadas a 4/3/2021

2.Tramitação e constituição do Tribunal

2.1. A 11/1/2021, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição de tribunal arbitral;

2.2. Após a nomeação do Árbitro, a 3/5/2021, o Tribunal Arbitral foi constituído por despacho  do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 2/5/2021;

2.3.-A 16/6/2021, a AT apresentou a sua resposta e juntou aos autos o Processo Administrativo (PA).

 3.O Pedido

Os Requerentes pretendem:

a) A declaração de ilegalidade parcial dos atos de liquidação de ISV resultantes da apresentação das Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV) n.ºs 2019/..., de 05.12.2019, apresentada pelo Primeiro Requerente, 2019/..., de 31.07.2019, apresentada também pelo Primeiro Requerente, e 2019/..., de 08.11.2019, apresentada pela segunda Requerente. Todas as liquidações, no valor total de € 11.054,87, dos quais € 4.269,97 corresponderam à componente cilindrada e € 6.784,91 à componente ambiental foram da autoria do Diretor da Alfândega do Freixieiro. 

b) A consequente anulação parcial dessas  liquidações  e restituição da quantia de € 4.648,53  acrescida dos  juros indemnizatórios,  nos termos do art. 43º da LGT, não especificando os Requerentes qual ou quais os diferentes nºs dessa norma que fundamentam   a pretensão do pagamento desses juros. 

 

Com efeito, segundo descrevem os Requerentes, enquanto relativamente à componente cilindrada, o ISV foi liquidado pelo valor de € 13.484,10 - € 9.214,14 ( correspondendo este último valor à redução pelo número de anos de uso), relativamente à   componente ambiental, foi liquidado por € 6.784,91, sem qualquer redução, quando, para cumprir o art. 110º do TFUE, deveria ter sido também aplicada a esta componente a redução pelo número de anos de uso, nesse  valor de € 4.648,53, baixando dessa forma o respetivo ISV para o valor de € 6.406,34.

 

4.Posição das partes

 

4.1- Posição dos Requerentes

 

Apesar de os Requerentes terem procedido ao pagamento do imposto liquidado, sem o que não poderiam ter legalizado os veículos para poderem circular em Portugal, consideram, na Petição Inicial (PI), que as liquidações efetuadas do ISV estão feridas de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, .por violação do já referido art. 110º do TFUE, como vem largamente desenvolvido nos nºs 1 a 32 da PI.

 

Segundo os Requerentes, com efeito, o montante do imposto cuja liquidação originaria o presente pedido de pronúncia arbitral, calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo na parte do preço que refletiria a componente ambiental, excederia o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.

 

Segundo a jurisprudência do TJUE amplamente citada pelos Requerentes na PI, um Estado-Membro não poderia cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deveria refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional, o que não seria o caso da norma legal ao abrigo da qual seria realizada a liquidação impugnada , o art. 11º do Código  do Imposto sobre  Veículos (CISV)  , na redação do art. 217º da Lei nº 42/2016, de 28/12, que reintroduziu uma medida discriminatória que tinha sido abolida pelo art. 113º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, medida essa que apenas foi suprimida pelo art. 391º da Lei nº 75-B/2021, de 31/12. .

 

Nessa medida, as liquidações acima referidas deveriam ser parcialmente anuladas em ordem a limitar o montante do imposto devido   ao  montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional  , de acordo com critério idêntico ao estabelecido   na Tabela D integrante do nº 1 do  art. 11º, que define a desvalorização comercial média dos veículos em mercado nacional, mas que reflete apenas a desvalorização da parte do preço relativa à componente cilindrada, com exclusão da relativa à  componente ambiental.

 

4.2. Posição da Requerida

Segundo a Requerida, o pedido de revisão tendo por objeto a anulação parcial das liquidações de ISV IL nº 2019/..., de 29.11.2019, IL nº 019/..., de 26.07.2019 e IL nº 2019/..., de 04.11.2019, com data limite de pagamento de, respetivamente, 13.12.2019; 09.08.2019 e 18.11.2019, cujo indeferimento é objeto do  presente pedido de pronúncia arbitral , teria sido extemporâneo.

É o que resultaria de o prazo para a apresentação da reclamação administrativa, nos termos do nº 1 do art. 70º do CPPT, ser de 120 dias a contar do fim do prazo de pagamento e de tal pedido ser sido apresentado, separada mas simultaneamente por ambos os Requerentes, apenas a  2.10.2020, muito depois, assim, do termo desses 120 dias.

Passando do âmbito da alegação dessa exceção para o âmbito da defesa por impugnação alega a Requerente que  o referido art. 11º do CISV ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objeto de redução, o Estado Português  não teve o objetivo discriminatório de restringir a entrada de veículos usados em Portugal, com o consequente benefício do comércio nacional deste tipo de bens,  mas sim  orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado- Membro.

O modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do CISV pela Lei n.º 2A/2007, de 29/6, foi, assim, norteado por preocupações ambientais com respeito pelas diretrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris, com o consequente afastamento da aplicação do referido art. 110º do TFUE.

A tributação das emissões de CO2 dos veículos novos e usados não pretenderia, assim proteger a produção nacional, mas sim levar os consumidores a optar pela compra de veículos com menores emissões de CO2, tendo por fim último a proteção do ambiente, no cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º TFUE, sendo, assim, alheia a quaisquer propósitos discriminatórios.

 

5.SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

6.Fundamentação de facto

6.1. Factos Provados

O Primeiro Requerente A... introduziu no consumo veículo automóvel usado marca ..., modelo ..., movido a gasóleo, matrícula ..., procedente de França declarado através da referida DAV nº 2019/..., de 05.12.2019, Liquidação nº 2019/..., de 29.11.2019,                no valor de € 4.097,06, cujo termo final do pagamento ocorreu em 13.12.2019. 

 

O Primeiro Requerente A... introduziu no consumo veículo automóvel, marca ..., modelo..., movido a gasóleo, ao qual foi atribuída a matrícula ...,  procedente de França declarado através da referida DAV nº 2019/..., de 31.07.2019, Liquidação nº..., de 26.07.2019, no valor de € 3.591,27 cujo termo final do pagamento ocorreu em 9.08.2019. A data da primeira matrícula é 30/8/2011 e a data da entrada em território nacional 28/3/2019

 

A Segunda Requerente B... introduziu  no consumo veículo automóvel ..., modelo..., movido a gasóleo, ao qual foi atribuída a matrícula ..., procedente da Alemanha , declarado através da DAV nº 2019/..., de 08.11.2019, Liquidação nº 2019/..., de 4/11/2019, no valor de € 3.366,54 ,  cujo termo final de pagamento ocorreu em 18.11.2019. A data da primeira matrícula é 30/6/2011 e a data da entrada em território nacional 31/3/2019.

 

Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, os veículos inserem-se no escalão da tabela correspondente à redução de 70 %, 65% e 70%.

 

No Quadro E da DAV (características do veículo), constam, na casa 25, quanto à Emissão de Gases CO2 os valores de 125 g/Km, 119g/km e 119g/km.

 

O cálculo do ISV, que consta do Quadro R das DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do art. 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo , que, como se referiu, , a partir da Lei nº 42/2016, apenas compreenderia a componente cilindrada.

 

Em 02.10.2020, o Primeiro Requerente e a Segunda Requerente apresentaram separadamente junto da Alfândega de Freixieiro, ao abrigo do nº 1 do art. 78.º da LGT, pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de imposto, dando origem aos processos de Revisão Oficiosa a que foram atribuídos os n.ºs ...2020... e ...2020....

 

Com vista à apreciação desses pedidos foram elaboradas as Informações, de 2.11.2020 da Alfândega do Freixieiro, que mereceram despacho datado de 2.11.2020 do referido Sr. diretor da Alfândega do Freixieiro no sentido do indeferimento, com os fundamentos anteriormente expostos.

 

Com vista à apreciação desses pedidos foram elaboradas as Informações, de 2.11.2020 da alfândega, que mereceram despacho datado de 2.11.2020 do Sr. diretor da Alfândega do Freixieiro no sentido do indeferimento, com os fundamentos anteriormente expostos.

 

6.2.        Factos não Provados

 

Não se consideram não provados quaisquer factos suscetíveis de relevância para o conhecimento da presente causa.

 

7-Fundamentos de direito.

7.1. Da ilegalidade da norma fundamento da liquidação do ISV, o nº 1 do art. 11º do CISV, na redação do art. 217º da Lei nº 42/2016

 

Por a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral depender dos concretos fundamentos dos atos impugnados, começa-se pela apreciação destes.

A ilegalidade do fundamento das liquidações impugnadas é indiscutível, como resulta do ainda muito recente  Acórdão do TJUE de 2/9/2021, no proc. C-169/ que, aliás, mais não faz que confirmar a já vasta jurisprudência do CAAD sobre o assunto em causa, em que avultam  as decisões dos processos nº 572/2018-T; Processo nº 346/2019-T; Processo nº 348/2019-T; Processo nº 350/2019-T; Processo nº 459/2019-T; Processo nº 466/2019-T; Processo nº 498/2019-T; Processo nº 660/2019-T; Processo nº 776/2019-T; Processo nº 833/2019-T; Processo nº 872/2019-T; Processo n º 13/2020-T; Processo nº 34/2020-T; Processo nº 52/2020-T; Processo nº 75/2020-T; Processo nº 98/2020-T; Processo nº 113/2020-T; Processo nº 117/2020-T; Processo nº 117/2020-T; 158/2020-T; Processo nº 201/2020-T; Processo nº 209/2020-T; Processo nº 246/2020-T; Processo nº 293/2020-T; Processo nº 309/2020-T; Processo nº 329/2020-T; Processo nº 347/2020-T 455/2020-A , 456-2020/T e 474-2020/T.

Tal Acórdão foi proferido em ação por incumprimento intentada contra o Estado português pela Comissão Europeia, nos termos do art. 258º do TJUE.

Como resulta do nº 36 desse Acórdão, para efeitos da aplicação do art.  110.º TFUE, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados já presentes no território do Estado Membro, que constituem produtos similares ou concorrentes aos primeiros, deve tomar se em consideração, não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve, assim, refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional.

Neste contexto, prosseguiriam os nº s 37 e 38. desse Acórdão, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre os veículos usados importados e os veículos usados similares anteriormente matriculados no território nacional e submetidos, no momento da matrícula, ao referido imposto.

Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do CISV prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, na legislação que vigorou entre a Lei nº 42/2016 e a Lei  nº 75-B/2020,  não esteve  prevista , para os  veículos importados. nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que refletisse a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

Daqui resulta, segundo os nºs 41 e 42 desse Acórdão que a legislação nacional que institui o imposto em causa tivesse por consequência que, durante esse período, o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros fosse calculado, relativamente à parte do preço que refletia a componente ambiental, sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a legislação nacional não garantiu que os veículos usados importados de outro Estado Membro fossem  sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

Recorda o nº 43  do mesmo Acórdão que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE . A proteção do ambiente não se efetiva necessariamente por medidas discriminatórias.

O artigo 110.º TFUE opor-se-ia, assim, a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da classificação ambiental dos veículos, fosse calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplicasse a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapassasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já tivessem  sido  registados no Estado Membro de origem.

Chama a atenção o nº 45 do  Acórdão do TJUE o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente do que aquela que foi adotada pelo Estado português,  fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador . Em lugar dessa medida, que seria irrepreensível perante o Direito Comunitário, o legislador optou por introduzir uma discriminação a favor do mercado nacional de carros usados, que não se pode fundar em si mesma na proteção do ambiente.

Assim, segundo o nº 51 desse Acórdão, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.

7.2. Da intempestividade do pedido

 

O art- 110.º do TFUE, correspondente ao anterior artigo 90.º do TCE, norma que fundamenta  a pretensão da Requerente, declara , como anteriormente se referiu, que nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

O comando dessa norma que tem origem no art. 12º do próprio Tratado de Roma dirige-se primordialmente aos Estados membros da UE que não podiam e continuam a não poder, através de medidas  discriminatórias não fundamentadas nem adequadas para os fins a atingir, anteriores  ou posteriores à entrada em vigor do TFUE, entravar a liberdade de circulação de mercadorias no então Mercado Comum, ora mercado interno da UE.

 

Em Direito Comunitário, apenas têm aplicação direta as normas cuja exequibilidade não dependa de medidas normativas, legislativas ou regulamentares nacionais ou atos administrativos adotados pelos Estados membros.

 

Têm, por outro lado, efeito direto as normas que, não sendo de aplicação direta, dada a exequibilidade depender da sua transposição pelos Estados membros para o direito nacional, podem, no entanto, ser invocadas pelos particulares junto dos tribunais, como fonte de direitos e obrigações.

 

Nos termos do art. 288º do TFUE, apenas têm aplicação direta os Regulamentos e as Decisões. No caso das Decisões identificarem destinatários, apenas a estes se lhes aplicam diretamente.

 

As normas do TJUE não têm, à luz desse critério, aplicação direta (Patrícia Fragoso Martins.  “O Princípio do Primado do Direito Comunitário sobre as Normas Constitucionais dos Estados Membros- Dos Tratados ao Projeto de Constituição Europeia”, Lisboa, 2005, pg. 29). Podem, no entanto, caso sejam invocadas perante tribunais nacionais, ter efeito direto, consequente do  primado do Direito Comunitário, como seria desenvolvido pela jurisprudência do TJUE logo a partir do Tratado de Roma.

 

Com efeito, o     Acórdão do TJUE C- 26/62, de 5/2/63, conhecido por Van Gend & Loos, tal art. 12º   do Tratado de Roma reconheceu aos particulares direitos individuais que as jurisdições internas dos Estados membros deveriam salvaguardar, incluindo os direitos inerentes à liberdade de circulação.

 

Segundo o posterior Acórdão nº C- 166/77, de 9/3/78, conhecido por Simmenthal, a salvaguarda desses direitos não depende de o juiz solicitar ou esperar a prévia eliminação da norma interna incompatível, quer por via legislativa, quer por qualquer outro processo constitucional do Estado membro.

 

É de referir que, a partir do Acórdão do TJUE C-/60, de 16/12/60, o TJUE consideraria não dispor, como hoje ainda não dispõe, mesmo no âmbito da ação por incumprimento atualmente regulada  no art. 260º do TFUE,  da competência  de anulação de atos dos Estados membros com fundamento em serem contrários ao Direito Comunitário, independentemente de tais atos serem individuais e concretos ou normativos. 

 

Assim, a sanção da violação do princípio do primado como foi desenvolvido por essa jurisprudência não é a invalidade mas a mera ineficácia, por inaplicabilidade, perante o Direito Comunitário, seja este primário, como é o referido art. 110º do TFUE, ou derivado, das  normas de direito interno  que o contrariem.

 

O princípio do primado não prejudica outras consequências que o direito interno de cada Estado membro possa extrair autonomamente da violação das normas do Direito Comunitário.

 

Assim o Direito Comunitário apenas obriga o juiz nacional a desaplicar as medidas normativas ou administrativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

 

Não lhe permite anular essas medidas, que apenas pode ser decidida, por esse juiz nacional,  nos termos do seu  próprio direito nacional, caso este assim permita.

Do mesmo modo, do princípio do primado não resulta a licitude de, salvo em cumprimento de decisão judicial, as Administrações Públicas dos Estados Membros desaplicarem as medidas normativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

A possibilidade de a Administração Pública se recusar a aplicar atos legislativos com fundamento em inconstitucionalidade ou mera ilegalidade, exercendo um controlo da constitucionalidade ou legalidade dos atos normativos reservado aos tribunais ,  é, aliás, no modelo do Estado de direito adotado pela quase totalidade dos países da União Europeia,  incompatível com o princípio da separação de poderes, em Portugal com expressão no art. 111º da Constituição da República Portuguesa(CRP),  que, no nº 1, dispõe que os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na CRP. Não se vislumbra, por exemplo, como possa ser compatível com esse modelo a possibilidade de um diretor-geral ou funcionário subalterno recusar a aplicação de uma lei do Parlamento, à margem do controlo deste sobre toda a atividade administrativa.

Esse princípio seria acolhido, passando agora para o direito interno, pelo nº 4 do art. 8º da CRP, aditado pelo art. 3º da Lei Constitucional nº 1/2004, de 24/7,   que dispõe que as disposições dos Tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

 

Por comparação com o que  constava do Projeto de  Revisão Constitucional nº 3/IX, esse  nº 4 não declara, assim,  o direito primário dos Tratados  e o direito  derivado prevalecerem hierarquicamente  sobre as normas do  direito interno , mas apenas determinarem a sua ineficácia/ inaplicabilidade. 

 

A versão final   que viria a ser aprovada estaria de harmonia com o posterior Tratado de Lisboa resultante do cumprimento do mandato da conferência intergovernamental definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas de 22/06/2007, que retirou ao projeto de tratado inicial, o chamado Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa aprovado pelo Conselho Europeu de Roma de 29/10/2004, esse carácter constitucional.

 

Deste modo, as normas dos Tratados da União, como é o caso desse art. 110º do TFUE, : não são aplicáveis diretamente, mas têm efeito direto na medida em que a sua incompatibilidade com o Direito Comunitário pode ser invocada perante os  tribunais para efeito da remoção da  aplicação do direito interno contrário.

 

No entanto, as normas dos Tratados e direito derivado   não são aplicáveis sempre que a sua  aplicação contrarie princípios fundamentais do Estado de direito democrático, hipótese de momento meramente  académica, já que tais princípios fundamentais foram incorporados pelos Tratados, incluindo na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Está, assim, afetada   pelo que parte da doutrina chama de “inconstitucionalidade indireta”, por contrariar esse nº 4 do art. 8,º ou, ainda que assim se não concorde.  de ilegalidade “sui generis”, por contrariar o nº 2 do art. 3º, qualquer  medida normativa nacional  da qual resulte a inaplicabilidade do Direito da União Europeia (Jorge Miranda, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, pg 95).

 

A eventual violação indireta de normas constitucionais por norma interposta em que se enquadra a chamada “inconstitucionalidade indireta “só cabe, no entanto na figura da inconstitucionalidade quando a violação da norma interposta  implicar igualmente a violação direta e autónoma de normas constitucionais diversas para além da que fixam as regras da hierarquia (Acórdão do Tribunal Constitucional de 31/10/84, Proc. 84-0043). Mais recentemente, sobre a violação das normas dos Tratados de aplicação direta ou com efeito direto, confirmando que configura, não uma inconstitucionalidade, mas simples  ilegalidade  , Acórdão do Tribunal Constitucional nº 569/2016.Tal doutrina seria atualizada  pelo Acórdão n.º 268/2021 do TC, na sequência dos  Acórdãos 354/97, 122/98, 624/98, 650/98 e 147/2005), todos do TC.

 

Assim o  direito convencional, vinculativo nos termos dos nºs 2 a 4 do art, 8º, da CRP,  de acordo com a chamada Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15/11)  nos termos da alínea i) do n.º 1 do  artigo 70.º, apenas é passível de um juízo de inconstitucionalidade nos  casos de decisões que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional.

 

Não cabe, no entanto, à Administração Pública, particularmente à Administração Tributária, sob pena de subversão do princípio da separação de poderes, usurpando a função dos  tribunais, recusar  a aplicação de medidas  de natureza legislativa  legitimamente aprovadas pelo Governo ou pela Assembleia da República, com fundamento em inconstitucionalidade  mas também em  ilegalidade. Uma vez, de acordo com os critérios gerais de interpretação das leis previstos na lei civil e na lei fiscal, o resultado da interpretação dessas normas seja o da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, a Administração Tributária não pode deixar, mesmo assim, de as aplicar, deixando para os tribunais o controlo da constitucionalidade ou ilegalidade que exclusivamente lhes cabe.

 

Essa é a jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 30/1/2019, proc. 564/18.2BALSB), a propósito da aplicação do art. 43º da LGT,  de acordo com o qual  “Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no art. 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da Administração Tributária qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da Administração Tributária  decidir de modo  de modo diferente daquele que decidiu ,por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. nº 2 do art. 266.º da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr.  nº 1 do art. 18º   da CRP)”.

 

Tal Acórdão abrange não apenas a inconstitucionalidade mas a ilegalidade das normas: não faria sentido, aliás,  que o efeito direto negado às normas constitucionais fosse reconhecido às normas ilegais, colocadas num plano inferior na hierarquia das   normas jurídicas.

 

Traduz  jurisprudência consolidada , de acordo com os critérios que têm vindo a ser definidos pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo no preenchimento do conceito de “jurisprudência mais recentemente consolidada do STA”: esta deve transparecer ou do facto de a pronúncia respetiva constar de acórdão do Pleno assumido pela generalidade dos Conselheiros em exercício na Secção consoante prevê o  nº 2 do atual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais(ETAF) ou do facto de existir uma sequência ininterrupta de várias decisões no mesmo sentido, obtidas por unanimidade em todas as formações da Secção, como são particularmente, entre outras, as citadas na Decisão nº 362- 2020/T, do CAAD (Vide, por todos, o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, 12 /12/2012, proferido no processo com o n.º 932/12).

 

Essa jurisprudência consolidada do STA contrariaria a dos Acórdãos de 31/10/2001, proc.  026167, 17/11/2001, proc. 026404, e   19/11/ 2014, Processo. 886/14-30, que fundamentariam o direito a juros indemnizatórios nos casos de anulação do ato tributário com fundamento na inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma aplicada com recurso a um tipo de responsabilidade objetiva da Administração Tributária resultante de uma pretensa falta dos serviços globalmente considerados.

 

Tal responsabilidade objetiva é,  a nosso ver, inexistente, dado o  nº 2 do art. 483º do Código Civil dispor só existir responsabilidade sem culpa nos termos previstos na lei, o  art. 22º da CRP não impor  qualquer responsabilidade do Estado pelos danos normais causados pelo  exercício da função legislativa( nesse sentido, Jorge Miranda, “ A  Constituição e a Responsabilidade Civil do Estado”, nº 1, Janeiro  a Junho de 2003, Revista Brasileira de Direito Constitucional) e o nº 1 do art. 15º da Lei 67/2007, de 31/12, se limitar a declarar  o Estado e as Regiões Autónomas serem  civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos por atos que, no exercício da função político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou ato legislativo de valor reforçado, solução , aliás, que, no essencial, já vinha consagrada no anterior DL 48.051, de 21/11/67 .

 

 Assim , apenas  são indemnizáveis os encargos ou danos especiais e anormais, o que significa que esta categoria de responsabilidade civil, procurando assegurar o pagamento de uma compensação a quem tenha sido afetado na sua esfera jurídica por razões de interesse comum, visa sobretudo dar concretização prática a um princípio de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, desvalorizando a ocorrência de danos generalizados ou de pequena gravidade que devam ser entendidos como um encargo normal exigível como contrapartida dos benefícios que derivam do funcionamento dos serviços públicos( Carlos Cadilha,O novo regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado”, Lisboa, 1ª edição, Anotação a esse art. 15º). 

 

Não se vê como possa haver falta dos serviços globalmente considerados quando estes se limitaram a aplicar a lei existente e o dano causado seja suscetível a recondução a um encargo normal exigível como contrapartida dos benefícios auferidos pelos contribuintes em virtude do exercício de uma atividade pública.

 

 Nessa medida, o art. 217º da Lei 42/2016 de 27/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2017), que alterou  o  art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos (CSVI) voltando  a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a  componente ambiental (emissão de CO2),  não sendo inconstitucional , está, no entanto, ferido de  ilegalidade por contrariar o art. 110º  do TFUE.

 

As leis da Assembleia da República podem ser, não apenas inconstitucionais,  mas ilegais, como é o caso das leis ordinárias  que violem  leis  reforçadas ,  das leis de desenvolvimento que violem a lei – quadro  ,    das leis sem natureza orçamental que alterem o Orçamento de Estado e das leis incompatíveis com normas comunitárias de aplicação direta ou com efeito direto.

 

Nos termos do nº 1 do art. 17º do CISV, a liquidação do imposto é titulada pela DAV.

Cabe, no entanto, à Administração Tributária, nos termos do nº 1 do art. 25º, liquidar o ISV com base na DAV.

Assim, ao liquidar o imposto com base em uma norma – o art. 217º da Lei 42/2016- sem dúvida incompatível com o Direito Comunitário, a Administração Tributária limitou-se a aplicar o direito em vigor, com a consequente exclusão de erro imputável aos serviços, na aceção da citada  jurisprudência superior.

 

Não estaria, no entanto, em causa, no entanto, caso estivesse preenchido o requisito da tempestividade, o direito do contribuinte a juros indemnizatórios.

 

Segundo o nº 1 daquele art. 43º, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Considera-se também haver erro imputável aos serviços, segundo o nº 2, bem como para efeitos do nº 1 do art. 78º,  nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

Ampliando o direito a juros indemnizatórios a outros fundamentos que não incluem o erro imputável aos serviços na liquidação, o nº 3 estabeleceria serem também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

 

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

 

Em consequência dessa consolidação dessa  jurisprudência superior,  o  art. 2º da Lei nº 9/2019, de 1/2,  introduziria nesse nº 3 uma nova alínea  d) que ampliaria  a extensão do direito a  juros indemnizatórios , não obstante  a inexistência nessas circunstâncias  de erro imputável aos serviços, aos casos  em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução

 

É uma opção legítima de política legislativa mas que, pelos motivos apontados, não resulta de qualquer imposição constitucional.

 

 O legislador limitou-se a introduzir um novo fundamento do direito a juros indemnizatórios em caso de danos, ainda que de pequeno montante, causados por ato normativo, mas não ampliou o fundamento do meio extraordinário de revisão do nº 1 do art, 78º da LGT, em ordem a incluir casos em que a liquidação tiver sido causada por erro imputável aos seviços.

Segundo a art 3º dessa Lei, a nova  redação da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT aplica-se também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrada em vigor, sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1/1/ 2011.

É uma opção legítima de política legislativa mas que, pelos motivos apontados, não resulta de qualquer imposição constitucional.

Para efeitos do nº 1 do art. 78º da LGT, o conceito de  “erro imputável aos serviços, na falta de outra indicação  legal, é o   dos nºs 1 e 2 do art. 43º da LGT(Acórdão do STA de 13/7/2021, proc. 0111/18.6BEPNF). Outra solução contrariaria a unidade do sistema jurídico garantida pelo nº 1 do art. 9º do Código Civil-

Por outras palavras, o dito  “erro imputável aos serviços”  concretiza qualquer ilegalidade não imputável  ao contribuinte por conduta negligente, mas à Administração Fiscal,   como é o caso do erro na interpretação da lei, mais devendo tal erro revestir carácter relevante, gerando um prejuízo efetivo, em virtude do errado apuramento da situação tributária do contribuinte, daí derivando o seu carácter essencial (cfr. Ac. STA - 2a Secção, 14/3/2012, rec. 1007/11; Ac. STA - 2ª Secção, 4/5/2016, rec. 407/15; Ac. TCA Sul - 2a Secção, 24/11/2016, proc. 9791/16; Paulo Marques, A Revisão do Acto Tributário, Cadernos do IDEFF, nº.19, Almedina, 2015, pág.232 e seg.).

Nessa medida,, o fundamento da    decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução apenas é erro imputável aos serviços quando  a Administração Tributária não tiver procedido, ao apurar a situação tributária do contribuinte, a uma correta interpretação e aplicação  da lei (nesse sentido, as Decisões Arbitrais nºs Processos 848-2019/T, 396/20200-T,  393- 220/T, 414-2020/T, 419-2020/T, 165-2020 /T, 362-2020/T) .

Essa jurisprudência arbitral não é, no entanto, de modo nenhum uniforme ou sequer maioritária, como resulta, entre outras, das Decisões Arbitrais nos Processos -2018/T, 314-2020/T, 315-2020/T,  397-2020/T, 346-2019.T,  347/2019-T, 455/2020-T, 457-2020/T., mas, como se explicou, a nossa preferência é pela orientação referida em primeiro lugar, que não viola qualquer disposição do Direito Comunitário. Esse última corrente jurisprudencial do CAAD não tem em conta a incongruência que seria a aplicabilidade direta em bloco das normas do Tratado da União, quando essa aplicabilidade direta não é reconhecida ao próprio direito constitucional interno. 

Tal apenas poderia acontecer caso o Direito Comunitário tivesse uniformizado ou harmonizado os meios de reação judicial dos sujeitos passivos perante uma liquidação incompatível com as suas normas ou a sanção dessa incompatibilidade não fosse a mera anulabilidade mas a nulidade

Com efeito, de acordo com os nºs 32 e 33 do Acórdão do TJUE de 15/9/98, processo C-231/96, o chamado Caso Edis, o problema da contestação de taxas ilegalmente reclamadas ou da restituição de taxas indevidamente pagas é resolvido de modo diferente nos diversos Estados-Membros e mesmo, no interior do mesmo Estado, consoante os diversos tipos de imposições em causa.

Em certos casos, as contestações ou pedidos deste tipo estão sujeitos, pela lei, a condições precisas de forma e de prazo no que respeita tanto às reclamações apresentadas à administração fiscal como às ações judiciais. Noutros casos, as ações para restituição de taxas indevidamente pagas devem ser intentadas nos órgãos jurisdicionais ordinários, sob a forma, designadamente, de ações para restituição do indevido, podendo essas ações ser intentadas dentro de prazos mais ou menos longos, em certos casos durante o prazo de prescrição de direito comum

Segundo admite o nº 34 desse Acórdão, essa diversidade dos sistemas nacionais resulta, nomeadamente, da falta de regulamentação comunitária em matéria de restituição de taxas nacionais indevidamente cobradas.

 

Em tal situação, como se recordou no n.° 19 desse Acórdão, compete com efeito à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que decorrem, para os cidadãos, do direito comunitário, desde que, por um lado, essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das ações análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e, por outro, não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade)

O TJUE  reconheceu, no nº 35 desse Acórdão C- 231/96,,  a compatibilidade com o direito comunitário da fixação de prazos razoáveis de recurso, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica que protegem simultaneamente o contribuinte e a administração interessada.

 

A doutrina desse Acórdão  C- 231/96 viria a ser completada pela doutrina do Acórdão C-30/02, de 17/4/2004, o chamado Caso Recheio, sobre a compatibilidade com o Direito Comunitário do prazo de caducidade de 90 dias para a interposição de um recurso de impugnação do acto que fixa a prestação tributária, contados a partir do seu pagamento voluntário, consagrado  por essa .

 

Segundo o nº 20 desse Acórdão, se  o  acórdão Edis, já referido, dizia respeito a um prazo de caducidade de três anos a contar da data do pagamento do imposto, ou seja, um prazo claramente mais longo que o que está em causa no processo principal, também resulta desse acórdão e de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que os Estados Membros são livres de estabelecer prazos mais ou menos longos para a restituição do indevido, desde que não tornem impossível ou excessivamente difícil na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

 

No caso vertente, completa o nº 21 do Acórdão C-30/02, deve considerar se que um prazo de 90 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário do imposto, acolhido pelo direito processual português.  constitui um período de tempo suficientemente longo para permitir ao contribuinte tomar, com todo o conhecimento de causa, a decisão de interpor um recurso de impugnação e para reunir para o efeito todos os elementos de facto e de direito necessários.

 

Assim, as referidas normas do CPT não consagram um prazo de reclamação ou impugnação de tal modo exíguo que inviabilize ou dificulte excessivamente o exercício dos direitos que reconhecem.

Não violam, assim, isoladamente ou no seu conjunto, o nº 4 do art. 268º da CRP que reconhece aos administrados a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.

 

8-   Decisão

 

Termos em que, o Tribunal decide:

1.            Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, incluindo o pagamento de juros indemnizatórios, e, em consequência, manter na ordem jurídica as liquidações adicionais identificadas supra, no montante total de € 4.648,53quatro mil seis centos e quarenta e oito euros e cinquenta e três cêntimos);

2.              Condenar a Requerente nas custas do processo, dada a improcedência total do pedido.

 

9. Valor do processo

 

 Fixa-se o valor do processo em € 4.648,53 (nos termos da alínea a) do nº 1 do 97.º-A, n.º 1,do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT)

10. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi julgado totalmente improcedente, nos termos do nº 2 do art. 12.º, n.º 2, e do nº 4 do  22.º ambos do RJAT.

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Outubro de 2021

 

O Árbitro Singular

(António de Barros Lima Guerreiro)